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segunda-feira, 28 de maio de 2018

ARTEIRO



Quando menino, sonhava em ser mágico. A velha fralda que se fazia de reluzente capa e a varinha improvisada com um galho de cajueiro renderam-lhe os poucos momentos realmente felizes de sua vida. Seus números mais notáveis consistiam em transformar pedras em calangos e fazer desaparecer as pitangas atiradas à cisterna. Tinha como plateia a cadela Nanica, uma gasta fotografia de Vó Benta e a cabeça de uma boneca, encontrada à beira do córrego que cortava a fazenda dos Calixto.

A mãe não gostava daquelas brincadeiras que distraíam o menino do trabalho no plantio e da instrução religiosa. Indiferente às súplicas do filho, o ramo delgado foi partido ao meio e a indumentária esvoaçante transformada em pano de chão. Fazer o quê? Era para a graça de Deus e bem de seu rebento.

Teimosa, a magia perseverou clandestina até a primeira seca, quando se transformou em desgraça. O pai ― pendurado pelo pescoço em um caibro da pobre casa de taipa ― havia realizado seu último truque: Escondera a própria alma em um pecado sem perdão.

Após o agourento sumiço da cachorra e antes que a terra rachada se partisse de vez e os engolisse faminta, decidiram fugir para a capital. Lá eu serei artista de televisão, fantasiava o menino à medida que se esquecia das bolhas dolorosas que se formavam em seus pezinhos errantes. Quando chegassem à rodoviária, a mãe tocaria pandeiro, ele cantaria para os passantes e, com o apurado, comprariam duas passagens só de ida. Talvez sobrassem alguns miúdos para um sanduíche de pão com ovo antes do sonhado embarque.

Retirantes, estrangeiros na metrópole, alojaram-se no barraco de um parente que os obrigava a trabalhar mais do que um dia haviam lidado no campo. A fim de garantir o teto de zinco sobre suas cabeças, a mãe cedeu aos abusos do cunhado e o filho ao sadismo do tio. Sofriam agarrados aos santos que, cansados de tantas súplicas, fingiam-se de barro.

Todos os dias, sob um sol de cozinhar cabelos em suor, o pequeno vendia limões nos sinais, enquanto olhava para dentro dos carros e sonhava com a vida daqueles outros meninos, de mochilas repletas de histórias e lancheiras que não conheciam uma tarde de fome e sede.

Os limões e o sol giravam no ar. Orbes, esferas, movimento. Poucos assistiam ao espetáculo do engenhoso malabarista e ninguém se dignou a aplaudi-lo. O sinal abriu no mesmo instante em que uma bofetada do tio despertou-o de suas criativas escapadas. Um motoqueiro riu da agressão e, malvado, passou de propósito por cima de um dos frutos caídos.

― Acunha, estropiço! ― gritou o tio, ao arrancar o sobrinho de sua solitária apresentação ― Se tu quengar minha mercadoria, eu te cubro de cascudo e sabacu. Tu tá pensando que é o quê?

― Eu sou artista! ― gritou o menino. Depois, meteu o pé na carreira. Vagueou por horas, até suas magras pernas não aguentarem mais sustentar o corajoso equilibrista que era.

Em uma torneira de jardim, tomou um generoso gole d’água e refrescou sua nuca. Menos afogueado, deu-se conta de que se encontrava em uma praça viçosa, arborizada. Deitou-se para descansar em um dos bancos de madeira e encolheu seu frágil corpo até desaparecer diante do olhar daqueles que por ali passavam.

Sob o manto da noite que se insinuava, sua inquieta cabeça formulou um último pensamento antes do porvir:

― Amanhã, vou ser domador de fera ― sussurrou para si mesmo o jovem artista e, em seguida, adormeceu menino pela última vez.  


Emerson Braga






sexta-feira, 25 de maio de 2018

A angústia do dirigente na iminência do embate



Estou nervoso, Lampreia!; acha que vamos conseguir mostrar um bom jogo no domingo?
Presidente, estou convencido que vai ser dos melhores da temporada.
Ah, ótimo! Adoro desfrutar de uma partida de futebol, no seu conceito mais puro: o embate vigoroso entre duas equipas de garbosos mancebos, virtuosos no tratamento de uma bola com os pés, envolvidos numa sã competição inspirada no lazer varonil, e comandados por duas mentes altamente estratégicas que analisam ao pormenor as forças e as fraquezas da equipa adversária.
Felizmente, nisso, somos dos melhores.
O adversário é difícil, hem!?
Muito difícil! Tive de chegar aos oitenta mil.
Então, quer dizer que estamos com força anímica para vencer!
Com tendência para 3–1. É o que está combinado.
1?
Presidente, fica sempre bem um golo de honra, para abrilhantar a nossa vitória.
Mas, a forma física deles parece estar em alta.
Sim, mas a preparação física de véspera vai incluir uma jantarada bem regada. Só para alegrar um pouco a noite.
Jantarada é uma boa solução. E os nossos, estão motivados?
Muito! Já lhes lembrei que a claque ficaria muito aborrecida se eles não se esforçassem.
Ah, pois ficaria! E não é para brincadeiras…
Para nenhum se esquecer disso, já marquei uma conferência de balneário para a próxima terça.
Conferência de balneário parece-me bem. E os árbitros?
O costume: fruta ou chocolate, conforme os gostos. Fruta russa e chocolatinhos de Cabo-Verde.
Não há nenhum com gostos menos exóticos?
Um preferiu um voucher para uma digestão em Ibiza.
Muito bem, Lampreia! Gosto de ver tudo bem encaminhado, mas, sabe, às vezes, temo que este desporto transmita, aos mais novos, uma imagem de competição desregrada; que se perguntem onde fica o desporto pelo desporto, o prazer do esforço físico, o ideal de que o importante não é a vitória, mas sim a participação.
O clube tem sempre esse lema como bandeira: participação. Queremos que as claques compareçam massivamente no estádio, com todos e com tudo — cornetões, matracas, very lights — sobretudo quando a bancada adversária for poderosa ou os árbitros pouco propícios. A bola é redonda e o nosso clube não tem proteção celeste, digamos assim; precisa de ajuda.
Muito bem, Lampreia! E a pedagogia social, o fair play, a gentileza para com o adversário? Não nos esqueçamos que os jovens copiam, na vida de todos os dias, o que observam em campo!
Se o Paulinho Quebra-ossos tiver de meter os pitões na cara do Juvenal Gazela e lhe quebrar os queixos… é chato, mas é a vida. Às vezes, é a única maneira de acalmar um espírito demasiado fogoso e impedir um golo certo. Só podemos esperar o fair play do Juvenal de dar a outra face, não é?
Isso mesmo. Aprecio o espírito cristão.
Os espectadores gostam sempre de ver uma boa metáfora bíblica. Estamos à espera de quarenta mil.
Como é isso, Lampreia? Pensei que o estádio só comportasse trinta e três mil!
É! Não pude suportar a imagem de sete mil rostos juvenis, chorosos por não conseguirem ingresso.
Ah! Muito bem, Lampreia!; vejo que tem bom coração.
Obrigado! O desporto sadio toca-me fundo. Acredito que é o melhor sustentáculo de mentes saudáveis e um formidável gerador de cidadania responsável.
Estou absolutamente de acordo. Isso e uma imprensa livre.
Sim, sai amanhã mais uma dose das escutas aos nossos adversários, e que já enviei aos jornais de referência: Offside, Penalty e Hat-trick.
É isso que precisamos — jornalismo desportivo de investigação.
Já avisei os repórteres que a avença está a pagamento.
Perfeito, Lampreia! O desporto deste país nem sabe quanto lhe deve. Nem o clube de todos nós.
Cerca de seis milhões. Já fiz as contas. Mas não se preocupe — o perdão do empréstimo bancário do Banco Benemérito Nacional ao clube já está assegurado.
Nem sei como lhe agradecer, Lampreia!
Sugiro um apoio vigoroso do clube à minha candidatura autárquica!
Pode contar com ele, Lampreia! Um amigo na Câmara é bom para o clube e é bom para o desporto. Bola para a frente!

Joaquim Bispo

*
Imagem: Jean-Baptiste Oudry, Uma Lebre e uma Perna de Cordeiro, 1742.
(Natureza Morta)

* * *






segunda-feira, 21 de maio de 2018

Diva


Entrou um tanto cabisbaixo na loja de lingerie do shopping congestionado pelo temor em ser reconhecido. Tremia ante a possibilidade de deparar-se com alguma amiga da sua esposa em tão inusitado local para uma figura masculina. Perguntas maliciosas certamente seriam a tônica do hipotético encontro. Logo ele, um preservador de sua imagem de homem integro, temente a Deus até as entranhas, bom pai de família, marido exemplar. Fez menção em dar meia volta e abortar o plano traçado há meses quando uma vendedora aproximou-se exibindo um sorriso artificial, perguntando-lhe o que desejava. Suores transbordavam de sua face, traçando afluentes pelo pescoço, empapando o colarinho. Pediu uma calcinha vermelha. “Qual o tamanho?”, inquiriu a vendedora. “A menor que você tiver”, respondeu timidamente. Comprou ainda um sutiã, cinta-liga e meias, todas escarlates como a calcinha, sendo esta minúscula, menor do que já se poderia ser chamado de um modelo indecente.
Continuou sua insólita romaria por uma loja de sapatos. Comprou um salto alto, agulha. Atravessou em seguida o corredor do shopping preparando-se para sua mais audaciosa tarefa: a compra da peruca. Diante da vendedora, uma senhora com ares aristocráticos, a encará-lo de modo interrogativo, pediu uma peruca loira, comprida, fios até a cintura.
Pelos corredores do shopping descobriu um quiosque onde eram vendidas tatuagens temporárias, em forma de decalques. Adquiriu a figura de uma maçã, pecadoramente mordida. Quando já deixava a catedral de consumo, bateu com a palma da mão direita no alto da careca. Estava esquecendo um dos itens mais importantes: um aparelho de barbear.
Chegando a casa, encontrou a esposa ansiosa pela sua demora. Sem delongas ela se apoderou das bolsas de compras e foi para o quarto montar-se. O conjunto de cinta-liga, sutiã, meias e calcinhas, caíram-lhe bem no corpo balzaquiano. Os sapatos ficaram apertados. O esposo nunca acertava o número que ela calçava. Já a peruca construiu na mulher uma aparência germânica, a despeito da cor amorenada de sua pele. Quanto à buceta, o próprio marido fez questão de depilar. Ela arriou as calcinhas até os tornozelos. Sentimentos conflitantes de medo e excitação a assaltaram enquanto permanecia de pé, pernas abertas, sentindo o aparelho de lâmina afiada, impecavelmente manejada pelo marido, raspando-lhe o púbis. Como toque final, a tatuagem em forma de maçã mordida foi estrategicamente decalcada no lado esquerdo de sua bunda.
O homem não cansava de encarar, encantado, a nova mulher que concebera. Batizou a personagem interpretada pela esposa de Diva. Após doze anos de um casamento levado a banho-maria, Diva seria a sua primeira amante.





domingo, 20 de maio de 2018

A SENHORA DOS SOLITÁRIOS

- Senhora, o Dr. Marcondes avisou que não vem para o jantar.
Ana Beth levantou a sobrancelha esquerda, sem tirar os olhos da mesa desabitada 
dos filhos crescidos e de um marido cada vez mais abduzido pelo mundo dos negócios. 
Sinalizou em silêncio para que a sopa pudesse ser servida.
                                                                                   
- Senhora, seu sexto sentido não falhou: aqui está a prova de que seu marido tem uma amante.
Ana Beth examinou as fotos entregues por um detetive particular. Marcondes chegava de táxi 
à porta de um hotel no centro da cidade, acompanhado de uma loura com idade de ser sua filha. 
Na sequência, andavam de mãos dadas em direção à portaria. Ela ainda para e dá uma ajeitadinha 
na sandália de salto. Moça fina, disse o detetive.                                           

- Senhora, aqui estão mais detalhes do affair.
O detetive expõe minúcias da investigação. Marcondes e a loura encontravam-se uma vez por 
semana neste mesmo lugar. Não se tratava de uma amante alucinante que pudesse
ameaçar o casamento. Era uma garota de programa, universitária de moda, danada de
bonitinha e carinha de capa de revista. Só queria se divertir e fazer um negócio: receber sua
parte de quem tem muito em troca de algumas horas semanais de sexo e auto estima a quem
beirava o ocaso da macheza.
                                         
Ana Beth se sentiu apunhalada entre a cervical e as escápulas. De nada adiantaram anos de 
plástica e botox, ginásticas localizadas e spinning, silicones, depilações a laser, bronzeamento 
artificial, luzes e chapinhas. A verdade é que o marido estava prevaricando com uma menina 
bem mais nova e fogosa, com tudo no lugar, de pele macia e peitos naturais. Não caiu na história 
do detetive de que garotas de programa não abalavam casamentos. Para ela, sexo fora de casa, 
com amantes assumidas, ou marafonas, ou casinhos de embriaguez, ou desfrutáveis inconsequentes, ou mesmo bonecas infláveis, era tudo a mesma coisa. Por outro lado, Ana Beth não sabia o que fazer. Chegou a pensar por que diabo procurou um detetive. Não imaginava obedecer a seus ímpetos de mulher traída e sair por aí a se esfregar em tórax malhados de academias, sentindo novos invasores de seu corpo, ouvindo sussurros revigorantes. 

Ana Beth dependia de Marcondes até para mandar a criada comprar pão ali na esquina, numa total sujeição ao provedor da casa, que por sua vez, ao perceber a mulher de cara amarrada – e ser chicoteado por uma culpa algoz -, um dia chegou cedo para o jantar, sem mais nem menos, com um agrado. E que agrado: um solitário da Tiffany´s, encomendado ao seu doleiro contrabandista. Os olhos de Ana Beth se encharcaram, tambores rufaram dentro do peito, as maçãs do rosto formigaram, surgiu um sorriso encabulado. Muito menos pelo gesto, muito menos pelo mimo em si, muito mais pela ideia ardilosa que teve, diante do brilho multifacetado da joia.

- Senhora, só para eu entender a sua proposta: a madame põe um detetive particular na cola do seu marido, descobre que ele anda saindo comigo, consegue meu celular e liga para mim, pedindo pelo amor de Deus para eu manter este caso eternamente. Certo? 
- Perfeito!
- Em troca, sem que ninguém saiba, num acordo de mulher para mulher, a senhora promete depositar na minha conta o mesmo que ele me paga, certo? 
- Certíssimo, menina. Você não é nada boba...
- Ou seja, vou receber em dobro para aturar seu marido babando em cima de mim. É isso? 
- Exatamente, minha filha.
- Por mim, está feito. Sou uma profissional. Mas acho que a senhora é meio maluca.

Um ano depois. 
Ana Beth entra no seu closet e retira do fundo do armário de calcinhas e sutiãs, uma caixa de joias majestosa e aveludada. Como criança diante de um álbum de figurinhas incompleto, admira embevecida sua coleção de mimos mais recentes: diamantes e solitários Tiffany´s, Boucherons, Harry Winstons, Van Cleefs e Cartiers. Escolhe um deles, gosta, não gosta, põe no dedo anelar esquerdo, estica o braço, movimenta a cabeça, franze os lábios, enfim, decide-se. Diante do espelho, leva a mão de unhas bem feitas às têmporas, ajeita os cabelos, gosta da última plástica, sorri enviesada e discreta. Tudo combinando: brincos, anéis, colares e estado de espírito. 
Está se sentindo linda e poderosa. Pronta para sair para jantar com seu marido Marcondes e um casal de amigos. Em grande e perfumado estilo.





quinta-feira, 17 de maio de 2018

O atirador de facas - Poema de Eliza Caetano Alves





O atirador de facas



O atirador age calmo e morno
mesmo o sangue do baço perfurado
mesmo o sorriso de olhos fechados
ganha o jogo quem acertar sem querer


O herói do circo é o atirador de facas
aos olhos da moça pregada na parede
seus olhos tremem


O que ela quer
receber facas pelo corpo
o fio dos dentes do atirador de olhos azuis partindo suas postas.


Era uma vez uma garota na ponte
eram olhos de correnteza que a fitavam lá
de baixo.
Atirador, ela é nas suas mãos
retalhada de olhos fechados
de olhos abertos
fixos em seus olhos de correnteza azul.


Enquanto você gira para atirar
seu sorriso é morno
e seus olhos continuam
correnteza. Suas mãos
e meus olhos são
castanho–escuros.
Enquanto você ganha
meus seios e pele, enquanto,
querido atirador, escrevo
uma carta e mostro
o caminho para suas lâminas
sei que você tentará acertá–la.
Me atire, a garota na ponte,
o sorriso na ponte,
seus olhos de correnteza azul
na ponte.





Do livro O Caderno das inviabilidades, Editora Urutau.







quarta-feira, 16 de maio de 2018

O rato


Nunca tivera um animal de estimação. Nem em criança. Nada de cães, gatos, passarinhos, tartarugas. Por isso se desconheceu naquele desejo desenfreado de ter para si um rato. Bicho feio, cinza, cheio de bigodes sombrios, dentuço. Ele mesmo tinha sido dentuço em criança. Será que... Não, não era isso. Identificou-se com o bicho por outro motivo que não sabia qual. Não importava. Decidiu: queria o rato. Teria o rato. Encurralou o animalzinho num canto, o mais gentilmente que pode, e entre pedidos de desculpa e pedaços de queijo conseguiu prendê-lo numa caixa de sapato em cuja tampa havia feito pequenos furos. Dia seguinte saiu cedo e foi para a loja de animais. Olhou, olhou, mas não comprou a casinha de vidro transparente cheia de buracos simétricos para entrar o ar. Pensou na quantidade de luz e calor que o material iria concentrar e teve pena do bicho. Claridade demais para um ser das sombras. Deixou o pequeno dentro da caixa mesmo e começou a alimentá-lo com tudo o que imaginou que um roedor pudesse gostar.
A casa improvisada foi instalada em cima da cômoda do seu quarto. A cada três dias, ele removia o animal para outra caixa, nova e limpa. Era a única ocasião em que se viam. Cara a cara. Cara a focinho. E ele confessou a si mesmo que já amava Carrapato. O nome caíra bem. A intimidade caíra bem. Na verdade, era ele quem não desgrudava do animal, mas gostava de pensar que a recíproca era um fato. O bichinho precisa de cuidados, de um lar melhor — finalmente se convenceu. — Amanhã eu vou ver isso. Levou o rato ao veterinário na manhã seguinte, evitando os olhares surpresos da maioria dos clientes.

Não, ratos não tomam vacina. A gente pode fazer uns exames de sangue para investigar a saúde dela, disse o doutor. É uma fêmea.

Saiu de lá carregando, finalmente, a casa de vidro de dois andares e rezando para que o exame de sangue não acusasse nada. Mesmo sem saber por quê, sentiu-se desconfortável com a notícia de que Carrapato era uma fêmea. 
O animal pareceu ficar feliz com a nova casa. Adaptou-se logo ao novo lar e em pouco tempo já dava voltas na escadinha circular colocada no segundo piso. Ele teve certeza de que havia feito a coisa certa. Agora, podia enxergar o bicho comendo, bebendo, brincando, dormindo. Companhia dia e noite.
Nunca se dera bem com gente, essa massa complicada e cheia de humores e vontades e dissimulações e maldades. Definitivamente, as pessoas o assustavam. Não que elas prestassem atenção nele. Nem o notavam. Mas era a mera possibilidade de um dia o notarem que o apavorava. A cada vez que um olhar mais prolongado cruzava com o seu na rua, no mercado, no ponto de ônibus, sentia os pelos dos braços e das pernas se eriçando como se tivesse levado um choque. Deixava de pegar um ônibus, virava uma esquina antes do quarteirão de casa, desistia de comprar leite e pão, mas fugia, assustado, para bem longe daqueles olhares pousados. Por isso, preferia a noite. A ausência da luz enjoada do sol o acalmava e confirmava a invisibilidade que escolhera para si. Quando o breu tomava o céu, abria as janelas de casa e se sentava no jardim iluminado por apenas duas lâmpadas instaladas no chão. Às vezes cuidava das flores, que plantara num desenho ousado, e da pequena horta doméstica onde algumas verduras brotavam bem cuidadas. A pouca iluminação permitia que sombras engraçadas, agigantadas fossem projetadas na parede branca da fachada da casa e nos muros altos que faziam limite com a esquina da rua, à esquerda, e com a casa de um vizinho, à direita.
Naquela noite, sentou-se ao sereno e colocou ao seu lado, sobre um banco alto, a casa de vidro. Primeiro, Carrapato agitou-se. Mas, de repente, ficou muito quieta, como se a noite a tivesse acalmado. Ou não. Assustado, ele achou que o animal poderia estar passando mal. Abriu a porta da casinha, ansioso, e pegou bichinho, segurando-o bem em frente ao rosto. Viu os olhos brilhantes, maliciosos, quase ao mesmo tempo em que levou a mordida. Não gritou. A dor maior foi por dentro. Dor de mágoa, de surpresa. Soltando o animal, levou a mão rapidamente ao rosto. Sangrava no nariz, onde os dentes afiados tinham se fincado. Carrapato aproveitou o momento e fugiu. Desconsolado, desorientado, sofrendo, ele não sabia se procurava o bicho ou se cuidava de si mesmo, prática incomum. Relutou por mais de uma hora até perceber, pelo tamanho do inchaço, que teria que ir a um hospital.

O que houve?, perguntou a enfermeira na triagem. Mordida de rato, ele respondeu acabrunhado. Capturou o animal?

Capturar? Não, ele não sabia onde Carrapato estava. Queria saber. Mas não seria naquela noite. Sob o efeito das injeções que precisou tomar, dormiu um sono pesado. Pela manhã, acordou cheio de culpa. Eu devia ter procurado por ela ontem mesmo!, se recriminou, sem perceber que chamou Carrapato de “ela” pela primeira vez. Vasculhou todo o jardim, procurou nos bueiros perto de casa, nas latas de lixo, mas nada. Depois de muito tempo, exausto, convenceu-se de que o bicho tinha ido embora. Resignado, e mais pela saudade que pelo hábito, limpou o bebedouro, o comedouro e trocou o forro daquele latifúndio de dois andares.
O nariz ficou curado. A crença nos bichos, nunca mais. Nocauteado pelo que acreditava ser uma grande ingratidão, deixou de comer, de beber, de tomar banho. Evitou o sol, a luz das lâmpadas e mesmo os espelhos. Abandonou as noites de sereno, as flores e as verduras. E se convenceu de que os animais eram exatamente como os homens, desprezíveis, egoístas, maus. Sem vontade de pensar ou de sentir mais nada, encolheu-se na cama imunda de cheiros e fluidos, até que primeiro morreu, depois deixou de respirar.
No quintal apagado, sem sombras na parede, dois olhos curiosos brilharam na entrada da casa de vidro abandonada, e um focinho de bigodes sombrios cheirou insistentemente o ar, procurando por algo. Do lado de dentro, escondidos num ninho bem construído no segundo andar, oito filhotes amontoados abraçavam-se no sono dos recém-nascidos.