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sexta-feira, 28 de maio de 2021

Suspenso


— Vai-te depressa, é o meu marido!

A frase chegou-me ao cérebro em uníssono com o som característico de uma chave a ser introduzida numa fechadura.

Saltei na cama, atordoado e fiquei sentado a olhá-la, um pouco incrédulo.

Ela fitou-me com os seus olhos azuis. Duas pérolas refulgentes na obra de arte que era o rosto emoldurado pelo cabelo encaracolado escuro.

Por uns instantes, uns segundos apenas, gelamos, um frente ao outro, soerguidos na cama onde há tão pouco tempo havíamos dado largas à paixão. Os seus peitos alvos e fartos, de mamilos quase invisíveis de tão rosados, subiam e desciam nervosamente, acompanhando o respirar entrecortado.

— Depressa! — O tom sussurrado e suplicante, trouxe-me de volta à realidade em simultâneo com o ruído de passos pesados no corredor.

— Disseste-me que ele não vinha hoje! — Protestei, recolhendo as roupas de cima da poltrona que havia aos pés da cama. Dei graças pelos meus hábitos de, mesmo enlouquecido pelo desejo, amontoar a roupa toda no mesmo sítio.

— Deve ter trocado o serviço, que queres que te faça? — O sussurro irritado insistia na urgência.

— Não seria melhor acabar com isto de uma vez? — Engoli em seco.

— Estás cansado de viver? — A retórica foi suficientemente elucidativa.

Os passos chegaram junto à porta do quarto e o manípulo rodou devagar. Escondi-me na casa de banho, onde sabia que existia uma saída para o corredor e vesti-me rapidamente, no escuro, enquanto espreitava pela frincha da porta. Na penumbra do quarto, consegui divisar o marido; cerca de um metro e noventa de homem, cabelo cortado à escovinha, envergando o uniforme da PSP e ainda com a arma e o cassetete suspensos da cintura.

— Que porra de situação. — Lamentei-me calçando o segundo sapato e observando-o a espreitar a jovem esposa, que se fingia adormecida.

Esgueirei-me para o corredor às escuras e em passos largos e silenciosos, encaminhei-me para a porta de saída do apartamento. Uma manada de cavalos enlouquecidos corria desenfreadamente no meu peito, enquanto tentava, sem sucesso, abrir a porta que fora fechada com a chave.

Conseguia escutar murmúrios do quarto. Devia estar a tentar “acordá-la” para fazer aquilo que tinha feito comigo nas últimas horas… Porque diabos haveria de voltar tão cedo?

Em vão, apalpei no topo da credencia pelas chaves que me permitiriam sair daquela situação…

Os murmúrios terminaram de repente e o corredor iluminou-se com a luz proveniente da casa de banho que eu acabara de abandonar.

Corri para sala e olhei em volta; aquela divisão que conhecia tão bem, onde cada maple e cadeira tinha uma recordação agradável, em busca de um sítio para me esconder. A única coisa que me pareceu mais adequada foi o sofá; com um salto acrobático, consegui literalmente mergulhar para a parte traseira, comprimindo-me o mais que pude entre a parede e as costas.

O som de passos a entrar na sala… a televisão começou a funcionar… o ruído do cinturão a ser pousado na mesa de apoio e um peso brutal caiu sobre o sofá, esmagando-me ainda mais. Quase não consegui suster um gemido.

Deixei-me ficar, naquela posição tremendamente incómoda, enquanto ouvia a sessão de zapping a decorrer. Ao fim do que me pareceu uma eternidade, levantou-se novamente, dando descanso às minhas dilaceradas costelas e ouvi os passos que se dirigiam à cozinha.

Aproveitei a oportunidade e corri para a varanda, cuja porta abri muito devagar e passei para o exterior… não consegui tornar a encostar a corrediça, que me pareceu ficar presa em qualquer coisa.

Corria uma aragem fria do fim do verão… o céu sem estrelas era providencial e espreitei para a rua… quatro andares abaixo. Lembrei-me naquela altura que, de futuro, deveria incluir, como requisitos na minha lista de escolhas femininas, aquelas que vivessem no rés-do-chão, vá lá, no máximo primeiro andar… e que os maridos não fossem polícias, ou qualquer tipo de agente que incluísse armas.

Eu estava a ficar gelado rapidamente. Na sala, o homem retomara o zapping e de repente, olhou na minha direção, para a porta mal fechada, de onde devia estar a sentir corrente de ar. Ergueu-se e começou a experimentar a corrediça para verificar porque encravava, vi a sua perna sair para a varanda e era óbvio que teria de passar à próxima e ainda mais assustadora tática de esconderijo: debrucei-me sobre a balaustrada e fiquei suspenso no vazio, agarrado aos ferros.

O coração parecia querer saltar-me pela boca. Sentia o corpo todo tremer descontroladamente, sabendo que não aguentaria muito tempo assim. Abaixo de mim, ligeiramente desalinhada de uma eventual trajetória descendente, via a varanda do terceiro piso… conseguira saltar para ali? E depois para a seguinte? Dei graças por não haver ninguém na rua.

Escutei o ruído do isqueiro e a longa baforada que se seguiu… as mãos começavam a doer… se eu o enfrentasse, ele contentar-se-ia com uns socos ou… o mais certo era atirar-me da varanda ou dar-me um tiro… choraminguei silenciosamente a minha estupidez por me ter arrastado para aquela situação.

Estava a achar que não aguentava muito mais, quando vi o morrão do cigarro a voar para a rua, numa trajetória que me pareceu eterna, até ressaltar em pequenas faúlhas no asfalto. A porta da varanda fechou-se.

Tentei regressar à placa salvadora, mas os meus braços não tinham força para erguer o peso do corpo. Com os pés, tateei freneticamente em busca de algo que me apoiasse um pouco e facilitasse a tarefa. Os dedos estavam a fraquejar e iriam falhar a todo o momento. Olhei de novo a varanda abaixo de mim. Tinha de ser! Baloucei-me e larguei os ferros, lançando-me no vazio. Falhei a balaustrada abaixo de mim por uns milímetros e com os braços agitando freneticamente numa vã tentativa de  me agarrar, entrei numa queda silenciosa e interminável.

Saltei na cama, sufocado e encharcado em suor.



Manuel Amaro Mendonça





terça-feira, 25 de maio de 2021

O eremita

 


Na manhã em que foi anunciado o fim das medidas de confinamento social, Jerónimo cortou a ba
rba. Ao fim daqueles meses, já começava a dar ares de monge ortodoxo. Teve dificuldade em concentrar-se na tarefa delicada de rapar a cara, com tanto barulho na rua. Ouviu-se um estrondear de foguetes. O leão estremeceu, inquieto.

Antes de sair, meteu um bocado de pão rijo na boca. Largara-lho, havia dois dias, a pega que vinha aliciando com as larvas que lhe iam aparecendo na despensa. Na rua, foi metralhado pelo ruído infernal de buzinas e carros em alardes de escape. Os passeios iam cheios, como se o perigo de contágio tivesse desaparecido. Parecia que tinha vindo gente de todo o concelho. Abraçavam-se aos magotes, em amizades inesperadas. Bem lhe apetecia apertar a roliça do prédio em frente, que, de uma janela para a outra, o tinha ajudado a acalmar o leão, nos negros tempos do confinamento radical, mas retraiu-se. Sentia-se trôpego.

No meio da multidão, muitos pareciam tolinhos, a lançar olhares para todos os lados, deslumbrados, como se nunca tivessem visto prédios, carros e árvores. Paravam no meio da rua, boquiabertos e atarantados. Abriam os braços, riam, davam gritos estridentes ou roucos, cantavam.

Passou uma ambulância em marcha acelerada — o som terrível da sirene fizera arrepiar muitos —, mas, desta vez, foi aplaudida freneticamente.

Alguns vizinhos cumprimentaram-no; passou um bando animado que o abraçou efusivamente, sem que o conseguisse evitar. Os desconhecidos quiseram depois fazer uma espécie de dança tribal, mas Jerónimo, desconfortável, conseguiu afastar-se.

Manquejando um pouco, rompeu a multidão e atravessou a cidade em direção ao arrabalde, no trajeto mais direto para campo aberto. A um quilómetro da vila, conseguiu voltar a ouvir alguns chilreios, consolo natural que muitas vezes o salvara, no longo ostracismo imposto.

Por associação, lembrou-se do que o encaminhara para ali: as suas árvores, os quatros frágeis caules que plantara, antes da pandemia, numa zona de propriedade incerta no final desse caminho. Tantos quantos os ovos que tinha o ninho de cotovia que encontrara naquele dia que parecia tão longínquo. Temeu pelas suas plantinhas. Duas faias e dois cedros. Passara o tempo chuvoso e já tinham vindo muitos dias de sol intenso e grandes calores.

Em quarenta minutos, chegou à sua floresta pessoal. Quatro raminhos secos, sem folhas, separados entre si por quatro metros — qual mortífero distanciamento social —, era tudo o que restava da sua mais recente utopia. Então, só então, quebrou: foi incapaz de conter o choro. Depois dos meses de cárcere e ascetismo, o vírus dera-lhe a estocada mais dolorosa. Deixou-se ter compaixão de si. Soluçou, sentado numa pedra da berma do caminho, o rosto molhado apoiado nas mãos.

Passados uns minutos, uns piados fizeram-no levantar o rosto. Olhou em volta e avistou um pequeno bando de cotovias, no seu característico voo de impulsos e pausas no bater das asas. Correu à concha moldada na terra, sob uma ervas, onde vira quatro ovos havia tanto tempo. Vazio. Quis acreditar que os ovinhos se tinham transformado em cotovias e agora voavam, vivas e em liberdade. A pandemia matara muitas pessoas — umas de morte corporal, outras de morte social —, mas poupara o desenrolar normal da vida da Natureza.

Voltou para casa, apaziguado — a sua caverna, como gostava de pensar. Agora havia que recomeçar. Dar oportunidade de vida a si e a outras árvores. Sem esquecer o leão, que estava mais morto que vivo.

Joaquim Bispo

*

Uma versão deste conto integra a coletânea em papel (páginas 224 a 225) resultante do II Concurso Literário do Curso de Letras do Instituto Federal do Paraná Campus Palmas, 2020.

*

Imagem: Pablo Picasso, O asceta, 1903.

Fundação Barnes, Filadélfia.

* * *






domingo, 23 de maio de 2021

AMARGA TRAVESSIA

 



 

Pela vibração das tábuas dispostas no piso metálico, sob os pés, percebia-se que o vapor começava a movimentar-se. As roldanas giravam, e hélices iam cortando as águas salgadas. Seriam dias e dias de giros. O mar inteiro seria cortado. O apito grave e moroso traduzia a tristeza da partida. No convés, centenas de passageiros com olhares perdidos e saudosos, engoliam o medo do desconhecido. A névoa da madrugada deixava o cais hispânico cada vez mais distante, cobria o minúsculo contorno da pátria deixada. Não era vontade. A iminência da guerra, a fome e a peste não deixaram escolha. Desolados, muitos partiram...

No dia anterior, passamos a tarde toda em imensas filas, arrastando o velho baú e outras matulas com pertences e provisões. Apresentação dos passes, contagem dos integrantes de cada família, avaliação médica que exigia colocar a língua para fora e puxar o canto dos olhos. Ficamos acomodados no segundo porão, quatro lances de escada abaixo do convés. Cada passageiro, ao chegar ao piso, recebia uma saca com palhas secas que seria usada como colchão, menos as crianças. Estas deveriam aninhar-se com os pais, era preciso economizar espaço.  Eu, apesar dos meus onze anos, como era espigado, recebi uma saca. Teria que dividi-la com Enrico, o irmão menor. A pequena Estelita ficaria com a mãe.

Passada a atribulação da partida, os passageiros encaminhavam-se para os refúgios. De cabeça baixa, cada qual carregava a sua insegurança. O primeiro porão ainda trazia algum conforto. Havia múltiplos beliches de lona, privadas separadas para homens e mulheres. Porão reservado para os mais remediados, com cobrança de ágio. Impossível para nós.

No segundo porão, nosso refúgio, os baús serviam de biombos que separavam as famílias. Centenas e centenas deles espalhados pelo ambiente, formavam ilhas de pessoas. Amontoados de gentes e trastes. De resto, seria aturar aquele balançar interminável, o rebuliço no estômago, o vômito incontrolável.

Em nenhum momento as vozes silenciavam por completo. Havia sempre um resmungo de mal-estar, uma ralha, um choro mais estridente de criança em desconforto, uma fala doce para apaziguar o medo. Sem contar o rame-rame sonoro vindo da casa de máquinas. Porém havia escuridão no céu, cansaço nos corpos, então nem o murmurinho atrapalhava o sono profundo de muitos.   

Confesso que dormi pouco naquela noite. E em muitas outras. Enrico mostrava um desassossego de pernas que incomodava. Não só pelas pancadas, mas pelo ruído das palhas secas. Ele estava sofrendo mais que nós todos. Menino arredio, amofinado. Em casa, vivia pelos cantos. 

O sol nos pegou acordados. Se bem que a claridade do porão era ínfima. O ar e a luminosidade passavam apenas pelas duas escotilhas existentes entre os dois porões e que, na maioria dos dias, permaneciam abertas. O tênue facho de luz deixava à mostra o aspecto lamentoso daquela realidade. Semblantes contrariados. 

De nós, só o pai foi ao convés para o banho de sol. Ficamos ali, engolindo o pão seco trazido na bagagem. A mãe, de pé, tentava esticar as pernas e rodear o velho baú. Havia pouca coisa a ser feita. Ou muita...

O único banheiro era insuficiente para atender a todos, restava recorrer aos urinóis.  As crianças não se acanhavam, mas, para os mais velhos, o uso ficava restrito à escuridão da noite.  E de manhã, para esvaziá-los, era uma conturbação de mulheres na porta do banheiro. O cheiro ficava insuportável. Com o balanço das águas e a fetidez do ambiente, as náuseas multiplicavam-se. E a travessia ainda estava no início.

Enrico não se alimentava. Aceitou um pouco de água, que não parou no estômago. Não estava bem. Passou o dia aninhado no colchão. Calado, olhos turvos. Havia, no semblante, mais que mal-estar do corpo. Travava luta de pensamentos. Preocupava-me.

E, a cada dia, a viagem tornava-se assustadoramente desumana. Passada a primeira semana, as provisões escassearam. Não tínhamos quase nada. O pão, mesmo embolorado, seria suficiente apenas para mais dois dias. A sopa servida a todos, além de insípida, era desprovida de nutrientes e de higiene.

Ficava evidente o abatimento físico dos passageiros. Os homens já não se entusiasmavam pelo jogo de cartas, fumavam desesperadamente, e a bebida tornou-se ainda mais companheira. Havia muitos passageiros acamados. Pouco se comentava sobre isso, era quase um tabu tocar no assunto. Quando a tosse era ouvida, as famílias em redor se entreolhavam, porém nada, absolutamente nada era dito. Tornou-se um segredo respeitoso, que na verdade não era segredo. Era medo, camuflado pavor.

Enrico definhava a olhos vistos. Calado, insone, inapetente. Ouvia tudo, observava. Notava os menores movimentos. E temia. Na escuridão da noite, bem próximo a ele, eu percebia que quando qualquer passageiro era acometido por crises de tosse, ele erguia a cabeça e olhava em direção do ruído. E as crises foram se tornando tão frequentes que nem mesmo as vozes das mulheres entoando os cânticos religiosos encobriam o som assustador.

A superlotação era tamanha que o ar foi se tornando irrespirável. Os corpos sujos, sem qualquer zelo, as roupas impregnadas com o suor de semanas, os cabelos ensebados, o piso lambuzado de vômito, urina, restos de comida e bebida, o banheiro e os urinóis sujos, tudo exalava um azedume que embaralhava o juízo.

Ainda era noite, e, de repente, Enrico começou a puxar minha perna. Foram vários cutucões até que eu percebesse que ele queria me mostrar algo. Ainda meio sonolento, pude ver pessoas da tripulação descendo as escadas, trazendo maca de lona.  Em meio a choros abafados, rezas sussurradas, o passageiro era colocado na maca e carregado escada acima. E isso aconteceu na outra noite, e na outra, e na outra.

Logo a notícia correu. A febre estava no navio. O caso nunca era contado pela família do doente. Era revelado pela família que estava acomodada ao lado, horrorizada com a possibilidade do contágio iminente. E, desta maneira, o pavor passou a dominar os dias e as noites.

O pai disse que os primeiros casos apareceram no porão de cima, que até mesmo o médico da tripulação fora contaminado. E a partir daí, o convés passou a ficar ainda mais apinhado durante todo o dia. Os homens, aterrorizados, quase não voltavam para os porões. Enquanto houvesse sol, ficariam ao ar livre. O risco seria menor... Ou não.

E o médico morreu. Uma solenidade rápida foi feita e ele foi lançado ao mar. Quando o pai nos contou sobre isso, Enrico encolheu-se na cama, abraçou as pernas e pôs-se a tremer. Era um medo tão desmesurado que afligia. Frágil, indefeso. Deitei-me ao lado dele e o abracei com força. Fiquei ali até que o tremor passasse. E ele dormiu.

Então compreendemos que as pessoas que eram retiradas com as macas não eram tratadas, não havia médico. Eram lançadas ao mar, vivas. Muitas delas nem sabiam que estavam sendo levadas, estavam mal, delirantes. As famílias sabiam que  não estavam mortas, e também sabiam que elas não poderiam continuar ali. Sem escolha.

As noites passaram a ser ainda mais tristes, como se fosse possível. Mesmo com a explicação do pai de que não havia chance de cura, de que a febre era fatal, Enrico não conseguia assimilar. E passava a noite contando os passageiros carregados nas macas. E tremia. E, mansinho, chorava.

A mãe andava tão entristecida que já não catava os nossos piolhos. A cabeça coçava, ardia. As picadas faziam feridas. Ela mostrava olhos fundos, havia perdido carnes, a pele estava pálida, azulada. O rosto murcho, desidratado. Silente. Não se ouvia mais o seu canto de anjo, as rezas ficaram mudas. Percebia-se apenas o movimento dos dedos nas contas do rosário.

E havia pessoas que gritavam ao serem transportadas nas macas. Não tinham força para lutar, só sobrara o grito. Só isso. Sabiam do destino que as esperava. E quando isso acontecia, todos choravam. Enrico se descontrolava. Eu o abraçava com força.

Acomodado ao nosso lado, havia um casal. Apenas os dois. O homem aparentava mais idade, a mulher era bem jovem. Ela vomitava desde que o vapor deixou o cais. Estava pele e osso. Andava pouco, tomava a sopa mostrando a repugnância que lhe causava, mas tomava.  O homem estava sempre a buscar uma caneca com água para que ela bebesse. Havia muito carinho entre os dois. Demorei a perceber que ela estava prestes a ter um filho. O excesso de roupas não permitia visualizar a silhueta. Só fui saber quando ela começou a chorar, a gemer e minha mãe correu até ela para acudir. 

Foi levada para um canto e várias mulheres se juntaram. Horas de agonia até que a criança nascesse. Um menino. Miúdo, de chorinho fraco. A mãe, quando voltou, falou que a criança não vingaria, que respirava com muita dificuldade. Veio antes do tempo.

A mulher voltou para perto de nós quase desfalecida. Ajeitou-se sobre o colchão de palha, mas perdia muito sangue. Colocou a criança ao lado e ambas dormiram. Já era madrugada quando começaram os gemidos. Na penumbra, o marido entendeu que ela estava muito mal. Assustou-se quando não encontrou a criança. Perguntou sobre o filho, mas a mulher fez sinal para que ele ficasse quieto, não queria que o acordasse. Ela dizia que a criança estava bem, que estava descansando. O homem achou muito estranho e começou a rodear os pertences em busca da criança. Quando abriu o baú, caiu no choro. O filho estava lá dentro, gelado, morto. E na hora da entrega do corpinho para a tripulação, todos choraram. A mulher variou o dia todo. Gemia, sangrava, delirava. Na noite seguinte, foi levada. Não sobreviveu, o sangramento não cessou.  E o homem ficou só. Quieto, sem lágrimas. E Enrico se contorcia de pavor, não perdia uma cena, uma palavra.

O vapor estava bem próximo do destino. A febre consumira quase metade da tripulação e passageiros. O espaço dentro dos porões era bem maior, e a sujeira também. De nós, apenas Estelita apresentava quadro de saúde preocupante. Recusava-se a comer, queixava-se de dor na garganta, vomitava com mais frequência. A mãe vivia encostando as costas da mão na testa da menina, medo da febre. E ela veio. Intensa. Em dois dias, Estelita foi levada pela tripulação. Eu não soube se estava viva ou morta. A mãe nunca falou. Só chorou. Chorou por dias... Chorou a vida inteira.

Em alto mar, outro navio nos interceptou. Teríamos que guardar quarentena a quilômetros da costa. Alimentos foram trazidos para reabastecer a cozinha, banhos foram oferecidos com jatos d’água. E os médicos seriam disponibilizados uma semana depois, quando então seríamos colocados em outro navio.

E nesta última semana a bordo do antigo navio, ocorreram as últimas mortes. Muitas. Os mais debilitados não resistiram, e os demais, como nós, empenharam-se em engolir a intragável sopa com mais tolerância. Era a única salvação.

Depois da transferência, foram mais doze dias para atracarmos no porto de Santos. Destroçados, descarnados, de almas amputadas, mas vivos.

 

***

 

Minhas pernas cansadas fizeram este caminho centenas de vezes. Agora, andam trôpegas. Talvez as visitas cessem, não por minha vontade, mas por exigência da vida. Ou da morte. Ainda preciso abraçá-lo. Isso o acalma. Sempre foi assim.

Quando me vê, Enrico abre um sorriso. Já não caminha. Apesar de ser mais novo que eu, a vida foi mais severa com ele. Fica à minha espera no banco do minúsculo jardim da casa de custódia. Aninha-se no meu abraço forte. Aquece-se do meu amor. E é sempre a mesma conversa.

- O pai não veio com você? A mãe não veio?

- Não, Enrico. Eles não vieram.

- Eu sei. Eles não entendem que eu não matei as pessoas. Eu não matei aqueles doentes, eles iam morrer de qualquer jeito. Não havia cura, a doença era fatal. E aquelas crianças, eu não matei! Elas só estavam descansando... Eu juro! Por favor, Manolito, converse com eles, eles vão acreditar em você!

- Acalme-se, Enrico, eu vou falar com eles.

Como explicar a ele que a mãe morreu logo que ele foi preso, e que o pai, alucinado, partiu logo em seguida. Será que compreenderia? Enrico trabalhava como auxiliar de limpeza do hospital. Serviço pesado. Cuidava desde o recolhimento de resíduos das lixeiras, dos descartes cirúrgicos, do ensacamento e acompanhava o transporte para as fornalhas de incineração. As mortes ocorreram na ala da enfermaria, sempre no turno da noite. Nunca se soube quantos morreram. Todos indigentes. O último crime foi evitado em razão do grito do paciente, ouvido pelo operador da caldeira, quando ia ser arremessado ao fogo. E, então, Enrico foi preso.   

  

                                                         ***

 

E, um dia, quando cheguei para a visita, o banco estava vazio. Enrico havia sido levado pela tripulação.

 

                                                                                 

 

                                                 Regina Ruth Rincon Caires





quinta-feira, 20 de maio de 2021

O REI DOS MARES






Todo fim de tarde, meu avô Jovelino pegava minha mão e me levava à beira do cais 

de Barra do Ibiritiba.  Caminhava a passos curtos e apressados, como se a vida 

ainda fosse urgente. Sentávamos num daqueles pitocos de ferro forte onde os 

saveiros amarram suas cordas para descansar no balanço das marolas. 


Meu avô contemplava o entardecer contando em voz alta as embarcações 

que chegavam.


-  Onze! Onze foram, onze voltaram. Pelas graças de Iemanjá.  


Meu avô não tirava os olhos do horizonte. Eu não tirava os olhos do meu avô. 

Meu avô contemplava o distante com olhos marejados. Eu contemplava meu avô 

com olhos curiosos. E contidos.


Nunca ouvi de sua voz histórias do pescador corajoso e intrépido, arrimo 

da família e manda chuva dos pescadores do vilarejo. Imagino contador de 

vantagens e tempestades, ventos de proa, ondas traiçoeiras de popa, 

borrascas de convés, peixes descomunais, baleias visitadoras, 

tubarões afugentados pela sua braveza.


Meu avô era caladão. Comigo, entre a família e a comunidade pesqueira. 

Nunca recebeu um elogio da minha avó, muito menos gratidão pelo almoço pescado.


Dos olhos do meu avô, sempre escorria uma lágrima de tanto enxergar um mar 

sem fim. Um dia tomei coragem.


- Vô, senhor tem saudade da mocidade?

- Tenho não. 

- Nem saudade dos tempos de rei dos mares?

- Que rei dos mares, meu filho? Nunca soube nadar. Sempre me encagaçava de 

entrar nessa bosta e não voltar mais. 


E mais não disse. E mais não perguntei. Até que franziu os olhos, esticou o 

corpo para frente e me cutucou.

 

- Olhe, siminino! Lá vem o último saveiro. É de Josuel seu pai. 


E fez um sinal da cruz em direção aos filetes de nuvens rosadas. 


 





quarta-feira, 19 de maio de 2021

Substantivar

 


Foi, como se diz, um golpe do acaso. Lucimara não tinha a menor noção que pudesse se envolver com alguém. Não havia, na verdade, a pretensão de se “enamorar”; achava tudo relacionado a isso brega, cafona; que a vida poderia muito bem ser vivida só. “Antes só do que mal acompanhada”, era o lema que carregava aonde fosse.

Estava, sem contar os anos, desde 2008 sem um relacionamento fixo. Disfarçava, com ar de sabedoria, conhecer o destino. Era muito coerente e convicta de suas ações. Havia passado um ano e meio na Irlanda e, lá, trabalhado como garçonete, para angariar algum trocado e se manter firme na posição de senhora da vida. Como dito, era assertiva em seus desígnios e aprendera a língua que julgava ser a ferramenta que lhe abriria as portas do futuro. De fato, assim se fez. Logo no retornar ao Brasil, contra a vontade, conseguiu o emprego no cursinho Avante, onde Alessandro trabalhava como professor de Biologia.

Em distrações de menina adolescente, que esconde os quereres por vergonha, engrenou um romance à socapa com o jovem professor. No entanto, Lucimara pontuara de início, para não restar dúvida: “Nosso lance é casual. Não quero me amarrar. Gosto de você, Alessandro, mas minha vida é meio errante, e faço questão de mantê-la assim; hoje estou aqui, amanhã acolá, e não posso prometer nada nem a mim. A liberdade é o meu único princípio, a razão de tudo”.

Alessandro estava inebriado em paixão, medindo, milimetricamente, onde podia pisar. A cada aproximação mais densa, decisiva, notara que Lucimara se esquivava, dando sugestão de partir. Controlou-se, como se diz, para deixar o passarinho livre, comendo na mão, quando quisesse. Decantava as palavras, para não parecer bobo, ou meloso demais, e, desse modo, não passaria do limite do bom fim.

No cursinho, eram tidos como amigos e, se algum engraçadinho ousasse anunciar um romance, ambos reagiam com rispidez, alegando abuso e intromissão. Era o acordo tácito que havia se estabelecido, para a alegada felicidade do casal.

A provação se deu com menos de dois meses. Alessandro, para seu espanto, soube que havia passado num concurso, que já nem acreditava que teria resolução. O dado crucial, que o fez sacudir dos pés à cabeça, era que teria de morar em outro estado; ou seja, largar tudo em, no máximo, duas semanas.

Decidiu contar à Lucimara, cheio de dedos, ponderando uma vislumbrada indisposição. Pois foi aí que Lucimara sentiu um rebuliço no corpo, estremeceu, de não conseguir, por conta própria, parar as mãos e as pernas. Estava completamente ferida, nervosa e entregue à confusão mental. Alessandro pegou forte em suas mãos, declarando o que havia guardado, para dizer no momento certo: “Eu quero ficar com você… Não me vejo indo só. Pode ser que não acredite em mim, que ache precipitação, mas estou apaixonado, Lucimara. Venha comigo, por favor!”. A confusão, além do mais, era porque Lucimara estava enredada numa história que se comprometera a não acreditar, nos laços do amor. Quis, de súbito, desferir palavras horríveis, para confirmar uma convicção baldada. Não conseguiu. Fez o que mais tinha medo, chorou. Aí, Alessandro percebeu que eram mais que meros amantes; que poderia pensar além.

Lucimara, acanhada com o porte de menininha enlevada, tímida ao extremo do admissível, em seu pensamento, cedeu à convocação inadiável. Com menos de cinco horas, atravessaram a cidade, foram ao apartamento da mulher que ora se confessava apaixonada, invariavelmente com olhos marejados, colheram as roupas e alguns pertences, e rumaram ao cimo do amor.

***

Pelo que se sabe, ainda vivem juntos; nada de papel passado; uma vida natural, como deve ser, respeitando o imensurável princípio da liberdade. Lucimara, com a sua independência arraigada, trabalhava numa conhecida empresa de importação, engajada nos serviços para atender às demandas de tradução. Alessandro, por sua vez, firmou-se como funcionário da estatal, com promessa de ascensão no cargo.

Já não faziam planos. O destino, irmanado ao mistério das casualidades, que se encarregasse de mostrar os caminhos.





segunda-feira, 17 de maio de 2021

Secura - conto de Flávia Helena

 






    Chorou tanto quando enterrou o marido, que parou de menstruar. Tinha vinte e um anos. 

    No início, pensou que estava grávida, e até chegou a sorrir. Se fosse menino, era a esperança de um dia sentir de novo aqueles braços vibrantes, de veias saltadas. E também o cabelo, duro e crespo. 

    Mas logo notou que a barriga, que crescia, não se tornava rija feito aquelas que guardam bebês. Ao contrário. Balançava molengamente, como se, à semelhança de um saco plástico, abrigasse todos os fluidos que ela não mais conseguia expelir. Para acabar com a dúvida, a mãe levou a filha ao médico da família. E assim foi por água abaixo qualquer esperança de que uma partezinha do homem que amava pudesse voltar ao mundo. Nesse dia, ela deixou também de falar. 

    Havia razão para tanto sofrimento. Constâncio tinha sido seu único amor. Daqueles vigorosos e intensos. Mas rápidos. Durou seis meses, que é o tempo exato para que os amores permaneçam para sempre perfeitos. Conheceram-se quando ele chegou à cidade para trabalhar na Companhia de Minérios. Foi numa missa que se viram pela primeira vez. O olhar daquele homem entrou-lhe pelos poros, como se hidratasse pele, útero e coração. 

    Depois de um mês estavam casados. Nesses lugares, achar um sujeito bem disposto e que queira se comprometer é como encontrar uma pepita de ouro. Quando o par se ama, então, é como topar com uma pedra de diamante. 

    Viveram felizes. Muito. Até que a mina que ele explorava desmoronou e Constâncio também se desfez em mil pedaços. Foi velado em caixão lacrado. 

    A mãe dizia que, apesar de tudo, a filha devia reagir. Quando a gente fica viúva cedo assim, deve logo arrumar alguém, se ajeitar depressa, que é a única coisa a se fazer nesse fim de mundo. Mas quem vai querer uma mulher que, além de seca, é barriguda? E ainda por cima não fala? 

    Estava errada. A moça era muito bonita, mesmo seca e carregando aquela barriga mole. Não chegou a passar dois anos sozinha. Ajeitou-se quando veio uma nova leva de homens para trabalhar na mineração. Foi salva por Firmino. Trinta anos mais 

    No dia do casamento, ela voltou a falar. E, apesar do vigor do marido, a secura permaneceu. O que de água havia nela, ficava toda guardada no ventre. 

    Até que, numa manhã, acordou com a barriga diferente. Dura. Como se fosse dar à luz. E pontuda também. Mas não se preocupou, pois sabia que não estava grávida. 

    À noite, quando o marido lhe chamou, fez como sempre, apesar do desconforto. Abriu as pernas. E sentiu por dentro a aspereza da falta de amor. 

    Só que naquele dia, as coisas foram diferentes. Quando Firmino começou a se mexer, sentiu que algo lhe brotava do ventre e saía pelo sexo. Escorreu quente pelo lençol, molhando-lhe as costas e os cabelos. Conforme a cama foi se avermelhando, sentiu o prazer que não experimentava desde os tempos do primeiro marido. 

    Era Constâncio de volta. 

    Sangrou por três semanas. E alegou sentir-se cansada por voltar a menstruar depois de tanto tempo. Sob o pretexto de que precisava fazer repouso e de que poderia ficar anêmica, trancou-se no quarto, sem falar com ninguém, e guardou cada gota que saiu de dentro dela. No começo, era mesmo sangue. Mas depois, não. Passou a eliminar um líquido viscoso e dourado, que cheirava a jasmim. 

    Armazenou tudo em vidros que esconde no fundo de um grande armário. Todos os dias, ao preparar seu banho, mistura à água uma colher de chá da substância milagrosa. Às vezes, quando a vontade é muita, usa o líquido concentrado. Ontem mesmo, lambuzou-se, passando pelo corpo inteiro. Depois riu. O dia todo. 

    No mais, economiza. Quer usá-lo até o fim de seus dias. 









sábado, 8 de maio de 2021

Voltar é Possível


 

Nos poucos momentos de lucidez que a muita medicamentação lhe deixava o Sr. Ramos entretinha-se a recordar a sua bem longa e movimentada vida. Também pouco mais poderia fazer, a fraca vista já não lhe permitia ler, nem sequer os títulos do jornal, e o som da televisão dava-lhe dores de cabeça.

O quarto era confortável e o pessoal muito profissional e atencioso, a filha não se poupara a esforços e conseguira pô-lo num dos melhores centros de cuidados paliativos do país, mas para todos os efeitos tratava-se meramente de uma antecâmara da morte.

Não que a ideia o incomodasse, vivera intensamente os muitos anos que lhe tinham sido concedidos, sempre com boa saúde até ao único — e quase fatal — ataque uns meses antes. E fora realmente uma bela vida!

Começara a trabalhar muito novo, eram outros tempos e esperava-se que todos contribuíssem para o sustento da família, nem sempre se atendendo à idade ou forças de que dispunham. Mas isso não o impedira de ser bom aluno na primária, talvez por ver nos estudos um escape ao esgotante trabalho físico que o esperava se não arranjasse uma profissão. Esperto como era, conseguiu convencer o mecânico da vila a dar-lhe uns pequenos biscates, que se converteram em emprego como ajudante mal teve de deixar a escola com uns meros nove anos — eram mesmo outros tempos.

Mas curioso como era, não se limitou a absorver o pouco que o Sr. Manuel lhe podia ensinar. Nas poucas horas vagas que o emprego e uns biscates que fazia lhe deixavam deambulava pela vila e metia conversa com quem calhava, sempre com perguntas e a querer saber mais sobre tudo. Tornou-se para muitos O Miúdo e quase competiam para ver quem lhe poderia ensinar algo.

Chamado para a tropa, os seus conhecimentos de mecânica tornaram-se úteis e permitiram-lhe um serviço militar diferente e em que muito aprendeu. Podia-se dizer que nenhuma máquina tinha segredos para si, se não sabia não descansava enquanto não descobria como a reparar.

As conversas que tinha com outros recrutas mais educados despertaram-lhe a curiosidade pelo mundo, por ver que mais haveria para lá da sua pequena vila e da vida fechada que ali se levava. Por isso, uma vez acabada a tropa e com uma certificação de mecânico, fez-se à estrada, primeiro a capital, depois outros países cada vez mais longínquos. Descobriu que um mecânico do seu género, tipo faz-tudo, tinha sempre um modo de ganhar a vida em muitas terras mundo fora. E viajou imenso, parando uns meses aqui e ali para ganhar uns tostões que lhe permitissem continuar a sua deambulação.

Conheceu a que viria a ser sua esposa numa vilória como a sua, mas num país distante. Sem bem saber como, convenceu-a a casar-se com ele e a segui-lo na sua vida nómada. Mas quando os dois filhos chegaram à idade escolar, decidira regressar ao seu país natal, não à sua terra mas a uma cidade maior, com mais recursos que lhes permitissem vir a ter uma vida melhor.

Apesar da pena de não ter voltado a viajar — as poupanças que fazia iam todas para os estudos dos filhos e mais tarde para a doença da mulher — não se arrependia de ter tomado essa decisão. Tinham sido bons anos, com dificuldades, claro, mas também com muitos momentos bons.

A eletrónica estragou-lhe de certo modo a vida, mas havia sempre quem tivesse máquinas antigas e não lhe faltava trabalho suficiente para viver e pôr até algum de lado, sobretudo com os filhos já crescidos e a trabalharem.

Sim, tivera certamente uma boa vida, cheia de eventos interessantes e de coisas fascinantes.

Se alguma lástima tinha era nunca ter voltado à terra. Pensara nisso várias vezes, ao longo dos anos, uma vez estivera até perto mas as “modernices” que via na televisão quando mostravam aquela região assustaram-no e desistira da ideia. Queria rever a vila, sim, mas a “sua” vila, aquela onde fora simplesmente o Quim, o Miúdo, não uma versão diferente, melhor, sem dúvida, mas que nada lhe diria.

Os filhos concordavam plenamente com isso e nunca hesitavam em contar-lhe histórias de pais ou tios de amigos que tinham ido à terra após uma longa ausência sofrendo uma tremenda desilusão com as mudanças que tinham encontrado e que a tornavam irreconhecível.

Pensando bem, era melhor assim, tinha as suas recordações, eram suficientes para o ocuparem nas poucas horas que passava acordado ali naquela cama.

E eram cada vez menos, quando fora internado com um ataque cardíaco tinham descoberto que sofria de um cancro feroz e de progressão rápida, por isso as doses de medicamentação iam aumentando e pouco tempo passava acordado.

Mesmo assim, sendo quem era, lutava para manter a consciência o mais tempo possível para ir recordando com os máximos detalhes a sua vida e, ultimamente, quase que exclusivamente a sua terra e as pessoas com quem a partilhara.

Até que um dia...

Sentira-se subitamente mais lúcido do que nos últimos anos. E com uma energia que há muito não tinha. Olhou à volta e viu-se numa estrada, apesar de não se recordar de como lá fora parar. Mas não hesitou, começou a caminhar em passadas largas, a caminho nem ele sabia de quê.

Ao fim de uns minutos, e após uma curva apertada que lhe pareceu vagamente familiar, ei-la à sua frente, a sua saudosa vila. Nem hesitou, acelerou o passo, ansioso por voltar a casa. Sim, a casa, embora a tivesse deixado há décadas. Nem lhe passou pela cabeça que podia não existir, que mesmo que ainda ali estivesse tudo seria diferente. Não, tinha a certeza de que ali estaria, tal como a recordava.

Entrou na vila e as ruas eram-lhe tão familiares como o tinham sido em miúdo. Viu a pequena mercearia, mais loja vende tudo, exatamente como era quando ajudava a D. Teresa com as encomendas. E ali estava ela, baixa, redondinha e de idade indefinida, tal como a conhecera em miúdo.

Mais adiante, o largo da vila, com a igreja a um dos lados e os mesmos velhotes, seus velhos conhecidos e amigos, no banco do costume a discutirem as mesmas coisas de sempre.

Sentindo-se leve como uma pena levada numa suave aragem, tomou por uma das ruas secundárias a caminho da sua casa, no outro extremo da vila, numa zona mais rural que urbana. Ansiava por vê-la e foi quase numa correria que fez as últimas centenas de metros.

E ali estava ela, exatamente como a recordava, com o velho telhado cheio de musgo, o grande limoeiro junto à porta da frente, o portão aberto e de tal modo enferrujado que seria impossível fechá-lo mesmo que quisessem.

Entrou e contornou a casa a caminho da porta das traseiras, o acesso usado por todos, família, vizinhos ou até visitas. Sim, a porta da frente e a sala eram apenas para convidados de honra, se alguma vez aparecessem, e para o senhor padre na manhã de Páscoa quando aparecia com o Compasso.

Sem se preocupar em bater e sem hesitar, entrou para a escuridão da cozinha, sabendo exatamente o que iria encontrar: a mãe sentada à velha mesa, ocupada em descascar coisas para a refeição, o pai, no seu velho cadeirão, a dormitar enquanto esperava pelo jantar, o irmão do meio ocupado com os deveres de casa e o mais novo a brincar com o carro de corda que herdara dos irmãos e que, apesar de baratucho e em bastante mau estado, era o seu enlevo.

Suspirando de alívio, Quim dirigiu-se para o seu poiso usual, um banco corrido por baixo da pequena janela onde se sentava a ler os livros emprestados pela senhora professora: estava em casa.

De manhã, nem o pessoal de serviço nem a filha, chamada à pressa, conseguiram entender o ar sereno, feliz até, com que o Sr. Ramos falecera durante a noite.

Luísa Lopes





segunda-feira, 3 de maio de 2021

1902 - DRUMMOND - 1987

 


Aqui jaz a poesia

em sua forma mais

plena e vigorosa.

Não há, no mundo,

notícias de que ela

tenha sido

melhor cultivada

do que nas terras

ferrosas dos canteiros

de Itabira.