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sábado, 28 de junho de 2014

Show de bola








sexta-feira, 27 de junho de 2014

Concursos Literários





quinta-feira, 26 de junho de 2014

Recruta

Não estava em seus planos apaixonar-se. Desde a separação, há oito anos, só pensava em cuidar dos filhos e honrar o estável cargo público. Tudo caminhava bem, sem rebolados, desvios ou cambalhotas. Nunca mais dera gargalhada. Um sorriso magro era suficiente. Nunca mais saíra dos trilhos. Descarrilar era para cambetas. Bastava ir naquela direção, firme e sempre — para esquivar-se de eventuais escorregos e desastres.

Margarete era assessora de imprensa. Preparava clippings, contextualizava para a chefia os fatos mais pertinentes, agendava entrevistas, escrevia releases. Bem informada, a criatura. Lidava com gente de todo o naipe, peneirava declarações, sintetizava casos emblemáticos. 

Conhecia bastante da vida alheia, mas procurava reservar-se. Gostava de novidade, mas não queria virar notícia. No gabinete, pouco falava de sua vida pessoal. Seu lema era manter a objetividade jornalística e a discrição pessoal. 

O casamento aconteceu de forma planejada, com um namorado da faculdade. Durou até bastante: doze anos. E acabou sem grandes sofrimentos, amor já mirrado. Desde então, optou por não mais se iludir com promessas de afeto. 

Era comum nutrir admiração por homens com quem convivia. Porém, quando ela sentia a iminência de uma paixão, tratava de podar o sentimento logo na cepa para que a decepção não frutificasse.

Margarete só não contava com um novo estágio em sua vida. Naquele bendito agosto, foi contratado pela assessoria de imprensa do tribunal o jovem Márcio, que cursava o penúltimo período de jornalismo na Universidade de Brasília. A vaga foi concorrida: oito estudantes pleiteavam o emprego. Márcio desbancou os concorrentes pela escrita clara e desenvoltura. Redigiu, à queima-roupa, um texto interessante sobre a crise dos Três Poderes no Brasil. Além de cultura, o rapaz demonstrou disposição, simpatia e a maior das virtudes: uma boniteza linda de arder.

Contratado com louvor, o candidato perfeito passou a cumprir vinte horas semanais de estágio remunerado. Enquanto aprendia jornalismo, Márcio cativava, seduzia, enlouquecia Margarete, num vertiginoso crescendo. 

Os colegas notaram a diferença: a mulher renovou, perfumou-se, desembestou a rir alto, passou a falar de si como que a exigir elogios. Estava timbrado em sua testa: APAIXONADA. 

A diferença de idade seria relevante para o belo foca? A incerteza atormentava a chefa. Queria se declarar logo para o moço e confessar que ele lhe trouxera novas cores e que aquela paixão fulminante não cessava e que aquilo estava muito errado, mas que ela não podia perder a chance da grã-felicidade. 

Enlouquecida pelo estagiário! Poderia haver situação mais ridícula para uma respeitável servidora pública? Só crescia o medo de ser enjeitada pelo jovem atlético, espetacular. Ao mesmo tempo, o desejo de conquistar o estagiário movia e dava sentido a cada respiração de Margarete — uma mulher de 44 anos completos e não privada de beleza.

Foi num final de expediente, em sexta-feira de entrevista coletiva, que Margarete cercou Márcio. A repartição já estava vazia, e ela considerou o momento inadiável:

— Você é o melhor estagiário que já tive.

— Bom saber. Eu me esforço bastante.

— Tenho sonhado com você, Márcio.

— Espero que não seja pesadelo — brinca, mostrando aquele sorriso.

— Você me acha velha?

— Claro que não. 

— Feia?

— Nada disso. Você é muito bonita, chefa. E inteligente.

— Topa sair comigo agora?

— Opa. Demorou.

Márcio encarou a situação com naturalidade e acompanhou Margarete. Ela dirigia o carro tremendo — de febre, comichão... “Será que devo avançar?” Durante o caminho até o Parque da Cidade, a mulher emudeceu. Pensou em retroagir. Não sabia se o encontro resultaria em graça ou desgraça. “E se Márcio for virgem?” — pensava, em estado de choque. “E se zombar de mim?”.

Ela parou num dos estacionamentos do parque, debaixo de uma árvore frondosa. Tentava manter a calma; mas estava pálida, doente de angústia. Perguntou se ele gostava de verde, se amava Brasília, se queria mesmo trabalhar como jornalista. Ele respondeu positivamente, com uma doçura inacreditável, a boca rogando um beijo imediato.

Se Márcio a repeliu? Não, muito pelo contrário. Agarrou Margarete como ela assim desejava: demorado, quente, com conhecimento de causa e sem pudor. “Como pode um garoto de 20 anos com uma pegada dessas?” — suspirou, boba de tão feliz. 

Vendo os olhinhos virados da chefa, Márcio ousou mais, com brincadeiras de amor criativas e carícias pontuais. A assessora de imprensa se desmanchou, permitindo tudo, sem hesitar. Cheia de esperança, paixão, encantamento, completamente desbussolada, Margarete deixou-se amalgamar ao corpo hercúleo de seu jovem aprendiz.

Ele se comportou de forma gentil e delicada. Não delatou o ataque nem menosprezou o sentimento da patroa. Propôs a Margarete — por que não? — um encontro por semana, em sigilo, onde ela desejasse. 

“Será que é verdade?” — delirava a quarentona, sentindo-se desmerecedora de tão insólito e apetitoso enredo.

A jornalista bem que tentou, mas não conseguiu disfarçar a doentia preferência pelo discípulo. Percebeu um ou outro olhar de repreensão e despeito de alguns colegas. Mas e daí? Quem nunca se apaixonou e, por conta disso, deu bandeira, vacilou? 

A relação acabou abrupta, com o fim do estágio profissional de seu amado. Foi um adeus embargado, dolorosamente necessário. Margarete abateu-se, mas sem desespero ou desejo de morte. Aprendeu muito com a história vivida. Aulas práticas de vaidade, confiança, autoestima, superação, feminilidade, prazer... A mulher desprezível ficou pra trás e deu lugar a uma criatura em constante descarrilamento. 

No seguinte processo seletivo de estagiários, o escolhido foi Raul. Não tão belo, não tão jovem quanto Márcio; mas também interessante e vigoroso. 

Desta vez, a iniciativa não foi da chefa; mas do novato, que, em menos de um mês de trabalho, já a convidava para um programa romântico na Ponte JK. Ela bem que achou graça daquele assédio ao contrário.

À saída de um motel, no Núcleo Bandeirante, os dois foram surpreendidos por um assaltante de capuz encardido e arma brilhante graúda. O delinquente entrou no carro como demônio. 

Ainda haveria muitos deliciosos estágios a viver, mas a bela assessora de imprensa foi friamente abatida nos braços de Raul. 

No exato momento do tiro, o celular de Margarete assobiou: era Márcio disparando pra ex-chefinha um recado carinhoso pelo WhatsApp: “Saudade”.



Maria Amélia Elói.





quarta-feira, 25 de junho de 2014

A égua e eu


Joaquim Bispo

Estão a passar os 100 anos da primeira publicação de “Platero e eu”, do espanhol Juan Ramón Jiménez (1881–1958), que foi Nobel da Literatura em 1956. «Desenvolveu a ideia de “poesia pura”, uma poesia de inspiração platónica, habitada por um ideal superior de beleza e separada de todo o conteúdo ideológico, político ou social. Jiménez pretende-se um poeta do refinamento e da nuance, ansioso por desenvolver novas pesquisas estéticas e rítmicas, na expressão de uma doce melancolia.» Teve funções diplomáticas em Washington durante a Guerra Civil Espanhola e viveu exilado o resto da vida, sobretudo em Porto Rico.  
“Platero e eu”, escrito em prosa lírica, é a obra pela qual Jiménez é mais conhecido. É um conjunto de 136 pequenos textos de 20–30 linhas, narrados na primeira pessoa, como num diário,  cuja personagem central é o burrico Platero [prateado]. O contexto é o ambiente campestre, rústico e romântico, ingénuo e sadio, da Espanha rural do princípio do século XX, a sua Moguer natal, na Andaluzia. Os textos parece não procurarem contar histórias com enredo minimamente surpreendente, mas serem simples apontamentos impressionistas das vivências simples do espaço rural, com muitas observações da mágica vida de plantas e animais, em que o Homem é um afortunado convidado. Desprendem-se deles essas imagens aliciantes dos espaços encantados, essa força singela dos tempos primordiais, essa harmonia dos paraísos perdidos. Saboreie-se este extrato do primeiro texto:




«Platero é pequeno, peludo, suave; tão brando por fora que se diria todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro.
Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia debilmente com o seu focinhito, roçando-as apenas, as florzinhas cor-de-rosa, azuis e amarelas… Chamo-o docemente: “Platero!”, e vem ter comigo num trotezinho alegre que parece rir-se, com não sei que som de guizos ideal…»

Ou estes, do texto CXXXI:

«Olha para ela, Platero. Deu, como o cavalinho do circo pela pista, três voltas ao jardim, branca como a única leve onda de um doce mar de luz, e voltou a atravessar o muro. Imagino-a no roseiral silvestre que há do outro lado e quase a vejo através da cal. Olha, já está aqui outra vez. Na realidade são duas borboletas: uma branca, ela; outra preta, a sombra dela.» (…)
«Olha que bem voa, Platero! Que regozijo deve ser para ela voar assim! Deve ser, como é para mim, poeta verdadeiro, o deleite do verso.»

Ou ainda estes trechos do texto LVII:

«O céu azul, azul, azul, asseteado pelos meus olhos em êxtase, ergue-se, sobre as amendoeiras carregadas, até às suas últimas glórias. Todo o campo, silencioso e ardente, brilha. No rio, uma velazinha branca eterniza-se, sem vento.» (…)
«Quando, entre um cheiro a laranjas, se ouve o ferro alegre e fresco da nora, Platero zurra e retouça alegremente. Que simples prazer diário! Já no tanque, encho o meu copo e bebo aquela neve líquida. Platero some na água sombria a sua boca e beberrica, aqui e ali, no mais límpido, avaramente…»

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Há 60 anos, mesmo há 50, os burros faziam parte da paisagem habitual dos espaços rurais portugueses. A perda de importância do setor primário nas economias ocidentais fê-los quase desaparecer. Enquanto continuam a estar muito presentes na paisagem dos países islâmicos, em Portugal sobrevivem quase exclusivamente em pequenos santuários mantidos por entidades conservacionistas, algumas vezes tornando-se rentáveis pela demanda citadina do exótico que estes animais já suscitam.
Os burros, no entanto, já estiveram no centro da História: por volta de 2350 a.C. Sargão I, de Acad, conquistou as cidades sumérias da Mesopotâmia à frente de um exército montado em onagros, ou burros selvagens, instituindo naquela região a governação e a cultura de um povo semita. Habituados que estamos à imagem guerreira dos cavalos, que a Arte nos transmite, temos dificuldade em imaginar a verosimilhança de tal força bélica. Na verdade, os cavalos só surgem na História pela mão belicamente eficaz dos Hititas, uns sete séculos depois, na mesma região.

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A égua e eu

[A ideia era fazer um pastiche de “Platero e eu”, mas rapidamente dei por frustrada a tentativa. Prosa poética não é bem o estilo em que me sinto à vontade. Mantive, no entanto, o tema dos paraísos campestres perdidos.]

Há cinquenta e poucos anos, num entardecer quente de meados de junho, eu calcorreava os quatro ou cinco quilómetros de caminho rural que separavam a estrada que me trouxera da cidade, em camioneta ou boleia automóvel, do monte agrícola de meus pais. Duas pequenas ribeiras e um couto de caça repleto de moitas de carvalhiços eram metas intermédias e de fácil mas excitante atravessamento. A zona mais silvestre deste, com cheiros de húmus e rosas albardeiras e onde retouçavam coelhos em magotes, anunciava as proximidades dos meus bem-amados espaços.
Após ultrapassar um pequeno outeiro que o caminho cruzava junto a um zambujeiro, a paisagem da encosta a terminar na ribeira, com o vulto amigo da serra em fundo, atingiu-me em pleno na carência de afetos, pela ausência prolongada. De todas as vezes que ali chegara, a mesma ternura pelo espaço familiar e querido fazia mover o meu espírito. Lá ao fundo, à esquerda, a estreita faixa de pinhal, silencioso e escuro, que delimitava o monte a oeste e provia a exploração com alguma madeira; à frente, os dois pequenos grupos de edificações, sendo um deles apenas a queijeira e o forno; sobre a direita, o declive de olival que terminava na faixa ainda viçosa da beirada, generosa provedora de todas as culturas, limitada pelo verde-escuro dos amieiros da ribeira. A envolver-me, a espessura heterogénea dos cheiros, em que sobressaíam os dos fenos.
E os sons. Há muito que a azáfama musical das cigarras me acompanhava, mas a partir dali era suplantada pela estridência mais aguda dos grilos, em apelos de acasalamento no meio da seara. A regularidade da cadência só era quebrada pelo restolhar assustado de alguma lagartixa ou pelo estalar propagador das vagens ressequidas das giestas que bordejavam o caminho. E pelo chilreio múltiplo e disperso da passarada. Flutuante e preguiçosa, a melodia distante dos chocalhos do rebanho.
Já perto da casa da família, com o palheiro anexo onde também se guardavam a junta de vacas e a égua, cheguei ao lameiro onde esta pastava, peada ou presa a uma estaca por uma corda longa. Cumprimentou-me com um vigoroso levantamento de cabeça e um leve relincho. Sem dúvida, eu chegara a casa, o local onde era feliz nas longas férias de verão, onde estava a minha família, onde até os animais me reconheciam. Quando o mundo exterior fosse muito hostil, ali teria sempre abrigo, ali seria sempre aceite.
Como o dia estava no fim, meti mãos à tarefa de recolher a égua. Soltei-a das prisões, enrolei bem ao meu pulso a corda que lhe atava o pescoço, a fazer de rédea, firmei-me e saltei-lhe para o dorso. Talvez por ela começar logo a andar, talvez pelos meses de ausência, o salto foi curto e ineficaz. Estatelei-me no chão numa situação de grande perigo, devido à estupidez de me ter prendido à rédea. Se a égua se tivesse assustado, ou por urgência de voltar ao estábulo desatasse em galope, eu seria arrastado e ficaria muito maltratado. Mas ela estacou de imediato, voltou a cabeça para trás, olhou-me com um olhar meigo de compreensão, como se dissesse “Então, miúdo!”, e esperou que me levantasse e acertasse a tentativa seguinte.

Pouco depois chegava à casa de telha vã onde recebi os mimos paternos, que se toldaram um pouco quando tive de lhes anunciar que chumbara o 4º ano do liceu.





terça-feira, 24 de junho de 2014

UM POEMA À COPA


Diante de tantos protestos,
hoje me manifesto:
verei pela televisão.

Pois uma Copa que subtrai
escolas e hospitais
não merece aclamação.

Sim, gosto muito do esporte;
mas não há quem suporte
tamanha enganação:

Torcer, enquanto blatters
fazem do futebol-arte
uma via para a extorsão.





segunda-feira, 23 de junho de 2014

a cidade esquecida

Trafego entre as ruas de uma cidade esquecida pelo tempo, tentando lembrar de minha própria cidade. Tentando lembrar de mim. Eu não estava perdido, seguia um caminho, seguia o meu destino, mas não esperava encontrar em minha jornada um povoado tão esquecido pelo tempo, tão esquecido por tudo e por todos.

Estava acostumado a cidades grandes, grandes multidões, mas quando cheguei ao povoado de Esquecido, tudo era diferente do que eu havia visto ou vivenciado em minha cidade.

The Forgotten Village por Remegio Onia

No dia anterior, havia decidido que chegaria até o meu destino caminhando: La Grana Cidad. Eu tinha decidido, mas não tinha sido uma vontade. Não achava que tinha muita escolha: era isso ou esperar uma semana até o próximo ônibus, já que não havia carros para alugar ou outro meio de transporte. Resolvi encarar o desafio, e caminhar os 30 quilômetros.

Não sabia se conseguiria percorrer o caminho todo em dois dias. 30 quilômetros é pouco para um carro, muito para um ser humano sedentário, que se cansa ao caminhar dois quilômetros. A minha surpresa é que passado os primeiros quilômetros eu já começava a gostar de caminhar.
Era um tempo para refletir na vida e no meu futuro.

Estava prestes a assumir a diretoria de uma companhia e estava só. Meu casamento que durará três anos, finalmente acabara. Não aguentávamos um ao outro, mas também não nos odiávamos. Quando surgiu a oportunidade de assumir um cargo importante, minha esposa disse que não me acompanharia na mudança da cidade. Não retruquei muito, apenas perguntei como faríamos. Foi ela que sugeriu que nos separássemos. Fiquei feliz. Feliz em nos separar, feliz por que a decisão não havia partido de mim.
Eu demoraria um pouco mais de um mês para assumir ao cargo, então fiz minha mudança para a nova cidade. Nos separamos e para não ficar pensando muito no que havia acontecido eu decidira viajar.

A primeira semana foi ótima, visitei museus conheci outras pessoas, algumas mulheres e estava gostando da sensação de liberdade que adquirira. Eu não sei por que nunca viajara com a Bianca. Bianca era minha esposa, a ex, como gosto de chamá-la agora.
Talvez ela não tenha ficado tão feliz ao saber que eu fizesse aquela viagem. Desde da época do namoro ela pedia para que viajássemos juntos, mas eu nunca podia. Na verdade, nunca quis. Não tenho por que mentir agora.

O conforto da viagem era o que eu mais gostava, aqueles hotéis com as camas enormes, lençóis sempre limpos e novos. Café no quarto ou buffet se eu quisesse descer. Era uma vida ótima, poderia viver assim para sempre. Mas então resolvi seguir a Luciana em uma viagem pelo interior, no terceiro dia eu já estava cansado dela e disse que ela podia partir sem mim. Eu partiria no dia seguinte. Mas eu não sabia que o dia seguinte, só poderia ser dali uma semana. Poderia esperar naquela cidade, o hotel era bom, o serviço excelente e a comida maravilhosa. No entanto, algo estava diferente, parecia me que eu não conseguia ficar ali parado uma semana. Tinha vontade de continuar. Então eu decidi caminhar.
O primeiro dia deveria caminhar 20 quilômetros até a cidade mais próxima, na qual havia um pousada, os outros povoados não tinham lugares para dormir. Os primeiros dez quilômetros foram tranquilos, mas depois do almoço, eu estava cansado e já estava de saco cheio de caminhar. Então começou a chuva.

Algumas gotas nada que eu precisasse me preocupar. Nunca tive problemas com a chuva, mas a natureza tem seus caprichos. A chuva ficava cada vez mais forte e não havia onde eu me abrigar, só queria chegar eu meu destino. As dificuldades ocasionadas pela chuva forte e depois pelo vento e mais adiante o barro que dificultava ainda mais a caminhada, alternavam negativamente o meu humor. A raiva crescia eu começava a achar que minha vida estava vazia. Havia perdido tempo com um casamento de interesse com a Bianca, havia seguido a Luciana apenas por um capricho. E agora estava ali, no meio do nada, sozinho novamente. E se eu não aguentasse chegar ao destino? e se eu morresse no meio do nada? Se ficasse doente? Ninguém sabia onde eu andava, não tinha parentes próximos.

Meus pais já haviam falecido. Não tinha irmãos.

Precisava encarar a verdade de tudo aquilo. Eu estava sozinho, emocionalmente e geograficamente falando. Então outro tipo de água passou a escorrer pelo meu rosto, eu chorava. Chorava como há anos não o fazia, apenas porque eu reconhecera o quão infeliz eu estava e o qual só eu estava. A escolha de assumir o cargo era uma piada, eu só o tinha feito para ter uma desculpa para ficar longe da Bianca, conseguira o que queria, mas agora tinha aquela tristeza, aquele vazio dentro de mim.

Kamarbon, the Forgotten Village por Hamed Saber

A chuva aos poucos parava. E aos poucos eu avistava aquele vilarejo vazio, abandonado, esquecido, isolado no meio do nada. Quando o sol surgira novamente, eu sorria. Estava em casa.





domingo, 22 de junho de 2014

E agora José?


Sabia que esse momento chegaria. O dia do branco. Eu aqui, diante da página vazia, o prazo acabado, uma ponta de desespero. E agora, José? Na falta de abertura decente para o texto da próxima edição, Lauro resolve improvisar. Deveria ter deixado para depois a cerveja e a churrascada com os amigos da capital que vieram passar o feriadão no balneário, mas resistência não era com ele. Meio quilo de salsichão e um isopor forrado de gelo e de latinhas, argumentos suficientemente fortes para convencê-lo a protelar trabalho. Escrevo antes de dormir, disse para si, colocando o compromisso no final da lista mental de tarefas inadiáveis. Para quê? Como quem pede socorro ao Samu no meio da madrugada, entre um plano e outro para salvar sua pele, interrogava o interlocutor célebre de uma conversa que não era a sua, na tentativa de agarrar a inspiração pela perna e grudá-la de uma vez no papel: e agora, José?

Consciente do estrago que sua displicência certamente causaria, insistiria até ser vencido pelo sono. Caso não bolasse uma história coesa até quatro da manhã, provavelmente faria o relato, tal e qual, do dia de nostalgia que viveu com os parceiros na beira da praia. Se bem que aquelas barrigas caídas, aquelas carecas, aquelas tatuagens desbotadas, símbolos das bandas de heavy metal que preencheram a adolescência, talvez fossem impublicáveis. E agora, José? Corria os olhos pela lombada dos livros, pelos títulos das caixas de remédio sobre a bancada, pela relação de nomes na agenda do celular e nada. Nem faísca de ideia, um lampejo sequer. Estava em branco, completamente. 

Será que estou entrando no Ciclo seco, que o C.F.A. descreveu uma vez? Não convêm misturar as referências, melhor respeitar a figura a que recorri primeiro. Cadê o poema, cadê o livro, google em Drummond e: José. E agora? E agora me ferrei bonito. Não posso acreditar que faltou luz. Pelos meus cálculos, resta ainda uma meia hora de bateria, essa história precisa nascer nem que seja a fórceps. O suor de Lauro molha a gola da camiseta e faz rodelas na costura abaixo dos sovacos. Uma sequência de frases dirigida a José e serei acusado de plágio, descarado. Deu de festa, de luz, de mulher, de discurso, de bebida, de bonde e de riso. Estou arruinado. Vão me dar gancho ou me demitir direto. E agora, José? E agora, Joséééé? Nem que eu jogue nessas quarenta e tantas linhas, espaço simples, parágrafo justificado, todo o sentimento do mundo que escondo em algum lugar inóspito de mim dou conta de um roteiro honesto. Sou uma farsa. 

Então, ocorre a Lauro narrar o assombro de alguém insone, sozinho, no escuro, ao deparar-se com o estranho que caminha desorientado tateando paredes, fazendo barulho, com a chave na mão. Pode ser que cole. Começa assim, escrevendo que não há porta a ser aberta pelo homem que vaga cego, mudo, surdo e doido pelo corredor do apartamento. Condena o personagem ao primeiro parágrafo, sem saber o que fazer com ele, que não grita, não geme, não dorme, não cansa, não morre. Um José duro na queda, e agora? No meio da dúvida, Lauro cai no sono e o notebook, sem bateria, dá por perdidos os documentos não salvos.





sábado, 21 de junho de 2014

Primeiro dia de Sol nas Areias de Copa


    Cruz Credo! Pé de pato, mangalô três vezes! Até que enfim essa chuva deu uma trégua Matilde.
    Verdade Fifi. Já estava com saudades da nossa sagrada prainha, a primeira de 2007.
    Ano novo, vida nova, mas as coisas continuam as mesmas. Seu Antônio com sua barraca de bebidas, alugando cadeiras e guarda-sóis a preço de ouro para a gente e de diamante para os gringos, a Jennifer se dourando no sol para agradar os clientes...
A garota de programa, deitada de costas, trajando um biquíni tão minúsculo que faria corar Luz Del Fuego, acena positivamente com o polegar.
    ...e o Brasil na mesma eca.
    Você é muito negativa Fifi — critica Matilde, enquanto se besunta de filtro solar fator 50.
    Negativa? Você não lê jornais? não assiste o William Bonner? Mal o ano começou e essas chuvarada castigando o sudeste. Em São Paulo, o tal do córrego com nome de índio...
    Pajuçara.
    Isso, mesmo! O tal Pajuçara transbordando, alagando tudo quanto é canto e as autoridades prometendo providências para o próximo verão. Há quantos verões a gente houve a mesma história? Maluf, Jânio, Erundina, Dona Marta, o tal de Serra, que nem esquentou a cadeira, todo mundo prometendo solução e o pessoal tirando carta náutica para dirigir barquinho pelas ruas.
    Mas aqui também é a mesma coisa — berrou Seu Antônio lá de sua barraca, abrindo um coco  que um cliente pedira através de um único golpe magistral com seu facão mais afiado que uma espada samurai.
Jennifer, cujo verdadeiro nome era Maria das Dores, esparramada em sua canga na areia, sem elevar um milímetro a cabeça, acena em concordância com o polegar erguido.
    Justamente, concorda Fifi. Pelo menos aqui não enche d’água, mas há quanto tempo prometem  a Baía de Guanabara despoluída?
    É... nisso eu tenho que dar o meu braço a torcer — aceita Matilde.
    Pois é... ano novo, lengalenga velha — Fifi ajeita-se na cadeira de praia, curtindo a vitória na leve batalha de argumentos travada com a amiga sexagenária nas areias de Copacabana.
    Sempre as mesmas promessas! – Grita Seu Antônio.
    Daqui a pouco o Rubinho Barrichello vai parecer na televisão prometendo novamente ser campeão.
    Deixa o menino em paz Fifi!
    Acho que a única coisa que mudou foi esse tempo maluco. Olha só! Tá vendo aquela nuvem chegando ali pelos lados do Forte do Leme? Lá se vai a nosso solzinho. Até São Pedro tá faltando com o palavra.
Jennifer, na horizontal como sempre, abaixa um pouco a parte inferior do biquíni conferindo o resultado do bronzeado e  acena positivamente com o polegar.
    Agora, tem a promessa mais estapafúrdia do ano: o Presidente garantiu que dessa vez o Brasil vai pra frente!
Matilde calou-se. Seu Antônio preferiu atender um casal de gringos a procura de cadeiras de praia. Jennifer exibiu o polegar virado para baixo.

Do livro "Pastel de Vento" (crônicas)
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quarta-feira, 18 de junho de 2014

Pretérito imperfeito



Estivera ali enquanto todos já tinham ido. Uma chuva no vidro do apartamento do sexto andar – ruídos da véspera de carnaval – lavando o estranhamento daquele que olhava para mim. O movimento natimorto do centro da cidade proporcionava escutar o eco das esquinas. Já no banheiro de móvel novo – largou o relógio, um eco seco rememorou os verbos pessoais ditos.
A manhã de sexta começava de forma inusitada. Após mais de 24 horas, finalmente o sol ocupava o lugar das chuvas constantes. O feixe amarelado refletia ainda mais diante do seu par de olhos claros. Entre um café com cereais e frutas – recomendação da reeducação alimentar – conversas misturavam-se com os fatos apresentados pelos jornais e a péssima conexão do 3g. 
O baile de carnaval até hoje não significava tanto quanto saber que exatamente no domingo ela completaria 31 anos – balzaquina – e eu faria uma bela surpresa. A alegoria estava pronta: renegar toda a birra com a festa. Desde menino a lembrança mais presente era a partida do vovô na terça de carnaval e o enterro na quarta de cinzas.
No corte pequeno da gilete durante a depilação do peito que fez o sangue escorrer misturado com a espuma em torno do ralo – os acontecimentos caiam com ardume, igualmente da abertura do machucado por encontrar o sabonete. Ali a máscara e a serpentina abriam alas, passando pela manhã. O divertimento do silêncio diante desse outro que não o eu da realidade. 
O trabalho sério da tarde não deixara dúvidas que os guarda-chuvas eram necessários depois deles partirem. A dúvida concentrava-se na tormenta de saber – sobras de uma festa. Feito os acertos com clientes e um adiamento de um serviço, pude procurar um melhor lugar no prédio e mandar uma mensagem pelo celular.
Não morri, por isso escrevo e penso – hoje ela seria uma colombina e poderíamos estar em algum baile de carnaval pela cidade.





terça-feira, 17 de junho de 2014

Dez perguntas para Ana Elisa Ribeiro



1 – Para começar, quem é Ana Elisa Ribeiro?
Aqui, pra você, sou poetisa. Escrevo poemas desde bem novinha, mas só fui me levar um pouco a sério quando tinha ali pelos 20 anos. Mesmo assim, não posso me levar a sério demais. A dúvida me beneficia e acho que isso vale pra qualquer um que lide com textos. Sou autora de uma dezena de livros, mais ou menos, entre literários e outros. Mas sou também a mãe - estilo chata - do Eduardo. Sou professora numa escola pública federal - estilo permissiva. Sou doutora, pesquisadora de linguagens - estilo Capes. Sou mineira, bem mineira, dessas que comem pelas beiradas - mas comem. Sou belo-horizontina, bem belo-horizontina, com sotaque daqui e preguiça de viajar - mas viajo. Sou fã de Coca Cola e de sapatos de bico redondo. Eu gosto de ser essas coisas. E gosto muito de viver a vida, literalmente, entre textos. Sem isso seria bem mais chato. 

2 – Por onde sua poesia anda?
Minha poesia andou por muitos lados, mas há um vetor que não me passou batido de jeito nenhum: foi o Paulo Leminski e muito da poesia "marginal", ali dos anos 1970. O Leminski me deixou boquiaberta pra sempre, eu adoro até hoje, colecionei os livros, procurei em sebos, ganhei de presente, etc. Mas houve outros, tipo o Chacal, o Torquato e o Cacaso. Muita gente acha que eu devia mencionar a Ana Cristina César, mas não tem nada a ver. Fui pouco leitora dela. O lance é que veem mulher escrevendo e querem logo associar a outra. Como são poucas... forçam uma barra. Também era assim quando eu cantava rock. Logo queriam associar à Janis, que eu nem escutava e nem curtia. Bom, minha poesia curte muito a da portuguesa Adília Lopes, e nada a ver com a Adélia Prado. Continuamos poucas, e boas. 

3 – Quais as dificuldades de escrever poesia, literatura, hoje?
As de sempre. Dificuldade é o que mais tem, acho que em qualquer campo. A brincadeira é você sair saltitando por entre os obstáculos, le parkour de sobrevivência. Publicar é difícil, mas distribuir seu livro é mais ainda. Mas aí você quer porque quer ter um livro de sua autoria e resolve encarar o desafio, mesmo sem saber o tamanho dele. Ô desafio gostoso! Escrever poesia é difícil porque a gente escreve muito, muito verso, mas poucos deles saem mesmo poesia. Precisa selecionar, tentar, testar, persistir, insistir. Uma hora ela vem. Daí, você junta o pouco de bom que há no muito que escreveu e edita. Acha um maluco que queira bancar ou acha uma grana que possa pagar por isso. Vai lá. O livro tem um ciclo de vida. Não tenho dúvida. Ele precisa existir. Vai parar nas mãos de quem você nem imagina. Ele queima, que nem pavio. Um dia, esmorece a força dele. E você publica outro. A vida literária precisa ser sustentada. É meio jogar malabares, sabe? Mas é bom. Hoje há mais meios de publicar, mais pequenas editoras dispostas, mais modos de acessar as pessoas, conversar, influir, tentar. Assim também acho que há mais livros, mais gente conversando e publicando. Tá mais fácil do que já foi. Mas continua sendo um desafio.

4 – Pergunta indigesta: como é seu processo criativo?
Na poesia, é assim: eu fico escrevendo o tempo todo, todo, todo. Na minha cabeça, fica tudo se juntando, dançando, fazendo uma espécie de barulho. É o tempo todo mesmo. Ouvindo as pessoas, as ideias, o mundo, as palavras, me admirando com as palavras. Daí, um dia, eu me sento na frente do computador e abro uma página branca do Word. E começo a escrever. São tentativas, mas elas já chegam meio amarradas, redondas. Nem consigo mexer muito. Se estiver ruim, já apago. Começo outro. E assim vai. Mas eu já estava escrevendo havia dias ou meses. Como escrevo outros gêneros (crônica, conto, textos acadêmicos variados, etc.), eu sinto que os processos sejam bem diferentes. Mas todos me mobilizam muito. 

5 – Lendo seu livro, o Anzol de Pescar Infernos, existe todo um sarcasmo e ironia nos poemas. É proposital ou acidental ou os dois?
É totalmente eu. A ironia me vem quando as coisas vão mal. Eu sou aquela pessoa que fica irônica quando está com raiva, começa a ofender o interagente, saca? Horrível. Tenho tentado me controlar. Os poemas são irônicos porque querem encher o saco. E a ironia é um traço da minha poesia. Não é acidental. Mas eu sou nesse tom também. 

6 – Rilke fez a seguinte pergunta no seu livro Cartas a um jovem poeta: morreria, se lhe fosse vedada escrever?
Não sei se morreria. Talvez. Certamente, sentiria um tédio imenso e um sufocamento indescritível. Não sei como alguém consegue viver sem escrever. Não sei mesmo. Acho que deve ter um jeito de sentir a vida de um modo mais leve, mais superficial. 

7 – Existe diferença entre a poesia escrita por um homem e por uma mulher?
Acho que sim. Uma é escrita por uma moça; a outra, por um cara. Como são identidades muito diferentes, provavelmente eles terão verves, assuntos, estilos, bem próprios. Isso acontece de pessoa pra pessoa, poeta pra poeta, claro. Mas acho que há uma chance de uma mulher-poeta escrever sobre coisas que talvez um homem não pensasse ou sentisse. Eu acho que há poemas meus que só poderiam ser meus. O problema de ser mulher é que a gente sempre é meio impedida de fazer as coisas, então... fica excepcional quando a gente aparece fazendo. 

8 – O amor ajuda ou atrapalha na hora de escrever?
Os dois. Ajuda porque pode inspirar, pode aumentar a área de contato com a vida, pode abrir os poros. Atrapalha porque pode desconcentrar, deixar a gente meio alheia ou avoada. Mas serve pra tudo. O amor ajuda até quando ele acaba. Aí você escreve versos lindos de desilusão, desamor, sofrimento. Não necessariamente pelo amor, mas sentir as coisas é legal pra alimentar a poesia. 

9 – Você está sempre escrevendo ou tem mais o que fazer?
Tenho muito o que fazer, mas, ainda bem, consegui converter quase tudo o que preciso fazer em algum produto escrito. Medem minha produção ou meu trabalho pela escrita, o quanto eu escrevo e publico. Olha que coisa ótima! Não morrerei de fome, nem de Lattes minguado, enquanto for assim. Minha medida é escrever. Inclusive é meu ganha-pão, embora não seja exatamente a poesia. Eu vivo escrevendo. Mas dei sorte e fui atrás disso. 

10 – Para terminar, gostaria de dizer algo?
Os livros precisam existir. O voo deles ninguém sabe onde vai dar.





segunda-feira, 16 de junho de 2014

Filho

Bebeu três ou quatro goles de água. Como se quisesse hidratar a coragem. Não tinha o que dizer. Não encontrava o que pudesse dizer ao filho. Tinha ensaiado umas poucas, curtas frases. Mas não lembrava, agora, onde havia guardado as palavras. Quis recompor a memória entre um passo e outro. Passos lentos no corredor comprido. Voltou nos anos. Pegou novamente nos braços o corpinho pequeno do filho. Sentiu o cheiro bom daquela pele macia. E descobriu onde Deus tinha deixado os seus melhores anjos. As mãos de bebê incrivelmente fortes. Agarrando o dedo dele numa confirmação de posse. Noites de sono no sofá da sala. O menino no colo; ele, nas nuvens de um céu a dois. Cantando coisas idiotas que falavam de bois e de cucas. Olhos nos olhos. Pra ver quem piscava primeiro. Pestanas com pestanas, pra fazer cócegas, dar gargalhadas. Futebol com bola colorida. Bichos de pelúcia transmudados em monstros, dragões, cavaleiros. Robôs e carros de metal. Movidos à pilha, bateria e dinheiro. O dele, sempre esticado em milagre. Coisa de pai. Pai de zoológico, de piscina, de corte de cabelo no barbeiro. Coisa de homem. Dever de casa complicado — no tempo dele era mais fácil. Viagens de verão. Uma vez para conhecer o mar. Muitas outras, acampados no quintal, domando feras, caçando quimeras, cruzando o oceano das poças. O primeiro cabelo no pênis. Mostrado com vergonha no chuveiro. As primeiras perguntas difíceis. Feitas a ele, não aos amigos. Orgulho de ser pai e confidente. Um gole de cerveja escondido da mãe, só um. Pra aprender em casa o gosto da rua. Faculdade de Engenharia. Como ele. No primeiro vestibular. Formatura com direito a viagem. Pra Nova Iorque, junto com a turma. Bolso esticado mais uma vez em milagre de pai. Dívida grande. Grandes expectativas. A ligação importante, chamando para o emprego dos sonhos — o primeiro sempre é. A ligação do hospital. Chamando para o pesadelo.
A água do copo acabou. Entrou no quarto sem frase na boca ou na memória. Olhos nos olhos. Nenhum dos dois piscou. Pegou nos braços o corpo semi-imóvel, semivivo do filho. Delicadamente. Sentiu o cheiro podre do acidente. Descobriu o que Deus fazia com seus melhores anjos. A mão incrivelmente fraca encostou no dedo dele. Esticou uma coragem do bolso da alma. E cantou cantigas de bois e de cucas. Até que seu menino foi brincar de infinito.

(Este texto está no meu livro "Sob os escombros", Editora Patuá, 2014)






domingo, 15 de junho de 2014

RESENHA: O padeiro que fingiu ser rei de Portugal, de Ruth MacKay

  

No dia 4 de agosto de 1578, sob o causticante sol marroquino, D. Sebastião de Portuga liderou suas tropas para a carnificina. Quando o jovem rei morreu, o mesmo aconteceu com a independência de Portugal (...)

Dezesseis anos depois da batalha, numa cidade da Espanha, surgiu um homem que dizia ser (ou que se pensou ser) Sebastião. Seu nome era Gabriel de Espinosa, Pelo que se pode saber, o inventor desta impostura foi o vigário português de um convento agostiniano para mulheres bem-nascidas, e o objetivo imediato do plano era convencer uma das freiras que, por acaso, era sobrinha de Felipe II, que este homem, ex-soldado e padeiro ocasional (pastelero), era seu primo.

O rei Juan Carlos acaba de abdicar ao trono e, no dia 18, o príncipe das Astúrias se tornará Felipe VI. Há, sim, um movimento republicano forte, mas já há pesquisas indicando que a mudança no trono deu um pouco de gás à monarquia. No caso da Espanha, diga-se, a República durou de 1931 até a morte de Franco, o que não é exatamente um grande atrativo. A imagem de Juan Carlos dominou as televisões de todo o mundo. Não há quem não o conheça, nem quem nunca o tenha visto. É bem possível que, em pouco tempo, a causa monárquica entre novamente em declínio junto à opinião pública. Há questões de unidade territorial, contudo, que podem dar nova dinâmica e nova utilidade aos Bourbons.

Enquanto ainda especulamos sobre como será (será?) o reinado de Felipe VI, vamos dar uma passada na Espanha em seus melhores momentos, sob outro Felipe, o II. É também um período bem negativo para Portugal, com a morte de Sebastião.

Ruth MacKay, em seu O padeiro que fingiu ser rei de Portugal (Rocco, tradução de Talita M. Rodrigues), conta a história do desaparecimento de Sebastião, o jovem rei de Portugal nas areias marroquinas (Alcácer-Quibir). Irresponsavelmente, morreu sem filhos - ao que parece, ele detestava a simples menção aos atos preparatórios. O fato de seu corpo jamais ter sido encontrado levou a uma série de especulações. A primeira parte do livro trata da personalidade de Sebastião. Fica clara a grande irritação existente em Lisboa diante da irresponsabilidade do rei ao partir para a guerra no Marrocos, deixando o trono vazio.

Estamos, afinal, em 1580, e não em 2014. Muito poucos conhecem o soberano pessoalmente ou o viram alguma vez na vida. O fato é que, sem corpo, fica difícil falar em morte - ainda mais quando isso significa o fim da independência de um pequeno país, que se vê novamente tragado para a Espanha.

O livro de Ruth MacKay, da Universidade de Stanford, é fruto de longa pesquisa (há uma série de referências às fontes utilizadas e bons índices onomásticos), através da qual nos são apresentados o Sebastianismo - como marco mental, inclusive, da cultura portuguesa -, a perda da independência portuguesa e os "retornos" de Sebastião - evidentemente, fraudes.

Um destes impostores, o padeiro, foi Gabriel de Espinosa, que apareceu em 1594. Visita um convento espanhol sob a identidade de Sebastião, algo que, presumivelmente, gerou enorme preocupação por parte dos espanhois. Dessa conspiração participam personagens como o frei Miguel, apoiador de outro pretendente, Antonio, prior do Crato, e de Ana de Áustria.

A autora faz um importante destaque. Lembremo-nos, mais uma vez, que estamos no século XVI. O reconhecimento de um rei por marcas físicas se confundia com profecias e outros relatos. MacKay nos apresenta uma série de exemplos, como o do rei Rodrigo. O corpo do último governante visigodo da Espanha, depois de derrotado pelos mouros em 711, jamais fora localizado, dando início a oito séculos de dominação moura. O "retorno" de Sebastião é, para a autora, mais um - talvez o principal, por tudo o que representou no imaginário português - rei oculto em ascenção, num contexto de crenças milenares numa época de tensão política explosiva.

Uma curiosidade: o estudo de MacKay apresenta um painel bastante completo da época dos fatos. São presenças constantes justamente os dois mais brilhantes homens de letras da Península: Camões e Cervantes. E pensar que, com os dois andando e escrevendo, ainda se procurava por Sebastião...





delírios


Mágoas e tormentos, choros, desespero, é assim a vida de cada um da gente. E no entanto, andamos como se a vida fosse um caminho de flores. 
E a chuva é apenas água que nos mata a sede e faz crescer o trigo e o centeio com que se faz o pão.
Nem avalanches desmoronando terras inseguras, fendas em leitos de prometidos rios.
Chuvas e sóis de Agosto ou neves que se ergam em gelos, são sempre vistos quase em poesia, tal e qual o fogo que aquece a sala ou nos grelha o peixe.
E a dor de panturrilha, se calha, há-de ser passageira, e o fogo que se dá na serra é sempre lá tão longe de onde a gente mora.
E, se é gripe, nunca é de febre demasiada. Nada que não se debele em finos dias de ficar na cama, um remédio ou outro a conselho médico.
O mal nunca dá na gente. O mal dá apenas neles. Aqueles cujas casas são rebentadas pelas metralhadoras de uma dessas imensas guerras, ou por um terramoto, um avião que saiu da rota, um carro rolando em contra-mão. Ou uma fuga de gaz e elas explodiram, ou passou por lá um furacão. Ou arderam, junto com a floresta que lhes fica em volta, à mão criminosa de um pirómano.
Os nossos choros e tormentos, o nosso desespero, são  comedidos e sempre passageiros. Horrores e tragédias são apenas longe.

Também tu pensarias assim se não tivesse acontecido.

Nem havia asfalto. Estrada só a que levava à cidade. Ali, onde vivias, era tudo chão vermelho, terra que a água arrastou a tingir-se toda como se levasse sangue.
Foi entre as duas e as dezoito. Litros e mais litros de exagero em cima dos terrenos, em cima dos telhados, e a água a entrar pelas casas que o chão nem tinha já como sugar tanta enormidade.
 O céu trazendo, lá de muito longe, um qualquer oceano e ali o derramando sem dó nem piedade sobre gentes, terras, casas e animais.
O jacarandá arrancado pela força da água como peça leve de um brinquedo. E o pé do teu pai e ele a chamar por ti. O  pé do teu pai enleado na raiz da árvore e a corrente arrastando-o.
– Zé Carlos, não te deixes dormir – é o teu pai gritando.
Tinha-te dito que subisses ao ponto mais alto do telhado.
Terias cinco anos.
E quando já não era senão um pontinho, ouviste-o ainda gritar:
– Não saias daí, Zé Carlos.
E nem sabes se o ouviste ou se apenas desejaste.

A gente nunca pensa que o odor que temos é cheiro de desgraça que se vai acumulando e, um dia, dá-se.

Quando chegou o bote, tinhas muito frio e muito medo. E tinhas fome. Mas, mais do que tudo, tinhas a voz dele dizendo: não desças daí, Zé Carlos.
  
Depois, aprendeste a imitar os outros.

Mas hoje, ela escarranchou-se, ali, na porta do teu quarto de homem desacompanhado não fosse a boa da Gertrudes.
A porta do teu quarto entreaberta para que ente o fresco que este ano tem sido um Estio escaldante, e tu a ferver ainda mais que o ar circundante. Tanto, que te espanta que o sangue que te corre no corpo não esteja esguichando por todos os teus poros. Tu, José Carlos Nunes de Miranda a arder em febre desde o dia oito, completas hoje, dia dez de Fevereiro, trinta e sete anos.
Que tomes esses remédios e que é gripe, dz o Dr. Matoso que a Gertrudes pediu: venha depressa que ele delira.
Gertrudes que te cuida desde o mar de chuva que se deu naquela tarde. Gertrudes que insistiu naquela lenga-lenga de Deus e do céu e dos anjinhos que tomam conta do seu paizinho, menino Zé Carlos . A mulher a querer que ficasses sereno, e tu que nunca esqueceste a água encarnada a levá-lo: podia lá haver um céu que o acolhesse, pensaste sempre, ainda que orando pela sua alma, ainda que olhando a estrelinha que Gertrudes te apontava.
Solteiro é o que tens escrito no cartão de identidade, e desde há muitos dias que te dói do lado esquerdo.
Uma dor que começou intensa e não amaina.
Começou antes de Gertrudes te ver suar em bica e insistir em chamar o médico: que se é gripe, as gripes tratam-se, argumentara ela, e tu disseste ao físico que te doía a garganta e a cabeça, e a dizer assim mentiste, descarado, escondeste dele a dor como uma faca raspando contra tudo o que tens debaixo da pele, e mentiste de novo quando o homem te enterrou os dedos na barriga e tu viste estrelas a caírem no quarto.
Dói, perguntou ele, e tu rilhando os dentes: não, não dói! 
Tu a fingir que apenas te doía a garganta e a cabeça, inspiraste profundo e sopraste devagarinho pela boca .
Que só tu sabias que ela já tinha vindo, que tinha estado esse tempo todo ali especada. Que se tinha desviado um nadinha para deixar entrar o Dr. Matoso e a sua gorda pasta, mas logo se colocara entre portas, a mão esquerda lá em cima do batente e a direita a segurar a outra metade da porta como se a fosse empurrar para dar passagem ao teu corpo magro.
E não se moveu um milímetro enquanto durou a consulta.
Ela ali pespegada entre os dois batentes, e tu olha-la: incrédulo, de início, depois convencido, mas nunca assustado.
Esguia. Feminina.
E tu embasbacado mas tolerante com a chegada dela.

É de linho leve a túnica que a cobre e esvoaça na corrente que se faz à passagem de Gertrudes,ou porque terá ficado mal fechada, a porta que abre do corredor sobre o pátio.
Leve e casta como nunca te tinham dito que seria.

Que é coisa de uns dias, diz-te o médico.
Que tomes os remédios e te abrigues, que logo a febre baixa e ficas como novo.
Que ainda vais no domingo à festa, diz-te ele, sorrindo.
E sai do quarto a deixar a receita na mesinha e a Gertrudes salamalequeia-se a acompanhá-lo

só tu sabes que desta vez não haverá telhado
que nunca mais haverá quem seja a dizer-te: não saias daí, Zé Carlos.