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sábado, 29 de julho de 2023

As Aparências Iludem

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 12

 

As pessoas nunca são o que parecem. Nunca.

Nem mesmo quando parecem ser o que são.

A aparência nunca é a essência.

José Luís Nunes Martins

Filósofo e escritor português

 

O céu estava cor de chumbo e o vento uivava como milhares de longínquos lobos. O ar, prenhe de pó e areia, cegava e ardia nos olhos.

No meio da planície árida, com alguns troncos esquálidos aqui e ali à laia de árvores, os dois leões, um mais jovem que outro, rosnavam-se mutuamente como que discutindo opiniões contrárias.

Repentinamente, saída do nada, uma descomunal matilha de hienas de dentaduras proeminentes e aguçadas pingando baba soltava tétricas gargalhadas nervosas enquanto rodeava ameaçadoramente a dupla. Atiravam dentadas no ar, estalando os dentes, enquanto quase se afogavam em saliva, fazendo os ameaçados rodarem sobre si próprios, nunca perdendo as sanguinárias criaturas de vista.

Por fim, como que respondendo a um sinal, as hienas lançaram-se sobre os dois leões, que se defenderam com garras e coragem típicas da sua espécie.

O combate durou poucos minutos, mas várias das atacantes jaziam em agonia com ossos partidos ou pavorosas lacerações de onde lhe jorrava a vida. As restantes fugiram rapidamente, dentes escorrendo baba e sangue, soltando gritos e gargalhadas que mais pareciam choros apavorados.

O mais jovem dos leões partiu à desfilada atrás dos traiçoeiros atacantes, desprezando os seus próprios ferimentos. O leão mais velho deitou-se pesadamente, cansado, lambendo as dezenas de feridas a que conseguia chegar com a língua. No seu dorso, porém, alguns dos profundos rasgões feitos pelas dentadas haviam conseguido penetrar o grosso couro e expor a carne rubra e sanguinolenta.

Ainda mal o leão jovem desaparecera na distância quando parte do grupo das hienas regressou, muitas exibindo as feridas da luta anterior, mas com a mesma determinação. Sem dar tempo a resposta, lançaram-se sobre o velho leão num frenesim de dentadas e gritos e gargalhadas até se cansarem, saciadas e afastarem-se de uma massa ensanguentada e disforme de ossos.

Uma das criaturas mais afastada do grupo focou-se de repente nela, observadora de toda a tragédia. Os seus olhos pequenos e redondos constatavam a sua presença, os dentes pingando sangue arreganharam-se e, com uma gargalhada, atacou!

Zia acordou com um grito sufocado. Estava completamente despida, encharcada em suor, deitada ao longo de um pequeno tubo onde mal cabia.

Respirou sofregamente tentando acalmar o bater violento e descompassado do coração, ainda apavorado pelo terrível pesadelo que a atormentara.

Lentamente acalmou-se e conseguiu respirar em profundidade, enchendo bem de ar a parte inferior do diafragma e soltando lentamente até o próprio coração ficar com as batidas normalizadas.

“Tenho de deixar de fazer isto.” — Reconheceu, enquanto soltava as pedras que tapavam a cabeceira do estranho compartimento. — “Tenho de começar a ensinar uma das crianças…”

Assim que ela removeu as primeiras pedras, rapidamente surgiram outras mãos a ajudá-la e a afastar as obstruções e a limpar o chão por onde arrastaram a sacerdotisa, colocando-a em pé. Esta, nua, coberta de transpiração e pó, rodeada por mulheres, foi tapada com peles e o seu cabelo sacudido do pó.

“… que pena Nehir não se interessar pela adivinhação e pelas forças do mal que tentavam contrariar os desígnios dos deuses… — Zia continuava os seus pensamentos, alheada dos cuidados para com a sua pessoa — … continuava a ser ela, já velha, a ter de beber o sumo da flor-de-fogo, para através dos sonhos perceber o que as divindades tinham para lhes dizer.

Os joelhos fraquejaram-lhe e as companheiras agarraram-na enquanto lhe punham um cepo de madeira no chão para que se sentasse.

Erem irrompeu sem dificuldades pelo círculo protetor formado pelas mulheres e ajoelhou junto da sua companheira.

— Então? — Interrogou de chofre. — Que viste?

— Não sei bem. — Suspirou ela, a cabeça pesada e os olhos semicerrados. — Preciso descansar, depois penso melhor sobre o assunto.

— Mas que viste? — O chefe insistiu.

— Não sei! — Reafirmou atordoada pelo cansaço. — Leões e hienas… à luta…

— E que mais?

— Não sei! Preciso descansar! — Ela arregalou-lhe os olhos e levantou a voz. — Não consigo pensar, está tudo baralhado na minha cabeça. — Depois acalmou-se e olhou suplicante para as companheiras. — Levem-me para a minha casa.

Zia dormiu durante quase o resto do dia. Não acordou para comer, se não já ao anoitecer e apenas para beber água e roer um pouco de carne seca, pensativamente. A sua visão perturbava-a e temia compreender o seu sentido; o velho leão seria deixado sozinho e despedaçado pelos inimigos… expedições como o ataque aos homens-macaco, que deixaram a aldeia desprotegida, poderiam ser o fim de tudo. Mas seria um aviso, ou um vislumbre do futuro? Com o inverno a prolongar-se e a falta de alimentos a fazer-se sentir, os grupos de caça eram maiores, percorriam mais distância e ausentavam-se mais tempo, também aí poderia haver perigo.

Erem respeitou o silêncio dela embora não deixasse de a observar, preocupado. Anoitecia quando regressou a casa. O frio lá fora fez com que todos regressassem cedo; a caça rendera um pouco melhor que o dia anterior, os grupos combinados com os estrangeiros tinham bons resultados, mas tudo deveria ser racionado e havia quem não quisesse partilhar. Vinha carrancudo e meditabundo quando entrou e deparou com a mulher sentada nas peles junto à fogueira a comer. Era bom sinal. Sentou-se ao pé dela em silêncio, sentindo o cheiro a fumo e a transpiração que enchiam a divisão. Pelo buraco do teto de onde saía o fumo conseguia ver a ominosa estrela brilhante que arrastava uma cabeleira de luz atrás de si.

Por fim ela resolveu falar e contou-lhe pormenorizadamente a sua visão, transmitiu-lhe os seus receios e comunicou-lhe a decisão de passar a trazer consigo uma ou duas crianças. A conversa prolongou-se durante horas até a lenha estar transformada em apenas brasas. A tudo o chefe acedeu e sugeriu as netas Cansu e Atye, respetivamente as filhas mais novas de Altan e Tekin, que eram suficientemente pequenas para começar a aprender. Zia, porém, disse precisar de alguém mais velho que tomasse contacto com ensinamentos mais complexos… se acontecesse algo antes das crianças estarem preparadas ficariam sem alguém para implorar aos deuses. Achava que Kiraz, viúva de Oran, um dos filhos de Lemi, parecia ter o necessário.

Erem ficou contente por tudo continuar na família e concordou que teriam de manter mais guardas na aldeia, até porque os homens que enviara aos povoados em redor relatavam também ataques e roubos de maior ou pequena monta. Os homens-macaco não eram, afinal, os únicos ladrões da região.

Quando finalmente se deitaram e abraçaram-se debaixo das peles ao lado do lume reavivado, Zia adormeceu imediatamente, mas Eren não conseguiu. O significado da visão não era ainda claro. Quereria dizer que o clã estava condenado? Aconteceriam divisões entre eles e os que restavam seriam exterminados? Se o leão representava o clã, quem eram as hienas? Inimigos internos ou externos? Será que o facto de permitir que os estrangeiros vivam entre eles era a semente para a destruição do clã? O tempo que deveria passar a dormir desvaneceu-se nestas cogitações até que o cansaço o venceu.

Ainda o sol não nascera quando foram acordados por gritos agitados de homens e mulheres.

Acorreram à agitação que acontecia perto da casa armazém. A multidão que se juntava abriu alas para o seu chefe que deparou com dois homens caídos. Um, estava morto quase de certeza, a avaliar pela quantidade de sangue que jazia empastado ao lado da cabeça, mas o outro, apesar dos vários ferimentos nas mãos e no rosto, mexia-se bem; deitado de costas, as mãos erguidas numa prece, chorava e implorava num idioma estranho.

Alguns dos guardas do armazém, excitados, explicaram de forma ofegante e nervosa o acontecido; cerca de cinco estranhos atacaram o homem que guardava a entrada tendo sido surpreendidos pelos dois que os aguardavam na parte de dentro. Com os gritos de alarme e o acorrer de mais guardas, os atacantes lograram fugir, com a exceção daqueles dois. Eram estranhos à aldeia e não falavam a língua de nenhum dos povoados em redor.

Erem fitou o homem vivo com intensidade que, pressentindo a autoridade nele, arrojou-se a seus pés, arengando num choro histérico. Os pensamentos do chefe, porém, não estavam no estranho em si, mas no que representava a presença de povos de outras regiões numa área que começava a estar sobrepovoada. As novidades não se ficavam, contudo, por ali. Um dos netos de Lemi, gritava para quem o quisesse ouvir que o invasor morto trazia ao pescoço o colar que oferecera à sua prometida, que fora assassinada durante o último ataque dos homens-macaco a Barinak… tudo indicava que afinal os atacantes foram outros. A terrível constatação pesava fortemente sobre o coração de Eren; destruíram e mataram um clã inteiro baseados numa suspeita que agora se revelava falsa.

 

Manuel Amaro Mendonça

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11 - O Povo de Barinak

Parte 11 - O Povo de Barinak

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Na Madrugada dos TemposIntrodução – Na Madrugada dos tempos





quinta-feira, 27 de julho de 2023

Admirador secreto


 





terça-feira, 25 de julho de 2023

Omnimpotência

 

O Senhor Deus do Universo não estava em nenhum dos seus sete dias, mas Falalael não percebeu o silêncio, ainda por cima abafado pelo ranger das esferas.

Senhor Deus, estão a acabar as auras de proteção para veículos locomotores singulares, em [Aldebaran] — Falalael emitiu uma fórmula matemática, para identificar o corpo celeste, que seria fastidioso reproduzir aqui. — Lá, estão habituados a usar um amuleto de bolinhas em cada locomotor, o que pressupõe uma aura de proteção associada, mas a nossa capacidade está a esgotar-se. Não do gadget de merchandising, mas da energia protetora. O Senhor não está a pensar em aumentar a capacidade energética na região?

Uma oscilação avassaladora de energia na área indicou que Deus se virara abruptamente, irritado por ter sido interrompido por um auxiliar.

Ó Falalael, isto não é brincadeira — vibrações eletromagnéticas faiscavam no éter próximo. — Estou eu aqui atento a preparar tudo para que o choque entre estas duas galáxias se faça de maneira coordenada e vens tu com problemas de economato? [Aldebaran], onde é isso?

Está a 250 aueis, daqui [cerca de 2500 milhões de anos-luz].

É longe. Agora não posso lá ir.

E o que é que eu respondo aos responsáveis pela criação de exceções locais às leis da Física, que se veem desacreditados por tantas esperanças de proteção frustradas?

Olha, inventa qualquer coisa. Por exemplo: espalha a inspiração de que, para além do amuleto, é assisado os utentes fazerem conduções defensivas. Também tens de arranjar soluções, Falalael! Eu não posso fazer tudo.

Mas, Senhor Deus, há muito tempo que não vai a [Aldebaran]. E a [Betelgeuse]. E a tantos outros mundos.

Falalael, jovem, criar o Universo foi relativamente fácil, o problema é a manutenção. Aliás, foi mais que fácil; foi involuntário. Estava meio distraído a confecionar maravilhas com um número enorme de elementos; quando dei por ela, estava envolvido por uma explosão colossal. Agora, tenho este berbicacho: um número incalculável de corpos celestes, todos a rodopiar, todos a afastarem-se uns dos outros. É um trabalho danado evitar que comecem todos a chocar entre si, antes de conseguir pôr tudo no lugar, outra vez. Ainda bem que estão a afastar-se: diminui o risco de choques...

Bem vejo que não deve ser fácil — contemporizou o ajudante.

Manter estes universos todos a girar continuamente e com suavidade é como um número de equilibrismo de pratos girantes, mas a uma escala... cósmica. Em certos momentos, tenho de estar em todo o lado. E a expansão sempre a complicar as coisas. Estou tão fartinho disto!

Felizmente, dispõe do dom da ubiquidade.

Isso é mais fácil de dizer, do que de fazer… Com este tamanho de Universo, nada é fácil. Nem sequer há teletransporte digno desse nome, nem de utilidade mínima. Parece que estou em todo o lado ao mesmo tempo, mas só para quem está desatento. Felizmente, conheço os atalhos. Se tivesse de seguir os percursos lineares da luz, tornava-se impraticável administrar o Universo. A linha reta está longe de ser a distância mais curta entre dois pontos.

Pois, mas, mesmo assim, há quem fique desapontado. Conta com a ajuda do Senhor, com a presença do Senhor, mas, na hora-chave, ninguém lhe põe a vista em cima. Por um canal de serviço, chegou-me há pouco a notícia, já requentada, de alguém que se dizia filho do Senhor, que chamou pelo Senhor numa aflição, mas ainda não foi dessa que viu o pai.

Mais um? Mas, que mania! Meu filho, como? Eu só faço originais, não faço cópias. Não tenho tempo para essas atividades multiplicadoras, à maneira das espécies. Nem capacidade. Como é que se cruza o motor do Universo com um animal?

Falalel mantinha-se calado e expectante.

Já não é a primeira vez. Deve andar por aí quem se faz passar por mim. Talvez seja por causa do estatuto. Onde é isso?

É também na [Via Láctea]. É aquela, espiral, de quatro braços, com o buraco negro maciço [Sagitário-A] no meio, que roda em sentido progressivo. É lá que gravitam [Aldebaran] e [Betelgeuse], de que falei ao Senhor há pouco. Onde há aquele problema da rutura iminente do fornecimento de auras…

Parece que só te interessa a [Via Láctea]...

Eu sei que há biliões da galáxias, mas tenho uma ligação especial à [Láctea] — sou de [Orion], uma constelação da [Via Láctea], e já lá não vou há uma eternidade. Apesar de não ser grande, a [Láctea] contém 100 mil milhões de estrelas e o diâmetro atinge 10 fares [cerca de 100 mil anos-luz]. Tenho orgulho nela.

Esse tal que se dizia meu filho, como é que ele era?

Os daquela variedade dizem-se feitos à imagem e semelhança do Senhor. Mas têm corpos e estruturas morfológicas que indicam que evoluíram em ambientes arbóreos — umas estruturas regionais de variação lenta.

Nas árvores? Porque é que eles acham que eu evoluí, ainda por cima nas árvores?

Nem ligam uma coisa à outra. Dizem, porque querem à viva força ser parecidos com o Senhor, Deus. É a questão do estatuto, sim.

Saiu-me cada aberração daquele acidente criador…

Então, o Senhor não está a pensar passar pela [Via Láctea] proximamente? Aquilo está mal por lá.

Ah… eles desenrascam-se. Se não… temos pena! Aposto que as árvores se vão aguentar melhor. Assim como assim, é tudo para voltar a amassar!

Joaquim Bispo

*

Imagem: Francisco de Holanda, Caos e Criação da Luz, 1545–1573.

In: Das Idades do Mundo — Imagens, FBAUL, Lisboa.

* * *





sábado, 22 de julho de 2023

O Voyeur Espectral

 


Era a rotina, e não era. Pois há no belo uma resistência ao hábito, uma oposição ao costume, e conquanto Eva, antes de dormir, abrisse as persianas da janela e peça a peça despisse-se para os céus e o luar, sua figura proporcionava às estrelas um espetáculo sempre intenso e sempre deslumbrante. Descomunal, o firmamento e as virtudes da menina-mulher, dela menciona-se a pele cor de âmbar, os olhos de felina fugidia, a macia fragilidade do pescoço. Com vinte e sete anos, prevalecia sobre a natureza e os estigmas do tempo. De corpo apresentava os quadris carnudos e a famélica cintura, envolvida ela, Eva, por uma incandescência proveniente de seus contornos – e se não fosse um único, e imperdoável, defeito, haveria de figurar nos adornos da mitologia qual Helena de Tróia moderna.

Ah, se não fosse o meu dedinho do pé...

Mas o dedinho de Eva é matéria pertinente aos domínios de outra estória. Nesta realça-se o fato de ela, como parte do ritual noturno, desnudar-se perante a janela. Residia em um apartamento onde, por ser o espaço residencial mais alto da cidade, sua privacidade não era violada ou ameaçada – e na cobertura da torre gêmea em frente os aposentos existiam em abandono. Peça a peça ela despojava-se de suas limitações, da camisa e da calça e das meias, peça a peça provocava os astros, e apesar de despir-se com certa distância do vidro, gostava de fantasiar-se espiada, admirada e desejada, fetiche cujo estímulo proporcionava-lhe afluxos de prazer.

Desde a mudança para o apartamento dedicava-se ao strip-tease noturno quando – numa noite de lua cheia e de nuvens afiladas e sinistras, vestida somente com as roupas íntimas – surpreendeu-se ao vislumbrar, na cobertura da torre-gêmea vizinha, na janela defronte a sua, a brasa de um cigarro acender-se, cintilar, apagar-se. Eva correu, saltitou por cima da cama e fechou a persiana. Venceu a madrugada assim, solitária e confinada, circunscrita aos preceitos do cimento, e ao abrir o quarto para a manhã, vestida e penteada, apoiou-se no peitoril e melhor observou a habitação adjacente. Iluminada pelo sol, distinguiu os aposentos vazios, a ausência de móveis, a indefectível pintura das paredes, e por julgar-se enganada, por julgar a visão do cigarro fantasma como efeito do sono ou do desejo, voltou a despir-se para o infinito, à noite, como era de seu feitio.

Desceu a calça jeans e, atenta ao apartamento oposto ao seu, viu a brasa acender-se, cintilar e, prestes a apagar-se, evidenciar a errônea silhueta de um rosto. Enfurecida, de calcinha e sutiã, Eva caminhou até a janela e, com sinais de mão, ofendeu quem porventura ocultava-se na escuridão e no silêncio. Depois, fechou a persiana, ligou o ventilador de teto e, deitada, entregou-se à consideração do vento. Por um mês resistiu ao chamado do nu, por um mês enfrentou o seu pendor exibicionista, e, contudo, não foi o fetiche, sequer o desânimo, o fundamento da visita à torre-gêmea vizinha – mas sim o medo e sua irmã, a curiosidade. Omitiu ao porteiro os pormenores de seu interesse em conhecer a cobertura, e ao homem revelou tão somente um entusiasmo comercial.

Minha prima pretende se mudar, justificou.

Em silêncio, subiram de elevador até o último piso. Eva, contida em movimentos, excedia-se em olhares suspeitos. Pois não seria ele o tarado? E quais ações tomar ao adentrar o apartamento? Quais sinais de presença humana observar? Lamentava a impulsividade de sua índole quando o elevador abriu. Saíram os dois, e no corredor as lâmpadas acenderam-se. Calado e taciturno, o porteiro puxou um molho de chaves do bolso, demorou-se até encontrar o segredo correspondente à fechadura. No corredor o tilintar do metal assemelhava-se ao entrechocar de lâminas num faqueiro. Desimpedida a porta, do umbral Eva examinou o assoalho, e o sol e sua consciência não distinguiram, na manta de pó sobre o chão, pegadas, rastros ou resquícios de cinzas de cigarro, nada que indicasse presença humana  ou material. Ao aproximar-se de uma das janelas e contemplar o próprio apartamento, a pele arrepiou-se. Melhor ir embora, disse ela, avessa ao inusitado e ao insólito. No corredor, rejeitou o conhecimento e a memória das câmeras de vigilância: muito tempo se passara, e o objeto de seus temores não era afeito ao espaço.

Em casa, consolidou o olhar no alto da torre-irmã, e na face de Eva a descontração dos músculos e o alheamento dos lábios indicava alívio ou aceitação. Antes de dormir, retomou o ritual de strip-tease e despiu-se com vagar e elegância, entregue em sacrifício, enquanto na última janela do prédio em frente a brasa de um cigarro cintilava e a fumaça conspirava um sorriso.






quarta-feira, 19 de julho de 2023

Não vai dar em nada

 


Deitei a sola na cabeça do vagabundo. Tinha pouco tempo para resolver a parada; antes que algum benfeitor dos direitos humanos pudesse aparecer e estragar tudo. O meliante, mendigo, morava na minha calçada há duas semanas. Era um dever meu enxotá-lo dali, antes que criasse raízes. Dona Gerusa, uma senhora muito distinta e bem apessoada, não aguentava mais ver a imundice na nossa porta, e o falava abertamente. “Esse povo, Fernando, não tem o que fazer, vive na vadiagem!, e fica morando e depositando carniça na escada, na portaria. É cada podridão que aparece aqui, que eu não sei por que ainda moro nesse que foi o prédio dos prédios de Fortaleza”. Queria me vingar, por mim e por dona Gerusa. E, tenho certeza, esse não era um pensamento só meu. Cada morador, dos dezessete apartamentos, um por andar, detestava a perturbação dos indigentes da pandemia; pude conferir na última reunião. Rodavam, rodavam, feito galinhas, e, depois, por sabedoria – que de besta esse povo não tem nada; para levar uma mamata do governo, são os primeiros –, se alojavam na grande marquise de nossa entrada. Já estava em andamento a demolição da antiga portaria: no lugar, seriam colocadas só grades; mas essas coisas demoram, e eu tinha de surpreender e deixar o aviso para os demais. Acordei com sangue nos olhos, quando atentei pela janela do quarto a imundície na rua. Engoli o café com tanto ódio que queimei a língua – mais um motivo para descontar a raiva. Com roupa de casa mesmo, bem camuflado, desci pelas escadas – moro no segundo andar. Saí pela parte de trás do condomínio, por uma porta a que só eu, membro do conselho, e outros dois temos acesso. Levei comigo, para qualquer eventualidade, uma chave de fenda. Não tinha nada premeditado, mas, pelo menos, um bom safanão ia dar. Vi o primeiro, dormindo enrolado num papelão. Dei um chute seguro, que estropiou a sua proteção. Ouvi um grito surdo, baixo, como se lhe faltasse o ar. Notei que o animal não se mexia. Apliquei dois empurrões, com os pés mesmo: nada. Dois distintos moradores do bairro passavam e sequer olharam para a cena. O sujeito agredido estava fingindo demência ou algo do tipo. Para parar de gracinha, dei mais um belo chute, que fez o meu sapato voar. Corri para pegá-lo e, por receio do que tivesse acontecido, voltei para o meu apartamento. Às oito horas, havia dois carros da polícia parados na entrada. Estavam com as luzes rotativas ligadas, na parte de cima do carro, como se preparassem o palco. Logo chegou uma ambulância. Não levaram o bandido. Colocaram um saco preto cobrindo o corpo. Morreu o desgraçado? Molenga! Para ficar na porta dos outros, é o mais vivo dos homens. Bem, tanto faz. Vou dar um jeito nas gravações das câmeras. Isso não vai dar em nada.






segunda-feira, 17 de julho de 2023

2022 - poema de Bia Takematsu

 







Do livro Do lado de lá da Consolação, Editora Telha.





quinta-feira, 13 de julho de 2023

A Pescaria

 

A pescaria

Fernando já estava acordado quando o despertador tocou às 4 horas e 15 minutos. Era sempre assim nas madrugadas em que ia à pesca. O seu relógio biológico antecipava-se à maquineta. Tão cedo despertar só acontecia naquelas circunstâncias, porque quando era para ir trabalhar a mecânica ganhava sempre à biologia. Entre a pescaria e o trabalho não havia que hesitar, uma era puro prazer, outro era dura obrigação.

Como não havia tempo a perder, os apetrechos de pesca eram ajeitados dias antes, para que no dia fosse só pegar e largar. Nada podia faltar. A roupa também era escolhida de véspera, em função tempo que iria fazer. O negócio era por demais importante e interessante para que subsistissem falhas.

Equipado a preceito e com o pequeno-almoço tomado era só agarrar nos sacos e pôr-se a caminho.

De carro seriam cerca de 15 minutos, atendendo a que àquela hora da madrugada não havia trânsito. Chegado ao destino, bastava procurar o melhor lugar para a função, tendo em conta as condições do mar e as correntes dominantes. Nada podia ser deixado ao acaso. A pescaria não é feita à balda, tem por base muito conhecimento científico, não basta pôr o isco no anzol e lançar a linha, é muito mais do isso.

Escolhido o local, os sacos eram poisados e começava a preparação para a faina. Com todo o tempo pela frente, porque o tempo deixava de contar, ia-se tirando calmamente tudo o que era preciso para um bom desempenho da acção.

Fernando já se encontrava tão entretido nos preparativos que nem deu pela saída da escuridão da noite de quatro cães de grande porte que se aproximaram sorrateiramente dele, como se fossem uma matilha esfaimada em busca de possível presa.

Mas afinal o que era suposto acontecer, um afiar de dentes, deu lugar ao abanar de caudas e a lambedelas amistosas ao pescador.  

Ali estavam os seus companheiros de pescaria, sempre presentes, e já lã vão alguns anos. Eram uma companhia que nunca se desfez e, quanto a faltas de comparência, sobram dedos de uma mão.

Ainda se lembra da primeira vez que se cruzaram: não houve abanar de caudas, nem lambedelas por parte deles e não houve qualquer gesto pela sua parte. Ficaram ali a medirem-se e a ver o que aquilo iria dar. Fernando, a parte mais fraca, ainda pensou em abandonar o local, mas decidiu ficar e enfrentar a perigosa situação. Sombreados pela pouca luz que vinha do candeeiro público, aquelas feras mostravam-se assustadoramente perigosas. O seu cérebro tinha-se movido a alta velocidade para encontrar a chave da solução.

Os figos salvam a situação disse-lhe um dia o avô, quando com ele percorria os caminhos da aldeia. Ao avistar algum cão, o avô tirava do bolso uns figos secos e dava-os à visita inesperada.

E a solução encontrada estava certa, porque as sombras moveram-se em direcção aos figos colocados no chão e aceitaram os presentes.

A amizade começou aí.

Com estes sócios por perto não há malandro que se tente aproveitar das fraquezas de um homem, como aconteceu uma vez em que foi assaltado por um grupo de meliantes que sorrateiramente se apoderaram de dois robalos e alguns ruivos.

A madrugada estava calma, o vento praticamente não mexia, o céu estava estrelado e a temperatura aguentava-se bem sem um grande agasalho. O mar ia e vinha bater nas rochas, não fazendo altas ondas, tanto assim era que os salpicos para cima do paredão eram raros.

Ao longo do paredão três ou quatro outros pescadores tentavam a sua sorte e habilidade Ao longe, sob a luz das estrelas e sob o ténue clarear da aurora, pareciam estátuas rochosas desafiando o mar.

O silêncio era cortado pelo bater das ondas nas rochas protectoras do paredão.

Quem nunca pescou não consegue, por mais raciocínios que faça, entender aquela malta que se levanta às três horas da manhã, faça chuva, faça frio ou assobie o vento, para ir à pesca, muitas vezes a dezenas de quilómetros de casa, sem quais quer garantias de trazer algum peixe.

Mas eles não sabem o que é ouvir o silêncio do mar a bater nas pedras do paredão, o que é sentir o sabor da maresia, o que é saltar para além do real e imaginar a rota daquele exemplar que, no meio do imenso mar, se dirige até aquele ponto em que a vida se vai cruzar com a morte, o que é vê-lo a vir no ar ao nosso encontro.

Mas eles não sabem, nem sonham que enquanto se espera se pensa em tudo o que se pode pensar, sem que alguém venha corta a linha de pensamento.

Mas eles não fazem a mais pequena ideia da paz de espírito que a luta com o peixe e com as forças da natureza traz ao pescador.

Mas eles também não sabem o que é passar por entre os outros pescadores e mostrar a mais-valia de uma noite de prazer: quatro robalos, três ruivos, uma dourada e uma corvina de uns bons quilos.

 





segunda-feira, 10 de julho de 2023

Dimensões no espelho

 


Já era tarde da noite, ao longe os clarões sinalizavam a tempestade que se aproximava. Eu tinha apenas uma hora de viagem, resolvi seguir em frente. Não seria a primeira vez que dirigiria com tempo ruim. Eu estava ansioso por chegar em casa.

A chuva chegou e foi se avolumando. O tráfego era intenso e os faróis ofuscavam a minha visão no vidro molhado e oleoso. Pensei em parar, não havia lugar seguro, continuei dirigindo. Uma árvore caída mostrava a força dos ventos e o perigo que poderia estar me esperando na próxima curva.

De repente um grande clarão tomou conta do espaço em minha frente, seguido de um som estridente e assustador. Me obriguei a fechar os olhos e fiquei contente por não ter encontrado nada à minha frente. Foi uma sensação boa, nos primeiros segundos, pois a tempestade passou repentinamente, o vento cessou, apenas galhos e folhas cobriam a pista. Nem água havia mais. Tudo estava muito silencioso e a rodovia, malconservada, parecia mais nítida do que nunca para uma noite encoberta pelas nuvens.

Tentei sintonizar o rádio, havia um apagão nas emissoras locais, nem chiado eu conseguia sintonizar. Depois, me dei conta que eu já havia andado por pelo menos dois quilômetros e não encontrará nenhum veículo no sentido contrário. Reduzi a velocidade, ninguém me alcançava também. Só poderia ter sido um acidente, pensei.

A estrada começou a ganhar contornos diferentes. Ao longe surgiram algumas luzes. Talvez uma pequena cidade. Voltei a tentar a sintonia de alguma emissora no rádio. Ao tocar o botão, as luzes do carro se apagaram. Em ato reflexo pisei no freio. O carro invadiu a pista contrária, no exato momento em que surgia um outro carro na outra mão de direção. As luzes do meu carro voltaram e o motorista conseguiu perceber a tempo e evitar a colisão.

Joguei o carro para o acostamento e fiquei paralisado por algum tempo. Minhas mãos estavam fixas no volante. Olhei com mais atenção para elas, não pareciam minhas mãos. Olhando com mais cuidado, o painel do carro também não era o mesmo. Voltei meus olhos para o espelho retrovisor e não me reconheci no reflexo.

Apanhei o documento de identidade na carteira sobre o console. A fotografia correspondia à imagem no espelho, porém o nome registrado era o de um outro sujeito. Peguei o telefone celular e busquei meus contatos. Sem nomes ou imagens conhecidas. Naquele ponto da estrada não havia sinal de telefonia. Sem entender o que acontecia, selecionei a opção “home” no GPS e segui pela estrada, guiado pelo aparelho.

Apesar das inscrições em uma língua diferente da minha, as placas na beira da estrada me pareciam compreensíveis. O som do rádio voltou a funcionar. Um bipe sinalizou uma nova mensagem de voz no sistema de áudio do carro, que estava conectado ao telefone celular. Toquei a tela para ouvi-la: “Querido, você está atrasado! Está tudo bem? As crianças já estão na casa de minha mãe. Preparei tudo para que tenhamos uma noite só nossa”.

Seria uma esposa? Quem sabe uma namorada? Eu havia feito a escolha de viver sozinho. Nunca pensei em filhos. Por que eu aceitaria um relacionamento com filhos de outros? A voz me parecia familiar. Repeti a mensagem por várias vezes tentando identificar quem era. Parei o carro na entrada de uma via auxiliar. Curioso busquei a imagem da pessoa associada aos contatos do telefone. Fiquei surpreso com a constatação. A mulher na imagem era a de Maria, a garota dos meus sonhos na adolescência. Alguns anos mais velha, porém com mesmo sorriso e brilho no olhar. Eu nunca mais a havia visto, desde que decidi mudar de cidade para estudar. Percebendo meus sentimentos, ela sempre evitara cruzar com o meu olhar. Sempre tive a certeza de que o sentimento de afeto era unilateral.

Quando estacionei o carro no endereço sinalizado pelo GPS, me vi em frente a uma casa construída em estilo enxaimel, com um belo jardim em frente. Era bem diferente da casa de que me lembrava, da minha casa, construída com muito vidro e linhas modernas. Na caixa de correspondência o sobrenome do documento de identidade em meu bolso. Talvez fosse a minha casa ou quem sabe de alguém da minha suposta família.

Estacionei o carro e me dirigi a porta de entrada. Toquei o bolso e identifiquei o molho de chaves. Uma delas abriu a porta com facilidade. Tudo estava decorado com móveis antigos, com muitos quadros pendurados pela parede. Sobre a lareira um retrato meu, com Maria ao meu lado e duas crianças.

Um tanto perdido, identifiquei o lavabo, onde lavei as mãos. Espelhos contrapostos multiplicaram a minha imagem e a do ambiente. Pensei em como poderia existir um eu diferente, perdido nas dimensões. Depois, comecei a explorar o ambiente. A mesa da sala de jantar estava posta para dois. Era possível sentir o bom aroma que vinha da cozinha. Algo estava no forno e eu imaginava que fosse delicioso.

Voltei para a sala no exato momento em que Maria descia a escada. Ela estava linda e pela primeira vez pude experimentar a bela visão daquele sorriso lindo, daqueles olhos brilhando, tudo para mim. Ela se aproximou, me abraçou e me deu um longo beijo: “feliz aniversário de casamento, querido!”.

Fiquei atordoado. Meio perdido pensei que eu não tinha um presente para ela. Na verdade, mal podia lembrar a última vez em que eu havia comprado um presente para uma garota. Antes que eu conseguisse pensar numa desculpa, ela me agradeceu pelo presente: “as flores são lindas, meu amor”.

Tomei um banho. Jantamos, dançamos, rimos um bocado. Foi a noite mais incrível que experimentei em minha vida. Nunca me senti tão amado, nunca o sexo me fez tão feliz. Descansamos um pouco. Cochilei, ela também.

Quando acordei, ainda na madrugada, Maria ainda dormia, com uma bela e doce expressão de sorriso no rosto. Ajeitei o leve lençol que a cobria e levantei, para explorar um pouco da casa. Eu precisava entender o que acontecia.

Na sala de vídeo, abri o armário e encontrei alguns álbuns de fotografias. Vi e revi todas as imagens. Não era só a minha vida que havia tomado um outro rumo, meus pais eram outros, o mundo era completamente diferente. Liguei a televisão e comecei a navegar pela Internet, buscando canais de história. Constatei que a minha história foi influenciada por fatos que aconteceram ainda no século XVI, ou quem sabe antes, há milênios. Não saberia como precisar.

Eu acessava sites e mais sites, freneticamente, até que me deparei com um programa onde um físico explicava a teoria dos multiversos ou universos paralelos. Parecia inacreditável, mas na visão dele, em cada momento que tomamos uma decisão e se abrem caminhos alternativos, uma parte de nós ocupa espaço em universos diferentes e a combinação de ações e decisões nossas e de terceiros, constroem tais universos. Acredito que não haja um computador ou sistema capaz de calcular quantas seriam essas possibilidades de combinações de vidas. Voltou-me à mente as imagens multiplicadas no espelho do lavabo.

Fui surpreendido com as mãos suaves de Maria em meus ombros. Suas mãos se movimentavam sobe o meu corpo e o desejo tomou conta de nossos sentidos. Retomamos a experiência do quarto ali na sala mesmo.

Começou a chover e a água que caia sobre o telhado tornava o momento ainda mais interessante, intenso. Depois de experimentar mais um momento de êxtase, deite-me ao seu lado no tapete, tentando recuperar um pouco do meu fôlego, enquanto ela, deitada sobre mim, olhava fixamente em meus olhos. Eu a beijava e a chuva se acentuava.

Uma tempestade de raios se iniciou e depois de uma descarga elétrica houve um apagão. Ela me pediu que olhasse para ela e as luzes intermitentes dos relâmpagos iluminavam o seu rosto que conserva o sorriso e o olhar de desejo. Ela tocou os meus lábios com os dedos e disse o quanto me amava.

Não tive tempo para falar do sentimento, das minhas sensações naquele momento. Um clarão muito forte e um estrondo quase que imediato invadiu o ambiente. Fechei os olhos por alguns instantes. Quando os abri, meu carro havia invadido a pista contrária. Para evitar a batida, pisei bruscamente nos freios e meu carro rodou na pista. Voltei, para a minha pista, respirei por um instante e dei nova partida. Procurei o acostamento e, por sorte, encontrei um recuo, num ponto de ônibus.

Meu coração disparou. Desliguei o limpador do para-brisa e deixei a chuva escorrer enquanto eu me recuperava. Apanhei o telefone, eu precisava conversar com alguém, contar o que me acontecera. Porém, eu não tinha com quem falar. A tristeza começou a tomar conta de mim, por não saber como voltar para aquele universo, que por um breve espaço de tempo, me fez tão feliz.





domingo, 9 de julho de 2023

Monólogo no Cinema


 

Nem sei o que me passou pela cabeça, vir ao cinema na minha última noite de liberdade e logo para ver um drama. Já tenho dramas que me cheguem e sobrem, não preciso mesmo nada de mais um. Enfim, agora há que aguentar, pode ser até que me divirta e sei muito bem que não terei muitas oportunidades nos próximos tempos.

Se calhar nem na TV conseguirei ver nada de jeito, aposto que os miúdos estão habituados a serem os donos e senhores de tudo. Ou então o pai, com o seu eterno futebol. Nem sei como podemos ser irmãos, temos gostos e feitios tão diferentes. E nem pensar em ver coisas no computador, se descobrem deixo de poder trabalhar em paz.

Tenho de prestar atenção ao filme, já nem sei bem o que se passa. De onde é que este louraço surgiu? Pensava que ela estava de pedra e cal com o outro, o moreno. Ou será que é esse o tal drama?

As coisas não vão ser mesmo nada fáceis, sobretudo para mim. Nem sei como nos vamos conseguir enfiar todos lá em casa, apesar de ter guardado na arrecadação de uma amiga, “temporariamente”, espero eu, alguns dos meus belos móveis e as coisas mais delicadas. Nunca tinha visto a sala tão minimalista, bom, pelo menos por enquanto, aposto que vai ficar prontamente caótica com roupas, tralha e sei lá eu que mais. Ou o meu quarto tão atafulhado, agora que terá de ser também o meu escritório, mal me posso mexer nele.

Que triste ideia a do meu irmão, ter investido tudo o que tinha na empresa de um amigo. Estava-se mesmo a ver que não ia resultar, a ideia em si já era bastante má e a execução conseguiu ser ainda pior. Mas é bem típico do João, sempre em busca do lucro fácil, sempre a tentar fugir ao trabalho, sempre a deixar-se ir em cantos de sereias. E agora quem paga sou eu.

Mas que grande confusão de filme! Ainda não entendi nada do que se passa. Também não tenho estado muito atenta, confesso. Pudera! Só a ideia de amanhã já não ser senhora da minha casa e de ter de aguentar aqueles monstrinhos a toda a hora! Sobrinhos ou não, foram terrivelmente mal educados pela mãe, a minha queridíssima cunhada, que só sabe dizer mal e pôr defeitos nos outros e torce o nariz a tudo. Como se tivesse nascido em berço de ouro!

Sim, só me faltava mais esta, nunca nos demos bem, ou antes, demo-nos sempre muito mal, e vamos agora partilhar um pequenino T2! E aposto que em menos de nada tenta despachar os seus dois preciosos rebentos para o meu quarto, em vez de respeitar o combinado que era arranjarem-se no outro, com os dois beliches e o biombo que comprei para as excelências. Sim, tive de ser eu a comprar tudo, por ela ocupariam os dois quartos e eu ficaria com o sofá da sala, apesar de a casa ser minha e eles serem meros convidados, ou antes, penetras.

Ainda se ao menos me tivessem pedido, mas não, foi uma mera comunicação de facto consumado, “vamos viver contigo até endireitarmos a vida.” Como se eu tivesse a obrigação de lhes cobrir os erros. Irmã mais velha ou não, são ambos adultos e deviam ser responsáveis pela sua própria vida.

E já sei que vão ser meses, talvez até anos, a ter de os aguentar, a não ter vida própria, a tentar preservar a sanidade e as poupanças amealhadas ao longo de anos de trabalho intenso para poder tirar uns anos a viajar. Sim, as minhas poupanças, é que bem posso esperar sentada que cumpram o que me prometeram e passem a contribuir para as despesas do dia-a-dia.

Pois! O meu querido irmãozinho, que me já me deve uma pequena fortuna em “empréstimos” dos seus anos de universidade e de solteiro. E só não continuou nos primeiros anos de casado porque eu estive fora, num país em que fazer uma transferência bancária não era nada fácil. É que a cunhadinha nunca pensou em trabalhar, mal se viu casada largou o escritório onde fazia não se sabe o quê para se dedicar à casa e aos filhos... Ou antes, para fazer o papel de senhora de grandes posses.

Isto está cada vez mais confuso, agora discutem todos? Ainda por cima ao longe, sem que ouçamos o que dizem? Muito “artístico”, sem dúvida.

Mesmo agora, que estão em grandes sarilhos e perderam tudo o que tinham, qualquer mulher a sério prontificar-se-ia a fazer alguma coisa para ajudar às finanças familiares, sobretudo atendendo ao muito que gasta nela e nos “pequerruchos”, como lhes chama. Teve, até, o descaramento de me dizer que tinham mesmo de vir para a minha casa porque só assim poderiam continuar a pagar o colégio dos filhos.

Ou seja, os meninos têm de ter uma educação de luxo de que, diga-se de passagem, não se vê o menor vestígio e quem paga sou eu? E até aposto que não tem a mínima intenção de largar o cabeleireiro da moda, as massagens, o ginásio e tudo o mais para “andar bem”! Com tudo isto, não admira o salário dele não dar para alugarem um andar, agora que perderem o que tinham porque ele, num ataque de estupidez total, o tinha dado como garantia de um empréstimo à empresa do tal amigo quando as coisas começaram a andar mal.

E ele é que é o esperto, a história de sucesso, que não labuta sem um emprego fixo como eu? Como se soubessem alguma coisa da minha vida ou das minhas finanças! Bom, também não lhes conto nada, é que se descobrissem que sou uma consultora muitíssimo bem paga e que só vivo neste bairro porque não tenho as peneiras deles, havia de ser bonito! Teria mesmo de mudar de país sem deixar endereço.

Mas afinal o drama é ela ter de ir viver para uma cidade pequena com o seu grande amor, o homem com quem sempre quis casar? Tanto choro e lamentos por ter de deixar as festas, as grandes lojas, a vida social?! Com franqueza! Se querem um drama a sério, falem comigo daqui a umas semanas, garanto-vos que não ficarão desiludidos. Se calhar até o verão pespegado nos noticiários da TV e nos jornais!

Luísa Lopes

Imagem feita com Quick Write





segunda-feira, 3 de julho de 2023

FRASES DOS ANJOS (1884-1914)


“A miséria anatômica da ruga

De todas as espécies sofredoras

Desespero endêmico do inferno

O horror dessa mecânica nefasta

Dessa estranguladora lei que aperta

Todos os agregados perecíveis

Dos apodrecimentos musculares

À herança miserável de micróbios

O cuspo afrodisíaco das fêmeas

Cresce-lhe a intracefálica tortura

A aspereza orográfica do mundo

E o turbilhão de tais fonemas acres

E à palidez das fotosferas mortas

Com a abundância de um gêiser deletério

Monstro de escuridão e rutilância

Que o sangue podre das carnificinas

Na câmara promíscua do vitellus

Microorganismos fúnebres pululam

Amo meu pai na atômica desordem

Da luz que não chegou a ser lampejo

O choro da energia abandonada”.