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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Aguiar ConDor

Uma Águia invadindo o céu de um Condor,
Com dor não lhe querendo ver jamais,
A guiar seu retorno à paz após a dor.

Seu carinho entre nossas mãos que brincam,
Sua boca querendo errar meu rosto em minha boca,
Olhos infindáveis de fraterno e não incestuoso amor.

Condor a sonhar distante e forte corvo,
Enlaça os braços na frágil e pura águia,
Transferindo-lhe sua dor, desejos e mágoas.

Depois a amizade e o coração transpirando,
Os hormônios nossos corpos ricocheteando,
Num beijo louco ao estrondar das águas.

Mas nem aquela areia e brisa em nossa pele,
Estrelas, lua e néons na praia de nossas poesias,
Fez-me esquecer que eu só te quero amiga,
E a distante amiga não consigo esquecer.

Voa distante e perto, águia pequenina.
Só entrega tua vida a quem vida te dá;
Só ames o pássaro que te quer amar.





segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Temporada de caça

(Maristela Scheuer Deves)
Tudo começou certo dia quando, durante o momento cívico, o professor hasteava a bandeira e uma vespa picou-lhe a cabeça. Indignado com a audácia do inseto, o mestre declarou guerra a esses pequenos “bandidos”.
– A partir de hoje, pago um cruzeiro a quem me trouxer 100 vespas, abelhas ou marimbondos mortos – declarou aos alunos, fazendo a alegria da garotada.
Querendo incluir na lista outros animais que considerava peçonhentos, o mestre decidiu que pelo mesmo valor compraria também 10 aranhas ou um rabo de cobra venenosa. Foi um alvoroço na escola da pequena comunidade rural de Rincão Vermelho!
Daquele dia em diante, os meninos das redondezas começaram a passar todo o tempo livre à cata dos “produtos”. Se alguém destruía um ninho de vespas, lá estavam os pequenos, contando os 100 insetos para montar mais um pacotinho e levar ao professor, que pagava por eles e enterrava no quintal da escola.
– Já ganhei 10 cruzeiros – vangloriava-se Luizinho, contando as moedas comercializadas com a venda dos bichinhos.
– E eu, 12 – completava Adão, que não podia ficar para trás.
A concorrência era grande, e foi se tornando cada vez mais acirrada. Com o tempo, as crianças foram ficando mais espertas – e malandrinhas, também. Percebendo que o mestre não contava as vespas ou abelhas ao recebê-las, começaram a juntar apenas 80 ou 90 em cada pacote, pois assim rendia mais.
As aranhas também eram muito procuradas, e os alunos desenvolveram até mesmo uma técnica especial para pega-las: colocavam uma bolinha de cera na ponta de um barbante e a desciam nos buracos do quintal, como isca. Deu até briga quando Adão descobriu que Carlinhos, outro colega da terceira série, havia “pescado” umas aranhas atrás de uma mata da propriedade do seu pai.
– Se foi no terreno do meu pai, as aranhas são minhas – defendia Adão, mostrando os punhos.
– Eu é que as peguei, então elas são minhas – defendia-se Carlinhos.
O professor teve de apartar a briga, e, como já tinha pagado pelos insetos e não iria pagar duas vezes, apenas aconselhou Carlinhos a não caçar mais nas terras da família do outro menino. Adão não gostou, mas conformou-se.
A temporada de caça seguiu aberta por várias semanas. Numa segunda-feira, Luizinho ia para a escola quando, no caminho, levou um susto: quase pisou numa cobra. Acabou vendo que não era venenosa – os meninos maiores é que a tinham matado e colocado no meio da estrada, para assustar as meninas. Aproveitando a “sorte” de ela já estar morta, Luizinho cortou o rabinho do réptil, vendendo-o ao mestre como se fosse animal peçonhento.
Tendo visto o que o colega fizera, outros o delataram. Foi a gota d’água, e o professor decidiu encerrar sua guerra aos insetos e animais peçonhentos. Até porque, provavelmente, boa parte do seu salário devia estar sendo comprometida com a aquisição dos “troféus”...





O sacana - giselle Sato

- Escrever sobre sexo é difícil.

- Concordo.

- O trivial fica parecendo receita de bolo. E se dou uma valorizada, dizem que está mirabolante. Surreal.

- Tudo bem, pior é escutar que são ''pornô -chic''.

- E isto existe ou foi inventado?

- Sei lá, ando cansado de martelar as teclas e não escrever nada diferente.

- Que eu saiba: mão ali, boca aqui, língua, gemido, gozos desenfreados... É tudo igual, só mudam os adereços.

- Não seja debochado. O pior são os nomes. Eu fico pensando; Algumas vezes, um nome mal colocado mata a credibilidade.

- Esta é boa! Um nome de quê?

- Do órgão. Oras! Que mania de colocar apelidos.

Confesso. Até esta frase, vinha conseguindo controlar o riso. A questão eram os nomes dos ditos cujos. Agenor é escritor das antigas e gosta de tudo sugerido.
Meus amigos são engraçadíssimos, mas este é especial: Escreve contos eróticos, mas segue regras severas. Vale a pena escutar a explicação para suas composições:

- Tem que colocar moral na coisa, senão deslancha para o pornô baixo-nível. Nada entre familiares, menores, estupros, violência e algumas taras nojentas. Meus contos primam pelo bom gosto.

- Tudo bem . Mas criatura, e se a revista pede um conto ''sado'' leve?

- Não faço. Eu não estou aqui para incitar maluco.

- Mas voltando para os nomes, o que está te aborrecendo?

Ele ficou meio desconfiado. Achou que era sacanagem e amarrou a cara.
Acertou em cheio! Sou um descarado nato. Nasci assim: Safado, sacana e pinguço. Aquela conversa e o chope geladíssimo, estavam o fino!. Sem contar, que tínhamos acabado de participar de uma reunião chatíssima:

- Vamos fazer uma parceria. Temos estilos diferentes, precisamos encontrar uma forma de fazer o trabalho.

- Claro, o que sugere?

- O que acha de: xana, xavasca, rachinha, gorduchinha... - Onde anda buscando estas inspirações? Nem a minha avó fala assim!

- A nomenclatura correta soa pedante: '' ele introduziu o pênis rijo na vagina úmida....”

- Mais dois na pressão!!! Criatura, escreva “buceta”. Não é o que todo mundo diz por aí? - É vulgar, não assino conto com este termo.

- Agenor, meu velho. O que escolher está bom. Abro mão das minhas bucetinhas.

- E ainda tem o masculino.

- Sinceramente: “aríete em riste”, monumento ereto, membro túrgido...

- Vai começar a implicar? Era um conto para uma revista masculina. Pagou muito bem.

- Então qual o motivo do drama? Aliás, porque esta discussão começou? Esqueci...

- É a bebida, rapaz. Acabamos de sair da editora. Querem um erótico perfumado, sem as suas baixarias e sem minhas firulas. No jeito, entendeu?

- Não sei, não. Vou beber mais cinco, depois resolvo.

- Olha só, batizaram os ''chopinhos'': tem mulata, morena, lourinha... Pegou a idéia?

- Quer chamar as femininas de mulatinha, moreninha e por aí vai...

Olhei para a cara do Agenor e fiquei imaginando: “O homem pelado e de meias pretas, a barriguinha de cerveja bem redondinha e a carinha de pidão. A mulher, uma puta daquelas! Estilo cais do porto. Agenor, todo tímido pedindo: “- Vai filha, abre a lourinha pro papai.''... Não sei se ele intuiu ou teve algum surto inspirador.

Quando consegui parar de rir, estava sozinho na mesa e o malandro nem rachou a conta. A única coisa que tenho certeza: Perdi o contrato!





Crônicas Íntimas I: Bolhas

Marcia Szajnbok
O dia era cinzento e a menina estava emburrada. Chuvisco e vento frio eram sinônimos de não ir à praia. Os adultos, entretidos consigo mesmos, não davam atenção àquele amuo sentado junto à terraça, os olhinhos lacrimosos postos no mar, lá em baixo. A avó, sempre sutil em seus movimentos, chegou perto, de mansinho. Trazia na mão uma caneca com estranho conteúdo aquoso. Com duas páginas arrancadas de uma revista antiga, produziu em instantes dois canudos improvisados, um para si própria, o outro para a pequena. Passou o canudo pela caneca e assoprou, lançando no ar uma constelação de pequenas bolhas coloridas. A menina sorriu. A avó repetiu o gesto, a menina o fez também. Minutos depois, estavam as duas ali, rindo, suas almas voando, livres como as bolhas de sabão, que ganhavam o espaço indiferentes á garoa, ao frio e aos demais adultos cinzentos.

***

Muitos anos mais tarde...

Uma mulher está só, triste e cinza como o dia que atravessou décadas. A avó, em matéria, já não há. Mas vive - tão querida! - no coração de menina que, dentro do peito, a mulher carrega. Num desses momentos em que a vida parece que está prestes a se desfazer em pequenas partículas de nada, a memória lhe traz de presente a cena de infância. Sem medo do ridículo, pois quem está só não corre o risco dos julgamentos, providencia o aparelhinho de soprar água e sabão. Vista de longe, seria difícil dizer-lhe a idade. A menina grande lança ao ar as bolhas coloridas em plena avenida da cidade pardacenta. A solidão resta, mas a tristeza atenua na mesma medida em que, brilhantes, as pequenas esferas se espalham, sem rumo nem limite.





sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Fissuras íntimas

Léo Borges

Necessária e suficiente. Pensava no que Verônica havia significado enquanto admirava o mar, tão precioso para mim quanto o que ela fora. Ainda que da clarabóia quebrada do corredor do edifício eu só conseguisse enxergar uma pequena parte da praia, aquela visão criava vibrações gostosas, conforto que eu precisava e que me bastava. Percebia a água oscilando ao longe, desafiando a inércia do céu e a estagnação dos sentimentos. Mas aquilo me deixava intrigado: como o mar poderia ser tão alegre se tudo ao redor era quietude?

Naquele período de convalescença física e emocional essa brecha marota era meu refúgio visual, segredo íntimo criado por alguém que, sem saber, provou gostar muito de mim. Como das janelas do meu apartamento só era possível visualizar o emaranhado de sacadas interpostas, salpicadas por condicionadores de ar, por ali eu podia contemplar algum azul e ainda ter acesso à brisa fresca que driblava os labirintos de concreto de Copacabana. Enquanto as rachaduras não fossem sanadas – vidro, fêmur e coração – meus instantes de contemplação através daquele oráculo ainda teriam boa sobrevida.

Era interessante como a paisagem praiana ganhava contornos distintos, variando conforme o estado de espírito de cada admirador. Mas sob qualquer desses ângulos sua fidelidade era integral. No sereno da noite eu, vez por outra, percebia vultos solitários perambulando pela areia fria, talvez tentando se livrar de lembranças tristes como a minha, feridas que eram suturadas pela parceria entre a lua e seu brilho prateado no mar. E aquele mesmo mar era também o confidente dos casais enamorados que desfilavam molhando seus pés enquanto juravam um amor eterno sabidamente impossível.

Impossível? O sol matinal vinha me desmentir. Sua força majestosa me fazia crer que a felicidade não está na continuidade e sim nos ciclos, nas intermitências, como uma noite gélida que num truque honesto se transforma num amanhecer dourado. Notei que aquela vista estava agora muito mais real, distante de um sonho apaixonado. Resolvi contrariar a sugestão médica de repouso e decidi que iria abastecer meu corpo com a energia litorânea. No elevador sóbrio encontrei no espelho um homem compreensivo com sua angústia, disposto a buscar novos portos onde alguma alegria pudesse estar ancorada.

A praia é um caso raro de amor perfeito, sem engano, diferente dos nossos, que são meramente imprevisíveis. Nestes, a traição caminha próxima às declarações de amor infinito, as mesmas cujo inocente mar é cúmplice todas as noites. Verônica confirmou essa teoria. Num blefe ocasional de verão, furtivo como uma miragem na areia, acreditou que nada seria percebido e que tudo continuaria como sempre foi. Bem que Helena, amiga e vizinha do oitocentos e dois, alertara num argumento que, se não era de ciúme, margeava o interesse: “não entre nessa com tudo”. Uma pena que nos relacionamentos o nada e o tudo sejam tão semelhantes, como o sempre e o nunca e suas extremidades incoerentes.

De fato, Verônica agiu com a incoerência que é pertinente a nós, seres racionais. Atitude avulsa que para ela foi necessária e para mim o bastante; premissa nefasta, mas não menos lógica que meu flerte com a praia e seus atributos singulares. Se essa incoerência era universal, o sofrimento resultante era só meu, legítimo!

Passando pela portaria, cumprimentei o seu Belarmino, que comentou sobre o dia límpido. Por pouco não sugeriu um mergulho, sem levar em conta minha perna direita fartamente envolta por material imobilizador.

- Acho que vou entrar na água assim mesmo. O mar pra mim é um apoio melhor que essa muleta – rimos enquanto eu fazia graça com o objeto.

- Léo, sabe aquela clarabóia quebrada lá do seu andar? Pois é, vai ser consertada semana que vem. O novo síndico chegou querendo mostrar serviço, não é uma boa notícia?

Balancei a cabeça positivamente com um semblante opaco. Coisa covarde e traiçoeira essa benfeitoria! Sem aquele buraco feito por algum mestre visionário eu estaria fadado a sentir apenas a claridade disforme do sol e os ruídos dos carros, tão afoitos quanto indiferentes. Será que os condôminos não entendiam que mofo e infiltração eram, na verdade, prejuízos menores que a clausura e a solidão? A vida é isso, mera inversão de valores, e eu reclamando que meu egoísmo estava sendo violado.

Mas, nem a violência urbana inibia a opulência da Siqueira Campos, que pulsava sua vocação cosmopolita, típica de Princesinha do Mar, com um sem número de pessoas desfilando a elegância que o bairro exige. A perna tentou doer quando atravessei a Avenida Atlântica, mas a eloqüência do cenário já suprimia qualquer sensação lúgubre. Aliviado, pude vislumbrar de perto o mosaico multicor sobre a areia disputando a cena com o gigante anil que servia como pátio para os surfistas sangrarem suas ondas.

Por certo um banho ali finalizaria todas as dores. Entretanto, o que me restava era invejar a ave caçadora flechando o horizonte. Aqueles seres tinham não só uma visão panorâmica do paraíso como sabiam usufruí-lo com grande sagacidade. Agilidade e beleza presentes também em Helena que, de súbito, surgiu fagueira por trás de um quiosque. Num diálogo frugal sua voz doce acabou contando uma novidade inesperada, a revelação do segredo que se tornaria nosso código de união.

- E não é que o novo síndico disse que eu vou ter que ressarcir a clarabóia lá do nosso andar? Aquela que quebrei no maior descuido com meu guarda-sol...

A confissão gerou risos incontidos e evidenciou desejos claros como a manhã naquela praia. Praia em que fui procurar acalanto, mas que foi onde encontrei recomeço.





quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O Grande Salão

Parte 1 – Na Trilha da Marmota

Vitor acordou com a cabeça doendo. Sua primeira sensação foi a de fome, uma fome que nunca sentira antes. Rolou um pouco até acordar de verdade, e ao fazer isso, ouviu barulhos estranhos. Sentando-se ereto, olhou ao redor e viu que os barulhos tinham sido feitos por folhas sendo amassadas por seu corpo. Vitor ficou sem palavras ao notar que estava no meio de um bosque, tão denso que não dava para ver o céu.
Estava pronto para gritar, quando viu um animal, uns dois metros à sua frente, lhe observando calmamente.
Vitor, apesar de ser novo, sabia que aquilo era um furão. Esse olhava para Vitor com o que parecia ser o maior dos interesses.
- Bom dia –, disse Vitor, mas depois se arrependeu. Sua garganta estava seca, e falar a fizera doer. Além disso, sua dor de cabeça havia piorado.
- Mas que “bom dia” coisa nenhuma! -, exclamou o furão, com uma voz comicamente grave, que lembrou a Vitor a voz do Darth Vader, só que sem a máscara. Talvez fosse melhor dizer que lembrava a voz de James Earl Jones, porém Vitor tinha apenas 12 anos, e isso ele não sabia.
Assustado com a aparente irritação do Furão (e era assim que Vitor pensava nele agora, com um “F” maiúsculo), Vitor engatinhou timidamente até o animal.
- Atrasado para o quê? -, perguntou ele.
- Ora bolas, para a sua festa, no Grande Salão.
Ainda confuso, além de faminto, Vitor não protestou. Sua cabeça doía, sua garganta ardia e seu estômago implorava por comida. Ele simplesmente se levantou. “Vamos então”, disse ele.
O Furão assentiu e apontou para um espaço entre duas árvores, marcado com uma pedra.
- Vamos lá.
Vitor seguiu o Furão pela trilha.
- Que lugar é esse? -, perguntou Vitor, após alguns minutos de caminhada.
- É a Trilha da Marmota -, respondeu a voz de Darth Vader sem a máscara.
- Certo. E por que chamam de “Trilha da Marmota”?
- Ora, por que um dia uma marmota passou por aqui. Que pergunta!
- Ah sim. Você tem alguma comida aí?
- Espere até chegarmos ao Grande Salão, lá terá muita comida para você.
Isso era mentira. Por algum motivo, Vitor soube disso na hora, mas não se importou. Não sabia por quê.
Continuou seguindo a Trilha da Marmota, atrás do Darth Furão. E com fome.

Parte 2 – A Folha Que Fala

Depois de algum tempo de caminhada (Vitor achou que foram horas, mas poderiam ter sido dias que ele não saberia, sem ver o céu), o Furão parou e correu para a lateral da Trilha.
Vitor o viu pegar uma folha no meio de um aglomerado de outras folhas após algum tempo de procura. Vitor também o viu bradar uma exclamação de triunfo ao encontrar aquela folha em especial (que para Vitor parecia como todas as outras folhas do bosque), a qual ele olhava fixamente.
- Furão -, chamou Vitor depois de alguns minutos.
O Furão nada fez.
- Furão! – Daquela vez tinha sido um grito.
O Furão saiu de seu transe, aparentemente alarmado.
- Temos que ir, temos que ir – disse ele, a voz ligeiramente mais aguda.
- Ok. Mas era você quem estava nos fazendo perder tempo olhando para aquela folha.
O Furão, que já tinha recomeçado a andar, parou.
- Não era apenas uma folha, era uma Folha que Fala, e ela nos disse para nos apressarmos.
Espantado, Vitor disse ao Furão que não ouvira nada.
- Mas é claro que não ouviu, estava tentando não ouvir. Existem muitas Folhas que Falam pelos bosques, mas por algum motivo as pessoas não querem ouvi-las. Acho que é por que as pessoas em geral são burras.
Vitor o olhou, sem entender muito.
E com isso, continuaram.

Parte 3 – Mais um pouco sobre o Grande Salão. O alerta do Furão.

- Como é esse Grande Salão?
Tinham andado mais uns vinte minutos depois de terem encontrado a Folha que Fala. A fome de Vitor batia como ondas em seu estômago, sua voz rouca pela sede.
O Furão parou, ofegando.
- É um bom lugar. Sim, acho que essa é uma boa descrição. É um bom lugar, e quanto mais rápido você se apressar, mais cedo chegaremos lá. Além do mais, não estamos seguros.
E continuaram pela Trilha.
“Não estamos seguros”. Aquilo havia ficado na mente de Vitor. Uma frase pequena, porém suficiente para dar-lhe forças para se apressar.
Suando, Vitor perguntou ao Furão o que ele quis dizer com “não estamos seguros”.
- Espero que não tenhamos que descobrir – respondeu o Furão, sem parar nem se virar para trás.
- O que isso quer... -, começou Vitor, quando um barulho tão alto que parecia vir de todas as direções o fez parar.
- Bem, mas que droga -, disse o Furão, fazendo um movimento cômico com as patas dianteiras.
O barulho ecoou novamente e pela primeira vez desde que acordara, Vitor ficou verdadeiramente apavorado.

Parte 4 – O Urso. O riacho.

O Urso surgiu à frente deles, rugindo um som que Vitor nunca havia escutado na vida. Ele deveria ter uns três metros e meio de altura, e era negro. Seus dentes pareciam lâminas. O Furão o encarou com uma expressão séria.
- Você não deveria estar aqui.
A isso, o Urso respondeu rugindo mais alto e mais próximo do Furão, fazendo os pêlos desse último se arrepiar.
- Vamos, garoto, vamos embora.
E caminhou, passando ao lado do Urso, e parando às suas costas.
Vitor estava congelado. Olhou para o Urso, e tremeu.
- Eu... eu não posso. -, gaguejou ele.
- Sim garoto, você pode. Venha até mim, devagar. E não encoste nele, por tudo que você considera sagrado, não encoste nele!
Cansado, com medo e faminto, Vitor fechou os olhos e pôs-se a andar. Lágrimas caíam de seus olhos quando ele passou pelo Urso, e nos anos que se seguiram, brotaram do lugar onde elas caíram duas Árvores, que espalhariam muitas Folhas que Falam por todo aquele bosque.
- Isso, bom garoto. Siga minha voz.
Ao passar pelo Urso, que agora rugia para o espaço vazio onde estava segundos atrás, Vitor abriu os olhos e correu para o Furão, que assentiu com a cabeça e começou a correr também.
O Urso, como que se acordasse de um transe, soltou o maior de seus rugidos, se virou, e os seguiu.
- Vamos garoto, corra!
Vitor correu, como nunca havia corrido. Os passos do Urso ecoavam de trás deles, e seu rugido praticamente os cercava.
Correndo de olhos fechados, Vitor quase trombou com o Furão, parado diante de um riacho.
Sobre as águas, o céu era visível, e Vitor viu que era noite.
Os sons do Urso se aproximaram.
- Corra, e pule ali! -, disse o Furão, apontando para um arbusto, próximo à margem do riacho.
- Mas, e você?
- Vá, que eu te encontrarei.
Vitor correu na direção do arbusto. Antes de pular, olhou para trás, e viu o Furão frente a frente com o Urso.
- Vamos lá então.
E pulou no arbusto, para dentro da escuridão.

Parte 5 – Do Lado de Fora

A mulher chorando olhou para a gaveta aberta pelo médico.
- Sim, é ele. – E explodiu num choro, menos decoroso do que estava chorando antes.
O médico a encarou, e a seu marido, um homem sério, de terno preto, que tentava conter seus sentimentos.
- Ele... sofreu? -, perguntou o homem.
- Eu não sei dizer, senhor.
Aquilo, claro, era mentira. O garoto tinha sido encontrado sob um arbusto. O resgate o havia encontrado depois de quatro dias perdido naquele bosque. Ele havia morrido de fome, e foi uma sorte que isso tenha acontecido próximo ao riacho, já que o bosque é muito denso, e existia a chance de nunca o encontrarem.
Então sim, ele havia sofrido.
Um psicólogo acompanhou o casal até uma sala ao lado do necrotério.
O médico deu uma última olhada para o pequeno Vitor, deitado em sua gaveta.
- Pobre garoto -, disse ele, e fechou a gaveta.

Epílogo – O Grande Salão

Ele acordou no meio de uma escuridão total. Estava assustado
- Não tenha medo -, disse o Furão, que agora não era mais o Furão.
Chorando, ele pergunta o que tinha acontecido com o Urso.
- Ele era mau, mas não vai mais nos incomodar -, respondeu o Ser iluminado, que era como um farol naquela escuridão.
Ele assentiu.
O Ser apontou para um ponto brilhante, mais brilhante que si mesmo, um pouco distante deles.
- Preparado para a sua festa?
Ele disse que sim. E naquele momento, não tinha mais fome.
- Então vamos lá.
E foram juntos, em direção a luz, para o Grande Salão.





quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O ano bissexto

Joaquim Bispo

De vez em quando, Fevereiro tem 29 dias, em vez dos habituais 28. É o resultado das repetidas tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano à duração da translação da Terra, coisa nada fácil, porque esta dura 365,2422 dias.
Muitos dos povos da Antiguidade – Mesopotâmicos, Egípcios, Persas –, usavam um ano de 360 dias ao qual, de uma forma ou outra, acrescentavam 5 dias. Os Babilónios, após os regulares 12x30 dias, entravam num tempo incerto de 5 dias, em que o mundo podia acabar. Era preciso o rei consumar um acto sexual ritual com a sacerdotisa principal, no alto da zigurate, a culminar uma cerimónia pública, para que o tempo se renovasse e um novo ano pudesse nascer.
O calendário de Júlio César, que vigorou no Ocidente por séculos, estipulava um ano de 365 dias, excepto que, a cada 4 anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de Março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de Março. A cada 4 anos, havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de Março (bissexto). De calendas derivou calendário.
O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano médio de calendário (365,25 dias) era ligeiramente maior que o da duração real (365,2422 dias). Ao longo dos séculos, o desfasamento foi aumentando, tanto que, em 1582, quando, sob o Papa Gregório XIII, se adoptou o calendário actual – o gregoriano – houve que saltar 10 dias, para que o equinócio da Primavera coincidisse com o dia 21 de Março do calendário. O ajuste foi feito no Outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de Outubro e acordaram no dia 15. Foram 10 dias que nunca existiram em Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este calendário.

O que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do ano?:
– O ano tem 365 dias;
– Se o ano for divisível por 4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de Fevereiro (ex. 1996 – ano bissexto);
– Se o ano for fim de século (divisível por 100): se for divisível por 400 (ex. 2000), o ano é bissexto; caso contrário, mantém os 365 dias (ex. 1700, 1800, 1900, 2100).

Assim, o tamanho médio do ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365) + 366] / 400 = 365,2425.
Mesmo com toda esta «ginástica», ainda há que saltar um dia a cada 3000 (e tal) anos!





Livin' in America - O futuro já chegou!


Sempre adorei cinema.
Eu era do tipo que assistia de tudo e o tempo todo. Sabia os nomes dos atores, diretores e roteiristas, quem eram os indicados ao Oscar do ano e quem havia ganhado nas principais categorias nos anos anteriores. Já escrevi críticas de cinema (e fui muito xingado por causa delas). Gostava de cinema americano e estrangeiro, apesar de nunca entender esta divisão, já que americano é estrangeiro para nós brasileiros...

Por isto, uma das primeiras coisas que fizemos assim que chegamos a Nova York foi procurar uma locadora de filmes, pois além de ser mais barato do que ir ao cinema, era uma maneira para ficar antenado no que estava acontecendo.

No entanto, esta primeira locadora acabou indo à falência, então mudamos para uma Blockbuster, que está espalhada por toda a cidade. Alugamos com eles por uns dois meses, mas todo mundo nos dizia: "Sai dessa! A Netflix é melhor!"

Foi quando decidimos descobrir o que era este diabo de Netflix, e tivemos a primeira grande surpresa: esta locadora não possui lojas físicas, tudo é feito pela internet. Você entra no site deles (www.netflix.com, e não estamos sendo pagos pra fazer propaganda!), escolhe o filme que quer assistir dentre uma lista interminável, e você recebe o filme em casa, pelo correio. Quando você houver assistido ao filme, bastar pôr no correio de volta, que eles mandam o próximo da lista, ad infinitum.

Ficamos tão empolgados que começamos a pôr um filme atrás do outro na fila. Hoje, deve haver uns 400 filmes em espera e, mesmo que eu reencarne umas 3 vezes, não conseguirei assistir a todos. E também já não sou mais o cinéfilo que era e me surpreendo muitas vezes ao ver um filme do qual não sei quem são os atores, ou quando chega a época do Oscar e eu ainda não vi nenhum dos indicados nem sei do que se tratam. Ou seja, na fila da Netflix vão se acumulando filmes essenciais, e simplesmente não haverá tempo hábil para assisti-los.

Sou duma geração que conviveu com o advento dos primeiros videogames. Tive um Atari, um Nintendo, meus amigos tiveram um Master System e o Megadrive, depois da escola eu ia até uma locadora de jogos para jogar Super-Nintendo (foi a época da febre do Street Fighter e a piazada se aglomerava diante da TV para ver o Dhalsim, o Guile, a Chun-Li, ou Blanka quebrando pau) e acompanhei o surgimento do Playstation. Depois, meio que entrei num limbo do que estava ocorrendo neste universo, até que, ano passado, minha esposa pediu para comprarmos um videogame para o aniversário dela. Fizemos uma pesquisa e optamos pelo X-Box 360.

Os primeiros dias foram de euforia. Horas e mais horas jogando aqueles jogos incríveis! Compramos até a guitarrinha para o Guitar Hero III e um tapetinho de dança. Mas depois dum tempo, o videogame ficou encostado. Fazia alguns meses que nem o ligávamos direito, quando, esta semana, ele foi ressuscitado. Então descobrimos a novidade: agora era possível assistir a filmes da Netflix através do videogame. Bastava que nós o ligássemos à internet que podíamos acessar parte do acervo desta locadora virtual, e o controle remoto era o joystick.

Neste momento, senti-me quase como minha mãe, que não sabia como ligar o videocassete, ou que levou semanas para aprender a mandar um e-mail; passar o filme adiante ou pausar era um enigma. E assim como já não consigo mais acompanhar os filmes que passam no cinema, fiquei imaginando o dia em que não mais acompanharei as mudanças da tecnologia. Por enquanto, ainda consigo, capengando, lentamente, mas ainda me ponho à par das revoluções que a internet têm provocado. No entanto, sem dúvida, chegará um tempo em que eu terei de pedir a meus filhos (não os tenho, mas digo hipoteticamente) para me ensinarem algo que, para eles, é inacreditavelmente óbvio.

O futuro já chegou e, aos poucos, nós vamos nos tornando parte do passado, obsoletos. Este é o ciclo da vida.


Publicado em Nova York para Mãos-de-Vaca





terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Aforismos de Oscar Wilde

trad.: Henry Alfred Bugalho

Um cínico é um homem que sabe o preço de tudo e o valor de nada.

Um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa; mas muito é absolutamente fatal.

O rosto de um homem é sua autobiografia. O rosto de uma mulher é sua obra de ficção.

Algo não é necessariamente verdadeiro porque um homem morre por ele.

Um verdadeiro amigo o apunhala pela frente.

Sempre perdoe seus inimigos – nada os irrita mais do que isto.

Uma ideia que não é perigosa não merece ser chamada de ideia.

As crianças começam amando seus pais; depois de um tempo, elas os julgam; raramente, quiçá nunca, elas os perdoam.

Você realmente pensa que é fraqueza entregar-se à tentação? Eu lhe digo que há terríveis tentações que requerem força, força e coragem para se entregar a elas.

Experiência é apenas o nome que damos aos nossos erros.

Sou tão inteligente que, às vezes, não entendo uma única palavra do que digo.

Posso resistir qualquer coisa, exceto uma tentação.

Escolho meus amigos pela boa aparência, meus conhecidos pelo bom caráter e meus inimigos pelo intelecto. Um homem não pode ser cuidadoso demais na escolha de seus inimigos.

A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.

O homem pode acreditar no impossível, mas um homem jamais acredita no improvável.

Perguntas nunca são indiscretas, as respostas, às vezes, o são.


O velho acredita em tudo, o adulto suspeita de tudo, o jovem sabe de tudo.

O público é incrivelmente tolerante. Perdoa tudo, excetuando um gênio.

Não existe tal coisa como um livro moral ou imoral. Livros são bem escritos, ou mal escritos.

Há apenas uma única coisa pior na vida do que falarem de você, e isto é não falarem de você.

Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós miram as estrelas.

Quando eu era jovem, pensava que dinheiro era a coisa mais importante na vida; agora que sou velho, eu sei que é.

Mulheres foram feitas para serem amadas, não compreendidas.


fonte: http://www.brainyquote.com/quotes/authors/o/oscar_wilde.html





O Discípulo

Oscar Wilde
trad.: Henry Alfred Bugalho

Quando Narciso morreu, o lago de seu prazer, de um cálice de águas doces, transformou-se num cálice de lágrimas salgadas, e as Oreades vieram se lamentando, através da floresta, para que pudessem cantar para o lago e confortá-lo.
E quando elas viram que o lago havia se transformado dum cálice de águas doces para um cálice de águas salgadas, elas soltaram as verdes tranças, choraram para o lago e disse:
— Não nos surpreende que você pranteie Narciso desta maneira, de tão belo que ele era.
— Mas Narciso era belo? — perguntou o lago.
— Quem saberia melhor do que você? — responderam as Oreades. Por nós ele sempre passou ao largo, mas por você ele procurava, e se debruçava às suas margens e fitava-o, e, no espelho de suas águas, ele espelhava a própria beleza.
E o lago respondeu: — Mas eu amava Narciso porque, enquanto ele se debruçava às minhas margens e fitava-me, no espelho dos olhos deles eu via minha própria beleza espelhada.

fonte: http://www.oscarwildecollection.com/





O Milionário Modelo

Oscar Wilde
trad.: Henry Alfred Bugalho

Uma nota de admiração

A não ser que se seja rico, é inútil ser um sujeito encantador. Romance é privilégio do rico, não uma profissão do desempregado. O pobre deveria ser prático e prosaico. É melhor tem uma renda permanente do que ser fascinante. Todas estas são grandes verdades da vida moderna que Hughie Erskine nunca apercebeu. Pobre Hughie! Intelectualmente, devemos admitir, ele não era de muita importância. Ele nunca disse uma coisa brilhante, nem mesmo maliciosa, em sua vida. Mas, em compensação, ele era maravilhosamente bem-apessoado, com cabelos castanhos aparados, perfil irreprochável e olhos acinzentados. Ele era popular entre os homens tanto quanto entre as mulheres, e tinha todas as qualidades com exceção daquela de ganhar dinheiro. Havia herdado de seu pai uma espada da cavalaria e a História da Guerra Peninsular em quinze volumes. Hughie dependurou a primeira sobre seu espelho, pôs a segunda numa prateleira entre o Guia do Ruff e a Magazine do Bailey, e vivia com os duzentos ao ano que uma velha tia lhe dispunha. Ele havia tentado de tudo. Havia ido à Bolsa de Valores por seis meses; mas o que podia fazer uma borboleta entre touros e ursos? Ele havia sido um mercador de chá por um pouco mais de tempo, mas logo se cansou de pekoe e souchong. Então, ele tentou vender xerez seco. Isto não surtiu efeito; o xerez era um tanto seco demais. Por fim, ele se tornou nada, um jovem agradável, inútil, com um perfil perfeito e nenhuma profissão.

Para piorar, ele estava apaixonado. A garota que ele amava era Laura Merton, a filha dum coronel da reserva que havia perdido a paciência e a digestão na Índia, e que nunca encontrou nenhum dos dois de novo. Laura adorava Hugh, e este estava pronto para beijar os cadarços dela. Eles eram o mais belo casal de Londres e não tinham um único centavo. O coronel gostava muito de Hughie, mas não podia sequer ouvir a palavra noivado.

— Venha a mim, meu rapaz, quando você tiver suas dez mil libras, então, veremos — ele costumava dizer; e Hughie ficava muito chateado nestes dias e tinha de ir até Laura para consolo.

Uma manhã, ele estava em seu caminho ao Holland Park, onde os Mertons moravam, quando parou para ver um grande amigo, Alan Trevor, Trevor era um pintor. Na verdade, poucas pessoas fogem desta definição, hoje em dia. Mas ele também era um artista, e artistas são relativamente raros. Pessoalmente, ele era um estranho sujeito impetuoso, com rosto sardento e uma barba ruiva desgrenhada. Entretanto, quando pegava o pincel, ele era um mestre verdadeiro e seus quadros eram avidamente procurados. A princípio, devemos reconhecer, que ele havia se atraído inteiramente por conta do charme pessoal de Hughie.

— As únicas pessoas que um pintor deve conhecer — ele costumava dizer — são pessoas que sejam estúpidas e belas, pessoas que são um prazer artístico para serem observadas e uma tranquilidade intelectual para se conversar. Homens que são dândis e mulheres que são dondocas dominam o mundo, pelo menos, deveriam. Contudo, depois que passou a conhecer melhor Hughie, ele gostou ainda mais dele pelo brilhante ânimo bon-vivant e sua descuidada natureza generosa, e lhe concedeu entrée permanente a seu estúdio.

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Quando Hughie entrou, encontrou Trevor dando os toques finais num maravilhoso retrato em tamanho real dum mendigo. O próprio mendigo estava de pé numa plataforma elevada num canto do ateliê. Ele era um velho homem enrugado, o rosto como um pergaminho envelhecido e com uma expressão de causar pena. Sobre seus ombros pendia um grosseiro casaco marrom, todo rasgado e em frangalhos; as espessas botas dele estavam remendadas e mal-costuradas, e ele se apoiava com uma das mãos num bastão rugoso, enquanto que, com a outra, ele segurava seu castigado chapéu para as esmolas.

— Que modelo fantástico! — sussurrou Hughie, enquanto cumprimentava seu amigo.
— Um modelo fantástico? — gritou Trevor, o mais alto que pôde:
— Eu deveria pensar assim! Mendigos como ele não se encontra todos os dias. Un trouvaille, mort cher, um Velasquez vivo! Minha nossa! Que água-forte Rembrandt faria com ele!
— Pobre coitado! — disse Hughie — que aparência miserável ele tem! Mas, acredito que, para vocês pintores, o rosto é a fortuna dele?
— Com certeza — respondeu Trevor — você não quer que o mendigo pareça estar feliz, quer?
— Quando um modelo ganhar para posar? — perguntou Hughie, assim que ele se viu confortavelmente sentado num divã.
— Um xelim por hora.
— E quanto você ganha pela pintura, Alan?
— Oh, por esta, ganho dois mil!
— Libras?
— Guinéus. Pintores, poetas e médicos sempre ganham guinéus.
— Bem, penso que o modelo deveria ganhar um percentual — exclamou Hughie, rindo — eles trabalham tão duro quanto você.
— Absurdo, absurdo! Pois, veja a dificuldade de aplicar a tinta e ficar o dia inteiro diante do cavalete. É muito fácil par você falar, Hughie, mas eu lhe asseguro que há momentos em que a arte quase alcança a dignidade do trabalho manual. Mas você não deve tagarelar; estou muito ocupado. Fume um cigarro e fique quieto.

Depois de algum tempo, um servo entrou e disse a Trevor que o emoldurador queria falar com ele.
— Não fuja, Hughie — ele disse, enquanto saía — voltarei num instante.

O velho mendigo aproveitou da ausência de Trevor para descansar um pouco num banco de madeira que estava atrás dele. Ele parecia tão desgastado e miserável que Hughie não conseguiu evitar de sentir pena dele, e procurou em seus bolsos para ver quanto dinheiro tinha. Tudo que conseguiu encontrar foi um soberano e alguns trocados.

— Pobre coitado — ele pensou consigo — ele quer isto mais do que eu, mas isto representa ficar sem coche por duas semanas — e ele atravessou o ateliê e deslizou o soberano para a mão do mendigo.

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O velho homem se exaltou e um fugidio sorriso se delineou em seus lábios enrugados.
— Obrigado, senhor — ele disse — obrigado.

Então Trevor chegou e Hughie se foi, um pouco ruborizado por causa do que havia feito. Ele passou o dia com Laura, recebeu dela uma encantadora reprimenda por sua extravagância e teve de ir a pé para casa.

Naquela noite, ele adentrou o Palette Club por volta das onze horas, e encontrou Trevor sentado sozinho no fumatório bebendo hock e soda.

— Bem, Alan, você conseguiu acabar bem a pintura? — ele disse, enquanto acendia seu cigarro.
— Concluída e emoldurada, meu rapaz! — respondeu Trevor — e, falando no assunto, você conseguiu uma vitória. Aquele velho modelo que você viu o está idolatrando. Tive de contar a ele tudo sobre você — quem você é, onde vive, qual é sua renda, quais são suas pretensões...
— Caro, Alan — exclamou Hughie — provavelmente, quando chegar em casa, eu o encontrarei esperando por mim. Mas é claro que você está apenas brincando. Pobre velho miserável! Eu gostaria de poder fazer algo por ele. Acho terrível que qualquer um possa ser tão miserável. Eu tenho pilhas de roupas velhas em casa — você acha que ele gostaria de algumas delas? Pois as roupas dele estavam em frangalhos.
— Mas ele fica esplêndido neles — disse Trevor — Eu não o pintaria num fraque por nada neste mundo. O que você chama de trapos, eu chamo de romance. O que lhe parece pobreza, para mim é pitoresco. Contudo, eu direi a ele sobre sua oferta.
— Alan — Hughie disse com seriedade — vocês, pintores, são bastante desalmados.
— O coração dum artista está na cabeça dele — retrucou Trevor — e, além disto, nosso trabalho é mostrar o mundo como o vemos, não mudá-lo como o conhecemos. A chacun son metier. E agora me diga como está Laura. O velho modelo estava bastante interessado nela.
— Você não quer dizer que falou dela para ele? — disse Hughie.
— Claro que sim. Ele sabe tudo sobre o incansável coronel, a adorável Laura e sobre as dez mil libras.
— Você contou ao mendigo todos meus assuntos privados? — exclamou Hughie, muito inflamado e nervoso.
— Meu caro rapaz — disse Trevor, sorrindo — aquele velho mendigo, como você o chama, é um dos homens mais ricos da Europa. Ele poderia comprar Londres inteira amanhã sem entrar no vermelho no banco. Ele tem uma casa em cada capital, janta num prato de ouro e pode impedir a Rússia de ir à guerra quando quiser.

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— O que diabos que você quer dizer? — exclamou Hughie.
— O que estou dizendo — disse Trevor — O velho que você viu hoje no ateliê era o Barão Hausberg. Ele é um grande amigo meu, compra todas minhas pinturas e coisas do tipo, e me deu uma comissão um mês atrás para retratá-lo como um mendigo. Que voulez-vous? La fantaisie d’un millionaire! E devo dizer que ele ficou uma figura magnífica em seus trapos, ou talvez, devo dizer, em meus trapos; eles são um velho traje que comprei na Espanha.
— Barão Hausberg! — exclamou Hughie — Deus do Céu! Eu dei a ele um soberano! — e ele, a figura da decepção, afundou numa poltrona.
— Deu a ele um soberano! — gritou Trevor, e explodiu numa sonora gargalhada.
— Meu caro rapaz, você nunca mais o verá novamente. Son affaire c'est l'argent des autres.'
— Acho que você deveria ter me contado, Alan — disse Hughie, entristecido — e me impedido de fazer este papel de tolo.
— Bem, para começar, Hughie — disse Trevor — nunca passou pela minha cabeça que você sairia distribuindo esmolas deste modo descuidado. Eu posso entender se você beijasse um belo modelo, mas dar um soberano para um feio — por Deus, não! Aliás, o fato é que eu não estava recebendo ninguém em casa hoje; e quando você chegou, eu não sabia se Hausberg gostaria que o nome dele fosse mencionado. Você sabe, ele não estava paramentado de acordo.
— Ele deve achar que sou um desajeitado — disse Hughie.
— De modo algum. Ele estava com um ótimo humor depois que você partiu; ficou rindo sozinho e esfregando as velhas mãos enrugadas. Eu não conseguia descobrir o porquê de ele estar tão interessado em saber tudo sobre você; mas agora eu entendo. Ele investirá seu soberano para você, Hughie, e lhe pagará juros a cada seis meses, e terá uma baita história para contar depois do jantar.
— Sou um coitado sem sorte — resmungou Hughie — a melhor coisa que posso fazer é ir para a cama; e, meu caro Alan, você não deve contar isto para ninguém. Não ousarei em dar as caras no Row.
— Absurdo! Isto representa o mais alto crédito em seu espírito filantrópico, Hughie. E não fuja. Fume outro cigarro e você pode falar sobre Laura quanto quiser.
Contudo, Hughie não ficaria, mas caminhou para casa, sentindo-se muito infeliz e deixando Alan Trevor em meio a uma crise de riso.

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Na manhã seguinte, enquanto ele tomava café-da-manhã, o servo trouxe-lhe um cartão, no qual estava escrito: Monsieur Gustave Naudin, de la part de M. le Baron Hausberg.

— Suponho que ele tenha vindo para receber minhas desculpas — disse Hughie para si; e ele disse ao servo para trazer o visitante para cima.

Um velho cavalheiro com pincenê de ouro e cabelo grisalho entrou na sala e disse, com um ligeiro sotaque francês:
— Tenho a honra de me endereçar ao Monsieur Erskine?
Hughie aquiesceu.
— Venho da parte do Barão Hausberg — ele prosseguiu — o Barão...
— Eu imploro, senhor, que você leve a ele as minhas mais sinceras desculpas — gaguejou Hughie.
— O Barão — disse o velho cavalheiro, com um sorriso — incumbiu-me de trazer-lhe esta carta — e estendeu um envelope selado.

Por fora, estava escrito: "Um presente de casamento para Hugh Erskine e Laura Merton, de um velho mendigo” e dentro havia um cheque de dez mil libras.

Quando eles se casaram, Alan Trevor foi o padrinho e o Barão fez um discurso no café-da-manhã do casamento.

— Modelos milionários — comentou Alan — são bastante raros; mas, por Deus, milionários modelos ainda mais raros!

fonte: http://www.eastoftheweb.com/short-stories/UBooks/ModMil.shtml

***

Oscar Wilde (Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde) nasceu em Dublin em 16 de outubro de 1854, filho de Sir William Wilde e Jane. A mãe de Oscar, Lady Jane Francesca Wilde (1820-1896), foi uma poetisa e jornalista bem-sucedida. Ela escreveu versos patrióticos à Irlanda sob o pseudônimo “Speranza”. O pai de Oscar, Sir William Wilde (1815-1879), foi um importante cirurgião de ouvido e olhos, um renomado filantropista e dotado escritor que escreveu livros sobre arqueologia e folclore. Oscar tinha um irmão mais velho, Willie, e uma irmã mais nova, Isola Francesca, que morreu precocemente aos 10 anos.

Oscar Wilde estudou na Portora Royal School, Enniskillen, Condado de Fermanagh (1864-71), Trinity College, Dublin (1871-74) e Magdalen College, Oxford (1874-78). Em Oxford, ele se envolveu no movimento estético e se tornou um defensor de "a Arte pela Arte" (L'art pour l'art). Em Magdalen, ele ganhou, em 1878, o Prêmio Newdigate por seu poema Ravenna.

Depois que se graduou, ele se mudou para Chelsea, em Londres (1879), para estabelecer uma carreira literária. Em 1881, ele publicou sua primeira coletânea de poesia – “Poemas” recebeu críticas contraditórias. Ele trabalhou como crítico de arte (1881), palestrou nos Estados Unidos e Canadá (1882), e viveu em Paris (1883). Ele também palestrou na Inglaterra e Irlanda (1883-1884). Desde meados de 1880, ele contribuiu regularmente para a Pall Mall Gazette e Dramatic View.

Em 29 de maio, 1884, Oscar se casou com Constance Lloyd (falecida em 1898), filha de Horace Lloyd, rico conselheiro da rainha. Eles tiveram dois filhos, Cyril (1885) e Vyvyan (1886). Para sustentar sua família, Oscar aceitou o emprego de editor da revista Woman’s World, onde ele trabalhou de 1887 a 1889. Em 1888, ele publicou “O Príncipe Feliz e outras histórias”, contos de fadas escritos para seus dois filhos. Seu primeiro e único romance, “O Retrato de Dorian Gray”, foi publicado em 1891 e foi recebido negativamente. Isto se deveu muito ao tom homo-erótico do romance, que causou comoção entre os críticos vitorianos. Em 1891, Wilde se envolveu com Lord Alfred Douglas, apelidado "Bosie", que se tornou tanto o amor de sua vida quanto a causa de sua decadência. O casamento de Wilde acabou em 1893.

O maior talento de Wilde era para a dramaturgia, sua primeira peça, “O Leque de Lady Windermere”, estreou em fevereiro de 1892. Ele produziu uma série de comédias extremamente populares, incluindo “Uma Mulher sem Importância” (1893), “Um Marido Ideal” (1895), e “A Importância de ser severo” (1895). Estas peças foram muito aclamadas e estabeleceram Oscar como um dramaturgo.

Em abril de 1895, Oscar processou o pai de Bosie por difamação quando o Marquês de Queensberry o acusou de homossexualidade. O caso de Oscar foi mal-sucedido e ele próprio acabou preso e condenado por comportamento indecente. Foi condenado a dois anos de trabalho forçado pelo crime de sodomia. Durante este tempo na prisão, ele escreveu De Profundis, um monólogo dramático e autobiográfico, que foi endereçado a Bosie.

Ao ser libertado em 1897, ele escreveu “The Ballad of Reading Gaol”, relevando sua preocupação com as condições subumanas da prisão. Ele passou o resto da vida vagando pela Europa, ficando com amigos e vivendo em hotéis baratos. Ele morreu de meningite cerebral em 30 de novembro de 1900, sem um tostão, num hotel barato em Paris.

fonte: http://www.wilde-online.info/oscar-wilde-biography.htm





A Página dos Contos

Julio Cortázar
trad.: Henry Alfred Bugalho

Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à quinta; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo esboço dos personagens. Esta tarde, depois de escrever uma carta a seu mandatário e discutir com o mordomo uma questão de arrendamento, voltou ao livro na tranquilidade do estúdio, de frente ao parque dos carvalhos. Confortável em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o havia perturbado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma vez ou outra o terciopelo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca o venceu quase em seguida. Gozava do prazer quase perverso de se desgarrar, linha a linha, do que o rodeava e sentir, ao mesmo tempo, que sua cabeça descansava comodamente no terciopelo de alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que para mais além das vidraças dançava o ar do entardecer sobre os carvalhos. Palavra a palavra, absorto pela sórdida disputa entre os heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro no casebre do monte. Primeiro, entrava a mulher, receosa; agora, chegava o amante, a cara castigada pelo açoite de um galho. Admiravelmente, ela estalava o sangue com seus beijos, mas ele rechaçava as carícias, não havia vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e dentro latia a liberdade encolhida. Um ávido diálogo corria pelas páginas como um regato de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até estas carícias que enredavam o corpo do amante como querendo retê-lo e dissuadi-lo, desenhando abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: Álibis, azares, possíveis erros. A partir desta hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse impiedoso se interrompia apenas para que uma mão acariciasse uma face. Começava a anoitecer.

Sem se encararem mais, atados rigidamente à tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia seguir pela trilha que ia ao norte. Desde a trilha oposta, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu também, parapeitando-se nas árvores e cercas, até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda que conduzia à casa. Os cachorros não deviam ladrar, e não ladraram. O mordomo não estaria a esta hora, e não estava. Subio os três degraus do alpendre e entrou. Através do sangue galopando em seus ouvidos lhe chegavam as palavras da mulher: Primeiro, uma sala azul, depois, um corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal em mãos. A luz das vidraças, e alto respaldo duma poltrona de terciopelo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Extraído da obra "Final de Juego".
fonte: http://www4.loscuentos.net/cuentos/other/1/2/4/

***

Julio Cortázar
(Bruxelas, 1914 - Paris, 1984) Escritor argentino. Nascido em Bruxelas, filho de pais argentinos, aos quatro anos, Julio Cortázar se mudou com eles para a Argentina, para morar na província andina de Mendoza.

Depois de completar seus estudos primários, cursou magistério e letras e durante cinco anos foi professor rural. Posteriormente, foi para Buenos Aires e, em 1951, viajou a Paris com uma bolsa. Ao término dela, seu trabalho como tradutor da Unesco o permitiu permanecer definitivamente na capital francesa.

Nesta época, Julio Cortázar já havia publicado em Buenos Aires o livro de poemas “Presencia” com o pseudônimo de Julio Denis, o poema dramático “Los reyes" e a primeira de suas narrativas breves, "Bestiário", nas quais admite a profunda influência de Jorge Luis Borges.

A literatura de Cortázar parte do questionamento essencial, aproximando-se de reflexões existencialistas, em obras de marcado caráter experimental, que o tornam um dos maiores inovadores da língua e da narrativa em língua castelhana. Como em Borges, suas narrativas mergulham no fantástico, mesmo sem abandonar de todo a referência à realidade cotidiana, fato que faz com que suas obras sempre tenham uma dívida em aberto com o surrealismo.

Para Cortázar, a realidade imediata significa uma via de acesso a outros registros do real, onde a plenitude da vida alcança múltiplas formulações. É assim que sua narrativa constitui um questionamento permanente da razão e dos esquemas convencionais de pensamento.

O instinto, o azar, o gozo dos sentidos, o humor e o jogo terminam por se identificar com a escrita, que é, por sua vez, a formulação do existir no mundo. As rupturas de ordem cronológica e especial tiram o leitor de seu ponto de vista convencional, propondo-lhe diferentes possibilidades de participação, de modo que o ato de leitura é convocado a completar o universo narrativo.

Tais propostas alcançaram suas mais perfeitas expressões nos romances, especialmente em “Jogo da Amarelinha”, considerada uma das obras fundamentais da literatura em castelhano, e em seus contos, entre eles “Casa tomada” e “A baba do diabo”, ambos adaptados ao cinema, e “O perseguidor”, cujo protagonista evoca a figura do saxofonista negro Charlie Parker.

Rapidamente, Julio Cortázar se converteu numa das principais figuras do chamado "boom" da literatura hispano-americana e desfrutou de reconhecimento internacional. À sua sensibilidade artística somou-se sua preocupação social: Identificou-se com os povos marginalizados e esteve muito próximo dos movimentos de esquerda.

Neste sentido, a viagem a Cuba, em 1962, significou uma experiência decisiva em sua vida. Graças a sua conscientização política e social, em 1970 se deslocou ao Chile para assistir à cerimônia de posse como presidente de Salvador Allende e, mais tarde, foi a Nicarágua para apoiar o movimento sandinista. Como personagem público, interveio com firmeza em defesa dos direitos humanos e foi um dos promotores e membros mais ativos do Tribunal Russell.

Como parte deste compromisso, escreveu inúmeros artigos e livros, entre eles “Dossiê Chile: O livro negro”, sobre os excessos do regime do general Pinochet, e “Nicarágua, tão violentamente doce”, testemunho da luta sandinista contra a ditadura de Somoza, no qual está o conto "Apocalipse em Solentiname" e o poema "Notícia aos viajantes". Três anos antes de morrer, adotou a nacionalidade francesa, mas sem renunciar a argentina.





segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A Filha da Capa

— Gerusa, você viu esta pouca vergonha?

— Benza Deus! Olha como nossa filhinha ficou bonita na revista!

— Bonita? Ela está peladona da Silva! Meu Deus, que vergonha! A gente cria uma filha com tanto carinho para ela acabar assim, como veio ao mundo em uma revista de tarados? Eu virei motivo de chacota lá no ponto de táxi, todos os colegas me apontaram. Apontavam para esta revista, para mim e diziam: “Olhem como a filha do Adalberto é gostosa”. Tinham a safadeza no timbre da voz.

— Deixa de besteira, homem. Nossa filha agora é famosa.

— Eu imagino a fama dela. Sabia que quando ela veio com esta história de que iria morar fora pra ter “o seu espaço” era nisso que ia acabar.

— Acabar em quê?

— Nossa filha é uma perdida Gerusa! Será que você não percebeu?

— Ninguém se perde mais homem. Ela se achou, isto sim, achou uma carreira.

— Nossa Senhora! Ela quando saiu daqui de casa não tinha estes peitões!

— Silicone, Adalberto.

— E quem pagou por isto?

— O padrinho dela. Um senhor que ajuda ela na carreira. Ele é o empresário.

— Nunca mais boto minha cara na rua...

— Relaxe, Adalberto. São só umas fotinhas. Hoje os tempos são outros.

— Sou do tempo em que uma costa nua já provocava um escândalo. Não isto aqui. A gente quase consegue ver o interior da... eu vou sair Gerusa! Vou comprar todas as revista da cidade! Não quero meu nome emporcalhado por uma safadeza destas!

— Vai comprar todas as revistas do Rio de Janeiro?

— E esta tatuagem indecente no traseiro? “Made In Brazil”. Quem iria tatuar um “Made in Brazil” nas ancas se não estivesse à venda?

— Você é muito careta, Adalberto. Estou tão orgulhosa da nossa filhinha...

— Jesus! E este “R” aqui na perseguida?

— Foi ideia minha.

— Sua? Quer dizer que você sabia? Traído dentro de minha própria casa...

— Deixa eu te explicar, homem. Foi uma jogada de marketing.

— E desde quando você entende marketing, mulher?

— Desde que vejo programa de fofocas na TV. Ela precisava depilar a... a perseguida para as fotos. Então eu sugeri que ela fizesse um “R” lá para, se perguntassem, ela dissesse que era uma homenagem ao namorado.

— E quem é este otário que está namorando esta aprendiz de Messalina?

— Bonito este nome, Adalberto. Nossa filha podia usar como nome artístico. Não tem namorado, seu bocó. Fica o mistério de quem seria o “R”. Tem muito jogador de futebol que começa com a letra “R”.

— Não quero ouvir mais nada... Aliás, não quero também ver mais nada! Joga esta revista pecaminosa no lixo, Gerusa!

— Isto Nunca. Vou guardar de recordação. Minha filha agora é uma artista! Já vejo os próximos passos. Ela vai para o Bigue Bródi e depois, capa da Prei bói! Adalberto... Adalberto, você tá bem? Meu Deus, você tá ficando roxo! Vou ligar para o seu cardiologista! Adalberto! Fala comigo, Adalberto!





domingo, 15 de fevereiro de 2009

Entrevista com Marcelo Duarte



Marcelo Duarte nasceu em São Paulo no dia 31 de Outubro de 1964.
É formado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em 1985.

Carreira jornalística:
Revista PLACAR
1984 a 1988
Estagiário, repórter, repórter especial, editor, editor especial e redator-chefe

Revista PLAYBOY
1989 e 1990
Redator-chefe

Revista VEJA SÃO PAULO
1991 a 1994
Editor

Revista PLACAR
1995 a 1998
Diretor de redação

Foi o criador da revista AÇÃO GAMES e colaborou em diversas revistas, como Próxima Viagem, Sexy e Set.

Desenvolveu projetos de jogos para a Grow:
Tira-Teima
Trailer
Zôo Lógico da Mônica
O Guia dos Curiosos
Capricho 1 e 2
Corinthians - História e Glória
Master Junior
Perfil 3

Carreira empresarial:
Em setembro de 1999, Marcelo Duarte criou a Panda Books, especializada em livros de referência. A Panda tem uma série de livros editados. No início de 2002, a Panda Books criou um novo selo de livros motivacionais, a Editora Original. O catálogo de ambas está disponível no site www.pandabooks.com.br.

Um mundo de curiosidades:
Marcelo Duarte apresenta o programa "Você é Curioso?" todos os sábados, das 10h às 11h30 na Rádio Bandeirantes, de São Paulo (AM 840 e FM 90,9). De segunda a sexta, ele comanda o "Fanáticos por Futebol", transmitido das 22h às 22h30. Os programas podem ser ouvidos também pela internet (www.radiobandeirantes.com.br).
Também aos sábados, Marcelo Duarte assina a página "Curiocidade" no Jornal da Tarde, de São Paulo.

Na TV, Marcelo Duarte apresenta o programa "Loucos por Futebol" na ESPN Brasil ao lado de Paulo Vinícius Coelho, Celso Unzelte e Roberto Porto. Ele é veiculado sábado sim, sábado não. Reprises: segunda, 20h.
Marcelo Duarte apresenta também o "TV Curioso" no portal IG (www.megaplayer.com.br).

currículo de Marcelo Duarte retirado do site: http://guiadoscuriosos.ig.com.br


ENTREVISTA


SAMIZDAT – Como funciona a pesquisa para um livro como "O Guia dos Curiosos"? Tais informações podem ser encontradas apenas em livros, ou você teve de recorrer a outras fontes, como internet, fontes orais, jornais, etc? E qual será o próximo “Guia”?


MARCELO – Quando lancei o primeiro “O Guia dos Curiosos”, em 1995, ninguém sonhava ainda com a internet. Pesquisei em livros, arquivos de jornais e revistas, e fiz muitas entrevistas. Hoje em dia, a internet e, principalmente, o e-mail me ajudam a encontrar as fontes mais facilmente. Acabei de lançar o oitavo livro da coleção, “O Guia das Curiosas”, em parceria com a jornalista Inês de Castro. Nem deu tempo de pensar ainda no próximo. Este ano, acho que irei lançar apenas dois infantis.


Você tem uma equipe de apoio, como os dicionaristas, para escrever os guias? Ou o trabalho hercúleo (e os louros) são só para você?


MARCELO – Sim, hoje conto com uma equipe de apoio nos trabalhos que faço no site (www.guiadoscuriosos.com.br), na rádio (Bandeirantes AM) e no jornal (Jornal da Tarde). Para os livros, prefiro cuidar dos textos sozinho. Já dividi a autoria algumas vezes. Fiz o “O Guia dos Curiosos – Sexo”, com o doutor Jairo Bouer, e o “O Guia das Curiosas”, com a Inês. Nem é questão de ficar com os louros. É uma questão de ordem prática mesmo. Prefiro escrever sozinho em casa, à noite, quando o telefone não toca mais.


Restringir a linha editorial da Panda Books a livros de referência foi uma decisão empresarial, tendo em vista que não-ficção costuma vender mais do que ficção, ou houve influência de algum outro fator? Existe a possibilidade de, no futuro, a Panda Books expandir seu catálogo para outras áreas?


MARCELO – A Panda já lançou livros de humor, de culinária, de ficção, de crônicas. Não há restrição de linha editorial. O que temos é uma vocação maior para livros de referência. Está no DNA da editora e eu acho que é isso que fazemos melhor.


Qual foi a motivação para você abrir sua própria editora? Em que momento você sentiu a necessidade de passar de autor a editor?


MARCELO – Eu tinha três ou quatro projetos de livros que foram recusados por outras editoras. Eu acreditava muito neles e queria lançá-los. Foi por isso que resolvi virar editor. Os projetos deram certo! Tanto que, este ano, a Panda completa 10 anos e deve alcançar a marca de 300 títulos.


Você foi editor da ”Vejinha” entre 91 e 94. O que você viu, leu, escreveu, editou ou quer se esquecer desse tempo que, se ainda não é, poderia ser assunto para um romance?


MARCELO – Esquecer do meu tempo de “Vejinha”? Jamais! Foi uma experiência incrível. Conheço a Cidade de São Paulo como poucos! Foi nos tempos de Vejinha que criei o projeto dos “Endereços Curiosos”. Escrevi o guia “1075 Endereços Curiosos de São Paulo”, um sucesso estrondoso, e que serviu de inspiração para outros 13 autores que escreveram guias de cidades, como Nova York, Paris, Londres, Barcelona, Amsterdam, Salvador, Porto Alegre, Buenos Aires.


Depois de ter trabalhado em tantas revistas, voltadas para públicos tão diversos, para quem você escreve hoje? Quem é o seu "leitor ideal"?


MARCELO – Gosto de escrever para a família. Gosto de escrever algo que será divertido para o garoto de 7 anos, a menina de 13 anos, a mãe, o pai e a avó. O que mais gosto é misturar a diversão com o conhecimento.


É mais difícil manter-se como editor de livros ou de periódicos? Dá para viver disso?


MARCELO – Como tudo na vida, se você acerta, sim. Mas o mercado é muito cruel. Você precisa acertar mais do que errar.


Há uma frase sobre a Panda Books que diz: “Nosso grande desafio é lançar livros que contribuam para a formação de seres humanos mais felizes e conscientes”. O livro da Bruna Surfistinha não foi antes uma concessão ao mercado?


MARCELO – “O Doce Veneno do Escorpião”, da Bruna Surfistinha, deve ser o nosso livro que mais se encaixa nessa definição. Quem não leu pensa que é um livro sobre sexo. Não é. O que está ali é a história de uma menina, que estudava num colégio classe A e acabou se prostituindo durante 3 anos por causa de uma série de fatores que atingem muitos adolescentes hoje em dia. É um livro que os pais deveriam incentivar os filhos adolescentes a ler. Tanto que outras editoras lançaram outros livros com “confissões de garotas de programa”, na cola da Bruna Surfistinha, e não tiveram o mesmo sucesso.


Como você classificaria as informações de seus guias, sobretudo as que servem exclusivamente para sanar curiosidades do leitor? Podem ser chamadas de cultura geral, arte, ou o quê?


MARCELO – Cultura geral, sim. Mas algumas podem ser enquadradas simplesmente como “cultura inútil”. Como eu disse, a graça é misturar a diversão com o conhecimento. Assim, as pessoas vão aprendendo sem perceber.


Baseado em sua experiência como jornalista e editor, você conseguiria traçar um perfil do leitor brasileiro? Quais temas o atrai? O que ele procura quando adquire um livro?


MARCELO – Se eu soubesse isso, jamais contaria numa entrevista. Lançaria os livros e ficaria rico. Infelizmente, não existe uma fórmula. Dizem que auto-ajuda vende mais. Mas nem todos os livros de auto-ajuda vendem bem.


Em tempos onde se encontra praticamente tudo sobre praticamente tudo na internet, continua grande a procura por seus guias? E as novas tecnologias de edição, como os livros digitais ou a impressão sob demanda, representam, atualmente, alguma ameaça ao mercado editorial?


MARCELO – A tecnologia vai mudar o formato dos livros, sim. Mas os autores continuarão existindo. Não vejo ameaça. Acho até que haverá um aumento de demanda. O que vai mudar é o controle sobre os direitos autorais na internet. Do contrário, a produção cultural deixará de existir.


Por estar nos dois lados da relação escritor-editor, você poderia nos dizer qual é o erro mais comum cometido pelos aspirantes a escritores na tentativa de se inserirem no mercado?


MARCELO – Confiar demais na opinião – nem sempre imparcial do pai, da mãe e dos amigos.


Ficamos muito agradecidos por sua participação, Marcelo, e te desejamos muito sucesso!


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Coordenação da entrevista:
Carlos Alberto Barros

Perguntas:
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo
Maristela Deves
Volmar Camargo Junior