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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Julita

 


Força da vida, a chuva lava as dores. Ou abranda. 19 de março é presságio de boa-nova, na preparação para a quaresma. Se chove no Ceará, é sinal de fartura. Benza deus, que isso se cumpra. Meu pai, num dia desse, se vivo fosse, estaria chorando de felicidade. Quantas vezes não o vi, a caminho do sertão, vendo o mato verdinho, se cobrir de lágrimas. Fui ao sertão há uma semana. Ainda restava uma irmã de meu pai viva, tia Julita, e a sua prole. Quis fazer uma surpresa. Levei um presentinho, uma lavanda, sabendo que ela era vaidosa, mesmo no auge de seus noventa anos. Quando cheguei, a bodega estava fechada. Maria Lúcia, sua filha mais velha, relatou que vinham passando por dias difíceis. Tia Julita havia sido internada na UPA, mas agora estava em casa, de repouso. Em regra, não poderia visitá-la, porque ela não devia se emocionar. Havia algo no coração que a fragilizava. Relembrei-me dos irmãos de papai, três morreram por gravidades no coração; era uma sina desleal, revoltante. Eu mesmo terei de vigiar, desatento que sou, os exames do coração. Já não tenho idade suficiente para brincar. Com muita cautela, tia Julita foi avisada sobre a minha presença, e insistiu que me deixassem entrar. Maria Lúcia, com quem a mãe morava, pediu que eu não me demorasse nas conversas, que ela precisava dormir – não teria dormido a noite passada. Entrei, dei um beijo demorado na sua cabeça, com cheiro de alfazema, e vi duas lágrimas rolarem de seu rosto. “Meu filho, toda vida que você vem me lembro de seu pai. Como você é parecido com ele…”. Comove-me o fato de me parecer com o meu pai, não só na aparência, como nos trejeitos. Vejo-me, repetidas vezes, colocando as mãos por sobre as coxas, enviesadas, como ele fazia em suas paradas para refletir. Tia Julita estava mesmo bastante fraquinha, apesar de sua corpulência. Respirava com ajuda de um aparelho e um cilindro de gás. Lembrei-me do tempo em que chegava em sua casa e era recebido com um abraço forte. Tia Julita me disse, no derradeiro momento, que eu era o sobrinho mais amado. “Não diga isso, titia, tem João, Augusto, Eduardo…”. “Não, você, além de ser bondoso, atencioso, é a cara de meu irmão, que tanto amei. Você é a extensão dele na terra”. Aquilo parecia uma despedida. E foi. Fiquei um dia inteiro com Maria Lúcia, reavivando as nossas travessuras. Comemos, para não perder o costume, a tão famosa galinhada, que Maria Lúcia faz tão bem, como a mãe. Senti que nossos laços ainda estavam preservados. Regressei à casa no fim da tarde e jurei voltar umas tantas vezes até que tia Julita estivesse recuperada. Não deu tempo. Três dias depois estava no mesmo lugar, agora para o seu velório. Como hoje, choveu forte em Oiticica, presságio de tempo bom. Ela foi leve, bendita, e deixou os seus sinais.





quarta-feira, 17 de abril de 2024

Trampolim. Poema de Maitê Rosa Alegretti


Trampolim





um amontoado de sonhos

aproxima-se

são rostos e amarras

desnudas


um vórtice

de palavras anônimas



as ultrapasso

& as sinto



envoltas em um

elástico trampolim

sem cordas



quedam e flutuam

& e com o pensamento

as estico


tentando criar algo

novo



um boneco de argila

repleto de ar


que sem aviso se vai

que sem aviso

não se deixa

entender


*





sábado, 13 de abril de 2024

O encontro/desencontro

 

O encontro/desencontro

JP sentou-se numa mesa, situada num recanto anichado debaixo de uma escada, que dava para a parte superior do salão. Era a primeira vez que tinha entrado naquele estabelecimento para tomar um café e descansar um pouco os pés da caminhada desde a estação do metro até ali.

O cansaço não tinha sido por causa da distância percorrida, que não foi muita, mas por causa da viagem em pé na carruagem que o tinha maçado um pouco.

Aquela estação onde saiu não era o seu ponto de destino, mas naquele dia o Metro vinha à pinha e essa foi a razão que o levou a sair antes do tempo.

Nunca tinha ido àquele lado da cidade e, por isso, não conhecia aquela zona que ainda ficava muito distante da sua área de residência e também do seu local de trabalho, que ficava quase no fim da linha. Digamos que ficou num ponto intermédio entre a origem e o fim.

JP ia tão entretido nestes pensamentos que não viu que a seu lado se tinha sentado uma jovem. Só quando ela, numa voz suave, pediu um chá e uma torrada é que ele despertou para a realidade vivida à sua volta. Olhou para ela e momentaneamente os seus olhares cruzaram-se, mas instantaneamente descruzaram-se e não mais se voltaram a encontrar, durante o tempo que estiveram lado a lado no café, que não foi muito tempo. A jovem, assim que comeu a torrada e bebeu o chá levantou-se e foi-se embora. Ele ainda ali ficou mais algum tempo e depois também foi ao seu destino.

Esta cena passou-se numa quinta-feira de manhã.

O pensamento de JP teimava em voltar ao cruzar dos olhares e por aí se detinha mais tempo do que o que o tempo que tinha acontecido, que foi um cruzar de olhares fugaz, mas, mesmo assim, parece que deixou marcas.

No outro dia voltou ao café, mas a companhia da mesa ao lado não apareceu. Voltou na segunda, na terça, na quarta e na quinta, mas nada, só a mesa ocupada por outras pessoas. Na semana seguinte arriscou voltar ao café na quinta-feira, quinze dias depois, e viu-a sentada na mesma mesa a tomar um chá e a comer uma torrada.

Sentou-se na mesa anichada debaixo da escada e pediu um café. Levou a chávena à boca e olhou para ela. Os olhares voltaram a cruzar-se, mas desta vez o tempo parou o tempo e nele se cruzaram.

Nada mais aconteceu e cada um foi para onde tinha projectado ir.

Quinze dias depois, na quinta-feira, ao encontro dos olhares seguiu-se uma troca de palavras de circunstância, mas que escondiam a promessa de encontro de outras palavras.

O café era muito frequentado e os clientes entravam e saiam ao ritmo dos seus afazeres e ninguém queria saber de ninguém. Quem estava, estava, quem já não estava não deixava rasto. Era a vida a andar numa cidade metropolitana, ninguém reparava no outro, só aqueles dois, a jovem e o jovem, vizinhos circunstanciais de mesa num café, situado num ponto intermédio entre a origem e o fim da viagem.

 Correram tempos e uma quinta-feira os dois jovens saíram juntos e despediram-se no passeio, seguindo cada um o seu caminho. Nada sabiam um do outro, porque as conversas tocavam muitos assuntos, mas nenhum de carácter pessoal. Até àquele momento nenhuma palavra acerca de cada um deles, nenhuma inconfidência. Qualquer rumo de conversa que ousasse entrar em domínios de personalidade era orientada com delicada leveza para outro caminho.

Os encontros continuaram e a relação entre os dois foi-se intensificando. À mesa do café conversavam sobre tudo e mais alguma coisa, nada ficando por dizer. Passaram a saber muito das preferências e gostos: leituras preferidas, filmes e músicas, convicções políticas e religiosas, simpatias clubistas, posicionamento relativamente às questões sociais e políticas.

De uma coisa nunca falaram: Quem é Quem.

A companhia circunstancial deu lugar à amizade que cresceu e se transformou numa relação mais intensa e a intimidade começou a pontear e os afectos começaram a aparecer com toda a naturalidade. Quando a afectividade rompeu as barreiras e a relação de uma maior intimidade se mostrou em toda a sua beleza ela disse:

̶  Vamos continuar com a nossa relação da maneira que ela está. Nenhum de nós vai tentar saber quem é quem, seremos dois amantes que se conhecem um ao outro, mas que não conhecem quem é o outro.

Os anos foram passando e o pacto foi cumprido. Nem nome, nem morada, nem estado civil, nem profissão, nada de nada. Só eles os dois num presente sem rasto de passado.

Durante mais ou menos doze anos os vizinhos da mesa do café encontraram-se todas as quintas f

eiras de quinze em quinze e mantiveram intacta a sua relação amorosa.

Em 2020 o mundo foi assolado por uma pandemia que matou milhões de pessoas.

Numa das quintas feiras de Março de 2020 ela sentou-se na mesa do café e pediu um chá e uma torrada e esperou por ele.

Ele não apareceu nesse dia de quinta-feira e entretanto foi imposto o período de confinamento e o café fechou e o metro parou e as pessoas deixaram de andar na rua.

E assim foi durante meses e meses.

Quando o confinamento acabou, o café abriu, o Metro passou a funcionar e as pessoas saíram para a rua.

As quintas-feiras sucediam-se e ela sentava-se sempre na mesma mesa, pedia um chá e uma torrada e continuava a esperar por ele.

Ele nunca mais se sentou na mesa anichada debaixo da escada, que dava para a parte superior do café.

 

 

 

 

 

 

  

 





terça-feira, 9 de abril de 2024

Jéssica


 

Foi com um suspiro que, infelizmente, já se tornara habitual que Jéssica desligou o despertador e afastou os lençóis. Custava-lhe cada vez mais levantar-se, por muito que tivesse dormido. E, muito francamente, não tinha razões de queixa nessa área, muito pelo contrário. Podia-se até dizer que nunca dormira tanto, mal se deitava, pumba, adormecia logo para só acordar com o estridor do alarme, que fazia questão de usar também aos fins de semana ou arriscava-se a passá-los totalmente a dormir.

Nem sequer era o facto de morrer de tédio no empregozito que arranjara e que mal dava para as suas despesas básicas. Não, o seu tremendo cansaço ia bem mais fundo, abrangia todas as áreas da sua vida, se é que se podia chamar vida ao que tinha: acordar, ir trabalhar, voltar a casa, comer, dormir, repetir, sendo a única diferença o trabalho dar lugar a pasmaceira total aos fins de semana e feriados.

Sim, havia uma ou outra saída casual com amigos, mas por mera rotina, já nada tinham a dizer uns aos outros e nunca acontecia nada de novo que pudesse dar origem a alguma excitação, por muito artificial que fosse.

Pior ainda, não antevia qualquer alteração profunda no resto da sua vida, sabia que acabaria por fazer como os outros, casando-se com um dos elementos solteiros do grupo, não importava qual, para passarem a aborrecer-se a dois. Enfim, uma mera repetição da vida dos pais e de muitos outros por ali, empregos sem futuro, falta de dinheiro crónica e, acima de tudo, falta de entusiasmo pela vida.

Estranhamente, foi precisamente nessa sexta-feira que teve um vislumbre de mudança. Foi, como sempre, ao bar do bairro com o pessoal do costume, apesar de nem gostar de beber. Mas fazia parte da rotina, por isso lá se dispôs a beber uns refrigerantes de fraca qualidade bem mais caros do que os bons do supermercado. Em tempos chegara a fazer as contas a quanto pouparia por mês sem esta e outras saídas “por obrigação”, mas desistira a meio, era demasiado deprimente.

Pois bem, nessa noite havia uma novidade, uma presença nova no grupo. Bom, não propriamente nova, a Carla crescera com eles mas decidira tirar um curso técnico à noite e acabara por arranjar um bom emprego fora dali. Voltara por uns dias para tratar de levar a mãe idosa consigo, uma doença debilitante forçava-a a abandonar o seu lar de muitos anos mas pouco ou nada podia fazer a esse respeito.

A noite já ia avançada quando Jéssica se viu a sós com Carla durante alguns minutos. A conversa derivou, sem que soubesse como, para o curso que permitira à sua ex-colega mudar radicalmente de vida. E o bichinho ficou...

Nos dias seguintes deu consigo a pensar no caso, a tal ponto que foi até procurar informações sobre o que estava disponível, horários, etc. E Carla tinha razão, mesmo com o seu magro ordenado era perfeitamente viável, sobretudo se deixasse as tais saídas entediantes e dedicasse esse tempo e dinheiro aos estudos.

Mas o grande motivo da sua hesitação estava no temor da reação dos outros. Ainda se lembrava do que tinham dito – ela também, claro, quando Carla os largara para “melhorar a vida”, como então dissera. E tinham, de facto, perdido o contacto com ela, aquela noite no bar fora a única exceção em muitos anos.

Por outro lado, a sua vida melhorara de facto, não só financeiramente mas também em termos de qualidade de vida. A fazer fé no que lhe contara, tinha agora amigos a sério e não meros conhecidos que se mantinham em grupo porque tinham crescido juntos. E com uma formação adequada poderia finalmente sair dali, como sempre ansiara fazer, mas de um modo vago e sem esperança.

Após semanas a ruminar, decidiu inscrever-se num curso de apoiante de idosos, é que de acordo com o folheto havia muita procura sobretudo nas grandes cidades e, com a fraca oferta, os salários eram bons.

Os meses que se seguiram foram dolorosos. Nunca fora grande estudante e, para além da parte teórica, o curso tinha uma forte componente prática que, para pessoas como ela, do curso noturno, era dada nos fins de semana. Junte-se a isso a reação mais do que esperada dos seus supostos amigos e o isolamento em que passou a viver por não ter tempo para conviver.

Mas não só, havia ainda uma vozinha interior que nunca se calava e que lhe apontava o disparate de aprender algo com a sua idade, devia era pensar em casar e assentar, quem é que ela pensava que era para querer uma vida diferente da que lhe calhara em sorte?

Pode-se mesmo dizer que de todos os fatores com que teve de lutar, este foi, de longe, o pior, pondo Jéssica à beira de desistir inúmeras vezes, sobretudo quando sabia que o grupo se estava a divertir enquanto ela trabalhava. Nesses momentos esquecia até o imenso tédio que essa suposta diversão sempre lhe causara e o facto de nada ter em comum com os amigos exceto o hábito de estarem juntos.

Mas lá foi labutando até que um belo dia conseguiu o almejado diploma. E ainda antes de se formar oficialmente já tinha uma colocação, numa cidade distante, para tomar conta de uma idosa acamada com quem viveria.

E lá partiu, sem se despedir de ninguém, tinha a certeza de que não notariam a sua falta, tal como não tinham sentido a de Carla tantos anos antes.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite






quarta-feira, 3 de abril de 2024

( )




 Suspenso na tarde

como uma lâmpada queimada

num porão deserto,

figura o lado esquerdo

de um parêntesis aberto.


Seu estado resulta

do itinerário de sombras

em que um homem se perde

na solidão de seus próprios passos,

esquecidos sequer sem deixar uma marca.

 

Sua abertura demonstra

a imperiosidade do erro

que determina sempre

que as flores se abram para cumprir

seu papel de beleza e de decomposição.

 

O parêntesis aberto no escuro

não é senão a necessidade

de se sair do estágio de clausura,

quando se esgota (ou assim se imagina)

a fonte de oxigênio íntimo do ser.

 

Mesmo quando já se sabe

que na asfixia de ele estar fechado

sobrevive pelo menos a sua integridade,

e abri-lo significa a dispersão da energia

que ele guarda de si para si como um transistor.