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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A pequena arte da felicidade


Quando nasci, um anjo baldio desses
que fingem brincar de Deus disse:
Vai, Tarlei, ser feliz na vida!
 E eu fui!


Rubem Alves (1933–2014) deu ao último de seus livros o título A grande arte de ser feliz. Não é por discordar do título, mas gosto de pensar que a felicidade é a arte do pequeno. Quando se diz grande arte, subentende-se uma grande soma de empenho na busca da felicidade. E aqui lembro uma frase de Jorge Luís Borges: “A leitura é uma forma de felicidade e a felicidade não deve requerer muito esforço”. Quero me concentrar na segunda parte da frase: “A felicidade não deve requerer muito esforço”. Eis tudo o que penso. Começa que a felicidade é um estado geral de contentamento com a vida. Nesse sentido, a felicidade já está dada, já está dentro da gente. Se não estiver dentro, não estará em nenhum outro lugar. Penso que a felicidade vem mais dos genes (a nossa fortuna gratuita!) do que de sabedoria para viver a vida. Uma vez predispronto à felicidade, aí é ficar por conta do que possa pronunciar essa felicidade dentro da gente. E a lista do que pode pôr um arco-íris na nossa alma é sem fim. Pode ser uma música, um filme, um livro, uma rosa, um beijo, um sorriso, um abraço, uma madeleine, uma saudade, um amor, uma viagem, um sonho, uma conquista, um doar-se, um “contentar-se de contente” – repito: a lista é sem fim. A verdade é que há muitas formas de ser feliz – e eu prefiro todas. Minha felicidade é feita de tão pequenas coisas, tão reduzida ao essencial, tão recolhida em si mesma, que quase posso dizer que sou feliz por nada. Entendo que ser feliz por nada é não depender de nenhum acontecimento exterior para estar feliz. É como me sinto. Sou o tipo que acha sempre muita graça na vida, que fica feliz por qualquer acontecimento ordinário. Isso não quer dizer que eu não tenha cá os meus buracos, meus tormentos, minhas tristezas, minhas angústias... O contentamento de viver, no entanto, se mantém para além de qualquer adversidade. Afinal, “uma pessoa feliz não tem o melhor de tudo; ela torna tudo melhor” (autoria não localizada). Não entendo a razão da minha felicidade, mas sei bem o quanto sou feliz. Estou com o Rosa quando diz: “A gente só sabe bem aquilo que não entende”. Quem poderá entender a alquimia que faz a felicidade nascer do banal, do corriqueiro, do ordinário?! Não é mesmo coisa de entender, só de saber, de sentir. Sinto que o melhor da felicidade vem de graça – ou quase. A felicidade é um pouco camaleoa. Pode estar naquele cheirinho de café recém-coado que inunda a manhã e funciona como um despertador olfativo. Naquele pão-com-ovo que se come feito príncipe. Naquele arroz-com-feijão-bife-salada saboreado com régia majestade. Naquela música que toca no rádio e faz rima perfeita com o lugar e o momento. Naquele caminhar na praia com o mar lambendo areia e pés. Naquele sopro de maresia banhando pulmões e alma. Naquele abraço que chega antes mesmo dos braços se abrirem. Naquele sorriso que vem tanto do rosto e dos olhos quanto dos lábios. Naquela rebeldia de guardar no armário todas as urgências que gritam sua pressa e pegar um cineminha no meio da tarde. Naquele livro que você abre e, a bordo de suas asas, viaja para dentro do inabarcável coração da vida. Naquela alegria que, vinda do nada, de si mesma toma mais alegria. Naquele barulhinho de chuva na madrugada que, ao te acordar, é mais um convite ao sono. Naquele sonhar acordado (“Se você pode sonhar, você pode fazer” – Walt Disney). Naquele sono constelado de sonhos bons (“Sonhar é acordar-se para dentro” – Mario Quintana). Pode estar em tanta coisa mais! Tudo está em pôr em prática uma máxima latina que diz: “Felicidade é desejar o que se pode, e poder o que se deseja”. Para além da verdade dessa máxima, o certo é que quem é feliz mesmo, pra valer, é feliz por nada – ou quase nada. Comungo por inteiro com essa linhagem. 





QUANDO MADALENA CHAMA


Respiro. De olhos fechados, respiro. Com o fim da tarde, batem-me à porta as obrigações da noite. Antes de acender os castiçais de porcelana, sento-me diante do espelho e procuro enxergar minha face refletida na superfície enegrecida pela rotação do tempo. Porém, nada vejo. Apenas uma lembrança indelével, um paladar experimentado, uma faca ameaçadora no meio de minhas pernas, mas nunca meu rosto. 

Tendo já o quarto iluminado, surge-me o semblante do rapaz que há tempos eu fora: olhos inexpressivos, lábios cerrados, alma arisca e pensamentos ligeiros. O reflexo atira-me em um túnel de cores neutras e conduz-me à teimosa viagem em busca do que não pode ser revivido. 

Crianças correm no terreiro, um cheiro de café com pão flutua no hálito da Casa Grande, o irritante som de uma rede que balança no alpendre. Será meu avô? Procuro retornar à frente da penteadeira, mas já me encontro mergulhada no inevitável espetáculo de reminiscências traídas. Repentinamente, outros sons. As melodias chegam como um grito da natureza em meus tímpanos, parecem pardais que gorjeiam, gorjeiam. “Jesus, Jesus”, alguém grita meu antigo nome do outro lado da cerca e eu me escondo no mato. Um aroma de eucalipto inunda meu peito e uma caranguejeira se retorce dentro do fogo. Se eu ficar, papai me capa. Atiram meus pertences dentro de uma carroça. Estou partido. Estou partindo. Adeus.

De volta ao quarto. Já são quase vinte horas e preciso aprontar-me com monumental esmero. Passo levemente os dedos sobre a maquiagem e me pergunto: Por que eu não esconderia o rosto deste impostor? Os batons organizados em nuanças, as fivelas e broches postos na caixinha-de-música que, ao abri-la... No Belo Danúbio Azul. Essa peça musical já não me parece tão doce, soa como o prelúdio para que Madalena chegue e destrua o que já fora tantas vezes destruído. Fecha-te, caixa. Escuta. 

Estou mais uma vez na fazenda de meus pais. Sou proibido de ter contato com os peões. Todos riem de mim, menos um deles. Não o mais bonito, o menos covarde. O trote de um cavalo aproxima-se e excita meu tumultuado coração. Descubro, quase sem querer, que os homens são uma possibilidade. Não corro. Não correrei até a janela para que ninguém perceba que eu, desde minha infância, já o aguardava. 

Terei uma festa de aniversário? O que ele me dará de presente? Já falei que estou cansado de esfregação e beijos de língua atrás do engenho. Não há honra a ser preservada entre homens e não estou me guardando para a Igreja, como minha irmã beata. Mamãe percebe tudo, é uma ave de rapina que regurgita ave-marias, reprova-me com um gesto na boca. O cavalo se afasta antes que os tiros o alcancem, ele escapa com vida. Após uma reunião de família, sou mandado embora para o esquecimento. Estou fragmentado.

O vestido dourado e as sandálias de prata, roubados da casa de uma puta que morreu aqui perto, descansam sobre minha cama. Aguardam que eu os preencha com meus seios de estopa e meus pés grandes demais para calçados femininos. Por que a noite insiste em batizar-me com a máscara? A fantasia, após tantos anos, já não me incomodo em vesti-la. Mas o disfarce em meu rosto, como ele me dói. Enterrar o menino que fui é um funeral cuja rotina me apodrece. 

Passo a espuma sobre minha face a fim de prepará-la para a arte da pintura que não quero. Sinto-me velho e ridículo, não tenho mais o viço dos meus dezoito anos de idade. A lâmina de barbear apara-me os pelos que brotam em meu rosto como indesejáveis lembranças daquele que um dia eu fora. Cortar o próprio pescoço e sangrar até a morte seria apenas um acidente. Ninguém é condenado ao inferno por se ferir sem querer. Não é por querer que, dia após dia, sou mutilado. 

Pressiono levemente a toalha contra minha cara de palhaço afeminado, livro-me do restante de espuma e das pequenas poças de sangue em meus poros, penso em morrer sufocada. Deus, por que temo a morte se há tempos caminho sem vida por estas ruelas que hospedam solidões e sodomias? 

Vermelho. Vermelho nas unhas e nos lábios. Hoje usarei batom vermelho sobre esta boca pálida e entristecida pela constante falta de doçura em suas palavras. Pronto. Meus lábios já foram traídos e as unhas transformadas em garras. Mas, e quanto aos olhos? O que fazer para disfarçar esse olhar que só enxerga fotografias e visões de sonho? Isso mesmo. Uma sombra violeta em minhas pálpebras jamais permitirá que meus olhos revelem o homem derrotado que, aos poucos, deixa de existir no espelho. Ruge nas maçãs do rosto, um lápis escuro a delinear-me a raiz dos cílios, um arquear pedante de sobrancelhas, um sorriso forçado. Odeio escolher perucas. Loira ou morena? Loira ou morena? Que moldura destacaria melhor a pintura feita sobre minha tela de armação carcomida e tecido envelhecido? Hoje, serei loira. Quando loira, suporto mais as surras dos policiais, desses fregueses inadimplentes que me obrigam a sodomizá-los sempre que estão de folga.

A outra chegou. Atrás da superfície de vidro, não há mais lembrança movediça capaz de engolir-me. Os homens de bem me aguardam, é melhor que eu vá de vez ao encontro das esquinas que me garantem o sustento e mantêm contidas minhas aflitivas saudades. A pressa não se deve à noite, que já se faz alta, mas porque temo que o rapaz preso em meu reflexo retorne sem que eu esteja protegida pela fronteira vítrea que há tempos nos dividiu. Minha cotidiana sina permanecerá até que eu acabe como a finada quenga que me garantiu sapatos novos. Ao inferno que roubar dos mortos traga azar! Amanhã, o rito se dará da mesma forma. Jesus dormirá até que a claridade dê lugar à escuridão e o flagelo se repita. Eu, diante da face perdida, que me tortura, que me castra. É quando Madalena chama. 





quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Colcha de Retalhos #3

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


INCÓGNITA

Era viciada em reuniões de anônimos
Na esperança de ser notada, ia a todas. Dos narcóticos aos workaholics, passando por alcoolistas, comedores compulsivos e mulheres que amam demais.
Tudo que ela queria era deixar de ser anônima




PIROMANÍACA

Acendia fogueiras, despretensiosa, apenas para vê-las arderem, estalarem e consumirem-se
Quando sentiu frio, desamparada, já não tinha mais ninguém para servir de lenha




PÉSSIMO ESCRITOR

Os papéis, cheios de suas palavras vazias, saltavam da escrivaninha e corriam para o corredor
A caneta escapava dos dedos, caia ao chão e rolava para baixo da cama
A cada cochilo, uma revolta




NADA A PERDER

Sem ter uma casa para levar desaforo, armou o barraco.






quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Perdendo pulso

Perdendo pulso

Um monólogo na UTI

Órgãos em múltipla falência. Dentro em mim, está tudo calando. Ouço o atestado do médico para os meus filhos: é questão de dias. Eles me visitam sempre. Chegam ávidos por boas-novas. Logo, os olhos embaçam, desesperançados. Tocam-me carinhosos, imaginando que pode ser a vez derradeira. Olham-me profundo, querendo resgatar-me ao convívio. Assim espero. Abraçam-me como podem, preocupados com sondas e agulhas, entre outros artifícios que ainda me mantêm acesa. Observam os monitores de sinais vitais. Por esses indícios tão precisos, tão preciosos, pouco resta. Quando a malfazeja bem entender, simplesmente me toma para nunca mais largar.

Falta quanto? Alguém assistirá à despedida? E meu poder de revolta não conta? Ninguém respeita? Como será lá, aonde vou? Quem me recebe? E se eu não me acostumar àquele lado? Morrer dói? Mais do que nascer? Mais do que parir? Mais do que viver? Por ser um acontecimento assim tão grandioso e definitivo na vida de uma pessoa, a morte bem que merecia mais guias e manuais, atenção multiplicada. Fiz curso de preparação para a aposentadoria. Nunca ouvi falar de preparativo para a morte. E essa consciência ainda cheia de energia, meu Deus!

O histórico é bom: índices satisfatórios, exames de rotina cumpridos. Corpo funcionando sempre. Nunca pedi para morrer, eu juro. Meu físico entrou em decadência por conta própria. Foi tudo de uma vez. Ninguém acredita. Um perrengue levou a outro. Na véspera, eu dirigia, caminhava, vestia biquíni, comia risoto, escrevia, estudava piano. Era natural respirar. Intestinos, rins e pulmões não precisavam de ordem para cumprir seu papel. Espontaneamente viva. De súbito, a invalidez, a dependência completa. Higiene íntima por mãos alheias, impossibilidade de levar o garfo à boca, a voz raquítica silenciando.

A aposentadoria saiu há pouco. Virei avó e nem curti o neto de rosto rosado. Troquei-lhe tão poucas fraldas. Dei-lhe quase nada de colo. Não o vi sem umbigo. Será que criará bigodes? E o casamento da Catarina? Eles mantiveram a data da cerimônia? Fizeram festa? Estaciono em vaga de idoso há pouco. Ah, essa consciência que não se entrega logo! Lembro quando cheguei ao hospital. Exames de rotina. Nunca ficara internada, a não ser para os quatro partos.

O romance não saiu. Alguém se anima a concluir a história? Queria tanto um coautor e um editor! É tão bom viver de linguagem. E se ela me salvar da morte? E se o óbito permitir mil enredos? Ah, preciso crer nisso. A esperança é sopro de vida.

Passei um bom tempo por aqui, de conquistas e sabores. Não vem ao caso reclamar de traumas. Quem sabe a morte também não me encanta, assim como a vida? À iminência de paragem ao mesmo tempo abrupta e anunciada, não cabe lamúria. Sigo de cabeça erguida, em aceitação reverente ao desconhecido. Não. Morrer é inaceitável. Recuso o veredito médico.

Atestado de decrepitude. Há exatas 30 noites no leito hospitalar. 30 anos? Sei lá. Dia a dia, mais aparelhos ligados. O vigor próprio se desligando. Quero um sorriso, ai, ai. Amo desesperadamente a vida, e a morte aparece de bandeja. Devo recebê-la com a mesma devoção. Morte nenhuma pode me desanimar. Continuo meu trabalho aonde eu for.

E quem me espera lá? O Eliseu? Ainda solteiro? Lembro seu peito forte, as mãos passeando pelo meu corpo, ele cantando em rouco tom os versos que fez para mim. Sempre é hora de pensar sem-vergonhices. Desejo enquanto eu viver. Quando eu vestia a camisola vermelha, Eliseu adorava. Nem desconfia que Maria Elisa é filha dele, coitado. Muito menos o Joaquim imagina. Será que o Joaquim se acostuma à viuvez? E se se mata? O céu aprova poligamia? Pequenas traidoras vão para o céu? Finados interferem na vida dos vivos? Bom demais. Meter o bedelho na rotina dos meus. Vou chamá-los logo, vocês vão ver. Eles não aguentam de saudade.

Quero uma vida bem leve lá em cima. Todo o tempo do mundo. Só prazeres. Vão me trajar adequadamente para o velório? Odeio branco. Prefiro o vestido dourado. Ah, esse poder sublime de sonhar. O verdadeiro Carpe Diem acontece na morte. Só pode ser. Ah, doutor, chega de privações. Basta de tristeza. Não estou servindo para nada mesmo. Hospital explorador. Saúde que não vigora. Quero rever o Eliseu. Contar a verdade pra ele. Desligue os aparelhos.

Maria Amélia Elói, Brasília-DF





terça-feira, 25 de novembro de 2014

Fajeca


Joaquim Bispo

Esta história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em contexto de greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a Salgados, Fumados e Enchidos, SA. 
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
A situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os trabalhadores funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que a paralisação seja o mais extensa possível e a greve obtenha os resultados pretendidos; a entidade patronal, por seu lado, tenta desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire para a sua pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos — o sindicato ou a empresa —, o que implica tomadas de posição de algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa, ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas. Anteriores companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem magoar-se mais do que esperavam.
Por alguma mistura socioalquímica que nunca foi possível discernir, a greve que foi marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de entendimento negocial, teve uma adesão fortíssima, ao contrário das adesões medíocres de outras paralisações anteriores. A empresa viu-se na iminência de não garantir a laboração contínua e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns trabalhadores mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na massa”. Ainda assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas muitas das reivindicações dos sindicatos.
De regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também de ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço geral de adesão total à greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e alguns ouviram o que não queriam.
Amieiro, jovem delegado sindical, estava a aprender a lidar com o ingrato mundo da luta sindical, a qual lhe parecia obscenamente desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais do que tudo, é preciso estar do lado do mais frágil. Por isso, ao ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca —, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia, tinha sido perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado anteriormente. Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro arrependimento, deu-lhe um abraço sincero, sentindo que o caminho da vida não é linear.
Dez anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas extraordinárias. O Amieiro já não estava ligado aos sindicatos e já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava num setor da empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço  exatamente no local onde então era feito o enchimento e preparava-se para cumprir a diretiva sindical: à meia-noite, os aderentes deviam parar de trabalhar e abandonar o local de trabalho. Uns dez minutos antes da hora marcada, viu entrar um grupo de chefes intermédios para “a casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do comportamento da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial, mas fiel. Mas, o Amieiro reparou também que, entre aquele grupo, pouco habituado ao manuseamento dos complicados equipamentos da área dos enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a do Fajeca, técnico competente para operar a sofisticada máquina do enchimento de chouriços.
Amieiro ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás fora indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão oferecido, o passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco desiludido. "Cesteiro que faz um cesto…" Mais cínico, mais distanciado, estendeu a mão para o cumprimento, enquanto saudava em tom exteriormente jovial:
— Então, outra vez por cá?
Fajeca, também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade, convencido de que a saudação se enquadrava nas dos encontros entre pessoas que não se veem há tempos. Poucos segundos depois, porém, ao notar o sorriso sarcástico a escorrer do rosto do Amieiro, apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de furar uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem soube se ele fora constrangido a sabotar a greve por sentimento de vulnerabilidade económica ou se tinha escolhido o seu campo conscientemente. Refletiu sim que, se fosse ainda delegado sindical — com o consequente dever ético de respeito pela atitude perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador —, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la achado saborosa.

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

ENTRE DOIS TANAKAS


No dia 26 de outubro de 2014, data do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, o Japão também foi às urnas para escolher prefeitos e vereadores. 

E aqui cabe o primeiro diferencial em relação ao pleito em terras tupiniquins, onde as disputas eleitorais viram duelos dignos dos mais violentos filmes de faroeste: o voto na Terra do Sol Nascente não é obrigatório. De tal modo que, em dia de eleições, poucos são os que se habilitam a sair de suas casas para escolher os representantes políticos. Mesmo porque os japoneses sabem que, ao final, o que está em jogo são somente os interesses dos partidos majoritários ― o Partido Liberal Democrata (o Jimin-tō) e o  Partido Democrático do Japão (o Minshūtō). E esses, caros leitores, não diferem muito nem entre si nem em relação a qualquer outro partido político do mundo em seu primordial objetivo: o Poder. Então ― reflete o sábio japonês ―, para que gastar sapatos indo votar em um bando de oportunistas? Fazem bem.

Quanto a este brasileiro que vos escreve, após haver votado no Consulado-Geral de Tóquio, resolvi acompanhar minha esposa, cidadã japonesa, até a escola onde ela votaria ― e testemunho que ela se locomoveu menos pelo sentimento de dever cívico do que pelo necessidade de ir ao supermercado (que ficava próximo ao local da votação). 

Ao caminho ― e para que o leitor tenha uma ideia da importância das eleições na vida social nipônica ―, encontramos apenas um outdoor com os nomes e as fotos de todos os candidatos. Foi então que, curioso, perguntei a minha esposa em quem votaria para prefeito. E ela, dando de ombros, respondeu-me: 

― Sei lá, em quem você acha que devo votar? 

Para ajudá-la, então, sugeri o que me pareceu mais confiável (conclusão a que cheguei fazendo mentalmente um “mamãe-mandou-eu-escolher-esse-daqui”): 

― Que tal o Tanaka?

― Qual deles?― indagou-me, em contrapartida, a amada consorte.

E com toda a razão ela o fez: pois, naquele instante, lendo mais atentamente, dei-me conta que os dois candidatos a prefeito tinham o mesmo sobrenome. 

Não dispondo, porém, de muito tempo ― eram quase cinco da tarde, e, no supermercado, sabíamos, as filas seriam bem maiores que as da votação ― decidimo-nos logo pelo Tanaka número dois... e fomos às compras.





sábado, 22 de novembro de 2014

Ovos do ofício



Fim do turno de trabalho, Renato volta para casa aliviado por atravessar mais um dia de sorte na corporação. Executou os procedimentos de rotina, fez as rondas que lhe cabiam, verificou arsenal e munições, prestou os esclarecimentos devidos, orientou o grupamento, manteve a segurança. De si e dos seus. Ele sabe que o enfrentamento é inerente ao cargo e não uma possibilidade remota, mas até aqui as ocasiões de combate literal, de corpo a corpo sangue soco palavrão e pontapé, fizeram desvios providenciais e a ação necessária e esperada do sargento se deu na ordem do discurso.

No batalhão, sente que por trás de comentários comedidos existe algo de deboche, que nas suas costas há quem faça mímicas e aponte dedos e pisque olhos maldizendo sua postura. Renato tem o pensamento tranquilo de quem cumpre à risca o itinerário profissional, mas oscila em autoconfiança, especialmente à noite em suas folgas, enquanto prepara a farda para o expediente seguinte e pondera a própria conduta. Pode ser que seja um daqueles que demora a arrumar os papéis nos arquivos para evitar de sair com os demais em missão. Pode ser que seja um apaziguador e não um combatente. Pode ser que não seja talhado para aquilo e a livrança, sistemática ou coincidente, seja um aviso da vida, um sinal para que abandone a dúvida e procure outro ofício em que sirva melhor.

Renato sabe fazer pão. E gosta. E gostam dos pães que ele faz, elogiam até no trabalho durante a parada do café. Poderia viver dos pães, cogita isso há meses, talvez incluir pedaços de bacon ou linguiça na receita, ou trocar sal por açúcar e jogar frutas cristalizadas na mistura. Trocar a angústia cotidiana por uma porção considerável de leveza não era ideia ruim e o policial decidiu, assim de repente, assim na caminhada para casa, que a mudança tinha de ser já e precisava de farinha, fermento, ovos. E uma garrafa de refrigerante gelado, para inspirar a atuação na cozinha. Entrou na venda animado, catando os produtos nas prateleiras e acomodando tudo nos braços roliços. Colocou item por item no balcão e foi contando à dona Juraci sobre a massa sovada que aprendeu na televisão. Voltou para escolher os ovos. Bota parmesão ralado por cima, a mulher aconselhou. Botaria para ver no que ia dar.

Botaria orégano e manjericão, castanhas também, não fosse o imprevisto mais previsível desse mundo. O destino cobrando de uma vez só, que não se sai impune de compromisso, diriam depois. Ele mesmo se diria na frente do espelho, empunhando o barbeador. O homem saiu do corredor das batatas gritando com Juraci, que desse o dinheiro todo, velha gorda, e calasse a boca e parasse de chorar. A arma na mão tremendo encosta acima da orelha dela, a mochila aberta na outra mão espera o resultado da colheita, o capuz vestido, a calça folgada nos fundilhos, um berro, mais um, pressa, o clichê do assalto diante da clientela. Duas mulheres escondidas atrás dos sacos de feijão. Renato entre o dever e a vontade de não estar ali, o futuro para depois. Gesto automático, ele saca o revólver da cintura, dispara três vezes e acerta perto das costelas do assaltante. A dúzia de ovos mela seus coturnos e o chão da venda.    





sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Números

Esporro, esporro, esporro. Calou-se uma década aos esporros patronais. Quatro filhos para criar.
Hoje, vida nova se descortinava. De propósito, atrasou-se duas horas.
— Com mil demônios, seu verme irresponsável! – vociferou o chefe.
— Vá para a puta que lhe pariu cem vezes! – respondeu com inusitada alegria. Diante do patrão surpreendido, fez um bundalelê. Três bufas barulhentas.

Zero oito, dezoito, vinte e quatro, vinte e sete, trinta e três e cinquenta e nove. Santo bilhete premiado da Mega-sena dormitando em seu bolso. Vingado, rumou para a Caixa Econômica cantarolando o Trem das Onze.





quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O CRIADO

Nua de bruços, pernas abertas sobre uma maca, a mercê da rispidez das ceras depilatórias não é circunstância propícia à leitura. Mas dou um jeito de fixar mãos, queixo e olhos hipnotizados diante de "O Criado Indiano”, um bálsamo entorpecente que me pegou na veia.
Sei que sou presa fácil para literatura erótica, mas que diabo baixou nesse autor, Liam. G. McRonan, um irlandês de 22 anos, vivo, cara de ricota de óculos, expressão inocente de quem nunca se imiscuiu pelas cavernas de uma mulher?
Danadinho o menino. Escreve delicioso as primeiras e progressivas incursões amorosas de Rose e Mary, duas jovens primas londrinas que se encontravam nas férias de verão na imensa propriedade da família em Northamptonshire, no ocaso do século XIX.
Sob os rigores da moral vitoriana, a descoberta da sexualidade das duas moçoilas é apimentada por Hardik, um jovem criado indiano que foi importado pelo lorde avô para servir como cavalariço. Segundo McRonan, era chique e imperial a aristocracia dar um toque exótico aos seus domínios, recrutando jovens colonizados. Um aborígene cuidava dos cachorros de caça, um egípcio dos carneiros e um zulu abanava a tias menopáusicas, mas isso para mim é encher linguiça na história: não merece a menor importância na trama que me seduz.
As meninas se enrabicharam mesmo foi   pelo amorenado de Khajuraho, berço do erotismo hindu, que se dizia sacerdote secreto do sexo tântrico ao cair da noite.
O serviçal de sorriso iluminado, como descreve o irlandês, aproveitava a placidez dos cavalos para transformar baias afofadas em espaços de lições de libidinagem a três, com foco em preliminares, massagens em genitálias e arredores, e delírios do sexo oral saboreado com gosto. Tudo decantado em ricos detalhes que produzem situações que me encharcam até sob a ameaça da cera depilatória.
E arde o livro.
Urram as moças, sem que a virgindade fosse maculada todo entardecer, até que a farra é descoberta pelo mordomo puxa saco, que, claro, delata os três prevaricantes ao patriarca. As meninas desonradas são embarcadas de volta a Londres, deserdadas da família, temerosa que se tornassem vulgares cortesãs, apreciadoras da carne e dos prazeres do diabo.  Dá-se início a uma perseguição óbvia ao mais fraco do trio. Passa o indiano a viver entre os bosques, tal um animal ferido, mas sempre arranja um jeito de surgir no alojamento da criadagem, quando copeiras e cozinheiras fartavam-se com suas técnicas de dedos e línguas enlouquecedoras.
Passa o tempo e as palavras atiçam minhas malícias.
O cavalariço exótico sobrevive e aparece em Londres disfarçado de operário e protestante convertido. Consegue trabalho no alojamento de uma fábrica de graxa, onde um belo dia descobre Rose e Mary em vestes imundas de adolescentes escravizadas pela selvageria industrial que emergia. A fudelança recomeça, não mais no entardecer das baias fofas - e não mais virginais -, mas nas madrugadas dos becos lúgubres de Londres.
Sedutor incorrigível e próspero trambiqueiro, Hardik resgata a dignidade de Rose e Mary, oferecendo às duas moradia limpa, sustento, respeito, amor e carinho. Começam vida nova longe das cinzas das fábricas, mas não tão distante das tabernas onde renasce o sacerdote tântrico, capaz de produzir filas imensas de moçoilas de vida difícil, ávidas por aprender novos truques e prosperar pelas camas com os burgueses emergentes abastados.
O trato está estabelecido.
O indiano enche a burra de dinheiro, lecionando às fêmeas excluídas das fábricas a lascívia muito bem treinada em casa com Rose e Mary. Mas jamais permite que as duas priminhas de Northamptonshire, reconduzidas à condição de madames, levem uma vida ordinária. O tríplice casamento segue uma loucura, uma transgressão excitante no limite da pureza, do amor bandido e do suspense. Acho que uma delas vai escapulir. 
Estou nas últimas páginas e vou ralentar a leitura, temendo a abstinência psicossexual a que serei irremediavelmente condenada ao término da leitura. Sofro disso.
O fim de um bom livro é um tédio pós coito, é a volta solitária do aeroporto depois de embarcar uma paixão relâmpago, é um vazio interior, uma lacuna doída de personagens que entram na nossa rotina afetiva e se instalam sem cerimônia nosso imaginário. Esse triângulo despudorado inspirador só não vai me matar de saudade, porque já comecei a colocar em prática as delícias ensinadas por Hardik.
Agora mesmo, não vejo a hora de encerrar o ritual do sacrifício dos pelos indesejáveis, pular fora dessa maca, entrar na sauna do spa, trocar suores por energia e pele cheirosa, e depois de uma hidro massagem mal intencionada, correr para Renato, que, a esta hora deve estar em casa me esperando.
É longa a distância entre o spa e nossa alcova do outro lado da cidade. O que basta para represar o desejo de me entregar às delícias deliberadas pelo meu marido. Meu amorenado de sorriso iluminado, meu criado de uso próprio e real. 
E viva a literatura, o sexo e a imaginação.





quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A lembrança igual a um filme cheio de luzes e narrador em off ou A muralha da memória é um fio de cabelo



O cabelo no ralo. Uma desconfiança que a matemática das despesas não resolve. A cerveja na noite anterior. A voz perdida na velocidade do pensamento.  





terça-feira, 18 de novembro de 2014

Aquele jardim

Começo hoje a escrever na SAMIZDAT e inicio com um texto que fala sobre volta. Não é um contrassenso. Ao menos assim vislumbro.

Sinto este espaço como o de uma constante volta a um jardim de delícias, aquele jardim que nos abastece e alimenta a alma. Jardim de palavras e de amor. De comer e beber palavras. Aquele jardim. Vamos? 

Aquele jardim





Voltei àquele jardim para ouvir. Não apenas a voz do vento, não apenas a voz das árvores, cujas folhas balançavam. Mas para ouvir teus olhos. E meus pés indo e vindo no balanço, a respiração procurando de novo criar um ritmo próprio.

Voltei àquele jardim porque foi nele que tudo começou. Alice em meio ao País das Maravilhas, lá estava eu desejando não mais correr atrás de nenhum coelho branco.
E ficar de um só tamanho, o meu.

Voltei àquele jardim porque tuas fadas me chamaram. Lá as feras são calmas e conversam com a gente, desenhando nuvens no gramado que eu não fiz. Não plantei nenhuma daquelas plantas e nem mesmo sei como se chamam. Não conheço seus donos. Apenas agradeço me deixarem em paz.

Voltei àquele jardim para ouvir minha mãe, que disseram andar por lá. Mas não a vi. O sol fala na minha pele e eu ouço os antúrios, que são sempre sábios e disseram eu tivesse paciência. Só não especificaram em quê.

Voltei àquele jardim para te perder e não me achar. E te achar e me perder e talvez um dia me achar por aí em outro jardim parecido. Ou no telhado de alguma casa, a cidade desconhecida e eu abrindo um livro verde, o livro da tua história, que encontrei e concluí.


Voltei àquele jardim para de lá nunca mais regressar. A cidade sumiu e só ele restou, jardim rotatório onde tu és criança e eu velha. Onde adentra meu ventre recolhido, com a doçura que nunca pude tocar. Com o amor de quem veio de longe, e ficará. 





segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Jantar de Silêncio - Poema de Davi Kinski





Jantar de Silêncio


Dilate o silêncio do meu corpo.
Um momento de surdez que quebra a noite.
Morda o meu lábio à desatino.
Embale a alma leve na jornada
Enquanto eu entrego o meu pranto.
Você delira risadas no meu lírio.
Eterna noite para sempre fustigada.
Cristal branco em cima da bancada
Santidade minha esquecida
De eterna vida, eterna entrega...
Já na sua perna eu prego, mordo, arranho.
Faço ferida em tua vida, em tua vida...
Paz de anestesia em qualquer canto.
Jantar de lábios, beiços e partida...
E quando eu ando, ando suicida...
É de mentira que faço o meu teatro.
Pelado, mostrando a minha ira.
Eu faço vida, em qualquer canto...
De maquiagem foi feita à viagem.
E de prazer fui morrer na sua pele.
Que te repele, mas gosta tanto.
Amor eu quero mais que Carnaval.
Percebe a rosa, do meu punhal?
Quando acabar, se afaste do lugar.
Meu pranto mancha a sua serpentina.
Já na saída do seu caminhar.
Em teu olhar, em seu olhar...


Do livro Corpo Partido - Editora Patuá.





domingo, 16 de novembro de 2014

Empatia

Jesuína não para de me olhar. Ela vigia os meus passos, marca território. O quintal é dela. Cada palmo de terra aplainada, cada minhoca que ela enxerga e come; é tudo dela. É um olhar ruim, sempre ruim. Não demora ela arrepia as penas e bate as asas vigorosamente, tentando me enxotar daqui. Uma criatura irritadiça e antipática. Dessas que são assim e pronto, não mudam.
Agora, ela está de perfil. Para quem não a conhece, parece apenas um desprezo ensaiado, uma sondagem de esguelha. Não é. O que ela está fazendo é se exibir, me mostrando o bico adunco. Para que eu saiba quanta dor ela é capaz de me causar. Para me dizer que não prossiga.
Preciso vencer o medo e cruzar o quintal até o galinheiro. Ignorar o movimento agressivo. A bípede levanta cada perna no ar com lentidão e depois a mantém suspensa no ar por alguns segundos, antes de tocar o solo. Como um soldado marchando num desfile. É o que ela é: um soldado do mal. Desses que cometem atrocidades por prazer, e não por obediência ou disciplina. 
E Jesuína tem adeptos. Se eu não me apressar, ela logo convocará Geralda, Cícera, Teresa, e outras tantas recrutadas 
no caminho. Prontas a segui-la e a brigar por ela com a estupidez das turbas que se enfurecem por qualquer motivo que lhes determine o líder. Atrás delas, excitado pelas bundas de plumas empinadas, Julião, o galo velho que já faz tempo não acorda o dia. Bobo como qualquer macho na presença de um traseiro.
Faltam alguns passos. Poucos. E a porta do galinheiro me protegerá da tropa bicuda, das garras cheias de micróbios. Não tenho coragem de enxotá-las. Tenho dó. Um dó que se mistura ao medo, é verdade, mas que não deixa de ser dó. Viver ao ar livre, sob sol e chuva, ou empoleirada num pau; comer milho cru e minhocas; ter asas que não voam para longe. Pior que isso: ser morte certa em panelas fumegantes. 
Quem não seria como Jesuína? Mas ter motivo não é ter razão. E não vai ser em mim que ela e suas seguidoras vão descontar a raiva e a frustração e a impotência de serem galinhas. 
Eu tenho que me controlar. Até por quê, o meu pavor tem nome. Remorso. Porque eu sei o que vou fazer no galinheiro. Elas sabem o que eu vou fazer no galinheiro. Não é mesmo possível nenhuma simpatia entre nós. A cesta no meu braço condena as minhas intenções. Elas sabem que vou sequestrar seus filhos, que vou encher a cesta com muitos ovos. Sabem que foram expulsas do galinheiro para que eu possa ladroar à vontade. E que voltarão para um ninho vazio. 
Eu sou o inimigo. Contra mim, toda a artilharia. A fúria com que bicam meus pés e minhas pernas até me causar dor intensa. Dor que, em seguida, sou eu quem lhes causa mais intensamente.
Não é uma troca justa. Nenhuma troca é. Mas, apesar da raiva, e da razão que eu sempre penso ter, acabo deixando que machuquem as minhas carnes. Eu também preciso sofrer. Sentir remorso. Essa coisa que aceita castigo, mas não recua da intenção. Jesuína é meu castigo. Ela me sangra além da pele.






sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Schadenfreude

– Óptimo, óptimo …  
As palavras enrolam-se-lhe, pastosas, sob o efeito do antidepressivo que tomou empurrado por um gole de vodka com sumo de laranja.
– Óptimo! – ainda repete.
Maria Teresa tinha acabado de dizer-lhe, e ele tem necessidade de expfressar contentamento mesmo sabendo que mente, mesmo perante ela que sabe. Ainda assim, afirma, a compor melhor o quadro:
– Estou tão contente, tão feliz por eles.
E despede-se.
Frederico Esteves a baloiçar o corpo magro de um lado ao outro da sala imensa que é o estúdio onde vive. O meu tugúrio, como diz, por graça.
Maria Teresa tinha sido directa. Nem boa tarde, nem olá xuxu como ela gosta de tratá-lo. Atirou certeira: é apenas para te dizer que acabei de casá-los. Assim, sem mais delongas, e ele naquele: óptimo, óptimo, tão amaricado que, mesmo pela voz, mesmo ao telefone, se juraria dos seus gostos em matéria de género. E no entanto, ele diz de si mesmo num maneirismo repleto de trejeitos: eu não me assumo bicha, que querem... E jura que gosta é de mulheres. E a dizer assim, ri como só ele sabe, a cabeça ligeiramente descaída para trás sobre o ombro esquerdo, e a mão do mesmo lado a tapar-lhe a boca que propositadamente escancara em demasia.
Com que então, José Pedro tinha mesmo casado.
Frederico Esteves a remoer no que acaba de saber, senta-se no sofá, as pernas esticadas em cima da caixa que um dia encontrou num contentor de lixo. Trouxe-a para casa numa noite de copos. Recuperou-a ele mesmo. Nela guarda as bebidas além do stock da dispensa. Hoje, faltou suco de laranja, mas é raro, e Frederico Esteves despeja no copo o que resta na garrafa.
– Pois que sejam felizes – diz assim em voz que outros ouviriam se ali estivessem, e simula um brinde erguendo o copo no braço esticado para o ar da sala.
Que aquele consórcio lhe seja fonte de penas sem medida, pensa Frederico Esteves, como praga que rogasse, mas afasta de si esse sentimento, e emborca o copo de um só gole, e volta a enchê-lo com Vodka ardente.

 ***

Maria Teresa fez o que ele tinha pedido: quando os casares, por favor, avisa-me. E ela telefonou-lhe.
Tinha sido numa outra noite, e tinham jantado. Frederico Esteves chorara-lhe as mágoas daquela paixão, e ela tinha-o aconselhado. Que não dramatizasse, dissera-lhe a notária do alto de uns sapatos muito altos e muito encarnados. Era o seu aniversário e, não estando reduzida à amizade de Frederico Esteves, não lhe tinha apetecido senão ele para comemorar. Gostava daquele seu modo de ser abichanado. Dava-lhe gozo percebe-lo sofrendo pelo lado errado. E com ela Frederico Esteves sofria todo o seu sofrimento sem ensaios nem segredos, que Maria Teresa tinha aquele modo especial de o fazer ficar cada vez mais sofrido, cada vez mais um homem sem rumo e sem sentido, pequenino, perdido de si mesmo, angustiado, e ela deleitava-se a ouvi-lo, e consolava-o exacerbando-lhe os desgostos.
Tinham-lhe dito que era sadismo, mas ela achava que era mais a raiva de não ter o pénis dele, de não poder usá-lo. E detestava-o. Que ele sofresse fazia-a sentir-se num quase orgasmo.
Fora assim na noite dos seus quarenta e cinco anos. Frederico Esteves sofrendo pelo amor imenso que José Pedro nutria por aquela criatura esquelética e inculta, assim dizia ele da que seria muito em breve a esposa do seu idolatrado. Maria Teresa apressara-se a dizer-lhe: vai casar, está confirmado. E ele chorara de baba e de ranho.
Maria Teresa apressara-se a contar-lhe, como se apressou, ainda há nada, a dizer-lhe que os tinha casado.

****

– Nunca perceberei tanto gastar de tinta, tanta discussão a interpretar o que só poderia ter sido de um modo.
É Frederico Esteves remoendo o artigo que acaba de ler numa página do jornal que tem desdobrado sobre a mesa.
Está sentado na esplanada do cafezinho onde, por um costume de anos, passa as manhãs de domingo. Uma esplanada arrumadinha que se debruça, lá de cima, sobre o rio. Frederico Esteves gosta de gracejar dizendo que fica ali na hora em que os amigos, os de infância e muitos dos que ainda lhe restam, ouvem missa em alguma igreja. E acrescenta, impertinente: eu faço a minha consagração com um café bem quente e torradas que lambuzo em doce de cereja. Mas não diz que esse é o seu local de leitura dos jornais semanais, que ele não lê outros, e quase só lê a secção literária. No resto, passa os olhos nos títulos, ou saltita-os pelas linhas de uma notícia ou outra.
– Mais um a insistir na versão do Bentinho traído – tartamudeia Frederico Esteves olhando o rio que o sol pintalga de reflexos inquietos.
Os articulistas e os estudiosos da obra de Machado, preferem que a culpa tenha sido de Capitolina. Preferem isso, a darem um sentido novo à trama urdida pelo matreirice de mestre Assis.
Frederico Esteves sorri-se a imaginar como poderia ter sido com Bentinho e Escobar, e vem-lhe à memória a notícia que Maria Teresa lhe deu nem há dois dias. E nisto vai virando as páginas dos jornais, a ler apenas as mais gordas.
E surgem-lhe letras diferentes. Cegam-no, aquelas letras enormes, muito negras. Saltam da folha a dizerem-lhe: acidente mata jornalista e sua jovem esposa. E os olhos de Frederico Esteves cegam-se de lágrimas que eles já se desviaram para a linha debaixo onde as letras gritam acima do ensurdecer que é o silêncio da esplanada: José Pedro Reis e sua esposa mortos num brutal acidente.
Frederico Esteves não lê os detalhes ou as pequeninas lhe diriam que o casal ia em viagem de núpcias.
Morto seu amantíssimo José Pedro, e no entanto, não é um soluço, e nem um  choro o que lhe está acontecendo. É sim um riso, uma gargalhada sem pejo e sem remorso. Um rir genuíno que condiz com um imenso bem estar, enquanto as lágrimas lhe correm cara abaixo.
Morreram os dois.
Não lhe resta a quem tenha que dizer, insincero e cínico: que sejam felizes, e aquele ardor no peito, e aquele despeito, e aquele horror de não ter sido com ele.
Gargalhadas sonoras tremeluzem-lhe o peito e a garganta, saem-lhe pela boca, e o senhor da mesa ao fundo volta-se perturbado e curioso do rapaz tão despudoradamente hilariante.
– Boas notícias?! – atira-lhe o homenzinho a tentar apaziguar tanta euforia.
Frederico Esteves pede desculpas embrulhadas em gestos mudos, e decide ir embora. Afasta a cadeira evitando o ruído que seria o metal a rojar na tijoleira da esplanada: quadrados verdes e brancos, nota ele a arrumar os pertences que tem espalhados pela mesa. Ri ainda, mas apenas no silêncio prudente do modo como coloca os olhos e a boca, e no modo como se desloca, que parece ele que nem sente os pés fazendo pressão para que ande, primeiro na esplanada que atravessa de uma ponta à outra, e alguns olham, de dentro da sua pasmaceira de domingo, aquele homem tão contente: terá tido uma boa notícia, parece que pensam. 
Frederico Esteves a tentar desfazer o desarranjo que possa ter causado na quietude que é suposta numa esplanada debruçada sobre o rio numa manhã de domingo. Atravessa o salão diminuto que é o cafezinho, e sai para a rua, os pés sempre naquele desatino de o fazerem ir voando, e o peito num indecoroso sentir-se com o coração leve.
Frederico Esteves num bem-estar que não podia ter previsto ao ler a notícia da morte de José Pedro. E aceita aquele sentimento como dádiva de algum céu que ele nem sequer venera. Nunca mais ter que os ver. Nunca mais ter que os cumprimentar. Não ter que repetir o ardor imenso do ciúme, ou a dor incisiva da inveja que o sufocava de cada vez que os via, de cada vez que os visse: José Pedro e a esposa no restaurante, no cinema, em casa dos amigos que ambos frequentariam.
E liga para Maria Teresa.
Palavras de desgosto, é o que dizem um ao outro, e que Maria Teresa lhe encomende uma coroa linda, pede Frederico Esteves. Que está destroçado, ia dizer-lhe, mas contem-se, e ela jura que serão as flores mais bonitas no cemitério, e que não desespere, que se precisar dela, a chame em qualquer momento.









quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Desejo





Numa de suas brincadeiras de criança, o filho perguntou qual palavra achava mais bonita. Iria escrevê-la com seus cubos de madeira estampados por letras.
Nem precisou pensar:
− “Desejo” − respondeu. − “Desejo” é a palavra mais bonita.
É no desejo que tudo começa, pensou. É no desejo sexual, corporal e compartilhado, que começamos todos nós. Desejo de dois, de dois que nos fazem.
− Desejo é com “s”? – perguntou o filho.
− Isso, com “s” − respondeu.
Com s de seguindo. Seguindo, formando e reformando por conta de outros tantos desejos.
O desejo de brincar, de buscar carinho, colo. Aquele querer, querer, querer... Querer infantil, como se tudo existisse só para si, como se fossemos únicos no mundo.
Então o desejo de se espelhar, de ser como o pai, de ser como a mãe. De ser o super-homem da revista, a mulher-maravilha da televisão.
Com o tempo, o oposto: o desejo de firmar-se e então matar pai e mãe, rir dos super-heróis, desejar ser independente.
Em um dado momento, desejo de ter o que o outro tem, de ser visto, de ser tão bom quanto, de ser o melhor. 
Depois,  o desejo de ser apenas você, de encontrar alguém como você, de encontrar o seu lugar.
− “J” ou “g”? − quis saber.
− “J”, senão fica “desego”.
− E o que rima com desejo?
− Humm... ensejo, revejo, percevejo... – Fez cara de quem não sabia mais o que dizer.
− Não, mãe, sério...
− Sério, não sei mais o que rima com desejo.
Mentiu, sabia sim, mas o filho não entenderia ainda. Desejo rima também com mudança. Muda muito ao longo da vida. Muda a vida.
Era movida a desejos. Em toda sua abrangência. Desejava sempre, constantemente. Não sabia não desejar. Eram os desejos que a empurravam para a frente, que a faziam seguir, continuar vivendo, desejando.
Um baque repentino: a caixa de madeira cai no chão, espalhando os blocos para todos os lados.
Abaixou e ajudou o filho a recolhê-los. De relance, viu sua frase pronta, montada no parapeito da janela:

DESEJO  SAIR

− Aonde quer ir? – perguntou curiosa.
− Ah, sei lá, quero sair, não quero mais ficar em casa.
Nem eu, pensou.
− Me leva ao parquinho?
− Levo. Vamos lá.

Colocou os blocos de madeira sobre a mesa, ficariam ali, as letras vermelhas viradas para cima, à espera de mais desejos. 





terça-feira, 11 de novembro de 2014

Pazes com a criança



um homem chora inesperadamente
a alma mobiliza todos os tormentos
às vezes somos tão indefesos...
a doença nos transforma em crianças
visito meu sótão interno
tudo é tão insalubre, imperfeito
vivemos enjaulados
sujo minhas fraldas e volto para o meu universo desaparelhado


the end