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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

SAMIZDAT 39 - Como nossos pais



Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
Os Nossos Filhos, em Casa, na Rua, no Passeio, no Liceu, no Colégio, Ramalho Ortigão

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Um personagem em busca de seu autor – Tão longo amor, tão curta a vida, de Helder Macedo, Fabio G. Bensoussan

CONTO

Sempre Assim Será, Joaquim Bispo
Os Adúlteros, Henry Alfred Bugalho
Milando, Japone Arijuane
Memória, Ana Beatriz Cabral
Aprendizado, Mario Filipe Cavalcanti
Audácia, Rodrigo Domit
Dona Dora, Zulmar Lopes
Glyn, Volmar Camargo Junior
Sangue do meu sangue, onde espirras?, Cinthia Kriemler
Duas Bandas, Lília Ramadan Veríssimo de Lima
O Quadro, Ana Luiza Drummond
O Bilhetinho, Maria de Fátima Santos
Triagem, Maria Teresa Hellmeister Fornaciari
Bronca de pai, bronca de filho, Wlange Keindé
Um escrito atrás do livro de poesias de Álvaro de Campos, Amanda Ariana

TRADUÇÃO
Sobre as Crianças, Gibran Khalil Gibran

CRÔNICA
Não sei dizer se isso é um ensaio..., Suellen Rodrigues Rubira
Não tenha pressa, Henry Alfred Bugalho
Leite Quente, Maria Amélia de Elói

POESIA
O que todos os pais pensam, Volmar Camargo Junior
À Energia ou ao Tempo, Igor Melo de Sousa
Veterano, Edweine Loureiro
philip k. dick entertainment, Jairo Macedo
Dizeres, Marcos Gonzaga
Yearning, Sebastião Ribeiro
Walk with me, Adriane Dias Bueno
Uma tinta que pinte de branco as cores vivas
dessa saudade, Vander Vieira
Pe. Prudente, Caio Bov
SAMIZDAT 39 - Como nossos pais
SAMIZDAT é uma revista eletrônica escrita, editada e publicada por autores lusófonos.Edição especial temática: "Como nossos pais".





terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Procura da crônica


É do feitio da crônica estar em toda parte.

Está nos acontecimentos e desacontecimentos.

Está num olhar, num silêncio, numa lágrima.

Está no que quase ninguém vê.

Está no que se inventa.

Está no inventário das horas.

Está de braços dados com o lúdico, está nos incidentes pessoais.

Está no gosto de bile, na careta de gozo, na dor no escuro.

Está na natureza, está nas coisas.

Está no recanto em que se nasceu, na infância que se viveu.

Está na memória, está na imaginação, está nos sentimentos.

Está no que não se dissipou e não se partiu – cristal de poesia incrustado na vida.

Está no que escapa à palavra.

Está no que se oferece gratuito.

Está no ordinário, no que se espraia pelo rio do cotidiano.

Está nos desperdícios da “vida se vivendo em nós e ao redor de nós” – e o cronista é o mais dedicado apanhador de desperdícios.

Está onde menos se espera.

Está onde sempre esteve.

Está onde haja gente.

A crônica é onívora: se serve de tudo.

A vida dispõe para o cronista um banquete onde nada falta. Tamanha abundância exige do cronista perícia na procura da crônica  é difícil achar o que se quer, tanto na abundância quanto na escassez. Não podendo servir-se de tudo que a crônica oferece, o cronista tem de ser hábil em colher do banquete à sua frente o que melhor lhe caia na fome da hora. É, então, que se debruça avidamente sobre o banquete da vida com a certeza de que encontrará, sempre, algum acontecimento com força de palavra. Sabe o cronista que cada acontecimento tem mil faces secretas sob a face aparente. E cada acontecimento assedia o cronista com a pergunta: trouxeste a fome?

O cronista tem de chegar mais perto do coração da vida e contemplar o que ali pulsa. E ter paciência com a obscuridade do que pulsa. E calma se o que pulsa vier, não com poder de palavra, mas de silêncio. Não faz mal. O cronista também se serve do silêncio – e faz do silêncio o próprio alimento.   

Não há assunto, ou falta de assunto, infenso à efusão lírica do cronista. O cronista, aliás, sofre de um encantamento pelo miúdo. E costuma infundir lirismo em quase tudo que vê.

Porque o que o cronista procura é, “não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida”. O cronista não quer saber da “explicação total da vida, [seu] nexo primeiro e singular” – explicação que de resto não há. Em não havendo, o cronista, com seus dons de beija-flor, se dedica tão-só a contemplar a vida.

Beija aqui, beija ali. E de cada beijo nasce um texto em flor.






segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Indescritível


Quando abri a porta, ela ainda estava secando as pernas: com o pé direito sobre o assento da privada, esfregava-o com uma ponta da toalha enquanto a outra ponta repousava leve e casualmente sobre a coxa.

O que mais me chamava atenção, no entanto, era o vapor inebriante que tomava conta daquele ambiente e do intervalo infindável entre uma inspiração e outra. E eu queria guardá-lo, registrá-lo de alguma forma, mas não era capaz de descrevê-lo, de destilá-lo em minhas memórias. Aquele era o aroma do desejo, e eu não admitiria perdê-lo.





domingo, 26 de janeiro de 2014

Pequenos milagres

Mariana encolheu os ombros:
-  Não sei.
João encolheu os seus:
-  Eu também não.
Ficaram calados, os olhos fixos no horizonte de casas e carros, cada um deles perdido na sua imensidão de pensamentos.
-  Podemos falar com ele.
-  Para quê? Já falámos, ele nem ouve. Vai dizendo que sim, que sim e se lhe perguntares depois o que é que dissemos, ele não sabe responder. Nem ouve.
-  Mas não podemos ficar sem fazer nada, ele vai acabar por se matar…
-  Eu sei. Mas não sei o que fazer.
-  Pois, eu também não.
Calaram-se novamente.
-  E a mãe dele?
-  Morreu o ano passado, não te lembras? Já era velhota.
-  Caramba, ninguém devia ser filho único.
-  Isso não interessa nada, olha a Paula: 3 irmãos e não se falam há milénios, detestam-se. E há mais exemplos, tu sabes. Além disso, que poderiam fazer? Ele não ouve.
-  Pois, é verdade.
O silêncio, pesado de impotência, voltou.
-  Achas que se ele estivesse 2 semanas inteiras sem beber, curava-se?
-  Não sei… Mas ele não fica nem meia hora, quanto mais 2 semanas!
-  Olha, eu posso tirar 2 semanas de férias, tu também tens férias, não tens?
-  Tenho, acho que na próxima semana posso meter, mas qual é a tua ideia?
-  Vamos lá para cima, os três. Tu sabes, a casa daqueles amigos do meu pai, no inverno nunca está lá ninguém. Montamos guarda ao Nené, ele não vai beber nem um pingo por muito que insista. Que é que achas?
-  Não sei, Mariana… Ele até é capaz de ir com a gente mas chegando lá vai ser a chatice do costume!
-  Eu sei mas aí nem que a gente tenha de o amarrar, ele não vai beber nem um pingo. Achas que dá? Temos de fazer alguma coisa!
-  Não sei, tu já viste como é, até fica agressivo…
-  Eu sei. Mas tu és maior do que ele e se não for isso, fazemos o quê?
-  Não sei…
-  Sei eu. Vamos meter as férias e falamos com ele. Eu arranjo a casa com o meu pai e na próxima terça-feira estamos lá. E olha que não estava a brincar, João, vou levar corda e aqueles atilhos de plástico – nós vamos ter de dormir de vez em quando.
...
Quando viu o pai de Mariana, o rapaz reconheceu-o e encolheu-se. O senhor aproximou-se e pôs-lhe a mão no ombro:
-  Olha, a culpa não foi tua, está bem? Foi um acidente, um estúpido acidente. Quero que tu saibas que a culpa não foi tua, foi o camião que ficou sem travões e o condutor não conseguiu fazer nada, pobre diabo.
-  A Mariana?...
-  A Mariana morreu, Nené. O João também e o condutor do camião.
-  Todos...?
-  Sim, todos menos tu. E eu tinha de vir cá falar contigo, porque era preciso que tu soubesses que a culpa não foi tua, para não ficares para aí a pensar parvoíces e dar cabo da tua vida sem razão. A Mariana era muito tua amiga, devo-lhe isto.
O senhor passou-lhe a mão pela face, sorriu-lhe, virou-se e saiu do quarto com passos pesados de desgosto.
Anos e anos depois, o Nené ainda explicava nas reuniões dos AA como é que tinha sido recuperado para a vida em menos de cinco minutos pelo pai de Mariana.





sábado, 25 de janeiro de 2014

Sempre Assim Será


Joaquim Bispo




O meu nome é Lobulfo, chefe do clã dos Mamutin. Falo-vos do fundo dos tempos, na vossa linguagem artificiosa, para que me entendais. Sou filho de Ursácuo e de Bagulfa. Dela, mal me lembro, porque morreu com um filho preso no ventre, ainda eu era criança. Sei que fiquei muito triste. Construímos-lhe o útero de regresso com grandes pedras, numa pequena elevação junto à aldeia de então e completámos o ventre com muita terra a fazer um monte redondo. Fui criado pelas Grandes Mães. Vivo com o meu povo no centro do mundo. Seguimos as manadas de bisontes, auroques e cavalos e instalamos a nossa aldeia de cabanas redondas junto aos vales onde pastam. Fazemos um círculo largo com as cabanas dos caçadores. Dentro, erguemos as das mulheres e crianças. Ao centro, perto do totem, a minha, que era do meu pai antes de ele partir.
Lembro-me dele muitas vezes. Ensinou-me tudo o que eu sei. Ou quase. Uma das primeiras coisas de que me lembro foi de endurecer a ponta de uma lança ou de uma azagaia, nas brasas de uma fogueira. Isto foi depois de eu deixar de andar com as mulheres a apanhar bagas e raízes. Passei a aprender a ser caçador. Ensinou-me como se prendem as pequenas lascas de sílex às azagaias e como estas se preparam para ficarem equilibradas. Nessa altura já caçava pássaros. Quando eu já vivera tantas primaveras quantos os dedos de ambas as mãos, ensinou-me a preparar uma lançadeira, escavando a ponta de modo a que a cauda da azagaia lá fique bem apoiada e possa ser arremessada com força, quando o braço descreve um arco veloz na manobra da lançadeira. Depois, veio a parte delicada de separar finas lâminas de um bloco de sílex, com pancadas precisas, para usar como cortadores vários e pontas de lança. Finalmente, as artes da caça grossa e os seus perigos. É um trabalho conjunto que o meu pai liderava e que implica manobras de separação de dois ou três animais da manada e uma perfeita coordenação, para que eles, assustados pela algazarra dos caçadores, corram espavoridos e se precipitem num barranco ou num fosso preparado com antecedência. É um momento de grande alegria, em que agradecemos aos animais, com danças, por nos darem a sua carne. Depois, desmanchamo-los, trazemos os bocados para a aldeia, comemos o que queremos e pomos o resto sobre o fumo.
Quando me sento sobre uma rocha a observar uma manada a pastar no vale, com a montanha branca em fundo, sinto uma enorme gratidão ao Grande Pai Sol, à Grande Mãe Terra, e aos seus filhos animais que nos dão a força da vida. A cada primavera, chegam os cavalos e os auroques, vindos do lado do sol. Quando as folhas começam a cair, vão-se embora, e regressam as renas e os bisontes das terras geladas. Sempre assim foi e sempre assim será.
Quando eu era novo, certa vez, já os ventos, havia muito, sopravam glaciais no vale vazio, o meu pai temeu que não houvesse mais bisontes. Consultou o xamã e decidiram fecundar a Terra para que nascessem novos bisontes.
O xamã tem muita magia. Se uma mulher não emprenha, ele esculpe uma pequena estatueta feminina de ventre pejado e seios repletos, em madeira ou em pedra, e coloca-a na cabana dela, enquanto executa danças e cantos propiciatórios. Quase sempre o ventre da mulher acaba por crescer, como o da estatueta.
O meu pai levou-me com eles. Na primeira noite, como o abrigo na rocha, que o xamã tinha previsto, estava ocupado por um grande urso, tivemos de dormir em cima de uma árvore. Foi a noite mais difícil da minha vida. O frio era intenso e eu temia que, adormecido, tombasse da árvore. Demorámos três sóis a chegar à grande vulva da Terra, na base do ventre de uma montanha. Dela, saía um riacho de águas frias. Penetrámos junto à margem e fomos avançando para o interior, com a ajuda de um archote. Andámos por largo tempo, tentando chegar ao mais fundo da montanha, receosos do que nos pudesse acontecer. Finalmente, chegámos a um grande espaço, como se fosse uma enorme cabana de pedra, de teto baixo e quase plano, e que não tinha mais nenhuma ramificação. O xamã concluiu que tínhamos chegado ao útero da Terra. Então, abriu os surrões, onde trazia terra vermelha, terra amarela, cinza de osso, e cornos cheios de gordura de bisonte, e começou a misturar as terras e a cinza com a gordura, fazendo mistelas coloridas. Depois, queimou ervas especiais que trazia e começou a dançar, enquanto inalava o fumo inspirador, até que se quedou, de costas no chão, mirando alucinado o teto da grande cabana de rocha. Algum tempo depois, começou a pintar dois bisontes, aproveitando as saliências da rocha para fazer sobressair os bojos dos ventres e as massas musculares. Usava a mistura negra para fazer os contornos dos animais. Fazia-o com toda a atenção, avaliando se cada traço correspondia ao desenho geral que o espírito da Grande Mãe lhe sugeria. Pintava sem pressa, porque o tempo tinha parado. De quando em quando, comíamos carne seca. Eu entretinha-me a admirar a magia do xamã, que fazia nascer e crescer os bisontes, e a imitá-lo. Lembro-me de espalhar um resto de vermelho em volta da minha mão, que ficou marcada contra a parede de rocha. Por fim, os bisontes pintados estavam vivos e moviam-se de acordo com a luz oscilante do archote. A Terra estava fecundada.
Voltámos, seguindo as nossas anteriores pegadas. Quando saímos da grande vulva da montanha, o Sol ia alto, e parecia sorrir para nós. Olhámos o vale e ficámos extasiados: uma enorme manada de bisontes pastava calmamente, iluminada pelos raios vibrantes de luz. Nunca um vale me pareceu tão bonito. Erguemos os braços, gritando o nosso louvor ao Grande Pai Sol e à Grande Mãe Terra. Nesse momento, confirmei a eficácia da magia do xamã e o poder das forças que nos protegem.
Isso foi há muito tempo. Nessa altura considerava o meu pai o chefe mais forte e sábio. Depois, houve períodos de pouca caça que, além disso, era disputada por outras aldeias que iam proliferando. As caçadas eram fracas. Passámos a viver quase só de frutos, raízes, ovos, bivalves e algum peixe. O meu pai parecia resignado e enredava-se na tristeza. As mais velhas das minhas irmãs foram-se mudando quase todas para outras aldeias. Até os meus irmãos, que se juntavam com raparigas na grande festa das tribos da primavera, partiam com elas, em vez de as trazerem para a nossa aldeia, que estava a ficar perigosamente pequena. Eu fui dos poucos que decidiram voltar, quando escolhi Mejila, uma filha do chefe do clã dos Garranin, para minha companheira.
Nessa altura, como mais velho, interpelei o meu pai e comuniquei-lhe a minha preocupação, que era também a dos outros, e a minha intenção de assumir a chefia da aldeia. Usei palavras, talvez, demasiado duras, fazendo-o ver que ele estava velho e que a aldeia precisava de uma liderança forte, como outrora fora a sua. Ouviu-me com atenção e um pouco de tristeza no olhar. Falou-me com muita serenidade, medindo bem as palavras. Disse que não era fácil assistir às dificuldades dos que dele dependiam e que, na verdade, há muito ansiava que eu revelasse maturidade e manifestasse a decisão de guiar a aldeia, pois só deve liderar o povo quem sente esse imperativo.
Reuniu-nos todos em frente à sua cabana, olhou-nos longamente, com grande bondade no olhar, e disse que era o momento de dar lugar a outro chefe. Afirmou a certeza de que eu seria o condutor que a aldeia precisava e entregou-me a Grande Lança dos Mamutin. Nenhum apelo conseguiu demovê-lo da decisão que tomara: partir. A perspetiva parecia animar-lhe tanto o espírito, como as caçadas de outrora. Embrulhou-se na sua pele de bisonte, recomendou que respeitássemos sempre o bisonte e o cavalo, e partiu com os olhos cheios de infinito. Todo o povo ficou em silêncio a vê-lo afastar-se. Nesse momento, vivi a minha segunda orfandade.






sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

QUIOTO

 
 
  Passei o ano novo numa das cidades japonesas que mais me fascinam: Quioto (em Japonês, Kyōto). Não é uma novidade, pois meus sogros residem lá. Inclusive, em 2010, quando retornei do Brasil, morei quatro meses na belíssima (e mística) cidade.

  Mas, ao contrário do que muitos leitores podem pensar, quando vou a Quioto, não busco a paz espiritual dos templos. Não visito o famoso Kinkaku-ji (ou o “Templo do Pavilhão Dourado”), nem passeio no Palácio Imperial (o Kyōto Gosho), ou à beira do famoso Kamogawa (Rio dos Patos). E tampouco faço meditações com um monge ou oferendas aos pés de um buda. Nada disso. A paz em Quioto, encontro-a de outra forma: num Café de nome italiano chamado Veloce.

  Sim, leitor, pois é essa cafeteria que me traz as melhores lembranças dos tempos mais difíceis no Japão. Logo depois da graduação no Mestrado em 2005, casei e tinha que sustentar de alguma forma a nova família: e a maneira inicial, em virtude das dificuldades com a língua japonesa, foi lavando pratos, em um restaurante chamado Kilala. Imaginem o choque para o meu ego de advogado. Quis desistir, mas não podia. Senti-me deprimido. E, naquelas oito horas diárias, que eram para mim o próprio Inferno, refugiava-me no intervalo do almoço no único lugar em que eu podia ler, tomar um café e recuperar o orgulho interrompido: o Café Veloce. Para criar forças e, em seguida, retornar à escola... da vida.

  Isso mesmo, amigo leitor. Porque foi lavando pratos no restaurante Kilala que tive a maior lição de minha vida: a da humildade. De que não há trabalho melhor que o outro, desde que feito com honestidade e amor. E foi assim que aquele pequeno restaurante japonês me ensinou o que nenhuma Faculdade de Direito conseguiu.

  Por isso, no dia 31 de dezembro de 2013, resovi refazer, mais uma vez, o caminho Kilala-Veloce. Para minha tristeza, porém, descobri que o restaurante Kilala não mais existe nas imediações. Mas o Veloce continua lá, no mesmo local ― trazendo-me, além da paz espiritual, a lembrança de um valioso ensinamento.   





quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Distâncias intransponíveis

Há distâncias intransponíveis. Veio assim, de repente essa certeza. Foi como se eu tivesse descoberto uma verdade universal. Foi a primeira vez que me ocorreu esse pensamento: de que há distâncias que não podem ser alcançadas. Até então eu nunca havia imaginado que uma frase, três palavras poderiam servir para explicar alguns comportamentos.

E não vejo outra maneira de explicar um aspecto da natureza humana sem recorrer a esse pensamento determinista: há distâncias intransponíveis. Ao afirmar isso permito-me crer que a compreensão de alguns dos nossos atos não tem explicação lógica. Simplesmente não conseguimos alcançá-los. Carecem de uma sapiência mais profunda desta que somos dotados. Talvez esse pedaço inexplicável de nossa personalidade seja, de fato, a nossa própria essência; seja a nossa garantia de nunca sermos completamente controlados por máquinas. Nossa imprevisibilidade é uma distância intransponível. Assim como outras distâncias que precisaríamos transpor para alcançar a plenitude de compreensão de nossas atitudes e de quem somos.

Não me interesso com apreço pelo comportamento humano, ou pelas descobertas científicas. Sou mais dado a um caráter de natureza individualista. Em geral, não penso no outro. Mas para toda regra há um exceção.

Houve um acontecimento que alterou esse meu equilíbrio. E peguei-me, de repente, a refletir sobre divagações metafísicas.

Era uma sexta-feira, não era treze, mas pela semana que tive seria uma combinação perfeita. Confesso que gostaria mesmo que fosse. Até imaginei em letras vermelhas, brilhantes, SEXTA-FEIRA 13. Então diria que a péssima semana nada mais era do que uma antecipação da data que viria. Mas a realidade era outra, não era 13 e não tinha explicações místicas para a péssima semana. Mas tampouco adiantaria, não acredito em superstições. Eu continuaria sem crer. Minha natureza nietzschiana impede-me de crer em superstições. Simplesmente não me permito. Tampouco, consigo crer em deus.

Para mim é uma ideia deverás absurda: crer em algo onipresente, ou três em um, como se fosse um aparelho de som em que eu devesse dedicar a minha fé. Quando tinha essa duvidas resolvi o mal pela raiz: deixei de ter fé em uma crença divina. As coisas ficaram mais fáceis depois que deixei de ter fé em deus ou deuses. Não me preocupar com um ser poderoso que nos “deu” o livre arbítrio para que possamos matarmos uns aos outros. Eu não precisava mais culpar ninguém, apenas ser responsável pelos meus atos.

Penso que divaguei demais. Mas é assim mesmo, uma conversa  leva a outra. Mas então, era sexta-feira não-treze, saia da casa de meus pais, apenas de minha mãe. Naquela época eles já haviam se separado. Ele morava em outro lugar, outra família, por isso talvez eu visitasse a minha mãe com frequência maior do que de fato almejava. Escondesse por assim dizer um sentimento de pena ou de culpa. Ou simplesmente era a maneira de culpar meu pai pelo que ele nos fez. Que direito ele tinha de estragar a harmonia de uma família. Ou talvez não, talvez ela tenha sido o elo fraco em minha corrente de valores. Por isso sempre preferi a fortaleza de meu pai do que o sentimentalismo de minha mãe. Mas naquele dia algo fez com que eu pensasse diferente.

Quando sai de casa, deparei-me com a vizinha. Olhamo-nos e sem termos mais o que dizer, mas desejando saber como estava a vida do outro, depositamos todo nosso constrangimento, angústia e curiosidade um pelo outro, naquele singelo bom dia. Na verdade, nem foi um bom dia. Seriam palavras demais. Foi apenas um oi, quase que fugido e não pronunciado; foi um oi com som de aí, porque ele doeu, mas foi recíproco: doeu nos dois.

Eu peguei o celular e apressei o passo. E como se tivéssemos combinado, ela diminuiu o dela. Fomos assim, juntos-separados até a parada de ônibus, onde estavam outras pessoas. Que bom, ficamos sós novamente, junto com todos os outros.
Depois disso, uma sensação de sufoco, prisão. Eu não entendo por que sempre tem que ser uma mulher. Sempre elas. Por que elas? Não sei o porquê, talvez no fundo de suas almas, lá no interior de cada mulher há essa força, essa indescritível essência de algo maravilhoso, de puro, de ingênuo, de selvagem, de libidinoso, de exótico, de dócil, de calmo; de algo que lembra a paz, a guerra, o conflito, a raiva, a dor.

Essa mulher, a vizinha, quando mais jovem. Quando eu também era mais jovem, antes desse espírito selvagem ou pacato apossar-me, éramos amigos. Uma amizade verdadeira, talvez mais. Lembro dos segredos, dos beijos trocados. Mas lembro principalmente que gostávamos ter um ao lado do outro. Não éramos bons como namorados. Éramos bons como amantes, companheiros, como amigos. Tenho saudades daquele nosso companheirismo, da nossa recíproca lealdade. Nossa! quantas histórias compartilhadas, confidenciadas. Lembro-me inclusive dos problemas para que ela conhecesse o futuro marido. E, hoje, essa mesma moca, agora mulher, me causa estranheza, já não lhe conheço. Como foi que isso aconteceu? Como perdi amizades que antes eram importantes? Como esqueci amores eternos? Que barreiras foram criadas por meio do tempo que transformaram-me no que sou e construíram muros que impediram que a amizade e o amor continuasse o seu cultivo.


Então é isso, é essa a minha explicação: há distâncias intransponíveis. Como  aquele meu eu e o eu de hoje. Tão distantes um do outro que não podem mais se tocar, não podem mais aprender um com o outro, porém mesmo distante graças a vizinha, a que um dia chamei de amiga, lembro-me distante desse outro eu. Desse eu que amava, que rezava, que se importava com o outro. E por mais que ela tenha trago tantas lembranças de outro tempo; mesmo que eu sinta esse meu eu, como se estivesse vivo; sei que hoje ele está tão longe que já não posso mais alcança-lo.





quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Ivovivo



Na sala de espera do consultório do dentista, um menino aguarda o retorno da mãe ao fim da consulta. A secretária distraída mal percebe a presença da criança que balança as pernas no ar, sentada na beira da cadeira. Inquieto, João tem pouco menos de cinco anos e olhos muito redondos e piscantes. Vê, então, um aquário de verdade pela primeira vez. Levanta e encosta mãos e nariz no vidro. Fica a encarar o pequeno peixe laranja. 

Se fosse meu, chamaria de Ivo, pensou. Será que gosta de arco-íris, de bolhas de sabão, de estilingue, de colecionar tampinhas de refri, de gelatina de morango, pergunta para dentro. O peixe nada devagar entre paredes transparentes. Parece triste demais para o gosto de João. O bicho além de preso vive sozinho, sem mãe para passear de mão. O coitado nem tem mãos, mas perto da cabeça tem uns pontinhos azuis tão bonitos e brilhantes, que devem ter sido feitos de canetinha, conclui. 

João enfia a mão na água, lá no fundo, e caça o peixe. A secretária não repara, concentrada que está em mascar chiclete e enrolar a caneta na mecha fina de cabelo. Guardou o então Ivo dentro do bolso grande do macacão. Agora esse peixe vai ver o que é bom, pensou satisfeito. A mãe não demorou. Vamos, filho? Lá se foram João e o peixe: o primeiro pela mão com a mãe, cheia de pressa, e o segundo, seguro e aquecido no bolso do macacão. 

João, feliz, imaginava como seria na escola, ele de uniforme, com cadernos e giz de cera, mochila, lancheira e Ivo o acompanhando. Cantariam Escravos-de-Jó, aprenderiam a amarrar cadarços de tênis, recortariam anjos e corujas de papel para colar na parede do quarto. Fariam coisas incríveis juntos e quando adultos viajariam pelo litoral de Santa Macarina, ou Catarina, de jipe – já havia entendido que na tevê litoral era o mesmo que praia, e jipe um tipo diferente de chapéu. O nome da santinha é que não tinha ouvido bem.

Em casa, engoliu o leite achocolatado que a mãe mandou tomar e saiu. Correu para mostrar a novidade aos companheiros das partidas de bolinhas-de-gude. Ofegante ainda, João catou do bolso o que trazia. Olhou para aquilo tão surpreso quanto os amigos. Fechou as mãozinhas em concha, Ivo aconchegado no fundo da mão, estático. Ele se mexia, bem rápido, eu tenho certeza. Vocês tinham que ver como abanava essas coisinhas penduradas que parecem rabo, tinham que ver… – disse, fazendo um esforço danado para não chorar.

Os guris riram e foram embora. João sentou no cordão da calçada sem desfazer a concha das mãos. Os planos desfeitos, nada de anjos, corujas, jipes ou Escravos-de-Jó. Daí o João chorou bem forte para a mãe chegar. Eu só queria que ele fosse feliz assim, mãe, que nem eu... Entendo, filho. Vamos consertar as coisas? Antes de o dia acabar, o aquário do consultório do dentista recebeu novo hóspede laranja e o quarto do João ganhou mais um morador miúdo, dentro de uma casa de vidro azul: o Ivovivo.





terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Cheiro da Carne Queimada

Os odores alquímicos vindos da cozinha inebriavam os cômodos da pequena casa geminada. O tempero de Maria serpenteava para fora do seu lar, invadia a vila e, através dos vapores, anunciava à vizinhança que à noite o casal talvez se reconciliasse. Quem sabe o aroma da comida de Maria sepultasse a última madrugada entrecortada por seus gemidos, pelas pancadas desferidas por José e por sua voz desfigurada pela bebida?
Apesar da violência da noite, os vizinhos não deixaram de se encantar com o cheiro liberado pelas panelas da vizinha espancada. Quando feliz, Maria costumava dedicar-se com ardor às artes culinárias. A mistura de alho, cebola, óleo e outros ingredientes não podia combinar com o estado de espírito em que devia se encontrar aquela mulher surrada de véspera. Na verdade, não se ouvia sua voz miúda, um tanto desafinada, cantarolando melodias populares enquanto cozinhava. Naquele dia os cheiros que emanavam da cozinha de Maria não possuíam trilha-sonora.
Por conta dos fatos, naquela tarde, a mudez de Maria durante o cozinhar não causava estranheza à vizinhança.
Os moradores ainda tinham frescas em suas memórias o dia em que o casal se mudara para a vila, dois jovens ainda entorpecidos pela felicidade de uma lua-de-mel recente. Prestativos, os homens trataram de ajudar José a descarregar a mobília do caminhão enquanto Maria era convidada a se reunir com algumas mulheres em uma das casas. Foi improvisada uma feijoada para alimentar os trabalhadores. A noite terminou com uma roda de samba em homenagem aos novos vizinhos. Vendo aquele jovem casal dançando em torno dos músicos como que participantes de um ritual de agradecimento a gentil acolhida, quem imaginaria que anos depois a tranqüilidade quase idílica da vila fosse quebrada pela violência de José no breu da madrugada?
Naquela noite, José chegou à vila um tanto constrangido. Era a imagem do canalha arrependido. Passara todo o dia no trabalho respondendo aos colegas por meio de monossílabos, cabisbaixo, ruminando as possíveis consequências da sua brutalidade. Não era um homem dado a perversidades. Culpava a cachaça pelo incidente da madrugada anterior. Também, por que Maria havia de se meter em sua vida? Era adulto, senhor de suas vontades. Que mal havia em ficar umas horas na birosca tomando uns tragos com os amigos? Todos faziam aquilo por aquelas bandas. Chegara trocando pernas. Maria, de cara amarrada, o censurara pela bebedeira. Reclamou. Ele falou mais alto. Contudo, o que provocara a sua ira, materializada nas porradas dadas na companheira, fora ela chamá-lo de desgraçado. Que chamasse do que quisesse. José se esparramaria em um canto para curar o porre e tudo acabaria. Mas qual! Sua mulher o xingara de desgraçado! Ela conhecia o seu ódio por este insulto. Seu pai costumava ofendê-lo com aquela palavra. Fora de si, deu uma bofetada na esposa. Ela, por força do impacto, caiu sentada no sofá arregalando os olhos castanhos, surpreendida pela reação do marido. Limpou o sangue que brotara do canto do lábio e demonstrando um ódio entranhado, repetiu três vezes sem baixar a cabeça: “Desgraçado!”, “Desgraçado!”, “Desgraçado!”. José desferiu dois socos na mulher atingindo-a no rosto e abdome. Ela não resistiu à violência dos golpes, desmaiando. Extenuado, o homem dormiu no sofá. Ideias embaralhadas pelo álcool, decretou que a esposa fora culpada pela própria agressão. Na manhã seguinte, porre curado, não entrou no quarto para ver o estado de sua mulher. Foi trabalhar corroído pelo remorso.
Enfiou a chave na porta, atento ao delicado som da fechadura girando. José parecia captar as dezenas de olhares vizinhos ocultos nas casas geminadas, à espera, quem sabe, da reconciliação.
 Encontrou Maria radiante, com um sorriso desfigurando seu rosto. A mulher trajava seu melhor vestido, um azul, que modelava sensualmente o corpo. José percebeu um leve hematoma abaixo do olho esquerdo da esposa. Notou a mesa posta com capricho e o olor da comida impregnando a casa. Aliviado, entendeu que fora perdoado. Jantaram como nunca haviam jantado. Maria se esmerara nos pratos. Riram, gargalharam, beberam, se acariciaram e às portas da madrugada amaram-se como há muito tempo não faziam.

Ao invés dos galos, a vizinhança amanheceu despertada pelos urros de José, corpo incendiado, a correr sem direção pela vila. Para horror dos que testemunharam, sentada a soleira da porta, Maria apenas observava a agonia estrebuchada do marido. Dera a José uma noite memorável antes da vingança. A Justiça decretou quinze anos de prisão. Homicídio por motivo torpe. Vingar uma surra não justificava assassinato, entendera uma parte do júri. Maria recorreu. Talvez ganhe. Dizem que o cheiro de carne humana queimada ainda hoje empesteia a vila. 





segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

HORA DE ABRIR A CAIXA

Ela chegou perguntando tudo. Quem tinha decorado o apartamento, quem tinha preparado a mesa,
quem tinha acendido as velas. Reparou as gravuras de Gerchman, os livros mal arrumados na prateleira,
a altura do rodapé.  Varreu com os olhos o quarto, sorriu com a cama King Size, pendurou a mochilinha
no cabideiro torto e largou as sandálias no tapete. Não bisbilhotou o banheiro, mas voltou direto para a cozinha, onde abriu a geladeira, elogiou o Bordeaux Rose pegou um aipo da salada com os dedos bem cuidados. Eu só observando seu jeito despachado. Passou por mim, ensaiou um beijo na trave da boca, "delicia de lugar", senti, enfim, o contato de sua língua úmida e rija no meu ouvido. Antes que virasse o rosto em sua direção, ela se intrigou com a rede da varanda.
- Criança em casa?
- Não, macacos.
Ela arregalou os olhos.
- Macacos Pregos. Imensos e peludos.
Ela mordeu os lábios, destemida.
-Ui.
Expliquei que, por ser contíguo à mata, meu apartamento de primeiro andar era dado a visitas da fauna brasileira, especialmente de símios esfomeados. Entram sem cerimônia pela varanda. Um dia peguei um em cima da geladeira degustando uma banana. Digo degustando, porque descascou a dita como mandam as boas maneiras e estava de olhos fechados saboreando a iguaria, quando soltei um grito primal e o bicho se escafedeu por onde entrou, por uma fresta da porta que dá para a varanda. Quando percebi, outros três haviam se assustado com a minha reação e fugiram pelo mesmo buraco. Um deles levou meu headphone.
- Os macacos curtem  musica?
Ela me perguntou só porque disse na noite anterior no Baixo Gávea que tinha me formado em biologia.
Ela sorriu curiosa.
- Mexe com bichos?
- Perereca, - dissimulei com semblante sutil. Estudo seus comportamentos noturnos.
Ela me olhou com cara de burra e eu me excitei com sua reação desentendida encarnada no corpinho tudo no lugar, peitinhos supostamente naturais, bunda arrebitada,  lábios carnudos,  pés perfeitos para um fetichista,  e um sorriso dengoso de quem disfarça que sabe  tudo de cama. Gosto assim, fazer o quê? Engrenamos conversa boa entre risadas e caipivodcas. Seus olhos tinham estilingues, miravam minha alma, enquanto eu deitava falação. De burra não tinha nada. Sonegou um beijo, mas insinuou aceitar conhecer meu apartamento noite seguinte, alegou que ficaria mais à vontade, havia uma esquadrilha de ex ficantes revoando no Baixo. Melhor assim. Fui para casa sozinho. Excitação romântica, plantação perfeita para colheita na noite seguinte. Gosto disso. Do risco incalculado.


Entrei no salão de peito estufado. As manicures perceberam meu astral diferente.
- Acho que encontrei, cochichei para depiladora.  Um gato para ser saboreado devagar.
Fiquei orgulhosa de mim.  Resisti a dar-lhe um beijo de esvaziar testosteronas.
- Devagar, menina, devagar. A ultima vez que você apareceu aqui derretida desse jeito,
disse que o cara era seu príncipe, imaginou o buquê e escolheu o nome das crianças.
Depois se desiludiu e deixou o mato crescer entre a pernas.
- Dessa vez é diferente: ele é biólogo, dissecou minha alma fêmea, não avançou o sinal.
Combinamos encontrar no apê dele. Capricha, Moniquete.
- Radical?
- Embaixo e atrás, sim. Mas deixa o triângulo bem contornado na frente.
Um Triângulo das Bermudas. Ele vai perder a bússola.


O  Bordeaux Rose fez um efeito imediato e devastador. Servido gelado na mesma taça, foi a senha para duas línguas se embolarem, como a força de um tesão devido há pelos menos 24 horas. Pouco se falou, pouco se perguntou a partir dali, quando o vestido justo feito para despir cumpriu seu destino: foi para o espaço, descerrando uma geografia de delicias. A recíproca foi verdadeira. Ao som de Miles Davis no chiado da vitrola, minha roupa também sumiu por encanto. Estávamos os dois nus, procurando pouso seguro pela sala, quando esbarramos na beira do sofá, onde desabamos e por ali nos banqueteamos. Acho que fui rápido demais, mas a moça entrou em preocupante delírio. Gemeu alto, elogiou meus dotes e gritou um assustador "homem da minha vida!" repetidamente, a cada estocada viril que recebia.
Senti que queria mais, pela chave de pélvis que levei, pela respiração incessante e pelas unhas cravadas nas minhas costas. Aos poucos, foi desfalecendo sob meu corpo, afrouxando as coxas que me enclausuravam e desacelerando os suspiros, sem deixar de repetir baixinho "homem da minha vida! homem da minha vida!".
Quando percebi  o prenúncio do desvencilhar do golpe, dei um pulo do sofá.
- A salada! Hora da salada!


Moniquete, querida, você é ótima depiladora e péssima pitonisa. O gato é um assombro. Que homem é esse, meu deus, que me invadiu gostoso com sabor de Bordeaux Rosé,  me deixou troncha e fraca sobre um sofá e ainda me oferece um bowl de salada de aipo, alface, cenoura ralada, shitake, amêndoas picadas e molho de mostarda com mel? Bem dotado até nas culinária, Moniquete, me belisca, que rara delicadeza é essa que a vida me oferece? Ele me corteja, me fala coisas inteligentes, tem bom humor, me acolhe no colo nu e me embala com LPs formidáveis na vitrola. Trata-se de um cavalheiro especial:  dá alfaces amendoadas na minha boquinha, divide mais uma taça afrodisíaca e agora resolve com a língua passear pelos meus relevos. Nunca na história desse território  me mordiscaram mamilos com tanta vontade de dizer alguma coisa. Entendi, gato, foi amor à primeira vista, eu sinto o amor correspondido pela sua língua muda, que busca refugio nos meus recôncavos, até encontrar o triangulo da perdição, onde, ái, ái, ái,  perdemos os rumos, o astrolábios, o caminho das estrelas, e nos metemos num  buraco negro de esplendores e êxtase, sim eu te amo, você me ama, e por isso eu me entrego toda nua toda sua para os infinitos de nossas existências.


Diz um ditado siciliano que quando il vigore míngua, avanti com la língua. Obedeço  os caprichos de meu cérebro da cabeça inferior, mas não menos cioso, inteligente e perspicaz. A moça bonitinha não é lá essas coisas. Tem um perfume enjoativo, que, miscigenado aos odores naturais e uma ansiedade exacerbada, produz o que se chamaria de asco súbito,  expressão rude para um cavalheiro de bons modos, mas sincera diante da armadilha de barra forçada que essas excitações pseudo românticas nos impõem. Só me resta, como gentil amante, encerrar a lenga lenga passeando a língua sobre sua geografia de atlas bem impresso e retribuir-lhe com gozo o gozo que apressadamente me foi acometido. Que seja rápida, menina, já sugo seus âmagos, com a infantaria de dedos cercando os arredores de seus lábios, invadindo a fenda encharcada, ousando enveredar pela brecha pregueada, com um olho contemplando o triangulo bem esculpido - palmas para a depiladora! - e o outro no relógio na ultima prateleira da estante da sala.


Falta pouco para meia noite. Em menos de duas horas, encontrei o que me custou séculos de procura: um homem cordial, capaz de respeitar o timing de uma mulher desejosa. Estamos abraçados  num eloquente silêncio. Amanhã amanheço mais plena. Meu homem ressona sobre meus seios de bicos ainda rijos, com a coxa direita encaixada no meu sexo melado. Passo a mão pela sua cabeça, tenho vontade de dizer "meu anjo, vamos para a nossa cama". Como se entendesse meus pensamentos - até nisso o destino nos presenteou - levanta-se, perambula entorpecido e nu pela sala, entra e sai dos cômodos, fora do alcance da minha vigília e tranca-se no banheiro. A eternidade é o tempo em que sai de lá, faceiro, e parte para nossos aposentos. Vou atrás do meu príncipe. Abro a mochilinha, retiro a camisola, um par de havaianas e uma nécessaire. Não acredito que estou vivendo. Onde está você, Moniquete? Me apareça com uma câmera celular para aplacar suas desconfianças. Meu homem chegou. Está jogado na cama de braços e pernas abertos, receptivo à presença, enfim, de uma mulher complementar. Vestida de seda, nada por baixo, e escova de dentes na mão, me enrosco no corpo que já é meu e nos embrulhamos nos lençóis, até que me deixo acolher em conchinha. Adormeço sob seu abrigo carnal, sinto seu volume saciado se encaixar entre minha nádegas. E sonho sem escovar os dentes.


Odeio dividir cama. Conchinha, nem pensar. Essa doida ronca, sofre de adenoide, fala dormindo.
Volta e meia me aperta e me chama de meu amor. Seus lábios desenham um sorriso, sonha em círculos a infeliz, repetindo em gemidos o mantra da transa: "homem da minha vida, homem da minha vida!"
O tempo não passa, essa mulher nem tem vontade de fazer xixi. Que diabo! Quem é vencido pelo sono sou eu.

AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Sou acordado por um discurso histérico onde apenas uma letra do alfabeto diz tudo.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Ela em chilique veste o vestido fácil de despir pelo avesso.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Seu olhar de estilingue me acerta. Entendo suas palavras de uma letra só.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Segue surtada e esbaforida porta afora, deixando pra trás a calcinha, mochila, a escova de dentes, as havaianas.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!AAAaaaaaaaaaa... aaaaa..aa...a... a.... a... a... a...
Ouço o grito sumir pela escada, ganhar a rua de paralelepípedos  e desaparecer entre grilos da mata.
Levanto vitorioso e vou até o banheiro.
- Vem, Phidias, vem com o papai.
E retiro minha de Boa Constrictor, vulgo jiboia, enroscada no sopé do vaso sanitário entre o bidê e o suporte do papel higiênico.
Cúmplice, ela envolve meus braços e a devolvo para caixa onde habita na área de serviço.
- Obrigado por mais essa, filhota. Mais tarde trago camundongos e pererecas pro seu jantar.








domingo, 19 de janeiro de 2014

Duas faces do eu

A manhã é uma epopeia. A tarde, largada no meio do jardim de palavras é poesia lírica da mais remota, a mais idealizada. No meio do caos instaurado, entre vivência e sobrevivência, a linha que divide o ser escravo do ser um pouco menos escravizado, há o sol, um céu azul com bolas de neve suspensas. Pendendo pesadas, mas não caem. Nem ameaçam. 
Quem se reconhece peça da grande engrenagem do mundo? Acho que alguns filósofos, uns poetas e amigos de poetas, aqueles amigos que participam do pensamento quando deixam o poema os invadir. 

****

A terra é redonda, lá no espaço não há oxigênio, dizem. 
E aqui dentro? Existe a mínima possibilidade de respirar? Respirar um dia perdido na interminável certeza de não saber ao certo sua real função no mundo? Função parafuso, função mesa, Peça utilitária. Se eu fugir, tem mais vinte parafusos dispostos a me substituir.
Enquanto isso, caminho vagarosamente para a morte, ficando algumas palavras nas tábuas rasas do universo, com a esperança de ser um pouco mais que sombra. Um pouco mais que um nome. Uma paixão de meia-noite, bela e fria. Livre. Sem laço, sem abraço. Solta, suspensa. 

Arquivo pessoal
Manuscritos das duas faces





sábado, 18 de janeiro de 2014

O TEMPO

Otávio Martins

   Os passos já não são mais tão firmes; até quando, determinados, procuram escolher a direção; o destino. O tempo, ainda que se mostre quase imperceptível, vai deixando as suas marcas e, com elas, inexoráveis mudanças.  Algumas, claramente, visíveis. Outras, apenas sentidas. Ah, esse meu pensar, livre, só pensar...

   Isso só é percebido através da sua implacabilidade. Agindo sutilmente, sem se deixar notar. Não mete medo. Por isso é que se faz passar despercebido. O tempo. Ah, o tempo!

   Certa vez, lembro de ter corrido ao lado do trem que acabara de chegar à Estação. Hoje, limito-me a segui-lo, apenas, com o olhar. Sei que ela chegou; depois de uns bons instantes, estaremos juntos. Provavelmente ela já esteja vindo ao meu encontro.

   As fotografias são apenas lembranças guardadas, gravadas no papel. Mais do que simples memória, retratos “vivos”. Momentos em que achávamos que seriam inesquecíveis, somente as fotografias mostrarão, trarão, chamando a nossa atenção, tempos depois, para esses tais momentos “inesquecíveis”.

   Guardamos os nossos momentos, os quais são somente nossos. A gente se conheceu criança, ainda. Sentimento provocado e nascido de um simples olhar, o qual não durou quase nada. Parece, apesar disso, ficou eternizado e guardado nalgum nicho qualquer da memória. Muito mais do que a sete chaves. É, também, uma forma de perpetuar a criança que vive em nós. A criança não faz cálculos, e nem sabe fazê-los, por isso a profunda sinceridade. Ficam lá guardados, somente pra gente lembrar que, um dia, fomos sinceros, também. Sem medo de ser dominada, é o que é, puramente, criança. Sei que o Gonzaguinha já disse isso. Nunca é demais repetir.

   É a vida, é a vida, é a vida.

   Seria um bom jeito de acabar esta crônica. Mas não é o fim. Tenho mais a dizer. Se tivesse que explicar, nem saberia como. Existem coisas que são porque são. Uma coisa puxa outra. Trilhos, tanto urbanos como em meio ao deserto, andam, cada um na sua, na mesma direção, ou rumo. Também as paralelas, afirmou um famoso cientista, se encontram no infinito. Andar junto é, também, uma maneira de se encontrar





sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Acontecendo - Poema de José Luis Queiroz

Acontecendo




Por que aconteço?
Respondas, agora:
estou do avesso
ou estou pela hora?

Por que aconteço,
ó minha senhora?
Que falta de apreço
de quem me escora.

Não sei de onde vim,
nem para onde vou;
nem sei se há fim
ou se começou.

Por que aconteço
e raio com a aurora?
Por que o crepúsculo
me tinge de outrora?

Outrora fui outro,
e agora eu não sei;
se o outro está morto
ou se segue a lei.

Por que aconteço
e ninguém decora;
o texto da vida
do ser que exora?

Por que aconteço
enquanto vou embora?

Do livro O Cortejo, Editora Patuá.





quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Desejo

Olhou-a pelo canto do olho. Timidamente. Nada. Nenhum gesto, nenhum sinal de que ela o percebia ali tão próximo. Tossiu, esperando que o barulho a fizesse virar-se. Ao contrário. Ela abaixou ainda mais a cabeça na direção da revista que a entretinha. Podia jurar que a tinha irritado. Será?
Era assim já havia um tempo. Ele se consumindo de paixão e de tesão a cada vez que entrava naquela sala apertada. Se esta sala fosse maior... Se pelo menos as nossas mesas fossem mais afastadas... Tolice. Consumia-se dia após dia entre os batimentos acelerados e a vontade que crescia dentro das calças. E agradecia a Deus e ao diabo pela mesa de trabalho que encobria os seus desejos. Talvez se eu tivesse coragem de conversar com ela, se eu pudesse mostrar que sou um cara legal... Ilusão. Só os dois naquela sala apertada; e ele travado. Rotina. Ele, com seus documentos e processos. Ela, sempre ao telefone, no computador ou na sala do chefe. 
No fim do ano, na festa da empresa, esbarrara nela uma ou duas vezes. De propósito. Só para pedir desculpas e obrigá-la a dar-se conta de que ele existia. Mas nem um muxoxo. Enquanto ainda dizia “desculpe”, ela já tinha sumido. Um inseto. Uma mosca. Era o que ele era. Não. Uma mosca chamaria a atenção pelo barulho irritante, mas chamaria a atenção. Ele, não. Não era mosca. Nem isso.
Naquela manhã, entrou na sala com ares de “hoje vai”. Perfume francês que só colocava para ir a festas ou a motéis baratos, das raras vezes em que aparecia uma mulher para transar. Roupa de missa; sapatos de Ano Novo; cabelos de boate — com topetinho feito a gel. "Topa sair comigo hoje?". Não, não estava bom. “E aí, gata, que tal um barzinho hoje?”. Que droga! Nem que tivesse 15 anos. “Escuta, tem tempo que ando querendo convidar você pra sair...”. Assim estava melhor, com reticências. Afinal, o máximo que podia acontecer era levar um fora. Um fora, esse era o problema. Não pela rejeição, à qual estava acostumado, mas por antever como seria a sua vida naquela sala apertada depois do fora. Convivência impossível, vergonha, frustração.
Desistiu, mais uma vez. Até a hora do almoço. Certo de que precisava dar um jeito no que sentia no coração e dentro das calças, tomou duas cervejas e um copinho de pinga durante a refeição. De comida mesmo, só umas três garfadas para forrar o estômago. Almoço de boteco: comida ruim, pinga barata. Que pena que não tenho grana pra mais um copinho, pensou, recontando o dinheiro. Conferiu o relógio de pulso e viu que ainda tinha uns trinta minutos, mas preferiu voltar para o escritório assim mesmo. Queria treinar o convite que faria a ela, antes de colocar na boca as balas de menta que comprara com o troco do almoço. Ah, hoje vai!, pensou, animado pelo álcool.
Assim que chegou, viu que o escritório ainda estava todo apagado. Dirigiu-se, então, à sala do chefe para fazer o que era de costume: quem chegasse primeiro, pela manhã ou depois do almoço, tinha a tarefa de ligar seu ar condicionado, arrumar sua mesa e recolher o lixo do cesto. 
Entreabriu a porta. Silencioso e lento como sempre. E aí ouviu os gemidos. Parado na soleira, acostumou a vista à penumbra até conseguir enxergar os dois corpos contorcendo-se em sexo sobre a mesa de reuniões que ficava mais à direita, ao fundo. Macho e fêmea em sexo irrestrito. Sexo de braços, pernas, bocas e suor. Sexo com sons que ele nunca ouvira. 
Pensou em sair bem devagar, pé ante pé. Depois, em sair e voltar para bater à porta. Por último, em sair e esquecer o que vira. No entanto, continuou ali, na porta, no escuro, consumindo a beleza daquelas nádegas que cavalgavam um corpo que bem podia ser o seu. Mas não era.
Ele e um medo súbito de ser visto. Ele e um medo covarde de que sua respiração entrecortada pudesse ser ouvida. Ele e um medo horrível de ser despedido e de ter que passar a viver sem ela, sem a sala apertada, sem o tesão embaixo da mesa. Foi quando lembrou que não era inseto. Não era mosca. Não fazia barulho. Nem isso. E seus olhos mergulharam novamente naquelas nádegas galopantes.