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terça-feira, 30 de julho de 2019

COLUNA SOCIAL


“Deixai que os mortos sepultem os seus mortos”.
(S. Lucas IX: 60)

“O homem morto ainda é, de certo modo, homem social.”
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 10ª edição. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1998, pág. LIX)

Naquele dia, a página dos obituários estampava um anúncio como há muito não se via. Ocupava três quintos da página e anunciava o falecimento de um senador da República, descendente de senhores de engenho, irmão gêmeo do cardeal, acionista majoritário do maior banco privado do estado, empresário da indústria têxtil, cunhado do prefeito, pai de uma top model, enfim, um homem que, mais do que pertencer à nata da sociedade, sentia como se fosse ela que a ele pertencesse como a nata do leite de sua melhor vaca cujo nome só o ordenhador saberia, se tivesse se dado ao trabalho de nomeá-la. Decretou-se no estado luto oficial por três dias e o carro de bombeiros que levava o ataúde ao cemitério foi seguido por um verdadeiro cortejo de limusines que transportavam pela avenida principal não só os Três Poderes em peso mas quase todos os colunáveis da região. Um exército de jornalistas tudo documentava.
Diante do grande mausoléu onde o corpo seria guardado até o final dos tempos ou da nossa civilização (o que viesse primeiro), as lentes da imprensa salivavam. Enfim, após nove longos anos de espera, aquelas portas se abririam para o gozo dos leitores das colunas sociais e glória dos artistas locais. Aquela enorme construção na área nobre do cemitério, com sua austera fachada toda em mármore, ornamentada com motivos vegetais em estuque (bem ao estilo art-nouveau, como era moda na época do Segundo Império) e vitrais que só poderiam ser vistos em todo o seu esplendor do lado de dentro, despertava a curiosidade de quem passasse por aquelas aléias. Os fotógrafos veteranos ainda se lembravam do grande acontecimento que foi a abertura daquelas portas para os periódicos locais nove anos antes, quando do falecimento da esposa do agora sepultando: os velhos exemplares da revista, cuidadosamente guardados nos arquivos dos editores e disputadíssimos entre os amantes das artes, registravam em cores o brilho dos grandes vitrais: na parede leste, banhados pelo sol: à esquerda, o vaivém dos anjos na escada sonhada por Jacó; à direita, Lázaro saindo de seu túmulo ao ouvir o chamado do Nazareno; na parede Oeste, o pobre Cristo sendo deposto no túmulo do rico Arimatéia, e um outro, com o Filho de Maria novamente vivo, mostrando suas feridas a S. Tomé, obras não muito anteriores à República, segundo especialistas. Na parede Norte, estrategicamente localizado para ser banhado ora pelas luzes coloridas dos vitrais que saúdam o sol nascente, ora pelas cores dos que se despedem dos dias passados que se acumulam sobre a memória dos mortos, um pesado altar de jacarandá do século XVIII, encimado por castiçais de prata, para lembrar a necessidade de algumas preces entre luxos e lágrimas, à direita do busto de mármore que cobre, no centro da parede, o jazigo do ministro do Segundo Império que ordenou a construção daquela suntuosidade. No teto, um afresco datado de 1928, retratando, como anjos prediletos da Virgem Santíssima, três membros da família mortos na mais tenra infância: uma menina morta em 1870 pelo sarampo; um menino picado por uma serpente, hóspede indesejada do latifúndio familiar, em 1900; um outro que se afogara no lago da fazenda em 1927, sobrinho-neto daquela vítima do sarampo. Tanto sucesso fez essa foto que uma gráfica pediu autorização para reproduzir aquelas figuras como se fossem românticos cupidos para ilustrar cartões para o dia dos namorados, no que concordaram os proprietários da obra, desde que se registrasse no verso ter sido a concessão cortesia da família, que cedia os seus direitos para uma instituição de caridade, limpando, assim, sua consciência da culpa da profanação e assegurando aos consumidores os seus mais pios sentimentos. O que ainda não se vira, e era o motivo da apreensão daqueles profissionais, era o comentadíssimo e inédito mosaico que, sabia-se, o senador encomendara a um renomado artista da cidade, retratando sua defunta esposa no Céu, aprendendo música com Santa Cecília.
Terminados os discursos, qual não foi a surpresa de todos quando a top model em prantos, depois de posar para as lentes com a chave na fechadura, percebeu que ela não era necessária, que alguém soubera violar aquele templo da saudade serrando a tranca que fechava a porta dupla. O susto a fez esquecer a solenidade do momento e atirar-se bruscamente para dentro do santuário familiar.
Não se ouviu mais que o ruído ininterrupto das máquinas fotográficas quando as portas foram escancaradas e os flashes iluminaram a figura esfarrapada de um mendigo dormindo sobre a sepultura de um antigo prefeito, primo do sepultando. E, junto à parede do comentado e inédito mosaico, sobre o jazigo da virtuosa dama que esperava juntar-se ao consorte, coçava-se um vira-lata, companheiro único do indesejado inquilino. Espalhados pelo chão, alguidares de barro e garrafas de aguardente que deveriam ter contido oferendas e despachos feitos à noite no cemitério e pareciam ser o alimento principal daquele indigente.
Irritado pelos flashes, o cão pôs-se a latir e acabou por despertar o seu dono que, primeiro, abriu os olhos, logo agredidos pelas luzes dos flashes que nunca vira e do Sol que aprendera a evitar. Expulso do mundo dos sonhos, demorou a erguer-se e pareceu fazer um enorme esforço para compreender o que estava acontecendo. Lentamente pôs-se de pé e, visivelmente alcoolizado, precisou apoiar-se no altar de jacarandá para equilibrar-se.
Ao homem, cujo rosto mal se distinguia coberto por longos cabelos revoltos e pela barba vasta e hirsuta, não se podia atribuir outra idade que a da solidão sem data, nem outra linguagem que a da insociabilidade imemoriável. A sua pele coberta por uma crosta cinzenta de poeira assentada sobre a argamassa do suor e o sexo que emergia de suas calças rotas eram toda a sua biografia. O vento que levava para dentro o perfume das coroas de flores era o único eufemismo na epístola de sua condição.
Os olhos negros do marginal fixaram-se na íris azulada da herdeira e, por alguns instantes, ambos tentaram entender como eram possíveis suas diversas existências. Cada um recuou para o seu lado um passo e o cortejo fúnebre avançou dois. Os lábios dela se abriram, o braço direito ergueu-se tentando apontar para fora; os dedos encardidos dele empunharam um castiçal. Quando a palavra por ela fosse dita, o arremesso por ele seria feito. Tranqüilo, o morto esperava. Os carregadores estavam impacientes.
Ela notou que os braços da aparição eram finos como os do senador quando o câncer, paciente,o roía e, após cada noite de insônia no hospital, o olhar com que a recebia era o mesmo daquele zumbi. A solidão é irmã da morte.
Olhou para o intruso à sua frente: o rosto dele afirmava; olhou para o pai no esquife: o rosto dele negava; olhou para os carregadores: os seus rostos exigiam; imaginou seu próprio rosto: ela própria temia. E em meio a tanta gente, todos eles estavam sós, presos às suas fisionomias. A solidão nos une.
Pela boca batonizada saiu uma leve corrente de ar, prenúncio de um fonema constritivo, acredito que um / f /. Os lábios se conizando como uma flor ou um beijo não completaram o sopro, que deveria ser seguido por uma vogal: ó... A sílaba foi abortada porque que utilidade haveria em pronunciar aquele “fo”, que teria de ser seguido por um “ra”, igualmente inútil? Compor-se-ia a palavra e, se com palavras Deus criara o mundo em seis dias, as palavras ali ditas em nada mudariam aquele mal-estar-no-mundo. A solidão é o silêncio imperativo.
Atrás dela, um segurança de um deputado contraiu a impaciência dos carregadores (A solidão é ansiosa. A ansiedade contagia) e adiantou-se vinte passos em direção aos antagonistas, tomando o único partido que um homem acompanhado de sua gravata poderia tomar naquele momento: oferecer, lancelótico, sua força à rica órfã. Junto a ela se postou. Eram mais dois olhos interrogando o intruso. A solidão é interrogativa.
O segurança era muralha protetora, mas, diferente daquela de Tróia, não se posicionava em torno da protegida, tanto não podia o seu corpo, que não era extenso como o de uma jibóia, apenas desta tinha as cores: o negro-solenidade, combinando com os óculos escuros daquela tonalidade não-me-encare; o colarinho branco-oligarcófilo, os punhos branco-impunidade. A muralha de Tróia foi erguida por Possido, como sabem todos os que amam Homero. Aquela muralha de músculos ali fora postada por uma entidade que não ousa dizer seu nome, cujo poder emana do povo, em seu nome é exercido mas dela o povo pouco sabe. A muralha de Tróia contentava-se em defender. As muralhas homens, jagunços da pós-modernidade, também ameaçam. As muralhas não falam. A solidão está sentada sobre elas e as acrescenta: ela é a muralha involuntária.
A sombra do homem-muralha projetou-se no chão e a mulher pôde ver, com a clarividência das Sibilas, que uma solidão aproximara-se da sua e somara-se a ela mais um peso a pressionar a solidão andrajosa a fitá-la. Seu braço estendeu-se e tocou a muralha. Fez fronteira, pois a muralha estava disposta a avançar. A solidão é ímpeto, avanço e recuo.
A solidão é o arché, o Gênesis indescritível. A solidão do útero prepara-nos para as solidões da vida, solidão adiada que procria. Aquele sujo sexo procriava? O sexo lembrou-lhe outro sexo, e outro, e outro, e outro, e outro, e outro, e outro e palavras de amor, e sensações de gozo, solidão ereta a invadir, sedenta, a solidão úmida, solidão ejaculante, solidão líquida, fecundante, solidão negada, companhia indesejada, companhia abortada, solidão culpada, solidão defendida, solidão necessária, solidão antimaterna, o sorriso debaixo do bigode derretendo a solidão, sorriso de dentes perfeitos, o intruso tinha dentes?, ou sorria pelo sexo?. Teve nojo daquele sexo, tão sujo, parecido com aquele outro, tão limpo. Meu Deus, como eram parecidos! É a sujeira que distingue? Teve nojo dos homens. A solidão é promíscua e casta. E o arché que não se cumpre? O feto solitário na lixeira. A miséria é o maior dos abortos. Que vontade de vomitar-se! Na muralha amparou-se.  A solidão fragiliza sem permitir eufemismos, apocalipse.
A plácida solidão do defunto insultava, sutil, as solidões dos vivos. A ansiedade é o sétimo sentido dos vivos, sentimento do tempo que nos consome enquanto o consumimos. O sangue nas veias não quer parar, corre por todo o corpo em busca da alma que busca, sufocada, outras almas. A solidão é vida e asfixia.
O segurança há muito decidira-se e esperava dela uma decisão. O tempo os empurrava na mesma velocidade da translação da Terra. Meu Deus, por que aquele esqueleto tinha de viver ali, entre os seus mortos? E quando ela morresse teria também de conviver com ele? Será que nem na morte se pode estar só? Que morrer é isso: estar só, cegada e sossegada. Mas como, se o mausoléu fora invadido por um morto que insistia em viver? A morte ali nunca mais seria a mesma.
 A morte interroga a vida. Até então vivera só cegada. Agora a morte dava-lhe em vida os olhos que nega aos mortos e obrigava-a a ver.
Homem-solidão, noite ambulante, tristeza com barbas, lágrima sólida, cadáver que anda, vergonha da Pátria, órfão da Receita, idem da Bandeira, inverno humano, bípede angústia, desengano mudo, jornal sem papel, estômago nu, língua aposentada, nome indizível, saudade do sim, niilismo andante, fé posta em dúvida, Direito em xeque, Estado rachado, setembro sem sete, outubro sem doze, dezembro sem crédito, por que tu existes?, pergunta sem fala, tu sem eu nem nós.
O pária nada tem a declarar exceto no olhar a perplexão de invadido ver o ocupado vácuo que preenchera, solitário vivo-morto entre mortos revividos pelas ruas e praças batizadas com os nomes que tais ossadas foram. Vítima acuada da invasão, minoria esmagada pelo enorme peso dos olhos e das câmeras intrusas, à parede encosta-se e segue, braços erguidos, rumo à luz triste do Sol que denuncia sua miséria para os olhos cegos da cidade, mais só que o Nazareno coroado de espinhos, de inimigos e de fiéis, no alto do madeiro, circundado.
Todos, silenciosos, voltaram-se para ver, aliviados, aquele vulto desgracioso e desgraçado desaparecer na extrema curva do caminho extremo. Estavam salvas família, tradição e propriedade.
O esquife foi depositado no jazigo enfim aberto como o baú de um tesouro pirata numa ilha deserta. E o que era aquele edifício senão um outeiro a mais numa ilha de morte cercada de vida por todos os lados? Sendo que muitas vidas não podiam ser tão belas quanto aqueles depósitos de ossos. A dela própria, será que valeria mais que aquelas flores de estuque que adornavam a fachada, ou, quando para lá fosse recolhida, precisaria daquelas flores pétreas para adornar a sua memória esmaecente? Encostada a um anjo, dialogava com o silêncio.
Um a um foram saindo os colunáveis, junto com eles a maioria dos repórteres. Um fotógrafo ainda voltou-se e tirou uma fotografia sua, daquele jeito sentada, abraçando os joelhos, como já a tinham visto anunciando o jeans de uma famosa grife. A pose era a mesma, diversos só o cenário e a expressão de seu rosto, mas a pose ficou bem natural, essa e outras eram seu hábito. O fotógrafo foi se afastando, mas na porta demorou-se mais um pouco. Por certo, queria registrar uma lágrima. Ela já tinha perdido o hábito de chorar, mas, para não prendê-lo mais ali (devia ter mulher e filhos à sua espera), esforçou-se e fez rolar uma para agradá-lo. Ele a clicou, satisfeito, e se foi. Não era-lhe difícil agradar fotógrafos. Enfim, comprara sua privacidade. Finalmente, estava só.
Sentada num jazigo próximo ao do pai, um sem-número de flores aos seus pés, pôde enfim ouvir aquele estranho som da solidão: aquele som das distâncias: um carro que freia lá longe, muito longe, para além do portão do cemitério, o motorista xingando a mãe do pedestre descuidado que quase atropelara, depois um carro de som fazendo o anúncio de uma imobiliária e, perto, bem perto, o vento acariciando os flamboyants em flor que ornamentavam a alameda principal da necrópole. Os olhos fechados, procurou imaginar o ruído que cada uma daquelas pétalas faria ao chocar-se com os troncos das árvores, o mármore das sepulturas, as roupas dos coveiros que abriam, lá longe – ela  o vira momentos antes – uma cova na ala dos indigentes. Esses ruídos os insetos devem conhecer. Mas era o seu desejo ficar ali, longe daquele grande mundo dos humanos, colar o ouvido à terra até ouvir o marchar das tropas de formigas, prontas para atacar com igual fúria e apetite o indigente cuja cova se abria e a musa de um certo poeta que a cidade aplaudia. Talvez, ouvindo os insetos, pudesse descobrir os caminhos mais estreitos da geral existência, aqueles que todos um dia terão de trilhar.
Mas o caminho dela, no momento, era voltar para a limusine, chorar calada no banco de trás e deixar que o motorista a levasse de volta para a mansão, dizer às empregadas que não estava para ninguém, trancar-se em prantos no seu velho quarto de menina rica e deixar que elas agradecessem em seu nome todas as ligações de pêsames. Mas não tinha vontade de regressar. Nem telefones, nem e-mails ou telegramas. A solidão é a melhor companhia para o luto. Mesmo quando se ama. A cabeça que chora reclinada no ombro de alguém é uma cabeça solitária porque a dor é indivisível. Isso seria seu quarto, mesmo se tivesse um ombro onde chorar: uma ilha cercada de telefonemas. E seu lugar não era mais entre telefonemas de condolências.
Os diamantes líquidos que cortavam a maquiagem de seu rosto caíam duros numa faixa de pêsames, assinada por um partido aliado. Ela agora queria verdadeiros aliados. Assim saberia estar demarcado seu lugar entre os vivos. Pois o silêncio que, devagar, a acalmava, depressa a lembrava que não podia ficar entre os mortos. E ela teve dúvida se aqueles mortos ainda eram seus. Por isso, ao sair, não fechou a porta.
A chuva já caía copiosa quando ela chegou ao carro.
_ Até que enfim, patroa. Eu já estava preocupado. Vai para casa?
_ Não, Jarbas. Para uma igreja. Preciso rezar. E você tome este dinheiro, compre uma vela grande, de mel, de vinte e um dias. Acenda-a perto do anjo que tem nas mãos o texto do profeta Oséias: “Onde está, ó morte, teu aguilhão?” [1] Mais tarde, ele sentirá o perfume, verá a luz e voltará.
_ O senhor seu pai?
_ Ele também, Jarbas. E não feche a porta, para que não separe o homem o que Deus juntou.

(Iniciado em 4 de agosto e concluído em 11 de setembro de 2005, tendo o segundo parágrafo sido escrito em 2 de dezembro de 2005, na tentativa de uma segunda versão abortada pelo autor: salvou-se esse parágrafo substituindo o segundo da primeira versão; citação de Gilberto Freyre inserida em 14 de dezembro de 2006; versão final em 12 de julho de 2007, na cidade de São Gonçalo, RJ.)
Em tempo: é preciso repudiar o atentado contra os índios Waiapi no Norte do Brasil. O Estado brasileiro é cúmplice por ação ou por omissão no genocídio contra os povos originários.



[1] Oséias XIII: 14.





quinta-feira, 25 de julho de 2019

A realidade



A minha mãe é alegria. E sabor. Ela junta açúcar num pratinho com requeijão ainda quente que o meu pai acabou de trazer. Delícia! Colhemos figos amarelos a escorrer um pingo de doçura dourada. Regalo! Vamos à fonte buscar água. Fresca! Eu corro à frente. A correr, ninguém ganha à Flecha, a cadela. Corro com ela, feliz. Correr é bom! E andar descalço pelos campos. E nas areias frescas da ribeira. Pela sombra dos amieiros. E estar deitado no meio da erva. Ouvindo os muitos pequenos sons do campo. E sentindo os muitos aromas das plantas. O cheiro a fumo da erva cortada de fresco…

Fumo? Pedro acorda.
Está no escritório. Sentado e com os cotovelos apoiados no tampo da secretária, tinha adormecido por momentos. No cinzeiro, um cigarro queimado até ao filtro. Olha o relógio. Já passa das seis. Arruma alguns papéis que estavam dispersos pela secretária, veste o casaco e sai. Ainda é cedo para ir para casa. Resolve passar pela tabacaria, para comprar o jornal, antes de se sentar na esplanada do fundo da rua.
Nada mais repousante num fim de tarde: uma cadeira, um jornal e um café.
Na tabacaria, olha os cabeçalhos de jornais e revistas e decide-se por uma de nome a branco sobre vermelho.
A Pesquisa, se faz favor!
Paga-a e sai observando a capa. Apresenta o desenho de um cérebro sob um título que promete revelar tudo sobre a fase REM do sono. Cruza maquinalmente o passeio e começa a atravessar a rua sem despegar os olhos da revista. Logo um guinchar estridente lhe assola os ouvidos e o seu olhar já lhe desvenda a origem. A poucos metros, vem um carro de rojo, agarrando-se desesperadamente ao alcatrão. Os olhos do condutor fitam-no aterrorizados, como que a pedirem-lhe o milagre de se desviar, a tempo, da trajetória do carro. O sol refletido nos cromados fere os olhos. Os travões gemendo desfazem-se em chispas de fogo. As pessoas detêm-se de olhos fixos no horror que se desenrola mesmo ali. Sabem que um homem vai ser atropelado e nada fazem. Algo as mantém presas. Há movimentos apenas esboçados. Parece que tudo decorre em grande lentidão. Lentidão apenas aparente. Àquela velocidade, o carro vai esmagar o homem.

Pedro dá um pulo na cama.
À sua frente desenrola-se um acidente do qual ele próprio é o atropelado iminente. Em escassos momentos, porém, o carro que vem ao seu encontro desvanece-se e desaparece, deixando em seu lugar apenas os ferros graciosamente enrolados da sua acolhedora cama.
Pedro pestaneja, olha em volta, e finalmente fecha a boca, que possivelmente gritara. Passam-se os segundos, mas na sua memória as imagens são nítidas. O carro parece estar ali. O carro, o chiar dos travões, o cheiro dos pneus, mesmo a cara do condutor que ele não conhece.
É difícil acordar de um pesadelo, mas no fim é um alívio. Pedro respira fundo, enquanto passa a mão pela testa. Da rua chegam-lhe ruídos de discussão. Levanta-se e vai à janela. Lá em baixo, no alcatrão, dois homens discutem. Um carro está atravessado na rua e outro em posição de ter surgido da lateral. Os rastos da travagem daquele atingem mais de dez metros. Aí está a explicação do aparecimento e do conteúdo do seu sonho.
Pedro volta para dentro, calça os chinelos, alisa o cabelo, e passa do quarto, onde dormira a sesta habitual dos sábados, à sala onde o seu filho se entretém com um automóvel de brinquedo e a sua mulher o recebe com um sorriso.
O quê? Já acabaste a sesta?
Ele beija-a e senta-se. Sabem-lhe bem os sofás macios, confortáveis. A sala acolhedora fá-lo sentir o contraste com a vivência de há momentos.
Nem queiras saber o pesadelo que tive... Ia sendo atropelado.
No sonho!
Sei lá se foi só no sonho. Era tão real! Eu ia a atravessar uma rua e de repente, sem esperar, aparece-me um carro a toda a velocidade.
Eu, às vezes, também tenho sonhos horríveis.
Mas as coisas estavam tão nítidas, tão coerentes, que eu chego a duvidar se era só sonho. Ainda me lembro da cara do tipo que conduzia. E das pessoas que assistiam. Sabes que a coerência interna das situações é o único indício que costumo tomar como certeza de que estou acordado.
Pela mente de Pedro, desfilam novamente as peripécias do sonho. Todos os pormenores permanecem vivos na sua memória: o rodado dos pneus, o aspeto da rua, o rosto da empregada da tabacaria, a revista...
E a revista era a Pesquisa. O engraçado é que é uma revista que já não compro há uns meses. Anunciava nesse número, em grandes letras, “Sono REM — o organizador da realidade”. Lembro-me bem.
Não sei que organização é essa, porque, para mim, isso de sonhos está cheio de incoerências.
Talvez não só incoerências! Repara que, na maior parte das vezes, o sonho reflete as peripécias do dia de quem sonha, ainda que sob uma capa surrealista. Posso sonhar que atravesso a vau um pântano onde outras pessoas chafurdam e não acho isso estranho. Quando acordo, se me lembrar do sonho e fizer um esforço de o relacionar com episódios do dia anterior, talvez me lembre de ter atravessado um relvado acabado de regar a caminho do trabalho. O terreno empapado está lá; o resto talvez seja um sentimento inconsciente do que penso do local de trabalho e de quem por lá se arrasta.
Hm, sim! Mas não seria mais lógico sonhares com o local de trabalho, mesmo, e não com o relvado?
Talvez, mas é a maneira como o nosso cérebro funciona. Aliás, os sonhos incongruentes perturbam-me menos do que aqueles que não distingo da realidade… Como é que eles acontecem? Sou eu, que estou a dormir, que consigo imaginar histórias, que nunca vivi, cheias de pormenores como na vida real? Chegam a ser tão coerentes e semelhantes à realidade que eu já me tenho perguntado o que é afinal real: o que vemos aqui, ou o que vemos nos sonhos? Ou ambos? Deixa-me cá beliscar… Ah! Outra curiosidade. Antes deste sonho, tive outro com recordações de infância. Esse era uma grande baralhada e já não me lembro bem.
Eu chego a ter quatro e cinco sonhos só numa noite...
Sim, mas sabes o que me aconteceu? É que passei de um sonho para outro, como se passasse de um sonho para a realidade. Acordei, pensava eu. Mas era outro sonho, percebes? E olha que estava mesmo convencido que estava acordado.
Pedro fica calado a pensar. Depois adianta:
Quem me diz a mim que isto tudo não é outro sonho igual ao do acidente?
Entreolham-se. Pedro belisca-se novamente. A mulher finge que se zanga:
Então e eu sou o quê?
Tens razão, querida. Tu és mesmo real. E ainda bem.
Passa-lhe a mão pelos cabelos e pela face macia, olha-a no azul dos olhos e beija-a no quente dos lábios, longamente. O miúdo, que brincava com o carrinho, mas sem perder pitada do ambiente, vem a correr meter-se entre eles, para não ficar de fora na distribuição de carícias. Os três estão abraçados e a rir com a brincadeira, quando soa uma campainha. Ele pega no telefone, mas ninguém responde.
Deve ser a porta.
Ela vai abrir, mas volta logo.
Não está ninguém à porta...
Ele desliga o televisor, mas a campainha continua a tocar sem interrupção. Entreolham-se todos, com olhares um pouco assustados, sem trocarem palavra. O miúdo corre a abrigar-se nos braços da mãe. Olham para todos os cantos da sala, para o teto... O som da campainha continua, mete-se pelos ouvidos adentro, parecendo vir de todos os lados ao mesmo tempo.

Pedro começa a tomar consciência das cores escuras e pesadas. Depois as formas aparecem-lhe com mais nitidez. Os seus olhos abrem-se definitivamente e com eles percorre o aposento: roupa amarrotada numa cadeira; um poster de revista na parede; uma mesa com um prato sujo em cima; do outro lado da cama, um banco com um cinzeiro e um despertador.
O barulho do despertador é já insuportável. Pedro trava-o com um murro. Fica a olhar para ele e para tudo o que ele significa: trabalho, submissão a horários, salário de miséria...
Seis e meia. Merda de vida!
Senta-se na cama, encostado à parede. O leito é um colchão de espuma com um saco-cama em vez de lençóis. Acende um cigarro. Acodem-lhe ao pensamento imagens do sonho que acaba de viver. Detém-se nos sofás confortáveis, na estante cheia de livros, nos quadros, no menino adorável, na mulher linda e deliciosa…
Não querias mais nada: boa casa, um bom emprego e uma mulher boa!
Um sorriso amargo aflora-lhe a boca. Acaricia a ponta do travesseiro, sonhador, pensativo.
Sonhos!
Os seus olhos percorrem o local onde poderia estar deitada uma mulher. «É difícil viver sem mulher.» Mais difícil e amargo ainda lhe foi viver com uma mulher em desarmonia. «Que fazer?» Volta a olhar a miséria monótona do quarto. Não é preciso beliscar-se. Esta realidade conhece ele bem.
Ou não? Afinal, que crédito pode dar ao que, de todas as vezes, lhe pareceu realidade? Por que aceitar esta, se ela parece tão desagradável? «Não quero esta merda!», decide. «Qualquer das outras é preferível.» Acabado o cigarro, estende-se outra vez, relaxado.
Que se lixe!
Umas três horas depois, sonha que voa por cima do parque da cidade. Controla tão bem o seu corpo que bastam poucos movimentos dos pés para se elevar, e pequenas inclinações do tronco para orientar a trajetória. Acaba por poisar num enorme relvado junto a uma mata. Desta sai um urso que se prepara para o atacar. Pedro pega num pau e bate com ele fortemente na cabeça da besta. O animal tem a cara do seu patrão, que lhe aponta o indicador:
Estás despedido!

Pedro salta da cama com um forte sentimento de angústia. Está outra vez atrasado. Muito. Lava os olhos à pressa, veste-se num ápice e sai do quarto a correr. Lá fora, a realidade parece saída de um quadro de Bosch.

Joaquim Bispo

*
Este conto — escrito em 1976 e reescrito em 2016 — foi um dos 15 selecionados para integrar a 5ª edição da Fluxo — Revista de Criação Literária (páginas 36 a 41):
*

Imagem: Henry Fuseli, O Pesadelo, 1781.
Instituto de Artes de Detroit.
* * *






quarta-feira, 17 de julho de 2019

Poema de Breno para Fernanda, de Camila Ferrazzano






POEMA DE BRENO PARA FERNANDA





a paixão lesionou-me as pernas
tornou ralo os cabelos
fuzilou o amor próprio
escamoteou vocábulos como
não-quero
não-posso
queria-mas-minha-mãe-disse-que-não-será-o-melhor-para-mim
a paixão tem olhos de vidro e dança como mulher
envolve a cintura no meio da cidade de concreto e diz com seu hálito doce que adoraria um café antes de partir.
para onde?
buenos aires.
a paixão soprou gelado nos joelhos e quis gritar de ódio
(muito embora não diga nada, porque na bula de são paulo, escreveu-se;
tu serás indiferente.
tu serás indiferente.
tu não irás até corinthians itaquera. cometas haraquiri mental mas não deixes que saibam)
nessa cidade não se fala na segunda pessoa do singular.
saiu de moda.
nessa cidade não se fala nada além de passa no crédito.
acabou o débito.
nessa cidade não se fala eu gosto de você.
é letal e contempla os caretas.
e aqui
todo mundo
é
muito
maneiro.


 

Do livro Orações subordinadas, Editora Patuá.





terça-feira, 16 de julho de 2019

João e Maria

Fotografia: Lee Jeffries

Eu me acostumei a ver os dois sentados no chão, lado a lado, encostados na parede da padaria. Eu descia do carro apressada, retornando do trabalho, para comprar dois ou três pães, um leite, um queijo. E lá estavam eles, no mesmo lugar, todos os dias, como se tivessem sido posicionados ali para uma dessas fotografias intermináveis de estúdio que repetem e repetem uma mesma pose, à exaustão. Ou para uma pintura. Óleo sobre tela. Indigência sobre tela.
João e Maria. A princípio pensei que eram apenas apelidos. Esse jeito leviano de inventarmos nomes comuns para os que queremos manter à distância ou para os que não nos importam de verdade. Mas depois fiquei sabendo que esses eram, realmente, seus nomes. João Eustáquio dos Santos, um seu criado, ele se apresentou a mim num fim de tarde, enquanto me ajudava a colocar no carro a compra feita no varejão da esquina. O senhor aceita que eu lhe compre uns pães e leite?, perguntei sem jeito, pensando se não seria melhor dar algum dinheiro (o velho hábito cristão da caridade medida em bens ou moedas). Ele riu e aceitou os pães e o leite. Agradeceu. Eu entrei na padaria para a compra. Ele me esperou do lado de fora, único lugar considerado adequado aos pobres pelos donos de comércio. Conversamos. Ele me contou que nem sempre morou na rua. Que teve família e casa e uma mulher que tinha morrido daquela doença ruim e cinco filhos que estavam pelo mundo e netos que ele só viu bem pequenos. Estudou um pouco. Mas não gostava das letrinhas miúdas. Números, ah!, isso sim. A sua vocação. Foi motorista. Fichado. Despedido do emprego já quase com 50 anos. Virou camelô. Vendia guarda-chuva, brinquedo, batom. De um tudo, ele afirmou orgulhoso. Mas ficou doente e perdeu o ponto. Eu sou doente das juntas, me contou.  Mancava muito, joelhos tomados pelo reumatismo. As mãos doíam. Doía tudo. Sem conseguir correr, não tinha como fugir do rapa. Os homens chegavam e quebravam tudo com o cassetete. E ele não tinha como repor a mercadoria, diz com os olhos perdidos em uma memória de dor. Perdeu a casa por causa das prestações atrasadas. Não tinha parentes: a mulher já havia morrido, os filhos estavam esparramados pelo mundo afora. Ninguém o acolheu. Foi parar na rua. E começou a beber. Bebeu de cair, de vomitar e de se urinar dormindo. Até conhecer a Maria. 
A conversa acabou. Ele pediu desculpas porque falava demais. Eu gosto muito de conversar, mas a Maria não gosta, disse apontando o queixo para a companheira. Maria Aparecida da Silva, a Maria Muda, como era conhecida pelos comerciantes e lavadores de carro. Trazia nos olhos as palavras que faltavam à boca. 
Com o tempo, descobri que aquela cena se repetia muitas vezes ao longo do dia. João ajudava as pessoas em troca de algum dinheiro ou comida, e de muita conversa. O casal dormia embaixo de uma marquise e sobrevivia de caridade: roupas, cobertas, alimentos e alguns trocados — realidade que faz tempo se banalizou e se tornou invisível para os nossos sentidos cotidianos. 
Tinham, pela aparência, uns 75 anos. Mas as ruas costumam vincar mais cedo as peles. De qualquer maneira, eram idosos. De qualquer maneira, dormiam em cima de um papelão gasto e fino. De qualquer maneira tinham que pedir, que implorar, essa brutalização da dignidade que aos poucos vai quebrando o indivíduo. Comer. Beber. Morar. Coisas simples que não deveriam depender de favores. Não, não deveriam.
Mas hoje não é a barbárie da indiferença social que me preocupa. É alguma coisa mais evidente, mais urgente. Uma falta. Uma ausência. Hoje, não tem João. Nem Maria. 
Tem tragédia. 
Dois bêbados brigaram por causa de um cobertor que algum morador das redondezas deixou para eles. Um deles puxou uma faca. João tentou impedir. E virou alvo da faca embriagada que buscava qualquer corpo. Várias vezes. Maria, desesperada, pulou sobre o agressor. E foi a sua vez de sentir nas carnes magras a lâmina cega e suja do sangue do companheiro. 
Agonizaram um sobre o outro. Sem ambulância. Sem hospital. Sem palavra. Apenas uns panos colocados sobre as feridas por alguém que correu para tentar ajudar. E umas lágrimas desse alguém que os enxergou pelo menos na morte. Mães tampando o rosto dos filhos. Idosas passando mal. Curiosos filmando os mortos. Comerciantes praguejando contra a falta de policiamento nas ruas, para impedir a aproximação “dessa gente” que só arruma confusão. 
Um dia como outro qualquer. Como hoje. Em que a ausência dos dois já faz parte da rotina da rua. Caminhões descarregando mercadorias. Carros parados em fila dupla na porta das lojas, do varejão, da padaria. Carrinhos de bebê circulando nas calçadas que ligam os prédios ao parquinho. Lavadores de carro preocupados em não perder o ponto. Cachorros passeando em coleiras incômodas, farejando o sangue mal lavado no chão de concreto. E eu. Leite e pão na sacola ecológica que me descreve como pessoa evoluída.
O pensamento está em João e  Maria. Na estupidez da vida. Na rapidez da morte. Na crueldade da miséria. Que irmana assassinos e vítimas num mesmo script perverso.
Olho para o chão vazio onde os dois dormiam e me pergunto se eu poderia ter feito alguma coisa. Talvez. E me agarro a esse talvez com a complacência dos que sempre fogem. Entro no carro apressada. Pensando na briga que acabou matando os dois. Uma briga que nem era deles.
Não sei quem ficou com o cobertor.