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domingo, 25 de outubro de 2009

Conspiração ZHAARP (Big Bang Microcósmico- Capítulo 4)





- Não deixaremos que esta anarquia continue a assolar o mundo. - Diz um bigodudo senhor no meio da imensa mesa de sessenta lugares totalmente ocupados.

- De hoje não passará senhor Karl Mittali. Apresento-lhes o plano que nossas corporações deverão seguir.

Todos olham ansiosos para o grande holograma que surge no alto da mesa.

Eles sabem que representam as sessenta famílias que controlam toda a riqueza do planeta. Por isto agora seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Enquanto isso milhões de pessoas invadem ao mesmo tempo os gabinetes corporativos e governamentais. São os braços de três bilhões de sobreviventes que se organizam mundialmente através da Grande Rede. Nela deliberam regras para regular a desordem esgotadora de pessoas e natureza que perdurou por mais de cinco séculos.

Walton Lee Rockefeller prossegue:

- Vejam esta constelação de satélites ao redor da Terra. A maioria deles estão equipados com canhões Zhaarp. Se disparados em direção a todas as cidades da Terra, inutilizarão todos os equipamentos eletrônicos. Será o fim da Internet e com ela as mobilizações que atentam contra a liberdade dos empreendimentos.

- Mas sem Internet como ficarão nossos negócios? Se voltarmos à era do papel, dos contratos através de correios, nossos lucros cessarão. - Diz um gordo senhor.

- Muito simples, senhor Carl Johnson. A partir de amanhã passará a funcionar a mundial rede fotônica, única imune aos pulsos Zhaarp. Todas as nossas operações passarão a utilizá-la. Diferente da Internet baseada em eletrônicos e totalmente descontrolada, a rede fotônica (que utiliza somente raios luminosos) será centralizada e apenas os conteúdos que nos interessam trafegarão por ela. Devemos firmar agora o compromisso de que nossas Industrias nunca mais produzirão eletrônicos. Tiremos assim a ferramenta com que os baderneiros se mobilizam e retomaremos o controle do mundo, a tranqüilidade dos nossos negócios.

Todos aplaudem exultantes. Pequenos hologramas em frente de cada magnata coletam suas assinaturas biométricas. Cada corporação recebe uma parte a ser cumprida no plano. O grande holograma central se transforma em um imenso cronômetro em contagem regressiva mostrando o tempo inicial de seis horas, seis minutos e seis segundos.


http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com





sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Duetos Assassinos- Giselle Sato

Ela


Gosto de jogos, de riscos e rasgos. Tragos e traços em finais imprevisíveis.
Ser musa é o preço de viver através da eternidade.
Gostaria que houvesse um toque de poesia e requinte, uma pequena alusão ao belo que compõe o quadro imaginário.
Contudo, estou disposta a barganhar meus pequeninos luxos .
Imaginei uma cena mas bem sei o quanto gostas do grotesco, horrores que somente você consegue imaginar... E que te delicia não tanto quanto o calor do meu seio em tuas mãos, manchadas de dores e agonia.
Nascemos no mesmo dia, separados por minutos, em um parto maldito de uma carne morta. Desde sempre amaldiçoados, fomos separados, temidos e condenados. Você me trouxe de volta, e atravessamos o mundo dos vivos deixando um rastro de trevas.


Ele



Deitar contigo à luz da lua
Sob a lona que depois servirá de mortalha
Contando histórias, cantando, planejando

Transporemos essa muralha
Nosso brinquedo estará esperando
Primeira honra será sua. Sempre.

Alisarei os seus seios suavemente
Com uma mão, na outra o bisturi
Incisão inicial sob o pescoço frio

Minha mão no seu sexo, eu já sinto aqui
Brincando na umidade, entrando sem esforço
Lâmina deslizando lentamente

Pressiono-te contra mim, estou duro
Sua mão sobre a minha, no cabo da faca
Beijamo-nos enquanto o sangue jorra

Você desfaz meu cinto, meu pau como estaca
Penetra violento, como procurando desforra
Por algum mal, ou prejuízo prematuro


Animais no cio, e a vida sob improvisada cabana
Vai-se embora, atravessa para o além
Éramos três, somos agora um par

Gozamos, nos sentindo bem
Amamos, matamos, e voltaremos a amar
E a matar. Pois o sangue nos chama.

Ela


Olhos febris refletem medo e terror, perdem a inocência e odeiam.
O grito suspenso, que jamais será ouvido, morre no murmúrio da mulher encolhida e trêmula. O homem tenta proteger a amada, você não permite e mostra sua força. Ele cai muitas vezes e eu peço que não o mate. Ainda.
Abraço a pobre moça e aliso os cabelos em cachos perfeitos. Ela é bonita e jovem demais, percebo seu olhar e decido cortar cada fio. A tesoura vai e volta enquanto as mechas caem... Caem... Formando montinhos.
Pequenas gotículas de sangue escorrem, ela geme sob as cordas apertadas. A boneca de trapos levanta os olhos azuis e me encara com raiva. Sou a ultima imagem, antes que a lamina destrua a cor.
E assim seguimos, alguns nos chamam de monstros, outros de loucos e desalmados. Mas o que importa? Nossa essência é assim, mesclados em trevas, dores, agonia... Seguimos.


A história de Ana e Léo


Ana nasceu primeiro, um bebê forte e rosado. O vagido soou pelo casarão e reza a lenda que os, lobos na floresta, uivaram em uníssono. Meia noite e dois minutos após, Leonardo foi retirado a fórceps, o que lhe valeu a marca odiosa e disforme.

Não houve alegria, o luto fechado foi declarado ainda no leito empapado de sangue. Enquanto as empregadas corriam, providenciando calor e alimento para os pequeninos, o restante da família velava a morta. Não houve funeral aberto, apenas a mãe acompanhou a única filha à morada derradeira. Muitos atribuíram ao fato da moça ter aparecido grávida, o que levou a família a discrição e afastamento.

Nove anos depois, os gêmeos passeavam no pátio, havia sol e a tarde morna prometia calmaria. A avó materna assumiu os meninos e amaldiçoou cada momento após o ato precipitado. Calados e unidos, Ana e Léo viviam em um mundo à parte e não admitiam qualquer interferência. A velha senhora tentou de todas as formas criar algum vínculo com as crianças. Completamente ignorada, aos poucos desistiu e acostumou-se aos estranhos netos.

Ana falava e tomava todas as decisões, Léo seguia seus passos como uma sombra, silencioso e soturno. O frontal deformado, mal oculto pelos cabelos escuros, dava-lhe um aspecto maldoso e repugnante. Se uma criança poderia ser chamada de sebenta, assim era Léo... Sempre sujo e amarrotado, escondendo-se, esgueirando-se, espreitando e surgindo do nada. Possuía um odor característico, passava longo tempo nos pântanos e o lodo impregnou sua pele de tal forma, que era impossível não perceber sua chegada.

Ana, ao contrário, era de uma beleza instigante e quase hipnótica. Enormes olhos negros, contrastando com a pele claríssima e um sorriso permanente. A menina adorava fitas azuis e enfeites nos vestidos leves e claros. Vivia cercada de mimos e apenas a avó era reticente aos seus encantos. Desconfiava do contraste em que os gêmeos viviam, não gostava da risada aguda da neta.

No entanto, a velha senhora nunca contrariava ou impunha a disciplina necessária. Sentada na cadeira de espaldar alto, toda de negro em luto fechado pelas perdas sentidas, a idosa apenas observava. Em complacente e arrastada existência, passava os dias como se não fizesse parte de nada. Os empregados caminhavam pelo casarão na ponta dos pés, falavam baixinho, com medo de alguma ameaça invisível. Principalmente, todos tinham verdadeiro pavor da antiga cabana que as crianças haviam transformado em local de brincar.

Afastada da casa e isolada pela floresta, os meninos passavam todo o tempo livre na construção rústica. Mal terminavam as aulas, buscavam o refúgio e por lá ficavam o resto do dia. Com o tempo, Léo passou a dormir e fazer as refeições no local e quase não era visto na casa principal. A avó entendia o fascínio das crianças pelo brejo, local repleto de animais pestilentos e evitado por todos na região. Há tempos havia passado pelo mesmo problema com a mãe dos gêmeos. Se alguém atento prestasse atenção, teria notado o desaparecimento da primeira menina, quando os gêmeos completaram dez anos de idade. E com certeza, faria uma conexão com a data e outras vítimas. Infelizmente, não o fizeram... O tempo passou rápido, e todos os anos... Anjos partiam para cirandas eternas.


Crianças no jardim do Éden



''Amorais são pessoas que desconhecem as normas, neste caso, são culpados ou inocentes?''


Assistir Ana movimentando-se pelas ruas, os longos cabelos balançando ao sabor do vento, passos precisos e cadenciados... Era quase divino. Como se uma aura translúcida envolvesse a moça em mágica luminosidade. E Ana sabia disso, sempre sorrindo e com um leve movimento de baixar a cabeça, seguia seu caminho. Porte, atitude e afetuosidade, tornava cativos os maiores desafetos, cordeiros balindo atrás da pastora... Almas puras e crédulas.

Nesses momentos, quase ninguém percebia a presença do irmão gêmeo. Vigilante, seguindo de longe... Sempre. Quem o visse, virava a face, tamanho era o desleixo e feiúra. Cabeça de lua, cabeça de lesma e outras variantes, já não o perturbavam... Sabia dos apelidos, mas Ana havia dito que um dia, todos se arrependeriam. E Ana havia prometido nunca mentir para Léo, ela era o anjo que o protegia e amava.

Naquela noite, quase haviam brigado por causa do presente de aniversário. Cada ano a irmã ficava mais exigente e Léo não sabia dizer não. Eram meses de empenho, para que tudo saísse a contento:

- Esta noite, será a noite mais linda de todas. Dezoito anos e o inicio da nossa libertação. Teremos direito a herança, vamos viajar e conhecer muitos lugares. Ana abraçou o irmão e ele riu, escondendo o rosto nos cabelos da moça:

- Se você quiser, mas eu gosto de ficar aqui... É meu lugar. Eu e você não precisamos de outras pessoas.

- Não! Não fique preocupado, sempre estaremos juntos... Posso ver meu presente agora? Posso? Os olhos de Ana brilhavam.

- Venha comigo, mas não faça barulho. É uma surpresa.

Léo e Ana saíram de mãos dadas, atravessaram a ponte velha e tomaram a trilha da floresta. Com o tempo, a cabana da infância ficou pequena demais para as brincadeiras. Descobriram que os pais possuíam uma estância de inverno, esquecida e abandonada. Perfeita.

Aos poucos a trilha tornou-se mais fechada, Ana apertou a mão de Léo e sorriu. ‘’ Quase lá... Nosso cantinho perfeito ”... Léo beijou a mão pequenina e aspirou o perfume suave e doce. Mordiscou o pulso quase infantil, provocando um gritinho assustado, entrecortado de risadinhas nervosas.

Pararam em frente a grande porta de carvalho. Ana fechou os olhos, visivelmente excitada e inquieta. Ele sempre a guiava até o presente. Um ritual de amor e carinho que começava com um beijo doce e o velho sussurro: - Te amo, pequenina, feliz aniversário.

Entraram e imediatamente perceberam que alguma coisa estava errada. Ana arregalou os olhos buscando o irmão, enquanto a foice desceu em único golpe. O grito perdeu-se no ar e a moça recuou, o pano da saia branca empapada de sangue vívido. Os olhos acostumaram-se com a escuridão e os vultos tomavam forma e nome.

A avó e o velho jardineiro estavam parados talvez decidindo o que fazer com ela... Ana tentou ganhar tempo enquanto buscava alguma saída: - Ele me obrigou, eu não queria... Nunca quis. -Gritou acuada.

- Cínica. Mentirosa! Ele foi apenas um brinquedo nas suas mãos. Léo era um menino, apenas tinha a força. Tornou-se um monstro, matou demais... Para te agradar. Vocês me enojam, sempre grudados... Finalmente acabou!

- Não! Eu amava meu irmão, sempre o protegi de todos. Ele era inocente! Onde está a menina? – Ana sabia que Léo havia trazido uma de suas melhores amigas.

- Não se preocupe, já demos um jeito! Você enlouqueceu? Raptar a filha do prefeito foi muita ousadia. Claro que seria o presente perfeito para sua maioridade. Um verdadeiro crime de gente grande! Vocês são dois tolos, brincando e deixando cair os farelos no chão.

Ana observava a avó de uma forma diferente, aquela não era a senhora medrosa e frágil de sempre. Muito pelo contrário, Dona Augusta envergava uma roupa de caça antiga e elegante. Nas mãos, a espingarda pesada do falecido marido, homem famoso na região pelos troféus que enfeitavam as paredes do casarão.

Pela primeira vez, notou a semelhança entre ambas e o porte altivo e impactante. Aquela mulher podia convencer qualquer um a fazer o que quisesse. O magnetismo incomodava Ana, sentiu-se enjoada com os olhos frios da velha senhora.

O jardineiro jogou gasolina por toda cabana, o corpo do irmão decapitado foi arrastado até o meio da sala. Para espanto de Ana, um segundo corpo juntou-se ao do irmão. Era o da amiga, igualmente disforme, em grotesca parceria:

- O que fizeram com ela? Não era para ser desta forma!

- Ela sabia demais, infelizmente. Agora Ana, vamos começar a verdadeira brincadeira. Vamos retomar um velho hábito e ninguém melhor que você para iniciar. Daremos meia hora para que tome uma boa dianteira, depois vamos caçar... Lógico que não vai perguntar quem é a caça! - A velha nunca pareceu tão feliz, os olhos brilhavam de puro ódio.

- Podemos ficar juntas, não quero morrer deste jeito. Feito um animal. Somos parentes! Não entendo! - A expressão de pesar, o olhar perdido, eram perfeitos... Puros e convincentes.

- Claro que entende! Não há lugar, somos iguais e eu não vou arriscar. Anos e anos, cobrindo as bobagens que vocês dois faziam. Cansei. Além do mais, você há muito não sabe o que é ser humana. Um lindo e puro animal, correndo pela floresta, eis sua mais perfeita descrição. Um animal no cio, seguida por todas as criaturas que habitam aquelas paragens. Seres bestiais como você.

Ana entendeu que não podia perder mais tempo. Rapidamente refez suas rotas de fuga e deixou a cabana. Os irmãos contavam com o imprevisto e estavam preparados.

Havia a caverna com suprimentos alguns quilômetros rio acima. Calculou que podia chegar em dois dias de caminhada puxada. Correndo pelas trilhas, que apenas ela e o irmão conheciam, ainda tinha esperanças de escapar e quem sabe um dia... Retornar e matar a bruxa velha lentamente. Vingar o irmão da pior maneira possível, era seu maior desejo.

Sentiu saudades de Léo, a sombra protetora e amada. De agora em diante, sabia que estaria sozinha. Com todas as forças, Ana desejou Léo ao seu lado, nem que fosse uma única vez.

O céu fechou-se em cinza e a tempestade cobriu as montanhas. Em um segundo, fez-se noite e a mata silenciou. Uma névoa espessa vinha descendo, formando uma cortina impossível de transpor.

Um farfalhar de galhos sendo quebrados alertou que era seguida de perto. Ana apertou o passo, imaginando a avó chegando sorrateira... Atirando sem dó nem piedade. Na verdade, duas palavras que nunca significaram nada para os irmãos. Ouvidas incontáveis vezes, em meio aos gritos de dor...

Ana sentiu um puxão nos cabelos e parou. O corpo tremeu com o sopro gelado, um cheiro conhecido fez com que abrisse um sorriso e fechasse os olhos: - Léo! - Falou baixinho, e sentiu a boca deslizando em seu pescoço. Mãos fortes abraçavam... Afagavam... Traziam alento. Deixou que a sensação tomasse conta... Entregou-se ao sonho, ou o que fosse... Estava segura e calma.

Ele

Sigo teu cheiro, que me entranha a alma
E todos meus sentidos buscam teu calor
Somos parte do todo, únicos herdeiros
E jamais nos afastaremos, porque somos um.



Ela

Sem corpo, espaço ou tempo
Sem nada além do desejo urgente
Sem forças que o impeçam de vir
Sem leis, conceitos ou preconceitos.


O fogo alto parecia rugir enquanto a cabana queimava, estalando e soltando fagulhas e fumaça. Dona Augusta entregou a arma ao jardineiro, sentou-se em um tronco e por algum tempo rezou pela alma do neto. O homem truculento e de idade avançada ainda era forte no trato com os animais. Trouxe os cavalos e ofereceu ajuda à patroa: - Vamos pegar a trilha do rio, a menina não deve estar muito longe... Alcançaremos sem problemas.

- Não. Não para esta velha aqui, quero apenas que ela saia e só volte depois da minha morte. Estou cansada, precisava corrigir esta história e agora é o suficiente. Vamos tocar adiante e deixar o mundo e os antigos ensinarem Ana. Nosso clã está espalhado e alerta. Sempre haverá um de nós... Sempre.

O empregado assentiu com um leve movimento, imediatamente os cavalos tomaram a marcha em direção à fazenda. Léo fora um erro e Ana era melhor que o esperado. Dona Augusta sempre soube que a linhagem ficaria com o mais forte dos gêmeos. Só não contava com a simbiótica ligação. Foi preciso esperar a idade certa e, neste meio tempo, os meninos deram muito trabalho. Ana manipulou toda a força, usou o irmão e transgrediu regras e tradições.
Agora a maldita ligação estava desfeita. Mas jamais teria certeza. Não enquanto a neta estivesse viva.



Participação especial: Pedro Faria





quinta-feira, 22 de outubro de 2009

We'll always have Paris

Por Barbara Duffles

Cansada depois de um dia de caminhadas sob um sol seco, foi surpreendida pelos australianos, animados como cariocas. Uma volta em Montmartre? Oui, pourquoi pas... Andaram pelas ladeiras de paralelepípedos, comeram crème brûlée no café da Amelie Poulain, fotografaram e filmaram, como bons turistas que eram. Depois de visitarem uma loja de vinhos, cada um saiu com uma garrafa de dois euros na mão. Decidiram beber nas escadarias da Sacre-Coeur, importando-se menos com a arte sacra e mais com a deliciosa sensação de ter Paris aos seus pés. Sentados junto com eles, dezenas de jovens do mundo inteiro conversavam, emanando seus espíritos livres a ponto de dar inveja a Nietzsche. Uma chilena que havia morado em São Paulo. Um cubano tentando ser Che. Italianos, ingleses, americanos, brasileiros, fundindo seus mundos, deglutindo-se uns aos outros, entre goladas de vinho e tragadas entorpecentes.

Foi quando Clive, um simpático gordinho australiano de dentes infantis, aproximou-se e puxou assunto com ela. Começaram falando de vinho, depois de viagens, culturas estrangeiras, pinturas – ele disse que era pintor amador. Sensível e delicado, Clive também escrevia, desenhava e lia, lia muito. Ele falou de Thomas Mann. Ela falou de Gabriel Garcia Márquez e Rubem Fonseca. Trocaram emails, links de blogs. Sentiam-se velhos amigos. Na volta para o albergue, ele a fotografou vendo as estrelas. Sim, ele também fotografava. Dias depois, Clive seguiu para Londres e ela para Veneza. Trocaram alguns emails falando de suas viagens. Ele enviou as fotos do grupo na Torre Eiffel. O último email que ela recebeu dele era enorme, falava de Ingrid Bergman e sua famosa frase em Casablanca: We’ll always have Paris. Por falta de tempo, ela não o respondeu.

Meses depois, recebeu uma mensagem de Andrew, um dos australianos do grupo: Clive havia morrido de pneumonia. Triste, ela chorou toda uma tarde. Resolveu entrar no blog dele, tentando encontrar fotos da Cidade Luz. Seu coração quase parou quando viu, em um dos posts, uma imagem. Era uma pintura dela, sentada na porta do albergue, olhando as estrelas.

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Chaplins alucinados

Deita-se conformado. Mais uma noite de zumbido o espera, aquele vindo de dentro, ouvido sempre que se sente fora do eixo. Pensa que o barulho vem das traquitanas de seu cérebro, mexendo-se desconexas, como se chaplins escorregassem alucinados por suas engenhocas. Para lubrificar as porcas e parafusos, talvez leite quente dê cabo. Talvez cantar espante o zumzumzum. Pensa em Elvis, “Sweet Caroline”. Depois sussurra “Suspicious Minds”. Mas o Grande Ditador não deixa o Rei tomar conta, e intensifica os zumbidos. Pensa em apelar para comprimidos. Mas é tão medroso que prefere ficar na companhia de seus chaplins esquizofrênicos, desejando que eles sejam tão geniais quanto o bigodudo de bengala. Mas consciente de que são apenas reles peças dos Tempos Modernos.





terça-feira, 20 de outubro de 2009

12 de outubro sob ataque

Léo Borges

Era feriado, mas ainda assim algumas lojas abriram para que os atrasados pudessem comprar seus presentes do Dia das Crianças. E eu, nessa luta de última hora, também buscava uma pequena lembrança para meu sobrinho quando, no meio da correria, passei pelo Bar do Setembrino e vi um vulto familiar. Quem era? Ele mesmo: Rildo, o paladino das contestações. O ilustre bonachão, que já chegou até mesmo a sentenciar que no mundo a única Paz possível é a garçonete Jacimeire – cujo sobrenome é Francisca da Paz –, estava lá, escarrapachado em sua cadeira cativa, observando a efervescência das ruas.


Tendo como cenário a procissão de gente com suas sacolas de brinquedos, ele aguardava algum incauto para uma prosa – ácida, como de praxe. Ao vê-lo, ofereci-me como companhia efêmera, já que a tarde caía e eu ainda não havia comprado o presente.


– Jacimeire – chamou a garçonete ao perceber minha aproximação –, traz outra gelada pro camarada aqui!


– Obrigado, Rildo, mas já estou de saída. Ainda tenho que comprar alguma coisa pro meu sobrinho. Só parei porque, como você sabe, não abro mão de algumas palavras com o nobre amigo.


– Fique tranqüilo. Ainda faltam quarenta minutos para o comércio fechar – disse com seu jeito despachado, limpando o visor do relógio verde e branco que trazia no pulso. – Você sabe qual é a coisa mais importante neste feriado de 12 de outubro?


– O que é?


– Foi o dia em que me aposentei – disse rindo. – Feriado e dia útil pra mim agora é tudo igual: um deleite só! Aliás, esse negócio de dizer que dia útil são só os dias de trabalho sempre me desagradou, porque insinua que sábado, domingo e feriado são inúteis por definição, o que é um absurdo. É justamente nesses dias que o ser humano mais mostra sua utilidade: brinca, escreve, lê, namora, joga uma sinuca, conversa com amigos no bar...


– É, mas, além disso, há outros fatos importantes nesse dia, não acha? – provoquei.


– Sim, claro. É a data de fundação do Coritiba Futebol Clube, por exemplo. Pelo menos para o meu vizinho paranaense, que é fanático por futebol, hoje é um grande dia! Aliás, esse relógio com o escudo do Coritiba, que vive parando, foi ele que me deu – comentou, mexendo num dos botõezinhos do aparelho.


– Bom, isso até pode ser – falei, concordando com a brincadeira –, mas, na verdade, as pessoas se ligam mais nas três datas, digamos, de maior expressão nacional: o feriado pelo Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, o Descobrimento das Américas e o Dia das Crianças.


Rildo abriu um sorriso malicioso, bebeu de um gole quase meio copo de cerveja e começou o discurso que colocava todos esses acontecimentos de 12 de outubro na berlinda.


– Você sabia que o Brasil é um país laico? Significa que não temos uma religião oficial. Logo, como é que o poder público cria um feriado tendo como base uma data que festeja um ícone cristão? Essa incoerência abre precedente e outras religiões se legitimam a pleitear toda a sorte de homenagens. Adeptos do satanismo, inclusive, poderiam requerer um feriado para eles, por que não? O Dia do Encontro com o Demônio, por exemplo. Ah, e os ateus também seriam contemplados com algo como O Dia Nacional da Não Crença em Deus. Diante dessa imprudência legislativa, isso me parece bastante plausível.


Desconfortado com o comentário, bem típico dele, dei uma tossida e falei:


– Há o Natal, um feriado de origem cristã que é mundialmente instituído.


– A origem pode até ser essa, mas pergunte a qualquer menino qual a lembrança que lhe chega à mente no dia 25 de dezembro? Algum fato relacionado ao cristianismo ou o famigerado Papai Noel da loja de videogames? Por outro lado, poderiam criar também uma série de feriados mundiais pelos nascimentos de Sidarta Gautama, de Allan Kardec, de Maomé, entre outros. Assim, para felicidade geral, os perniciosos “dias úteis” iriam quase sumir – disse, prendendo a gargalhada. – Sei que algumas datas religiosas movimentam o comércio, mas é um contrassenso e um desrespeito atrelar questões mercantis à fé.


– O feriado do dia 12 de outubro seria mais apropriado, então, se fosse por causa do Descobrimento das Américas?


– Na verdade, as Américas foram descobertas muitíssimo antes do dia 12 de outubro de 1492. O que hoje é propagado não passa de um eurocentrismo que até fica bonitinho em livros escolares, mas que não condiz com a realidade. Quando os europeus chegaram, já existia aqui uma população de milhões de ameríndios com seus costumes e línguas. Então, tal ‘descoberta’, incluindo aí a de Cabral oito anos depois, deveria ser compreendida como uma simples visita, inesperada como se vê, de um povo a outro, mas jamais como uma colonização e muito menos como uma conquista. No entanto, os galegos trataram os silvícolas como uma espécie de sub-raça, impondo credos e levando toneladas de madeiras e minérios em troca de bugigangas. Eu imagino como deve ter sido constrangedora a tal primeira missa dos lusitanos na Terra de Santa Cruz: uma sisuda solenidade cercada por uma multidão de índios pelados! – ria.


– Cuidado com o que diz. O seu Setembrino é português, hein... – alertei.


– Bom, nesse bar eu também sou explorado: olha o preço da cerveja! Mas esse delicioso bolinho de carne seca compensa... – disse, degustando o petisco. – Se o portuga resolver me catequizar, faço um escambo e levo a Jacimeire em troca do meu relógio do Coxa¹ – brincava, piscando tanto para o simpático seu Setembrino quanto para a solícita garçonete.


Mas, e o Dia das Crianças? Até este ele conseguiria colocar sob fogo cruzado?


– Datas com comemorações específicas, como Dia das Crianças, Dia dos Pais, Dia das Mães e Dia dos Namorados, realmente nasceram inocentes e bem intencionadas. Mas, aos poucos, foram ganhando um viés comercial e ficando sem alma, de modo que, infelizmente, dar presente se tornou mais importante do que estar presente. E isso tudo sem falar em anacronismos como o tal Dia do Índio. Nesse dia, as crianças da cidade se pintam e dançam. Mas ninguém lhes diz que, atualmente, índio de verdade é coisa raríssima. Os que não foram dizimados viraram uma espécie híbrida e agora vivem juridicamente como peles-vermelhas, mas, de fato, como autênticos caras-pálidas.


Para Rildo todos esses dias chamados “especiais” se transformaram em estratagemas peçonhentos para que pudéssemos sustentar o verniz social do politicamente correto e, de quebra, gastarmos nosso dinheiro com quinquilharias.


– Como artimanha para a obtenção de lucro isso já seria algo questionável, mas a coisa é ainda mais ardilosa: passaram a servir como uma resposta picareta e debochada às necessidades das pessoas. Amar e fazer algo de bom deveria ser um padrão diário, uma rotina, mas restringiram isso a datas hipócritas, como, por exemplo, o intragável Dia Mundial da Paz. Argh! – completou, apertando o nariz como se algo cheirasse mal. Realmente, para alguém que não crê na viabilidade da Paz, esse dia deveria mesmo soar como pilhéria.


O velho boêmio revelou que sempre presenteava os filhos com critérios diferentes daqueles determinados pela sociedade.


– Eu nunca obedeci a esses cronogramas. Mimava quando queria ou quando achava que mereciam. Quando chegava o Dia das Crianças, eu não presenteava. Nem no Natal. Me chamavam de sovina e até de pernóstico. Antes isso do que escravo dessa sórdida obrigação de se adequar ao supérfluo consumismo datado. E não tive problema com a criação de nenhum dos guris. Hoje meus netos têm tratamento semelhante e gostam.


É. Um diálogo com Rildo sempre mostra uma maneira insólita de se enxergar o mundo. Mas, na qualidade de integrante da tal “sociedade de consumo”, perguntei pelas horas, já que as lojas estavam fechando e meu sobrinho iria acabar ficando sem ganhar nada.


– Ih, amigo! Os ponteiros estão parados! Certamente já passou das seis e aqui ainda está marcando cinco e cinquenta... a culpa foi minha por te prender a papo tão utópico – falou mexendo no relógio. – Acho que você não vai mais encontrar nenhuma loja aberta.


– Tranqüilo. Dou um abraço nele como presente. Se você me fez enxergar que objetos nessa data não são tudo, acho que ele também pode entender.


– Leve para o seu sobrinho – disse Rildo tirando o relógio do pulso e me entregando. – É só trocar a bateria que volta a funcionar. Para ele se orgulhar, diga que o Coritiba foi campeão brasileiro de 1985. Só não sei se também foi no dia 12 de outubro.


­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­¹ - Coxa no masculino e com letra maiúscula por se tratar da alcunha do time do Coritiba.





segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Caminhos para o autor independente

(Este é o terceiro artigo de uma série sobre publicação independente na era digital. Para ler o primeiro texto: Publicação independente ontem e hoje, e o segundo texto: Os desafios da autopublicação)

Nos artigos anteriores sobre publicação independente, já expressei muito claramente o que é, para mim, o principal caminho para o autor independente hoje: a internet.
Publicar e divulgar seus trabalhos literários através da internet é o modo mais barato e eficaz para chegar aos leitores. No entanto, esta não é a única possibilidade, apesar de hoje ser quase inevitável a utilização da rede, em alguma etapa do processo de autopublicação.
Basicamente, há quatro opções principais para o autor independente publicar suas obras: 1 – impressão off-set; 2 – impressão digital; 3 – blog ou sítio literário; e 4 – livro eletrônico.

1 – impressão off-set
Não entraremos nas especificidades técnicas do processo de impressão off-set (principalmente porque não me sinto apto a explicá-las), mas o importante é saber que a escolha por este método dependerá da tiragem desejada para o seu livro.
A impressão off-set só compensa para tiragens superiores a mil exemplares, aliás, muitas gráficas nem aceitam encomendas para tiragens menores. O valor unitário do livro em off-set, em preto e branco, costuma ficar em torno de 3 ou 4 reais, mas pode sair mais em conta para tiragens mais altas, ou seja, para mil exemplares esteja preparado para desembolsar uns 4 mil reais, incluindo, às vezes, a diagramação.
Vale lembrar que este tipo de impressão só vale a pena caso o autor já tenha um número razoável de leitores (i.e. compradores) e um local para armazenar os livros. Vender mil livros no Brasil não é nada fácil e nem sempre aquelas pessoas com as quais contamos — parentes e amigos — comprarão um exemplar.
Até poucos anos atrás, esta era a única alternativa existente para um autor independente, o que dificultava bastante a vida pelo alto custo da impressão e pelas centenas de exemplares encalhados em casa.
Para quem pretende publicar deste modo, é fundamental fazer uma boa pesquisa, solicitar orçamentos e, se possível, conversar com autores que já tenham publicado através da gráfica consultada e conferir a qualidade da impressão e acabamento dos livros.

2 – Impressão digital
O processo de impressão digital se aproxima mais do que estamos habituados com a nossa impressora doméstica, resguardando as diferenças de processos e qualidade, com a impressão feita sem a necessidade de fotolitos, como ocorre no caso da impressão off-set.
A grande vantagem da impressão digital é a possibilidade de se imprimir tiragens menores, às vezes de um único exemplar, com um custo relativamente baixo. Há algumas críticas em relação à qualidade da impressão, mas acredito que seja algo pouco distinguível para o leitor leigo e que não afete a leitura.
O autor pode optar por uma gráfica e encomendar tiragens menores, como 100 ou 200 exemplares, ou por uma editora sob demanda, que imprimirá apenas os exemplares encomendados por leitores. Desta maneira, o autor se livra de altos custos iniciais e de pilhas de livros empoeirando no quarto.
No entanto, mesmo assim, uma tiragem de 100 exemplares pode chegar a custar uns 600 reais, já que o preço unitário é um pouco maior do que no caso da impressão off-set. Já no caso de editoras sob demanda, existe um vasto rol de opções e pacotes, desde editoras que não cobram nada, ou muito pouco, para inserir o livro no catálogo, até outras que chegam a cobrar até mais do que custaria uma tiragem off-set. Novamente, uma boa pesquisa é crucial para não cair numa furada.

3 – blog ou sítio literário
Ao contrário dos dois itens anteriores, publicar um blog ou num sítio literário costuma ser de graça.
O blog como conhecemos hoje surgiu em 1998, inicialmente como uma espécie de diários abertos ao público na internet. A primeira reação foi de repúdio, considerando este como um fenômeno adolescente passageiro. Contudo, após o surgimento de vários blogs de influência em 2000 e 2001, a mídia e a crítica começaram a rever o papel dos blogs na cultura digital. Hoje, praticamente quase todo grande veículo de comunicação mantém um ou mais blogs, e dezenas de milhares são criados todos os dias.
A grande vantagem do blog, e este é um dos segredos da imensa popularidade, é a facilidade da interface para publicação e atualização de conteúdo. Com um mínimo de conhecimento de informática, é possível criar uma conta num dos vários provedores de blogs e começar a publicar.
Esta é uma ferramenta que tem sido usada por escritores desconhecidos para dar visibilidade a suas obras, ou para escritores já consagrados manter um contato mais próximo com seus leitores.
Ressalto que este é um instrumento de comunicação que não pode ser desprezado e, por mais que passe por muitas mudanças no futuro, acredito que redefinirá a nossa noção de cultura e contato com os leitores.
Além deste recurso, há vários sítios literários que agregam textos e autores, e que propiciam troca de experiência entre seus participantes e servem de vitrines literárias. Todavia, na minha opinião, estes sítios tendem a servir mais como comunidades de escritores do que uma via de acesso aos leitores, o que não diminui a importância deste tipo de relacionamento.

4 – livro eletrônico
Não sabemos qual será o futuro do livro eletrônico, ou e-book.
Significará o fim do livro impresso? Conseguirá sobreviver à crise do copyright? Finalmente popularizará a leitura entre os brasileiros?
São questões sem resposta, por enquanto. No entanto, para o autor independente, ao lado dos blogs, é a maneira mais barata para conseguir se publicar um livro e talvez ser lido por alguém.
Estatísticas do ano passado, no mercado editorial norte-americano, indicam que houve uma queda significativa nas vendas de livros (algo em torno de 15%), enquanto que as vendas de livros eletrônicos quintuplicaram. Isto pode insinuar duas coisas: a) que o livro eletrônico está realmente começando a se popularizar, graças aos preços mais baixos e à proliferação de dispositivos eletrônicos, como celulares, palm-tops e leitores de e-books, e por isto está se consumindo mais, ou b) que o mercado tem começado apenas agora a investir neste nicho e o crescimento só reflete este influxo inicial de consumidores que estão migrando do livro impresso para o digital.
A vantagem do livro eletrônico é que ele pode ser diagramado em programas simples, como o Microsoft Word, e facilmente convertido em .PDF através de programas baixados gratuitamente na internet.
Um autor que já possua um pequeno público leitor chegará sem dificuldades a 200 ou 300 downloads, se o livro for distribuído gratuitamente, ou até venderá alguns exemplares se o preço unitário for razoavelmente baixo. Tudo isto a custo zero.

Conclusão
Estas quatro alternativas já representam um grande passo para o autor independente, que encontra na internet uma inestimável aliada na hora de divulgar e distribuir sua produção literária.
Obviamente que, ao mesmo tempo em que a publicação digital facilita a vida do autor, ela também dificulta a visibilidade, já que um número muito maior de autores também competirão por seu lugar ao sol.
Por isto, o fundamental é, antes de tudo, um bom conteúdo, uma boa apresentação gráfica e um dedicado trabalho de divulgação.
No entanto, nada disto é garantia de sucesso, mas é um ótimo começo.

ALGUMAS RECOMENDAÇÕES
Editoras sob demanda e/ou impressão digital no Brasil
Grupo Editorial Scortecci
http://www.scortecci.com.br/home.php

Fábrica de Livros
http://www.fabricadelivros.com.br/home.php

Clube de Autores
http://clubedeautores.com.br/

Editoras sob demanda/e ou impressão digital no Exterior
Lulu
http://www.lulu.com/

Café Press
http://www.cafepress.com/cp/info/sell/books.aspx

XLibris
http://www2.xlibris.com/

Bubok
http://www.bubok.pt/

IUniverse
http://www.iuniverse.com/

Sítios Literários
Espaço da Escrita
http://www.espacodeescrita.web2logy.com/

Recanto das Letras
http://recantodasletras.uol.com.br/

Serviços de blog
Blogger
http://www.blogger.com/home

Wordpress
http://wordpress.org/

LiveJournal
http://www.livejournal.com/





domingo, 18 de outubro de 2009

Eu não gosto de ninguém da América do Sul!

Léo Borges
Minha sogra quer porque quer me fazer acreditar no diabo. Ela diz que o diabo existe e que precisamos acreditar nele e em suas maldades. Mais do que isso, ela também quer me fazer crer no inferno, de preferência o bíblico, já que eu, como policial, penso que o verdadeiro inferno seja a prisão. Com empedernida fé, ela não admite que eu não creia no reverso de Deus (e nem em seu habitat), o que, desta maneira, comprometeria a utilidade Deste. Afinal, como Deus poderia existir se não houvesse o Seu oposto?


Um amigo concordou no que se refere à existência do inferno factual. Ao saber da característica de firme crença em figuras bíblicas por parte da mãe de minha esposa ele asseverou que qualidades como “sogra” e “ortodoxia religiosa” não poderiam – de forma alguma – coexistir em uma mesma pessoa. Caso contrário, isso seria, necessariamente, o inferno. Trata-se, claro, de um bem-humorado exagero, até porque, ainda que minha sogra evidencie seus dogmas cristãos, o sadio bom senso prevalece e nosso convívio não é afetado por nada além de subsídios que, eventualmente, ela me propicia como ponto introdutório a crônicas vadias.


E servindo-me desses subsídios, lembrei-me do ocorrido numa certa meia-noite de um certo sábado. Estava esboçando um artigo no computador quando recebi a chamada no celular para cuidar de um detento que havia caído no banheiro da cela. Eu era o agente responsável pelo que viesse a ocorrer naquela madrugada e, por isso, fui encarregado de levá-lo, junto com outro colega acionado, para o prontossocorro. O sujeito parecia ter sofrido uma luxação na clavícula e não conseguia mexer um dos braços. No trajeto, o discurso de sempre: que os políticos também roubam e não estão presos; que não merecia punição tão rigorosa, pois não matou e nem estuprou; que o que fez foi apenas para não deixar a família passar fome. Tudo entremeado pelos tradicionais ruídos de sirene e gemidos.


Até então eu nunca havia estado no São Lucas, hospital público de Vitória. Ao entrarmos, deparei-me com o local de sofrimento máximo de que minha sogra tanto falava. Eram dezenas de pessoas – muitas deitadas em macas e outras, menos afortunadas, em colchonetes espalhados pelo chão – murmurando dores lancinantes. Algumas não tinham força para gemer e apenas se retorciam, mas todas possuíam semblantes que oscilavam entre angústia e desespero. Atropelados, baleados, esfaqueados, queimados, mutilados, drogados, parentes aflitos, amigos tensos, médicos atordoados. Era um cenário desconcertante. E o ombro do nosso preso transformou-se em um problema menor. O vigilante comentou que todo dia era mais ou menos aquilo, mas que no fim-de-semana o panorama se agravava. Data em que as pessoas saem, se embebedam, brigam, dirigem alcoolizadas, e, por fim, transformam o lugar de frios azulejos brancos em algum tipo de inferno.


Após a análise da radiografia, que demorou quase uma hora para ficar pronta, um dos médicos recomendou imobilização da clavícula, que apresentava discreta fissura. O problema, a partir daí, começou com a ausência do gesseiro. Mantivemos prontidão na porta da sala de gesso, onde algumas outras pessoas também o esperavam.


O diapasão lamuriento era a principal fonte sonora do lugar, porém, era vencido constantemente por gritos desconexos e esporádicos vindos da ala da psiquiatria. Percebi que aquele setor possuía uma peculiaridade que fugia à lógica. Apesar de poucos, os pacientes de lá não mostravam tristeza pelo mal que os acometia, mas um nervosismo agudo, uma loucura que não compactuava com o mórbido padrão passivo de todos. Eles não aceitavam estar no inferno sem alguma resistência.


– Vamos embora, Valtinho. Vamos embora daqui – passou falando alto um rapaz dos seus vinte e poucos anos, se evadindo da sala do psiquiatra, que, assim como o gesseiro, também estava desaparecido. Sua voz estava tão perdida quanto seu olhar.


O jovem, magro, olhos fundos, cabelo desgrenhado, trajava camisa branca surrada, calça jeans e chinelo. Possuía pequena barbicha a qual coçava repetida e nervosamente. Viu-se que Valtinho era a pessoa que o acompanhava e que tentava limitar seus atos. Mantinha um sorriso de constrangimento, como se quisesse dizer “ele está com problemas mentais, desculpem-no”. O rapaz não sabia onde estava e nem que, provavelmente, iria ficar internado. Liberto das mãos de Valtinho, voltava a andar de um ponto ao outro do extenso corredor ponderando ora sozinho, ora com o acompanhante.


– Tá trancado lá, Valtinho! Não tá aberto não!


Algumas pessoas procuravam se esconder como se ele representasse um perigo real, como se a qualquer momento ele fosse deflagrar uma guerra contra tudo a sua volta.


– Piranha! Piranha! – gritou para algum ente imaginário. Pôs as mãos na cabeça e se sentou. De quem estaria falando? Certamente não se referia a uma garota com uma minissaia rota que perambulava entre nós com a boca inchada e os olhos roxos, já que ele enxergava as pessoas com homogênea singularidade. Acredito que tenha sido para sua consciência mesmo, que aos poucos se vendia, aceitando que não poderia fugir daquele circo dos horrores. Valtinho via que preso à irresponsabilidade de alguém o jovem estava e que preso ficaria, refém que era da omissão da rede pública hospitalar. Todos, doentes ou não, eram detentores da mesma impotência daquele condutor, que procurava apenas cumprir – sem vexame – seu único objetivo dentro daquele asfixiante lugar: acalmar o subversivo jovem.


Como a situação ganhava contornos apocalípticos, fez-se um movimento para que algum sedativo fosse arrumado às pressas. Sem aviso, o protagonista da noite se levantou e iniciou outra vertiginosa incursão pelo corredor, cruzando as macas com desprezo quase agressivo.


– Eu não gosto de ninguém da América do Sul! – bradou.


Aquela frase me intrigou muito. Sem um raciocínio equilibrado, o que o levaria a decretar raiva a todos os habitantes de um imenso continente? Bom, todos ali éramos da América do Sul, crescemos na América do Sul e vivíamos na América do Sul. Mas em sua ótica não havia mais diferença entre o preso e o policial, o médico e o paciente, a enfermeira e a puta, o maluco e o são, afinal, todos eram sul-americanos e, portanto, pertencentes à sua lista de odiados. Com os gritos, um homem literalmente amarrado numa das macas começou a se remexer, contraindo os músculos e comprimindo os olhos, parecendo querer nos mostrar os reais efeitos da cocaína. Toda sua triste performance, entretanto, não o livrava de ser também uma persona non grata.


– Eu não gosto de ninguém da América do Sul! – repetiu com olhar sem rumo.


Conseguia passar medo com o tom de voz estridente, fazendo com que um ou outro procurasse se espremer atrás de nós, acreditando que armas pudessem confortá-los diante daquela loucura ameaçadora. Era curioso, pois, por mais desvairada que fosse a declaração, ao ser feita aos berros ela se revestia de uma sinceridade visceral. E exteriorizada daquela forma, por aquele emissor e naquele ambiente, gerava grande pavor.


Eu tentava imaginar: estaria ele realmente indignado com a miséria boliviana? A corrupção paraguaia? A insensatez venezuelana? A indiferença chilena? A soberba argentina? A guerrilha colombiana? O opróbrio brasileiro? Não se sabe. A única certeza era que a passividade dos pacientes, dos familiares, dos médicos e dos policiais não fora abalada. Mesmo diante de tão incisiva afirmação, continuamos como os inertes espectadores que éramos, já que ninguém demonstrava sentir o menor dos ódios contra o descaso estatal.


O retrato da saúde sucateada era emblemático e, por isso, palavras ensandecidas como aquelas serviam como um resumo geral, uma síntese consistente do melancólico cenário institucional latino-americano. O sistema, sem um culpado visível, mostrava a consequência de sua sujeira e de seu descompromisso. Mas alguém havia se rebelado. Um paciente da ala psiquiátrica decretou que não gostava de ninguém da América do Sul – o inferno do populismo e da demagogia – e isso incomodava.


Essas palavras devem ter mexido de forma definitiva com os brios patrióticos de alguns enfermeiros que, com alguma truculência, enfim, o sedaram. Sem mais alvoroço, o jovem caiu calado, com o corpo torto num banco manchado de mercúrio. Engessamos o preso e fomos embora. O psiquiatra, pelo que ouvi, ainda levaria mais algumas horas para chegar.





Quem é você, quem sou eu?

Por Ju Blasina

Adulta jovem, humana, gaúcha, virginiana, casada, chocólatra, escritora... Até alguns dias atrás, pensava eu que estas características poderiam brevemente me definir em palavras. Pois não é que eu estava redondamente enganada? Recentemente descobri que podemos ser muito mais do que ousamos imaginar. Quer saber como? Eu explico, mas aviso de antemão: fujam enquanto há tempo, pois o hábito que eu lhes apresentarei é extremamente contagioso e viciante!

Quando eu era menina, a moda era o “questionário” (perguntas escritas em um caderno passado de mão em mão; jogo semelhante a um censo de informações pessoais trocadas entre os amigos), depois vieram os testes de revistas femininas e agora isso: O quiz virtual.

Quiz, nada mais é que o nome dado àqueles testes aonde, através de uma série de perguntas e respostas, chegamos a um resultado surpreendente, como por exemplo: se “ele/ela beija bem”, se “você é econômico” ou “que fruta você seria”. Sim, informações de “extrema relevância”. Hoje em dia, munido de um computador ligado à internet, um pouco de paciência e muita falta do que fazer, você pode descobrir tudo o que não sabia sobre si mesmo, como que música, livro, animal, artista, personagem, pecado capital, cor ou “seja-lá-o-que-mais” você é ou poderia ser.

E você aí achando que sabia alguma coisa sobre si mesmo, hein? Pois é, eu também. Não sei como pude viver até hoje sem todas essas informações... Descobri que sou “o número sete, a luxúria, as Antologias Poéticas de Carlos Drummond Andrade , A bela e a fera” e mais: descobri ainda que não vou “pegar” a gripe suína (Influenza A, H1N1) — Pasmem! Abençoado seja o cidadão que criou este último quiz!

Ah, se a vida fosse assim, tão fácil, não é mesmo? Talvez exatamente pelo fato dela não o ser é que perdemos tanto tempo buscando respostas para as mais diversas (e por vezes desnecessárias) perguntas. Passamos a vida nos questionando sobre quem somos e como as outras pessoas nos vêem. Sobre o que fizemos e o que faremos. Sobre qualquer coisa que ilumine um pouco o caminho que nos leva ao misterioso dia de amanhã. Respostas estas que certamente não estão no fantástico mundo do quiz virtual, por mais divertido que ele possa se mostrar.

E por que será que nos parece tão mais divertido ser qualquer outra coisa senão aquilo que já somos e bem sabemos? Talvez exatamente por “bem sabermos” — o sabor da vida está no mistério — são as dúvidas que nos movem, enquanto indivíduos e sociedade. Se tivéssemos todas as respostas, não iríamos à parte alguma! Não somos diferentes do cachorro que persegue a roda: o que fazer quando alcançá-la? Provavelmente parar de correr, ao menos até o surgimento de uma nova roda.

“A curiosidade é a mola propulsora do intelecto, mãe da descoberta” e razão para o sucesso destes jogos de adivinhação. Não é de hoje que profecias — verdadeiras ou falsas — fazem sucesso (Nostradamus, Walter Mercado, Mãe Dináh e o horóscopo nosso de cada dia, não me deixam mentir). Cada um de nós procura suas respostas aonde nos parece mais adequado. Alguns se voltam para a fé, outros para si mesmos e há ainda aqueles que preferem responder a toneladas de quiz. E quem somos nós para criticar?

Independente do caminho que lhes convém, mais importante que encontrar as respostas é seguir fazendo as perguntas. Por isso eu lhes deixo uma:
“Se você fosse uma resposta, qual seria a sua pergunta?”
Será que isso daria um bom quiz?





sábado, 17 de outubro de 2009

Carta de Cristóvão Colombo anunciando o descobrimento da América

Cristóvão Colombo
Trad.: Henry Alfred Bugalho

Senhor, porque sei que terá prazer na grande vitória que Nosso Senhor me concedeu em minha viagem, escrevo-lhe esta, pela qual saberá como em 33 dias passei das ilhas de Canária para as Índias, com a armada que os ilustríssimos rei e rainha nossos senhores me concederam, onde encontrei muitas ilhas povoadas com gente sem número; e de todas elas tomei posse por Sua Alteza com pregão e bandeira real estendida, e não me contradisseram.

À primeira que encontrei, nomeei San Salvador (ilha Watling) em comemoração a Vossa Alta Majestade, ao qual maravilhosamente tudo isto se deve; os índios a chamam de Guanahaní; à segunda pus o nome de ilha de Santa Maria de Conceição (Cayo Rum); à terceira de Fernandina (Isla Long); à quarta de Isabela (Isla Crooked); à quinta de ilha Juana (Cuba), e assim a cada uma um novo nome.

Quando cheguei à Juana, segui pela costa dela em direção ao poente, e a achei tão grande que pensei ser terra firme: a província de Catayo. E como não encontrei vilas e povoados na costa do mar, excetuando pequenas povoações, com gente com a qual não se podia falar, porque logo fugiam todos, andava eu adiante pelo dito caminho, pensando em não errar grandes cidades ou vilas; e, a cabo de muitas léguas, visto não haver novidades, e que a costa me levava a setentrião, contrário à minha vontade, porque o inverno já estava encarnado, e eu tinha o propósito de ir ao austro, e também o vento me deu adiante, decidi não aguardar mais, e retornei até um porto assinalado, de onde enviei dois homens por terra, para saber se havia rei ou grandes cidades. Caminharam por três jornadas, e encontraram infindas povoações pequenas e gente sem número, mas não coisa de regimento; por isto voltaram.

Eu havia aprendido muito com outros índios, que já havia dominado, que esta terra era uma ilha, e assim segui a costa ao oriente cento e sete léguas até onde acabava. De onde vi outra ilha ao oriente, distante desta dezoito léguas, à qual logo pus o nome de a Espanhola e fui para lá, e segui a parte setentrional, assim como de Juana ao oriente, 188 grandes léguas por linha reta. Juana e todas as outras são fertilíssimas em grande grau, e esta ao extremo. Nela, há muitos portos na costa para o mar, sem comparação, que eu saiba, a outros entre os cristãos, e rios fartos, bons e grandes, que são maravilhosos. Suas terras são altas, e nela há muitas serras e montanhas altíssimas, incomparáveis às da ilha de Tenerife; todas belíssimas, de feições, e todas acessíveis, e cheias de altas árvores de mil espécies que parecem chegar ao céu; e ouvi dizer que jamais lhes caem as folhas, segundo pude entender, pois as vi tão verdes e belas como são em maio na Espanha, e estavam floridas, com frutos maduros, ou em outros estágios; e, no mês de novembro, cantava o rouxinol e outros passarinhos de mil espécies por ali onde eu andava. Há palmeiras de seis ou oito tipos, que são admiráveis de ver, pela bela deformidade delas, assim como há outras árvores, frutos e ervas. Nela, há maravilhosos pinhais e vastíssimas campinas, e há mel, muitos tipos de aves e frutas as mais diversas. Nas terras, há muitas minas de metais, e há gente em número estimável. A Espanhola é maravilhosa; há serras, montanhas, várzeas, campinas, e terras belas e férteis para plantar e semear, para criar gados de todas as sortes, para edificação de vilas e povoados. Só se crê nos portos de mar daqui ao vê-los, e nos rios vários e grandes, e nas águas salubres, a maioria dos quais traz ouro. Há grandes diferenças nas árvores, frutos e ervas desta e as de Juana. Nesta, há muitas especiarias, e grandes minas de ouro e de outros metais.

As gentes desta ilha e de todas as outras que encontrei e das quais tive notícia, andam todas desnudas, homens e mulheres, assim como as mães os parem, ainda que algumas mulheres se cubram num único lugar com uma folha de erva, ou uma coberta de algodão feita para isto. Eles não têm ferro, nem aço, nem armas, nem palavra para isto, não porque não sejam gente de boa constituição e de bela estatura, mas porque são medrosos ao extremo. Não têm outras armas, excetuando armas de canas, quando estão com a semente, nas quais põem no fim um palito agudo; e não ousam usar delas; pois muitas vezes ocorreu de eu enviar à terra dois ou três homens a alguma vila, para travar diálogo, e dar com um sem número deles; e ao vê-los chegarem, estes fugiam de tal maneira que o pai não esperava o filho; e isto não porque alguém lhes tenha feito mal antes, pois por onde estive e pude travar contato, havia dado a eles tudo que tinha, assim como tecidos e outras muitas coisas, sem receber deles coisa alguma; mas são medrosos assim sem remédio. Verdade é que, depois que se certificavam e perdiam o medo, eles eram tão sem malícia e eram tão liberais com o que têm, que não creríeis sem o ver. Das coisas que eles têm, pedindo-se-lhas, jamais dizem não; pelo contrário, convidam a pessoa consigo e demonstram tanto amor que dariam os próprios corações, e quer seja algo de valor, ou seja coisa de pouco preço, trocam logo por qualquer outra coisinha, de qualquer maneira, que eles se vão contentes. Eu defendi que não lhes dessem coisas tão reles, como pedaços de caldeirões furados, ou pedaços de vidro quebrado, ou alfinetes, pois quando eles recebiam isto, para eles parecia ser a melhor joia do mundo. Ocorreu haver um marinheiro que recebeu, por uma ponta de cadarço, o equivalente ao peso de ouro de dois castelhanos e meio; e outros, de outras coisas que valiam muito menos, muito mais; já por moedas de prata davam tudo que tinham, mesmo que fossem dois ou três castelhanos de ouro, ou uma arroba ou duas de algodão. Até os pedaços de arcos quebrados dos barris eles aceitavam, e davam o que tinham como animais; assim isto me pareceu mal, e eu o defendi, e eu dava com alegria mil coisas boas, que eu levava, para que se afeiçoem, e que, além disto, se tornem cristãos, e se inclinem ao amor e serviço de Suas Altezas e de toda a nação castelhana, e procurem juntar e nos dar as coisas que têm em abundância e que nos são necessárias. E eles não conheciam nenhuma seita nem idolatria, excetuando que todos acreditam que o poder e o bem estão no céu, e tinham a firme crença que eu, com estes navios e pessoas, vinha do céu, e nesta suposição me recebiam em todos os cantos, depois de terem perdido o medo. E isto não ocorre porque sejam ignorantes, pelo contrário, são homens de muito sutil engenho e navegam todos aqueles mares, e é de se maravilhar a boa conta que eles têm de tudo; excetuando que nunca viram gente vestida, nem navios semelhantes.

E logo que cheguei às Índias, na primeira ilha que encontrei, tomei por força alguns deles, para que aprendessem e me dessem notícia do que havia naquelas partes, assim foi que logo nos entenderam, e nós a eles, fosse por língua ou sinais; e isto foi de muito proveito. Hoje em dia, trago-os comigo, mesmo que eles ainda acreditem que venho do céu, apesar de muita conversa que travaram comigo; e estes eram os primeiros a anunciar, onde quer que eu chegava, e os outros andavam correndo de casa em casa, e até as vilas próximas, com vozes altas: Venham, venham ver a gente do céu; assim, todos, tanto homens quanto mulheres, depois de perderem o medo da gente, vinham, adultos e crianças, e todos traziam algo de comer e beber, que davam com um amor maravilhoso. Eles têm em todas as ilhas muitas canoas, como as fustas de remos, algumas maiores, outras menores; e algumas são maiores do que uma fusta de dezoito bancos. Não tão largas, porque são de uma tora única; mas uma fusta não compete com elas ao remo, porque são velozes que não dá para acreditar. E com estas navegam todas aquelas ilhas, que são inumeráveis, e comerciam suas mercadorias. Vi em algumas destas canoas 70 e 80 homens, e cada um com seu remo.

Em todas estas ilhas não vi muita diversidade na feição das gentes, nem nos costumes ou na língua; salvo que todos se entendem, que é coisa muito propícia para a determinação de Suas Altezas para a conversão deles à nossa santa fé, para a qual são muito dispostos.
Já disse como eu havia andado 107 léguas pela costa do mar pela linha direita do ocidente para o oriente pela ilha de Juana, segundo tal caminho posso dizer que esta ilha (Juana) é maior que a Inglaterra e a Escócia juntas; porque, além destas 107 léguas, há na parte poente, duas províncias que eu não percorri, uma das quais chamam Avan, onde nasce gente com rabo; tais províncias não podem ter menos de 50 ou 60 léguas de comprimento, segundo pude entender dos índios que me acompanham, os quais conhecem todas as ilhas.
Esta outra Espanhola tem de circunferência mais que a Espanha toda, desde Colibre (Catalunha), pela costa do mar, até Fuenterrabía em Biscaya, pois em um quadrante, percorri 188 grandes léguas por linha reta de ocidente a oriente. Ela é de se desejar, e ao ser vista, para nunca se deixar; na qual, posto que de todas tenha tomado posse por Suas Altezas, e todas sejam mais abastadas do que sei ou posso dizer, e todas tenho por Suas Altezas, que delas podem dispor como e tão absolutamente como dos reinos de Castela, nesta Espanhola, o lugar mais conveniente e melhor região para as minas de ouro e de todo comércio, assim em terra firme daqui como aquela de lá do Grande Khan, onde haverá comércio e lucro, tomei posse de uma vila grande, à qual pus o nome de vila da Natividade; e nela pus força e fortaleza, e que já nestas horas deve estar de todo concluída, e deixei nela gente suficiente para protegê-la, com armas, artilharias e vitualhas para mais de um ano, e fusta e mestre de mar em todas as artes para construir outras, e grande amizade com o rei daquela terra, em tamanho grau, que lhe apetecia chamar-me e ter-me como um irmão, e ainda que lhe mudasse a vontade em ofender esta gente, nem ele nem os seus sabem o que sejam armas, e andam desnudos, como já disse, e são os mais medrosos que existem no mundo; assim que apenas aquelas pessoas que lá deixei são suficientes para destruir toda aquela terra; e é ilha sem perigo para eles, se se souber regê-la.
Em todas estas ilhas me parece que todos os homens se contentam com uma mulher, e a seu governante ou rei dão até vinte. Parece-me que as mulheres trabalham mais que os homens. Não consegui entender se eles têm bens próprios; pareceu-me que aquilo que um tinha, todos tinham parte, em especial os víveres.
Até aqui, nestas ilhas, não encontrei homens monstruosos, como muitos pensavam, mas antes toda a gente é de mui linda compleição, não são negros como na Guiné, excetuando seus cabelos escorridos, e não se criam onde há ímpeto demasiado dos raios solares; é verdade que o sol tem ali grande força, posto que é distante da linha equinocial vinte e seis graus. Nestas ilhas, onde há montanhas grandes, ali o frio tinha força neste inverno; mas eles o sofrem por costume, e com a ajuda das comidas que comem com muitas especiarias e muito quentes. Assim não encontrei monstros, nem notícia, tirando em uma ilha Quaris, a segunda à entrada das Índias, que é povoada por uma gente considerada em todas as ilhas como muito feroz, que come carne humana. Eles têm muitas canoas, com as quais percorrem todas as ilhas da Índia, e roubam e tomam o quanto podem; eles não são mais disformes que os outros, salvo que têm o costume de trazer os cabelos longos como mulheres, e usam arcos e flechas das mesmas armas de canas, com um palito no fim, por causa do ferro que não têm. Entre os outros povos, covardes em grau demasiado, estes são ferozes, mas eu não acho que sejam piores que os outros. Estes tratam com as mulheres de Matinino, que é a primeira ilha, partindo da Espanha para as Índias, na qual não se encontra homem algum. Elas não praticam o exercício feminino, mas arcos e flechas, como os supracitados, de canas, e se armam e se protegem com folhas de cobre, que têm em abundância.

Há outra ilha, asseguram-me que maior do que a Espanhola, em que as pessoas não têm cabelo algum. Nesta há ouro sem conta, e desta e das outras trago comigo índios para testemunho.
Concluindo, ao falar disto que apenas ocorreu nesta viagem, que foi assim rapidamente, podem ver Suas Altezas que eu lhes darei quanto ouro necessitarem, com muito pouca ajuda que Suas Altezas me derem; agora, especiaria e algodão quanto Suas Altezas mandarem, e almástiga quanto mandarem carregar, e de qual até hoje não se encontra a não ser na Grécia, na ilha de Chios, e o Senhorio vende como quer, e aloé quanto mandarem carregar, e escravos quanto mandarem carregar, e serão dos idólatras; e creio haver encontrado ruibarbo e canela, e outras mil coisas de substância encontrarei, as quais encontraram a gente que eu lá deixei; porque eu não me detive em lugar algum, enquanto o vento me tenha ajudado a navegar; apenas na vila de Natividade, que deixei assegurada e bem assentada. E, na verdade, muito mais faria, se me servissem os navios como demandava a razão.
Isto se deve ao grande e eterno Deus Nosso Senhor, que dá a todos aqueles que andam no seu caminho vitória em coisas que parecem impossíveis; e esta obviamente foi uma destas; porque, ainda que tenham falado ou escrito sobre estas terras, tudo é conjetura sem vê-las, mas compreendendo, os ouvintes escutavam e julgavam mais pela fala e faziam pouco caso. Assim, pois, Nosso Redentor deu esta Vitória a nossos ilustríssimos rei e rainha e a vossos reinos famosos, da qual toda a cristandade deve se alegrar e celebrar grandes festas, e dar graças solenes à Santíssima Trindade com muitas orações solenes, ao converter tantos povos à nossa santa fé, e depois pelos bens temporais; que não apenas a Espanha, mas todos os cristãos terão aqui refrigério e lucro.
Isto, segundo o feito, assim em breve.
Data na caravela, nas ilhas de Canária, em 15 de fevereiro, ano 1493.
Farei o que mandarem
O almirante.
***

Depois de esta escrita, e estando no mar de Castela, saiu tanto vento sul e sueste comigo, que tive de descarregar os navios. Mas percorri aqui este porto de Lisboa hoje, que foi a maior maravilha do mundo, onde resolvi escrever a Suas Altezas. Em todas as Índias, sempre encontrei temporais como em maio; para onde fui em 33 dias, e voltei em 28, excetuando estas tormentas que me detiveram 13 dias vagando por este mar. Dizem aqui todos os homens do mar que jamais houve inverno tão ruim, nem tantas perdas de naus.
Data a 4 dias de março.

(O original desta carta de Colombo desapareceu. Conservam-se várias versões em espanhol, italiano e latim. Nossa edição eletrônica segue a cuidadosa edição de Lionel Cecil Jane, em sua obra Selected Documents Illustrating the four Voyages of Columbus. 2 vols. London: The Hakluyt Society, 1930. Vol. I, 2-19]

Fonte: http://www.ensayistas.org/antologia/XV/colon/

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Sobre o autor

Envolvido desde cedo com a arte da navegação, Cristóvão Colombo realizou suas primeiras viagens em Gênova, no norte da Itália, onde nasceu. Em 1476, a serviço de um comerciante, acabou naufragando nas costas de Portugal, onde passou a viver.

Ali morou dez anos, sobretudo no arquipélago da Madeira. Nesse período, dedicou-se a estudar as rotas de navegação, convencido da existência de uma passagem marítima pelo Ocidente até as Índias. Casou-se 1480 com Felipa Muniz, filha do navegador Bartolomeu Perestelo, em cuja biblioteca estudou as obras que viriam a certificá-lo da existência de novas terras. Com Felipa, que morreria quatro anos depois, teve um filho, chamado Diego.

Por esta época, Colombo tentou, em vão, convencer o rei de Portugal D. João II a conceder permissão para uma viagem ao Oriente. Em 1485, Colombo fixou-se na Espanha, movido pelo interesse manifestado pelo reis de Castela, Fernando e Isabel, em patrocinar a viagem, com o intuito de expandir a fé católica para as terras orientais.

Composta por três caravelas - Pinta, Nina e Santa Maria - a frota de Colombo deixou as costas da Espanha dia 3 de agosto de 1492. A viagem foi atribulada e a tripulação quase pereceu em terríveis tempestades e tentativas de motins. No dia 12 de outubro, Colombo chegou na ilha que chamaria de San Salvador, no arquipélago das Bahamas. Navegou pela ilha de Cuba e pelo Haiti, retornando à Espanha em março de 1493. Tinha certeza de ter chegado ao Oriente.

Neste mesmo, ano fez sua segunda viagem, com uma frota de 17 naus. Chegou ao Caribe e descobriu várias ilhas, como Dominica, Guadalupe, Porto Rico e Jamaica. Em 1499, numa terceira viagem, alcançou terra firme, nas costas da atual Venezuela. Reconheceu também as ilhas de Trinidad e Tobago e Granada.

Desta viagem, no entanto, já regressou com ordem de prisão. Mesmo perseguido por intrigas palacianas e não mais desfrutando dos privilégios reais, Colombo conseguiu se libertar. Assim, empreendeu ainda uma quarta viagem, entre 1502 e 1504, completando o reconhecimento da costa da América Central.

Tendo regressado à Espanha em 1504, caiu no ostracismo, abandonado e esquecido. Morreria dois anos depois - e sem saber que havia descoberto um novo continente. Acreditava ter chegado a um anexo remoto da Ásia.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u207.jhtm





sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A sogra


Se, quando nora, sua sogra sofreu tanto com a mãe de seu marido, por que, agora que subiu de posto, resolveu encarar a norinha que acabou de chegar, como se ela fosse um bicho-papão que vai levar o filhinho pra longe? "Já vai carregar o fulano?", pergunta a sogra todo final de semana, quando você vai deixar o namorado no aeroporto. Detalhe: ele ficará uma semana longe de você, inclusive.

Ela não lembra como a mãe do seu então namorado a julgou mal? Não deu a ela o carinho que merecia? Se tem memória de como seu marido ficou magoado quando suas rixas começaram e, o pior, como ele sofre agora que não tem mais volta, não tem medo de que seu próprio filho sinta o mesmo? Que mãe quer ver o filho sofrer?

Ela vive reclamando que não teve amizade com a sogra. O que fez então quando a própria nora chegou? "Prazer, Fulana. Ela tem a voz igualzinha a de você sabe quem, meu filho.", disse a sogra se referindo à ex-namorada dele. Como se a atual não soubesse que ela estava fazendo de propósito. A nora sobrevive. A mãe da nora visita os pais do genro. E sai de lá sabendo tudinho da vida da tal da ex. Para quê? Essa gente não tem outro assunto não?

Então chega o aniversário do namorado. Ele te mostra a lista dos convidados e você repara bem. Estão lá os nomes de todos os amigos dele que você ainda não conhece. Será um grande evento. Você se faz de tonta e pergunta: “não vai convidar a ‘você sabe quem’?” E ouve feliz, quando ele diz um sonoro não.

Dia da festa. Você conhece o João, José, Maria, Pedrinho e por aí vai. De repente adentra o salão um par de gêmeas. Daquelas que você viu na foto que o seu namorado tirou do álbum. É, a própria. Como se já não bastasse ele ter uma ex-namorada, ainda tem a gêmea, que é pra não esquecer da cara da ex.. Nem você esquece, a essa altura. Mas calma que ainda vem a pior parte.

Apesar de ter sido apresentada a toda a turma da Mônica, do Zé Colmeia e do Catatau, você não tem permissão para brincar de “Supergêmeas, ativar!” A tal da ex, que se separou do seu namorado há um longo ano, não quer ser apresentada a você. Nem a sua irmã gêmea, claro. E a fulaninha ainda manda recado. Sem saber de nada, seu amigo vai lá dar em cima da gêmea solteira, a ex, ao que ela reage. "Eu ainda estou muito ligada no meu relacionamento anterior, com o namorado da sua amiga."

Cinco minutos depois, você está na pista de dança e leva aquele susto. Adivinha quem está dando um beijo na boca de um desconhecido? Ela mesma. A tal que ainda não esqueceu seu namorado. Mas agora vou contar o melhor da história. Lembra, lá na frente, quando você descobriu que seu namorado não convidou a ex? O mistério, enfim, é desvendado, quando você pergunta: "Então, quem convidou a ‘você sabe quem’, meu amor?", ao que ele infelizmente responde: "’Minha mãe".


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Revista SAMIZDAT entrevista Antonio Luiz M.C. Costa

Antonio Luiz Melo Coelho da Costa, colunista e editor da revista CartaCapital, autor de dezenas de contos de Fantasia e Ficção Científica (um deles já publicado aqui conosco, na SAMIZDAT 21 - Mistério e Suspense), dono de várias comunidades no orkut relacionadas à chamada Ficção Especulativa - Fantasia, FC, Horror, História Alternativa, e, adicionalmente, idiomas imaginários... - concedeu-nos esta excelente entrevista, falando sobre um dentre tantos assuntos que domina: a literatura.


SAMIZDAT - O Brasil sempre teve um papel secundário (ou terciário) no cenário de Ficção Científica e Fantasia mundial. A que se deve este fenômeno?

ANTONIO LUIZ M.C. COSTA – Bom, no que se refere à FC contemporânea, fora EUA, Canadá, Reino Unido, Japão, Rússia e (mais recentemente) China, todos os países são secundários, salvo por um ou outro autor isolado de estatura internacional (como, por exemplo, Stanislav Lem na Polônia e Valerio Evangelisti na Itália). Mas bem que o Brasil podia ser menos secundário do que é.

A literatura de fantasia, no sentido mais geral do termo, tem uma difusão mais ampla e nela não acho que o Brasil esteja tão mal. Mas vou deixar para falar disso na pergunta seguinte e tratar primeiro da FC.

Uma parte do problema é antiga e estrutural – o caráter agrário e dependente do País até a primeira metade do século XX, que criou uma elite bacharelesca e conservadora, míope em relação ao futuro e que menosprezava a ciência e tecnologia. Na era JK começamos a superar essa herança, a nos ver como o “País do Futuro” e a produzir alguma ficção científica de razoável qualidade para a época, a chamada Primeira Onda, que incluiu escritores respeitados nos meios literários.

Mas então veio o golpe militar e a ditadura envenenou a cultura em vários aspectos, inclusive a ficção científica. De um lado, veio a ênfase tecnocrática na formação de profissionais científicos e tecnológicos por atacado e a toque de caixa, em colégios e faculdades particulares com pouco ou nenhum interesse em formação humanista. De outro, a censura do debate político, a perseguição de intelectuais e a desconfiança em relação às ciências humanas, vistas como viveiro de subversivos.

De um lado, se formaram engenheiros, cientistas e técnicos sem gosto por debate de idéias nem por literatura, que até curtem a ficção científica como espetáculo, no cinema e nos seriados de tevê, mas não têm paciência para abrir um livro nem para especular sobre o futuro com seriedade. De outro, letrados, historiadores e cientistas sociais que desprezam a ficção científica como fuga da realidade, alienação em relação aos problemas políticos e sociais do Brasil e propaganda do imperialismo. Até porque o que mais se publicava e lia no gênero eram os clássicos da Golden Age estadunidense, muitos dos quais (“Tropas Estelares” é o exemplo mais óbvio) de fato promoviam valores militaristas e imperialistas – enquanto a ficção científica mais contestadora da New Age, disposta a falar de sexo, drogas, política e outros tabus (Ursula K. Le Guin, Philip K. Dick etc.) foi pouco editada e conhecida.

O resultado foi uma longa seca de edições de ficção científica, tanto nacionais quanto traduzidas, que se prolongou por mais de uma década após o fim da ditadura e até o início do novo século. Quem gostava de ler não gostava de FC e vice-versa, salvo tais ou quais exceções. Ora, a verdadeira FC criativa – aquela que faz valer mais a especulação inovadora do que a ação e efeitos especiais – vive da intersecção e do diálogo das duas culturas, a humanista e a científica. O escritor e o leitor precisam ser pessoas que gostam de literatura, interessadas no destino humano e ao mesmo tempo no progresso da ciência e em suas possíveis conseqüências para o espírito e para a sociedade.

Para que um público como esse exista, é preciso uma formação mais equilibrada e, de preferência, democrática – pois a democracia incentiva o confronto de idéias, inclusive idéias estranhas. Por mais que se reclame do ensino no Brasil, me parece que a educação dos anos 90 em diante conseguiu abrir para o diálogo entre culturas uma parte da geração mais nova, aquela que nasceu nos últimos anos da ditadura e cresceu na democracia, pois dela vem vindo uma enxurrada de textos novos, primeiro na internet e depois também em papel – e, mais recentemente, também editoras. Como de costume, grande parte é lixo, mas muita coisa vai durar.

SAMIZDAT – E como você percebe o papel da produção atual no Brasil nestes gêneros? Existem obras e autores de destaque, comparáveis ao que tem sido feito no exterior?

ANTONIO LUIZ – Na ficção científica, estamos recomeçando depois de uma longa crise, mas eu diria que há autores que se comparam bem ao que tem sido produzido lá fora. Se houvesse um público e um mercado que lhes permitisse dedicar-se em tempo integral à literatura, como existe nos EUA e Reino Unido, e se desenvolver plenamente como escritores, acredito que estariam à altura da melhor produção desses países. Com o risco de cometer injustiças, cito alguns exemplos: Gerson Lodi-Ribeiro, Fábio Fernandes e Carlos Orsi, entre os que começaram a carreira ainda na “Idade das Trevas” e Cristina Lasaitis, Osíris Reis e Saint-Clair Stockler entre os iniciantes.

Na fantasia, como eu ia dizendo na pergunta anterior, a história é outra. O Brasil, como outros países da América Latina, tem uma forte tradição de temas folclóricos e fantásticos na literatura, presente na obra de seus maiores escritores e nunca totalmente interrompida: podemos citar Machado de Assis, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Murilo Rubião e José J. Veiga, e há outros menos conhecidos. Assim como muitos grandes escritores europeus e norte-americanos oscilaram entre a fantasia e o realismo e as vezes ficaram mais para lá do que para cá – Maupassant, Gogol, Kafka, Stevenson, Melville, Poe, Flaubert, Swift e Shakespeare, só para citar os primeiros que me ocorrem. É questão de reconhecer a presença do fantástico em nossa tradição, mais do que de pedir por mais. Será que na França tem algum grande romance mais fantástico do que Macunaíma? Pensando em qualidade intrínseca e ousadia, não em livros vendidos ou grau de modernidade, será Harry Potter superior ao Sítio do Picapau Amarelo? Eu não acho.

Temos também uma razoável produção no campo do terror. Na minha opinião, Martha Argel e Giulia Moon, por exemplo, não ficam nada a dever a Anne Rice.

O que o Brasil de fato não tem é tradição em Alta Fantasia, gênero que começou a ser inventado na Inglaterra vitoriana, mas permaneceu mais ou menos na obscuridade até os anos 60, quando Tolkien virou moda nos EUA e foi reinterpretado no espírito da New Wave e da New Age, originando um novo respeito pelo mito e pela construção de mundos totalmente imaginários. Nesse campo, praticamente só temos imitadores, a maioria dos quais sequer compreendeu o que tenta imitar e se limita a reciclar superficialmente temas e clichês. Ainda não há nada que valha a pena ser mencionado em termos de Alta Fantasia nacional, nem surgiu alguém disposto a imaginar o novo e não apenas mais uma variante do que já foi feito lá fora.

SAMIZDAT: Habitualmente, os escritores de Fantasia costumam se inspirar, quase parasitariamente, nos autores e na mitologia anglo-saxã. Existe público para universos de fantasia tipicamente brasileiros, que traga elementos da mitologia, da fauna, flora, da História e dos comportamentos nossos?

ANTONIO LUIZ – Existir, claro que existe. O Roberto Causo, por exemplo, tem escrito uma série de histórias, A Saga de Tajarê, já com duas novelas, em um mundo de fantasia amazônico e a Michelle Klautau fez um crossover entre o mundo dos mitos europeus e o do folclore brasileiro em A Lendária Hy-Brasil, uma ideia que poderia ser mais explorada. No gênero infanto-juvenil, há montes de livros baseados no folclore e na história do Brasil, que continuam a tradição de Monteiro Lobato e têm boa aceitação.

Claro que quem faz fantasia tolkieniana pode ficar tranqüilo quanto a que, seu trabalho, mesmo que seja ruim, vai ser entendido por quem joga D&D ou viu O Senhor dos Anéis no cinema. Mas, em termos de Alta Fantasia, ninguém vai sair da mediocridade enquanto não tentar algo diferente de fazer decalques da Terra Média. É preciso arriscar mais e descobrir maneiras novas de apresentar um mundo diferente do já visto.

Mas me entendam bem, acho um passo importante os aspirantes a escritores de Alta Fantasia brasileiros se livrarem da camisa-de-força do modelo tolkieniano e de seus reis, princesas, águias, lobos, magos, elfos e orcs. Mas não se trata de pedir-lhes que escrevam sobre índios, escravos negros, onças, uirapurus, sacis, iaras e mulas-sem-cabeça. O importante é liberar a imaginação. Que inventem mundos baseados na imaginação asteca, grega, japonesa, indiana ou chinesa, se quiserem, mas que queiram criar com sinceridade.

Agora, o que os imitadores da ficção anglo-saxã não conseguem evitar, querendo ou não, é que os personagens tenham comportamentos “brasileiros”. É muito engraçado: seja em um palácio real, uma aldeia élfica ou uma escola de magos, os personagens de qualquer idade e meio social falam, se comportam e reagem como jovens brasileiros de classe média em torno de uma mesa de RPG do século XXI, ou como personagens da Globo. Há uma atração pelo superficialmente fantasioso e exótico, mas também um tremendo provincianismo quanto às formas de pensar e sentir. Eles não entendem que a maneira dos integrantes de uma família real medieval, digamos, se relacionarem entre si, tratarem com outras famílias e conduzir suas rotinas era completamente diferente das pessoas de hoje e os põe a falar como a família rica da novela das oito.


SAMIZDAT – Quais são os temas que motivam a sua escrita ficcional? É importante que a ficção defenda uma tese?

ANTONIO LUIZ – Um dos temas mais presentes em minhas histórias é a de transformação coletiva. Frequentemente, minhas histórias se situam um momento historicamente significativo para seus cenários imaginários, o momento de um progresso importante ou de uma grande reviravolta social, política ou cultural. Os personagens podem ter ou não consciência do que está acontecendo, mas seus atos estão relacionados a isso, como causa ou como efeito. Outro tema comum, que pode se combinar ou não ao primeiro, é o do sincretismo cultural, geralmente na forma de personagens que conhecem outros de uma cultura ou mesmo espécie diferente com o qual aprendem coisas novas ou desenvolvem um relacionamento próximo. Claro que também figuram, por vezes, casos de encontros destrutivos, mas acho os construtivos bem mais interessantes de explorar.

Quanto a “defender uma tese”, a ficção sempre faz isso, quer o autor saiba disso, quer não. Quem pensa que está fazendo uma ficção “neutra” defende as ideias recebidas e lugares-comuns de seu tempo na medida em que os reproduz sem críticas. Um escritor de folhetins do século XIX, por exemplo, podia pensar que estava apenas ganhando seu pão, mas aos nossos olhos é óbvio que estava, por exemplo, defendendo a submissão feminina ao descrever frágeis heroínas à mercê da luta entre um vilão repulsivo e um herói galante.

Um inconformista, por outro lado, geralmente está consciente de que tem ideias diferentes da maioria e de sua vontade de propagá-las, sejam elas conservadoras ou progressistas – mas comete um grande erro se faz isso de maneira grosseira, pintando como monstros ou idiotas aqueles que pensam de maneira diferente (como, por exemplo, o reacionário C. S. Lewis), ou subordina a trama a pregações tediosas na narrativa ou na boca dos heróis. Em ficção, as ideias são muito mais eficazes se expressas de maneira sutil e divertida.

SAMIZDAT – No mercado editorial brasileiro, Fantasia e FC ocupam um espaço muito restrito. Isto se deve a algum tipo de estreiteza de horizontes das editoras, ou o leitor brasileiro simplesmente não está acostumado a ler tais gêneros? Existe alguma maneira para driblar esta barreira e se consolidar como autor neste segmento?

ANTONIO LUIZ – Há tanto leitores que reclamam que as editoras não lançam coisas novas (eu sou um deles) quanto editoras que reclamam que esses gêneros não vendem. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Desconfio que o ovo: é difícil vender um lançamento novo porque as editoras não querem cultivar esse mercado, embora briguem de foice para publicar uma obra estrangeiro de fantasia ou FC depois que se torna best-seller ou é adaptada para o cinema (Michael Crichton, J. K. Rowling, Tolkien, Philip K. Dick etc.).

Por outro lado, já ouvi os editores da Aleph se queixarem de que os livros de ficção científica mais “inovadores” que vêm publicando – e “inovador” pode significar da década de 80, como Valis ou mesmo de 1969, como A Mão Esquerda da Escuridão! – estão encalhando, enquanto a Fundação e O Fim da Eternidade de Asimov (anos 50) e Laranja Mecânica de Burguess (1962) vendem relativamente bem. É preciso explicar o conservadorismo também por parte dos leitores. Talvez esse público, que não lê ficção em inglês, só conheça obras já antigas que leram há muito tempo, encontraram em sebos ou foram recomendados pelos mais velhos e por isso só saibam falar, pessoalmente ou na internet, sobre esses “clássicos”. Quando alguma editora arrisca lançar algo mais novo, é bem possível que deixem de comprar por nunca ter ouvido falar e não querer arriscar. Que na hora de presentear um amigo, ou mesmo de escolher algo para ler, prefiram mesm algo que já ouviram falar que todo mundo (do seu círculo) gosta. Que faltem leitores ousados, desbravadores do desconhecido.

Mesmo assim, acho uma aberração por parte da Aleph priorizar o relançamento do Asimov dos anos 50 e deixar de publicar livros que fizeram época nos anos 90 e 2000, como The Difference Engine, Hyperion e Perdido Street Station – ou mesmo os últimos (e para mim mais interessantes) livros de Asimov, os dos anos 80. Será que todo o público leitor da ficção científica virou um reduto conservador e saudosista, apegado ao futuro que seus avós imaginaram e com medo de pensar coisas novas? Não posso crer, deve ter algo de errado nesse raciocínio. Se for verdade, melhor esquecer a FC e dedicar-se à fantasia ou à literatura mainstream. Prefiro pensar que a Aleph está escolhendo os livros errados ou não sabe promovê-los (por exemplo, as capas, em geral, não sugerem que se trata de FC).

Infelizmente, não tenho uma receita mágica para driblar o círculo vicioso. O mais que posso é fazer minha parte, dando preferência a resenhar e recomendar as boas obras novas que surgem no mercado.

SAMIZDAT – Na sua opinião, ficção de gênero e literatura mainstream são realmente distintas? É possível, academicamente, encontrar valor literário em obras enquadradas (por fãs, por editor...) em algum gênero, como Fantasia ou FC?

ANTONIO LUIZ – São distintas na medida em que têm prioridades diferentes. O chamado mainstream (que não é necessariamente ficção “realista”) busca a expressão criativa, a fantasia e a FC enfatizam a especulação criativa. Em geral, quem julgar a ficção especulativa pelos critérios da ficção mainstream vai achá-la aborrecida de má qualidade, e vice-versa – salvo umas poucas obras que conseguem brilhar razoavelmente nos dois aspectos como, digamos, Admirável Mundo Novo. Claro que é preciso um mínimo de técnica e valor literário para se escrever um livro de ficção especulativa decente, mas ela deve servir à especulação, não o contrário. Então, minha resposta seria: é possível encontrar valor nesses gêneros, mas em geral não o mesmo que se busca na chamada grande literatura. É preciso outra maneira de os ler e analisar que não o enfoque do acadêmico tradicional, estudante de letras, mas a do estudioso da cultura e da ideologia, algo mais próximo daquilo que os anglo-saxões chamam Cultural Studies.

SAMIZDAT – Na comunidade do orkut "Escritores - Teoria Literária", foi criado um tópico com a seguinte pergunta: "HQ é Literatura?". A discussão foi acalorada, mas manteve-se dentro do aceitável. As coisas realmente partiram para "um outro nível de discussão" quando alguém argumentou que Watchmen consta em uma lista da revista TIME, de 2005: "TIME critics Lev Grossman and Richard Lacayo 100 best English-language novels from 1923 to the present". (http://www.time.com/time/2005/100books/the_complete_list.html)

Para você, HQ pode ser considerado literatura, ou, como se diz, trata-se de uma forma de arte autônoma - a chamada Nona Arte? Qual é o valor, como argumento, de uma lista de "os cem melhores" como a que foi citada?

ANTONIO LUIZ - Watchmen não devia estar nessa lista. Não se pode avaliar o texto de uma história em quadrinhos com os critérios com que se avalia um romance, nem pelos que servem para avaliar uma pintura ou gravura. Assim como também não se pode avaliar um roteiro de cinema por quaisquer desses critérios. . São formas de arte diferentes. Assim como não se pode avaliar uma canção dançante de Gilberto Gil pelos critérios com que se avalia uma sinfonia de Villa-Lobos ou um poema de Camões.

Se Watchmen fosse um dos 100 melhores romances em inglês desde 1923, haveria de ser a melhor obra de arte do século XX, talvez de todos os tempos... pois, em Watchmen, o texto é apenas um elemento da obra, que depende mais da combinação eficaz de texto e imagem do que de qualquer desses aspectos separados. Claro que não é assim. Watchmen é uma das melhores graphic novels já feitas, mas o texto, separado da imagem, é pobre em relação a qualquer romance mediano. Não comparemos laranjas com bananas.

SAMIZDAT – Desde há muito línguas artificiais são pensadas. Algumas chegaram a ganhar certa relevância, como o Esperanto, enquanto que outras ficam restritas aos seus criadores ou pequenos grupos de discussão. Qual sua experiência pessoal com o desenvolvimento de idiomas?

ANTONIO LUIZ – Eu inventei um idioma de maneira mais completa, o “senzar”, e alguns outros de maneira mais fragmentária como parte do cenário de um romance de fantasia ainda não publicado, sem a pretensão de que o senzar ou qualquer outro deles seja usado por mais alguém. Meu principal objetivo era que nomes de lugares e personagens soassem diferentes de línguas conhecidas, para criar a sensação de um mundo realmente exótico, mas sem que os nomes parecessem absurdos ou incoerentes. Assim, personagens da mesma etnia têm nomes de estrutura semelhante e característica, diferente de personagens de outras etnias. Ao mesmo tempo, à medida que eu tinha de inventar palavras e conceitos, me ajudou a ter em mente que ideias e comportamentos não deviam ser necessariamente semelhantes a qualquer cultura conhecida, mas deviam ter coerência entre si.

É um recurso que exige algum conhecimento de linguística e muito gosto pela coisa. Pessoalmente, fiquei satisfeito com o resultado. Sempre achei um tanto ridículo que nomes de personagens de um mundo imaginário inventado por um brasileiro tenham nomes anglo-americanos. Também não me parece apropriado que os personagens de um mundo de fantasia tenham nomes brasileiros, a menos que o cenário um Brasil futuro ou paralelo, que não era o caso desse romance.

Claro, quem trabalha um mundo baseado na Inglaterra medieval deve usar nomes ingleses. Mas quase nunca é o caso – e mesmo que fosse, nem todos os nomes usados no inglês moderno serviriam. Parece-me igualmente ruim misturar ao acaso nomes de diferentes origens e culturas – isso só faz sentido em uma grande cidade cosmopolita ou em um cenário futurista. Acho importante estar atento a essas minúcias, pois, no fim das contas, um mundo literário é feito apenas de palavras.


SAMIZDAT – Uma vez que as línguas sejam fenômenos sócio-culturais, é válida a criação de novos idiomas sem que esses estejam assentados sobre um contexto cultural previamente desenvolvido?

ANTONIO LUIZ – Para uso artístico ou ficcional, bem válido. Para uso prático, eu não desencorajaria quem queira tentar, mas é obviamente difícil que um idioma artificial se torne amplamente usado, a menos que isso seja imposto por um Estado – ou uma organização global, no caso de um idioma universal. Por uma questão de justiça, eu preferiria ver um governo mundial usar um idioma artificial neutro a usar o mandarim, o inglês ou o português.



SAMIZDAT – É possível esperar que as línguas artificiais deixem de ser vistas essencialmente como passatempo ou ferramenta auxiliar para a escrita de ficção científica e passem a ser reconhecidas formas de expressão artística?

ANTONIO LUIZ – Não acho que criar línguas para expressão artística fora de um contexto literário ou cinematográfico tenha muito futuro. Creio que Tolkien fez mais ou menos isso, inventou as línguas élficas por puro prazer estético. Mas se não escrevesse um romance no qual pudessem ser citadas, só ele – e, talvez, um ou outro colega filólogo – as teria apreciado como arte. Claro que há formas de arte ainda mais estranhas e difíceis de entender e que fazem sucesso em bienais e galerias, mas eu não apostaria nisso.

SAMIZDAT – Um pouco de história alternativa: como você imagina o Brasil, em termos linguísticos, caso o Marquês de Pombal não tivesse proibido a utilização da lingua geral?

ANTONIO LUIZ – Poderíamos ter o nheengatu falado nas ruas e aprendido nas escolas ao lado do português, assim como o Paraguai usa e ensina o guarani junto com o castelhano. Não faria necessariamente muita diferença em questões políticas e sociais – o Paraguai é um país tão injusto quanto o nosso – mas poderíamos ter uma identidade nacional mais marcada (justamente o que Pombal queria evitar), mais respeito pela cultura indígena e mais afinidade com outros países sul-americanos, ou pelo menos com a Bolívia, Paraguai e Argentina, onde línguas da família tupi são faladas.


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Coordenação da entrevista: Volmar Camargo Junior

Perguntas propostas por: Caio de Oliveira, Carlos Alberto Barros, Henry Alfred Bugalho, Volmar C. Junior.