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quarta-feira, 30 de abril de 2014

SAMIZDAT 40 - Hemingway



Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

CONTO
Uma noiva para o João do Campo, Joaquim Bispo
Pelo tempo que durar, Rodrigo Zafra Toffolo
Alice através de si, Suellen Rubira
Hora de abrir a caixa, José Guilherme Vereza
O Ilusionista, Mario Filipe Cavalcanti
Eles haviam mentido, Fernando Domith
A Professora de Caligrafia, Zulmar Lopes
A Revolução, Luis F. Sprotte
Não posso, Cinthia Kriemler
É assim que eu desapareço, Priscilla Matsumoto
Cotidiano, Tatiana Alves
Caixinha de Pregos, Maria de Fátima Santos
Muito tempo depois..., Rafael F. Carvalho
Para onde tinha de descer, Marlon Vilhena
O morto que eu sepultei, Maria Amélia de Elói

TRADUÇÃO
Os Matadores, Ernest Hemingway

TEORIA LITERÁRIA
Hemingway, o caminho da vida para a Literatura, Henry Alfred Bugalho
Abre-te, cérebro! O tudo que cabe nas palavras de Arnaldo Antunes, Hernany Tafuri

CRÔNICA
Este mundo não foi feito para a gente, meu amor, Henry Alfred Bugalho
Meu companheiro medo, Cecília Maria de Luca

POESIA
Onde cantam as cotovias, André Foltran
Há quem dia que não era aquela música, Vanessa Regina
Morro do Chapéu, Julia Mendes
Pretérito Imperfeito, Igor Melo de Sousa
Parece-te mais uma faca cravada em meu crânio, Vander Vieira
Movimentos rápidos de retina, Marcelo Costa Baiotto
Félix da Cunha, Daniel Moreira
Sitiada, Rodrigo Domit
Brad Pitt ao meio-dia, Tainá Rei

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SAMIZDAT 40 - Hemingway
Por que Samizdat?, Henry Alfred BugalhoCONTOUma noiva para o João do Campo, Joaquim BispoPelo tempo que durar, Rodrigo Zafra ToffoloAlice através de si, Suellen RubiraHora de abrir a caixa, José Guilherme VerezaO Ilusionista, Mario Filipe CavalcantiEles haviam mentido, Fernando…





segunda-feira, 28 de abril de 2014

Hoje eu não quero escrever


Hoje, não.

Nenhuma palavra sobre certa “pensadora contemporânea” (assim chamada por certo professor de filosofia – e a suposta intenção de ironia não disfarça a frivolidade da iniciativa), que pensa com outra parte da anatomia que não o cérebro.

Silêncio total sobre outro pensador contemporâneo que, crivado de lauréis acadêmicos, desfolha por aí seu conservadorismo abjeto. Eu pergunto: como pode? Alguém me responde?

Perda de tempo escrever sobre a falsa guinada à direita de um jovem cronista. A manobra acabou arrastando uma massa (ou malta?) de reacionários mal disfarçados que se apressou em comentários de adesão. O jovem cronista, atônito com a multiplicação dos comentários a favor, se viu compelido a confessar o óbvio: o texto teve o só propósito de um ultraje a rigor.

Longe de mim escrever sobre os novos censores, artistas antes tidos como arautos da liberdade e para quem era proibido proibir.

Ridículo pensar em escrever sobre os uivos de um lobobão, que ataca tudo e todos com nada de consistência argumentativa e farto blablablá verborrágico.

Minha caneta não quer gastar tinta escrevendo sobre a dinastia de sertanejos e assemelhados que se entronizou em todos os palcos, inundando-os de lepo-lepos, tchê-tchererê-tchê-tchês, tchu-tchás, bará-bará-barás, berê-berê-berês e outras bizarrices onomatopaicas.

Minha gasta e parca inteligência se recusa a escrever sobre brothers alçados à condição de heróis. Heróis de quê, meu Deus? O mais que fazem tais heróis é modorrar no hedonismo e no ócio.

Não vale a pena escrever sobre celebridades que pululam em todas as telas, sem qualquer pudor de exibir o oco que as preenche.

Nem pensar em escrever sobre o pão nosso de cada dia recheado de escândalos, corrupção, violência.

Não.

Diante dessa pauta “palpitante” de assuntos, hoje eu prefiro o silêncio.






domingo, 27 de abril de 2014

Pombos, peixes e outros espécimes


Vez por outra, recebemos olhares enviesados apenas por demonstrar simpatia por determinado autor, músico, banda, cineasta, grupo de teatro, entre outros. Ora porque ninguém mais aguenta os seguidores, ora porque ninguém mais aguenta os seguidos. Neste momento desconfortável, já somos rotulados, com aquele ar superior e debochado, de "fã-de-tal-coisa", "o-que-quer-que-seja-zete". E, se negarmos a pecha, apontam que a negação e qualquer discussão posterior confirmam, precisamente, que estavam certos.

Não há quem conteste que há fãs maníaco-eufóricos-pé-no-saco, daqueles que defendem os ídolos como se irmãos - e tem até gente que sai por aí pregando humildade e diversos feitos e milagres, sem sequer ter trocado duas palavras com estas supostas entidades. Mas, não se pode generalizar: a simpatia em torno de uma obra não pressupõe, automaticamente, a submissão incontestável e incondicional à adoração por aqueles que a criaram. Afinal de contas, não é por gostar de pipoca que sou como os pombos, que engolem qualquer migalha ou caroço com que se depararam Ou como os peixes, desesperados, que mal diferenciam pedaço de pão e cuspe.

Fica, então, o aviso aos que tem sempre em mãos um punhado de alfinetes e etiquetas, prontos para alfinetar e categorizar seres humanos em suas restritas coleções de espécimes: a vida é feita de escolhas, mas a personalidade vai muito além disso, e sua variedade de facetas não se enquadra em qualquer esquema de organização, por mais metódico que seja.





sábado, 26 de abril de 2014

Caleidoscópio

A querença abusada de um
espelhando
o avanço aceite do outro

Minivolúpias desenhadas
Tudo multimixmisturadinho

Retalhos de veludo
do meu céu
habitando o seu

A-simetria admirável
difusas formas
avolumadas

Pela fechadura, movimentos
untados de glória

Um novo vitral que formamos!
Outro!
Mais um!

Sempre
o seu desejo e o meu
rompendo em brilho.
Vaivém de deleite

Pelo mágico olho,
fragmentos de rubras cores.
Acrobatas impetuosos.

Que nó que nós somos!

A joia do gozo confinada
no leito cilindro
luzilinda, refletindo

Um amor caleidoscópio
é o que nós somos.





Humanidades

O Amor por vezes estrangula-me a garganta,
Dá-me falta de ar e palpitações.
Outras vezes é a ansiedade
Que me transtorna a biologia.

Há ocasiões em que o medo me aperta,
Outros dias o desespero,
Em outros ainda a certeza;
Depois leio umas palavras
Uma qualquer frase vazia
A mente enche-a com a vida que conheço
E subitamente tudo faz sentido.

Depois durmo,
Ou janto,
Ou bebo,
Ou fumo ,
Ou vejo um filme,
Ou lavo as mãos,
Ou tusso

E o mundo volta atrás
A Humanidade já não tem razão
E dói-me a dor da criança que não compreende





sexta-feira, 25 de abril de 2014

O meu 25 de abril


Joaquim Bispo

Antes. Para os brasileiros e mesmo para os meus compatriotas mais novos, é-me praticamente impossível fornecer uma ideia clara de como se vivia em Portugal durante o Estado Novo – o regime que vigorou entre 1926 e 1974, sensivelmente com os mesmos valores: Deus, Pátria, Família. Ainda pensei descrever uma lista de situações que contextualizassem a vida de então, mas desisti de o fazer, tão descomunal me parece a tarefa.
Então, a 25 de abril de 1974, faz hoje 40 anos, na sequência de uma reivindicação corporativa, os oficiais menos graduados das Forças Armadas, capitães e majores, sobretudo, lideraram uma ação militar que derrubou o regime, ato que foi imediata, entusiástica e maciçamente apoiado pela população. Com tal unanimidade, durante os meses seguintes, nem o céu parecia o limite.




25 de abril, quinta-feira, 9 horas. O jovem atravessa o parque Eduardo VII em diagonal. Está dez minutos atrasado para o emprego, como habitualmente. À vista da rua onde trabalha percebe que o trânsito para o bairro está cortado por militares. Inquirido, um deles diz-lhe que não pode passar, sem mais explicações. O jovem volta para casa, conjeturando que tem uma boa desculpa para dar ao patrão, se ele o questionar nesse sentido. 
Pelas dez e meia ou onze, o jovem rejubila ao ouvir pela rádio que está em curso um movimento militar que parece querer derrubar o governo. O jovem lia frequentemente jornais que insinuavam, nas entrelinhas, mudanças políticas iminentes – um que vinha da Madeira impresso em papel cor-de-rosa e o Diário de Lisboa –, mas o governo representava para ele, sobretudo, a asfixiante ordem eterna, parada em conceitos desatualizados. Toda a gente dizia mal, numa impotência cómoda, porque havia a certeza de que o regime nunca mudaria. A prová-lo, estava o tosco “golpe das Caldas”, um mês antes. 

E da manhã, da tarde e da noite se faz o dia primeiro. Na tarde soalheira do dia 25 de Abril de 74, um casal estrangeiro, de língua inglesa, passeia pelo parque Eduardo VII, misturado com os outros passeantes portugueses que desfrutam o feriado inesperado. Dos lados da Baixa chegam, de quando em quando, sons de alvoroço popular. Não sei se o casal sabe o que se está a passar no país, mas o homem comenta, sorridente, para a mulher: “Deve ser por causa do Benfica!” Como está enganado!
No supermercado o jovem repara admirado que as pessoas estão a comprar quantidades anormais de víveres, sobretudo enlatados. Acha aquela atitude desproporcionada. Além de meia dúzia de polícias com cães, cosidos nos portais da António Augusto de Aguiar, com ar furtivo e preocupado, nada parece indicar qualquer ameaça de resposta da “situação”. 
À noite, na televisão, o jornalista apresenta a Junta de Salvação Nacional – uma mesa atestada de generais soturnos e mal-encarados.
Mas então? Onde estão os capitães de que falam as notícias? Não é que o jovem tenha, desde a tropa, uma grande consideração por capitães do quadro, mas generais? Spínola? Escreveu um livro crítico, e então? É do regime… Para que o poder “não caia na rua”, já vai ao beija-mão? 
E quem são os outros emproados? 

Alívio! As dificuldades do regime em conseguir quadros militares suficientes para sustentar a guerra do Ultramar obriga a certos estratagemas. Os oficiais milicianos que não tenham ido ao Ultramar, durante o tempo normal de tropa, podem ser novamente chamados, após alguns anos de dispensa. É-lhes dado um curso de capitães em Mafra e seguem para um dos teatros de guerra no Ultramar: Guiné, Angola ou Moçambique. Alguns preferem oferecer-se para ir a África durante o tempo normal e despacharem a questão, do que ficarem em risco de fazer tropa duas vezes. 
O jovem tinha feito três anos e três meses de tropa, mas sempre na Metrópole. Por duas vezes esteve prestes a ser mobilizado para o Ultramar. Sempre as circunstâncias o salvaram. Numa delas, outro se ofereceu para ir em seu lugar. Pelo 25 de abril, faltarão uns dois anos para ser eventualmente chamado de novo. De tempos a tempos, já tem sonhos onde se vê outra vez na tropa, o que não é muito agradável. Quando o discurso dos revoltosos de abril dá indicações de que a política ultramarina se irá alterar, o jovem sente um alívio enorme, enorme. [Vocês não veem, mas, apesar de o texto ser meu, ao relê-lo emociono-me.]

Comunistas. Antes do 25 de abril havia certos assuntos que se evitavam naturalmente. Um deles era comunismo. Os funcionários públicos tinham que jurar rejeitar a ideologia comunista. Sabia-se que o poder não gostava do conceito nem dos seus praticantes. A autocensura levou o jovem, certa vez, numa entrevista, a ficar atrapalhado por ter dito que gostava de ser útil à comunidade. Seria que isso poderia ser lido como proximidade de outras palavras com a mesma raiz? 
Três ou quatro dias depois do 25 de abril, as capas dos jornais anunciam a chegada de Álvaro Cunhal, líder máximo do Partido Comunista Português, nome que o jovem nunca tinha ouvido. O condicionamento fá-lo ter um momento de apreensão: O quê, os comunistas vêm aí, às claras, confiantes e aceites? Nesse momento, o jovem começa a tomar consciência de que estão a chegar tempos muito diferentes, não pelos comunistas em si, mas pela previsível abertura a múltiplas e variadas realidades até aí interditas. 

O primeiro 1º de Maio. O 1º de maio de 1974 é inesquecível. Ou antes, as manifestações. A manifestação de Lisboa começa na Baixa e dirige-se para o estádio do Inatel, já próximo do aeroporto. São muitos os milhares de pessoas a desfilar. Entre os primeiros a chegar e os últimos, talvez medeiem duas horas. Toda a tarde se desfila pela Almirante Reis acima. É um rio de gente a caminhar com um sentimento bom de reencontro, de partilha, de comunhão, de vitória sem raiva. Há um estado de graça nos sorrisos, no convite aos que estão pelos passeios, nas saudações a quem não se conhece. Não há ainda divisões. Estamos felizes. Estamos todos finalmente livres. Simplesmente. [Emoção.]

«Uma gaivota voava…» A sensação de liberdade, a convicção de que o destino de cada um passa agora pelas suas mãos, leva a que muitas pessoas quebrem as cadeias sociais ou rotineiras que as prendem. Há que levar a verdade não só ao político como ao social, à vida de cada um. Os divórcios saltam em flecha. A contestação nas empresas leva mais facilmente ao rompimento dos laços contratuais. A fuga de alguns empresários mais comprometidos, associada à convicção de que os patrões não têm função produtiva, logo são parasitas, leva a tentativas de controlo das empresas pelos trabalhadores. Pelo menos, tentar uma cogestão que devolva alguma verdade às relações de produção. O Estado é chamado a intervir em inúmeras situações, quer para legitimar a continuação da produção de empresas cujo proprietário fugira, quer para assegurar a gestão de empresas onde o conflito patrões/empregados ameaça paralisá-las. Desde grandes empresas até padarias, por exemplo. 

«… Como ela somos livres de voar.» A contestação, a reclamação de direitos nunca reconhecidos, faz surgir lutas nunca vistas. Uma que surge logo nas primeiras três semanas e que causa celeuma é uma luta das prostitutas, já não sei por que direito. A televisão – dois canais públicos a preto e branco – abre-se ao discurso popular, à queixa debitada pelo homem da rua. As pessoas têm finalmente acesso a divulgar os seus problemas. Os telejornais estão repletos de queixas, de afirmação de direitos, de cobertura das lutas laborais. Um dos programas mais populares trata de desmascarar práticas desonestas de comércio, com produtos fora de prazo, defeituosos, queixas de consumo, em suma. 

Tomar café na associação. A luta laboral vai levando a que o trabalho seja melhor pago, quanto mais penalizante seja para o trabalhador. O trabalho noturno pago por valores mais altos, leva a que a vida noturna da capital se altere, pelo menos ao nível das cervejarias e outro pequeno comércio de restauração. Algum deste comércio que fechava por vezes às 2 da manhã, passa a fechar muito mais cedo, devido aos novos valores do trabalho noturno, acho eu. A noite lisboeta fica mais triste, com menos oferta.
Os novos conceitos de “endinheirado igual a fascista”, levam a uma fachada contida e à retirada para núcleos mais restritos, uns, ou para os inúmeros núcleos associativos – cooperativas, sindicatos ou partidos –, outros. Aí são agora os novos locais de eleição para os encontros e os namoros. 

«O que se passa aqui, que tudo está tão diferente…?» De repente as coisas estão diferentes. Interessa mais o “ser” que o “ter”, há que ser solidário e não competitivo, há que participar ativamente nas tarefas que são de todos, a alfabetizar, a esclarecer, a ajudar em qualquer aspeto da vida coletiva da sociedade, nem que seja só colar cartazes, gerir a pequena associação cultural ou participar nas manifestações. 
De repente, o que se tinha aprendido está desatualizado. As relações políticas, sociais, familiares e até pessoais pautam-se por outras normas. Há a sensação de que é preciso desaprender tudo e aprender tudo de novo. Lê-se Engels, Lenine, Marx, Mao, Wilhelm Reich. Livros com títulos como “O que é a consciência de classe?”, “A conquista do pão” ou “A origem da família da propriedade e do Estado”, andam por algumas mesas-de-cabeceira. Aprender, aprender, recuperar o tempo perdido, é preciso. 

«A cantiga é uma arma.» Entretanto, os militares, cuja consciência política, na maioria, parece advir das mensagens emocionais contidas nas canções de intervenção, começam a absorver as ideologias dos partidos e a dividir-se. O ano e meio que se segue é um carrossel de factos políticos, com os partidos a digladiarem-se, a tentarem controlar as diversas tendências que os militares vão manifestando, em osmose de ideias políticas.
O jovem passa a noite a ler e a ouvir rádio – o horário do novo trabalho permite-o –, na esperança de notícias condizentes com as suas aspirações, mas sobretudo a absorver as mensagens e as emoções contidas nas inúmeras canções revolucionárias que vão surgindo em catadupa. Quando a luz do dia enche a rua, descansa finalmente.
Há duas tentativas militares falhadas de controlo do processo pela direita. A seguir, o bloco central pressiona a esquerda, retirando apoios institucionais à esquerda militar, que fica mais aguerrida por ver fugir-lhe espaço de manobra. A 25 de novembro de 1975 a esquerda militar reage, mas a resposta está preparada. É derrotada e o país inicia um processo de estabilização política em moldes tradicionais.

«E depois do adeus...» O jovem sente essa derrota como sua, tanto mais pessoal quanto ter sido a imagem dum militar esquerdista, por si controlada para a televisão, que é retirada do ar, no momento simbólico da perda de controlo pelos revoltosos.
Não fora alfabetizar as populações do interior, não ocupara casas devolutas para famílias carenciadas, não participara em atividades das cooperativas agrícolas ou outras. Quase não “mexera uma palha”. Tivera uma mera adesão intelectual, pequeno-burguesa e romântica. Ainda assim, está muito abatido. O jovem sente que novembro significa o regresso da cinza de antigamente. Ou pensa que sim. Só lhe apetece emigrar. Mas, falta-lhe coragem.





quinta-feira, 24 de abril de 2014

ALDRAVIAS – PARTE II

Amigos, continuando com o exercício das aldravias, deixo aqui mais três poemas de minha autoria. Espero que gostem.

Para conhecer o trabalho da Sociedade Brasileira dos Poetas Aldravianistas (SBPA), visitem:

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa_edweine.htm

E, desde março de 2014, tenho a alegria e honra de ser um dos membros da SBPA. Convido-os também a visitar minha página:

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa_edweine.htm

Saudações poéticas.

Edweine Loureiro

I.

carlitos
cuspidos
pelas
máquinas
do
capitalismo

II.

perdi
a
poesia
procurando
uma
rima

III.

no
violão
ecos
dum
amor
perdido

***





terça-feira, 22 de abril de 2014

No céu com diamantes

Não era de bebida. Ingeria refrigerante socialmente, suco industrializado ou natural ocasionalmente, alcoólicos raramente e água sempre. Tinha no bolso ou na bolsa uma garrafinha à mão toda vez. Não fumava cigarro, nem cachimbo, nem maconha, nem. Só passivamente, em filas de paradas de ônibus, em barzinhos com os amigos, no meio da multidão de caminhantes no centro da cidade, vez ou outra dava azar de andar atrás de transeuntes-chaminé. Por não ter vícios, e não julgava quem cultivasse os seus, por levar a vida numa boa, na manha e na paz, dizia-se um cara saudável. Nada de apostar a mãe mortinha embaixo do caminhão. Otávio jurava por sua saúde, pelo que podia por o braço inteiro na fogueira. Fazia tudo certo, da rotina regrada aos exercícios físicos, carregando para lá e para cá uma cuca muito fresca. Até que, na visita anual, o clínico prescreveu exames extras, além do hemograma.

Não me leva a mal, doutor, mas o senhor acha mesmo que precisa saber do meu estômago por dentro? Eu contei de uma ardência e um inchaço que me duraram dois dias e meio, coisa que obviamente tem relação com a feijoada de sábado. Como recusaria? Minha mãe não cozinhava uma feijoada completa assim há anos. Costumo me conter, só que naquele dia abusei. Foi isso. O médico, manso e vagaroso como boi, explicou que era bom ver, eliminar qualquer fresta de suspeita, blindando aquele corpo de certezas novamente. Não havia de ser nada além de uma indisposição, conforme supôs o paciente. Vai ver, sim, Otávio, sexta-feira, às 15h, com o gastroenterologista fulano, que atende aqui mesmo, no consultório do fim do corredor. A secretária já marca na saída, está bem?

No dia e horário agendados, Otávio estava lá, banho tomado e as tripas feito canudos de milk shake, atravessando um jejum tão longo e violento que nem água podia. Um medo inconfessável o acompanhava. Tinha ouvido horrores sobre a anestesia. Na sala de espera, o pavor de remédios induzia previsões catastróficas: enfermeiras injetando substâncias tóxicas em uma das nádegas, aplicando soníferos em veias difíceis de achar, o médico cavoucando suas entranhas com pinças enquanto ele jaz inerte na maca branca. Otávio, sua vez, chamou a anestesista.

Ele foi, encantado com a moça de jaleco branco e cabelos amarrados em coque. Antes de deitar de costas para ela, recebeu spray anestésico na garganta e no braço direito, agulha. Primeiro vais sentir uma tontura, é normal, mas ainda não será momento de dormir, preveniu a moça. A vertigem realmente aconteceu, mas para o que veio depois não houve aviso. Essa moça que me olha e me cuida, que mágica é essa, tão bonito aqui, vem cá, querida, nasce amor em lugares bem incomuns, não é mesmo, a gente podia casar na beira da praia com tochas acesas iluminando o caminho até o altar de areia e depois então trocamos sins e voamos até encostar a ponta dos nossos dedos nos diamantes lá no céu e se eu morresse agora até que seria lindo e. Pronto, Otávio. Terminamos por aqui. Em seguida, o resultado. Uma úlcera considerável. Comece o tratamento com doses diárias do comprimido tal e daqui oito semanas retorne para novo exame, em que vamos reavaliar o caso. Otávio agradeceu a atenção e foi embora, perplexo e ansioso pela próxima sedação.





sábado, 19 de abril de 2014

Colcha de retalhos (ainda precisando de costura)

Como
         se concretiza
                      poesia?
                                       Se o corpo da alma desprendeu
                                               Alcançou um éter mistério
                                                               Sumiu com o sopro do fim das 24h.

Será que isso assim, desalinhado
É gênio reprimido?
Mau uso do verso?
Fragmentário fruto do pós-moderno?
                                               Tudo assim que nem meu corpo e a minha cabeça se alinham
                                               A mente
           Que se encolerizou hoje, ontem chorou muito a morte do Gabo
                                               Mas aprendeu algo sobre as leis matemáticas

                                               E se dá por dia bem vivido. 





quarta-feira, 16 de abril de 2014

Uma história comum

Este frio úmido está comendo os meus ossos. Preciso consertar o aquecedor e parar de usar tanto a lareira...
— O senhor quer que eu acenda a lareira agora? — me pergunta a mocinha de uniforme.
— Não, agora não, obrigado. — respondo, interrompendo o pensamento.
Às 5 horas tenho um encontro com Angélica. Vamos tentar uma partilha amigável de bens, mas, com certeza, haverá ferimentos de batalha. Na verdade, o que eu quero mesmo é vê-la. Sempre me encanta absorver a figura sensual de Angélica. É discreta, mas insinuante; cabelos lisos, escovados, olhos sem máscaras. A boca rosada se deve mais ao hábito de morder os lábios do que a qualquer carmim.
Quando a vi pela primeira vez, ela não reparou em mim, e minha virilidade acostumada ao reconhecimento ressentiu-se. O par de olhos risonhos estava entretido com outra coisa, outra pessoa: um transeunte, uma vitrine, não importa. Eu cruzava a rua quando me deparei com ela, parada na calçada oposta.
— Está perdida? Posso ajudar?
Que idiotice essa abordagem adolescente. Um ato impensado, sem propósito.
— Não, obrigada.
Desnecessário ser despachado assim.
— Mas eu gostaria de tomar um café e estou na dúvida sobre qual deles é o melhor. — ela recuou — Você sugere algum em especial? — perguntou, casual.
Relaxei o maxilar travado instantes atrás pelo embaraço e me virei para avaliar a fileira de mesas espalhadas aqui e ali nos vários cafés daquela rua. 
— O Café Suisse — respondi sem pensar.
— É bom mesmo?
— Ótimo. O schümli deles é perfeito. Servem também os italianos, o irlandês, o escocês...
Schümli? — a risada combinava com a boca, e aquela boca ria de mim! — Eles servem também o Affogato, o Chanoniz, o Imperial?
Então era isso, ela debochava de mim sem nenhuma reserva! Melhor partir antes de um desastre completo.
Mas não aconteceu assim.
Acabamos nos sentando para um café e consumimos horas de boa conversa. Nos dias e meses que se seguiram, nossos caminhos foram se entrelaçando ao longo de jantares, vinhos, filmes, livros e carinhos.
Não sei depois de quanto tempo fomos morar juntos. As mulheres têm esse dom de guardar datas. Eu, por exemplo, conto apenas com uma boa agenda. Não foi difícil sequer me acostumar com Angélica. Se, pela manhã, as roupas dela estavam espalhadas no banheiro ou no closet, à noite não restava vestígio de nada. Se o cheiro de chocolate do meu cachimbo impregnava o ambiente, era eu quem corria a abrir as janelas da saleta para renovar o ar. Hoje, um almoço de massas leves, regado a um bom Chianti. Amanhã, uma carne rubra incandescente, cortejada por um Bourgogne relaxante.
Angélica pecava apenas por manifestar os sintomas das mulheres que amam: estava sempre em busca de beijos românticos e seu corpo não se saciava somente com o puro prazer, mas exigia palavras, diálogos, humores adequados.
Os homens não se aproximam muito do amor; são atraídos quase sempre pelos atributos da carne. Depois, às vezes, se encantam um pouco mais além. E se a coisa vai ainda mais adiante — e é certo que o "se" e o "adiante" preferem manter-se afastados em distância prudente. — só então se permitem gostar. Amor é descuido.
Eu não queria prescindir de Angélica. Ela fazia parte da minha vida, eu estava acostumado com ela, gostava dela. Então, para fugir à possibilidade de descuidar-me por causa desse gostar, passei a concentrar meus dias em hábitos antigos.
— A que horas você chega, hoje?
— Não me espere. Hoje é dia de pôquer com o pessoal.
Havia também os drinques com os colegas do escritório.
— Vai chegar tarde?
— Não sei ainda, melhor você dormir — e tarde era sempre a opção da noitada.
Em casa, programas de televisão, música, livros. As mesmas perguntas; as mesmas respostas. Então, aconteceu aquela noite de terça-feira em que o jogo da semana foi desmarcado. Que tédio. Ir para casa seria o mais lógico, mas quebrar rotinas podia se tornar um perigo. Uma vez aberta a exceção, Angélica poderia se achar no direito de me pedir para não ir outras noites, ou quem sabe iniciar aquelas lamúrias que as mulheres repetem com maestria.  Sentei-me num bar de calçada, meio perdido.
— Um Glenffidich, por favor, em copo longo. Pode trazer a garrafa e um balde de gelo. Uma água sem gás também.
Ambiente e bebida não combinavam nem um pouco, mas o garçom me pareceu feliz com o pedido. Alguns casais caminhavam rua acima ou rua abaixo, sem pressa. A agitação do local era pouca, mas havia harmonia naqueles rostos.
Reconheci Angélica pelos cabelos lisos. Ou teria sido pelas mordidas nos lábios que há tanto tempo eu não via? Não houve sobressalto em vê-la ali. Na verdade, eu nunca tinha me questionado onde Angélica estaria nas minhas noites de jogatina. Nunca perguntara a ela. Eu apenas me senti desapontado, como se o controle das coisas me escapasse um tanto. Não me inquietou ao menos olhar para o homem que se sentava à sua frente, do outro lado da rua, naquele restaurante à meia-luz. Só me senti curioso. E foi assim até que as mãos daquele homem se apossaram das dela; e as mãos de Angélica permaneceram nas dele, aconchegadas.
Depois de muito tempo me levantei daquela mesa. A névoa dos meus olhos fazia da embriaguez a única companheira da noite, e foi ela que carregou para casa o que restava da minha lucidez. Havia agora dois homens dentro de mim, e ambos me corrompiam: um queria ferir; o outro, chorar.
Tudo me pareceu tão longe até em casa. E se Angélica ainda não estivesse lá? Há quanto tempo os dois estavam tendo um caso? Vagabunda!, pensei. Vou sacudir aquele corpo devasso e gritar nos seus ouvidos palavras infames.
A porta do quarto estava entreaberta e eu senti o perfume de Angélica no nosso banheiro. Ela estava lá, refletida no espelho, limpando o rosto como fazia todas as noites. Álcool, ciúme e estupidez se combinaram em violência e eu cravei as mãos nos seus ombros. 
— Quem era aquele homem? Diga logo, vagabunda!
Esperei que ela negasse. Desejei mesmo que negasse. Quis que ela tremesse, que me pedisse perdão, que tivesse medo de mim, que chorasse em meus braços.
Mas não aconteceu assim.
— Um homem que me ama — respondeu, insensível. 
"E eu por acaso não te amo?", minha boca perplexa quis gritar. Mas a voz se acabrunhou, subitamente. De que amor eu falaria a ela? Do amor descuidado que não me permitia saber como tê-la ao meu lado? Do desprezo que eu sentia pelas suas emoções? Dos dias de solidão que eu lhe imputara conscientemente?
Não houve gritos, choros, discussões, acusações. Apenas um desespero intenso que me envolveu em angústia, medo, solidão. E antes que eu pudesse recompor as palavras, aquela boca rosada me disse:
— Eu vou embora hoje mesmo. Não vou mais voltar. Depois a gente conversa sobre o que for preciso.
Enquanto eu ardia por dentro em sensações desencontradas, ela se foi assim, em três frases. Adormeci pensando em absurdos, consumido por imagens de uma fêmea que se contorcia em dar prazer a outro homem, e ria da minha dor.
Faltam 20 minutos para o nosso encontro. Tenho pouco tempo para repassar o que quero dizer. Quero lhe provar que faço qualquer coisa por ela. Convencê-la de que é possível cultivar o sentimento. Quero que não me deixe, que não me deixe nunca.
Então, vejo-a entrar. E ao encarar seus olhos sem máscaras percebo que não se trata do que eu quero. Nenhum passado a resgatar. Ela já partiu de mim faz muito tempo.
O frio e a umidade estão entranhados nos meus ossos.  Preciso voltar e acender a lareira.






terça-feira, 15 de abril de 2014

a palhinha


Maria de Fátima


Para quieto com isso, diz ela, e ele naquele prazer de vê-la. Um niquinho de palha, um bocadito seco de alguma erva. Ele a enfiar a palhinha no decote dela. Ele a roçagar-lhe os bicos das maminhas, e ela a desviar-lhe a mão.
Um dia, e depois mais outro, sem mais do que isso: um beijinho de nada, nem língua, nem um mordisco. Assim, aquela coisa, deslavada. Um beijo, uma festinha na perna despida de saia. Só na coxa de fora, que nem pensasse ele em subir à virilha.
Para quieto, dizia ela, e ria-se, desviando-lhe a mão, sacolejando as pernas. E ele entretinha-se naquela brincadeira de roçar-lhe a palhinha nas maminhas.
Hoje, ela destapou-as, assim, num de repente.
Mas nem toques, disse-lhe. Tira daqui a mão, acrescentou, e riu-se, agarotada. Desejosa, foi o que ele pensou, mas não sabia ainda, quase nada.
Desvia essa boca, é o que diz ela, e ele nem tinha sequer pensado o gesto.
A palhinha, dançarica-a, ele, num daqueles piquinhos castanhos, muito escuros. Contorna-lhe o doirado da auréola. Que enorme que é o bico, pensa ele, e cisma. Lamber. Tocar só com a ponta de um dedo. Apertar o biquinho daquele seio que deve ser tão macio.
Para, grita ela, e ele dançaricando a palhinha, e cogitando. Apenas cogitando e nem um gesto mais do que a palhinha saçaricando.
E ela a voltar-se de lado, o rabo a sair-lhe do calção curtinho que alarga mais na perna esquerda. Devia ter o elástico lasso, ou descosera-se e ela nem notara. Fica uma nalga mais gorda do que a outra, e ele jogando a mão, e ela a encolher-se, e grita: podes ficar quieto, e ele nem percebe se o que ela diz é convite, se pedido, se ordem, e fica-lhe no ar o suposto gesto.
Deitados na manta de quadrados, debaixo da nogueira, o ribeiro correndo, manso.
Já tomaram banho, já nadaram, já comeram salada e melancia, o suco a escorrer e ela a deixar que corresse vermelho para dentro do decote, que lhe molhasse, fresco, as duas maminhas, ainda ela as não soltara do fato de florinhas.
Ela a oferecer-lhe, que ele fosse lambê-lo, e a negar-se rindo, rindo.
Ela a tirar as alças, assim num de repente, e ele a querer tocar-lhas, e ela rindo, rindo, retorcendo o corpo que lhe parece, a ele, mais gozo que brincando.
Ela deitada de lado, fingindo-lhe desprezo.
Ela respirando, muito devagarinho, o rabo com uma bochecha mais gorda do que outra saindo do calção, e as maminhas soltas apetecendo.
Ele a beijar-lhe um ombro, a lambê-lo, a afagar-lhe o braço. Ele a roçar-lhe apenas a borda do seio, a afagar-lhe as costas com os lábios, a deslizar uma mão no cabelo molhado. Ele a morder-lhe a orla rosada da orelha.
E ela muito quieta, respirando, e ele a segurar-lhe, devagar, a medo, a nudez rechonchuda da maminha esquerda.
Ele a encostar-se, e ela que se roda inteira.
Ela quase nua, e o céu a dar-se em chuva, bagos grossos, e eles revolteando, nem sabe ele se de maminhas, se de rabo, se de ombro, se de que parte do corpo. Repuxa-lhe, ela, o calção de banho. Segura-lhe entre as mãos o sexo. Num repente, afaga-o como se fora beijo.
Para com isso, está quieta, diz ele, e sabe que mente. Ele espantado dela que ainda sabe tanto ao sabor da melancia, e ela rindo.
Ri-se muito. Dobra o riso, quase em gargalhada. Diverte-se.
Vermelha a boca dela, como se fora fruto a ficar maduro.
As maminhas, soltas, bailam-se, muito virgens, e ele agarra-as, vagaroso, beija-as,  suga cada um dos bicos.
Ele e ela inventando gestos no corpo um do outro, em cima da manta de quadrados, junto ao rio.
Ri-se ela, e ri-se também ele. Riem-se, muito, os dois.
E a chuva a cair. A chuva, muito fresca, a misturar-se aos líquidos dos seus corpos.



(sobre a manta, uma palhinha olha-os)





segunda-feira, 14 de abril de 2014

A Cega


"Sua prata tornou-se escória."

(Isaías, 1: 22)


Foi de repente.
Quando vi, minha vizinha já tinha abaixado minhas calças.
Ela era cega e foi até o fim, chamando-me com o nome de seu marido enquanto brincava comigo.
Eu era apenas silêncio.


Eu e Ângelo somos amigos de infância.
Ele casou com a ceguinha do bairro por pressão da família. Fez barriga.
Tomávamos cerveja todo final de tarde na casa dele. Mas depois do que aconteceu, me isolei em casa. Não atendia ao telefone nem a porta; saía apenas para trabalhar.


Estava assistindo a um programa fajuto na tevê, quando minha vizinha bateu à porta. Queria fingir que não estava, mas achei melhor conversar com ela. Resolver a questão. Mas não sabia o que dizer.
Abri a porta sem coragem de olhar para aqueles olhos opacos.
Ângelo quer saber por que você sumiu. Tá doente?
(Porque estou morrendo de remorso. E você nem desconfia o porquê.)
É, não estou muito bem.
Ele quer falar com você.
(Nada fica encoberto. Vocês já descobriram?)
Eu não sei se eu posso.
Não seja bobo.
(Mas como é que eu vou olhar pra ele? Todos os dias, fico remoendo e pensando no que fiz com você.)
Eu tenho coisas pra fazer.
Não tem, não. Eu sei o que está acontecendo.
(Você descobriu tudo. Vai me jogar na cara o que cometi. Eu não presto. Eu sou escória. Aquilo foi imperdoável. Eu devia ter tentado evitar.)
Não se preocupe comigo, vizinha.
Ângelo não sabe o que fizemos. Eu não contei pra ele.
O que você disse?
Eu sabia desde o início que eu não estava com meu marido.
Você sabia que era eu?
Claro.
Mas você me chamava pelo nome dele.
Foi pra ficar mais interessante.
E como sabia que era eu e não o Ângelo?
Cada macho tem um cheiro diferente.
Como?
Ângelo não tem cheiro nenhum.



Este conto integra o livro Sísifo Desatento, que será publicado em maio deste ano, pela editora Terracota.





VICO

                                                                                                                   VICO

Cecília Maria De Luca                                          

Quando o vi pela primeira vez, mal cabia na palma da minha mão estendida. Trocamos olhares desconfiados, aquela bolinha de algodão e eu. Passados cinco minutos eu já estava apaixonada, enquanto aqueles dois olhinhos de jabuticaba ainda me fitavam com medo e desconfiança. Meia hora depois, restou vencido, cheio de amor por mim. Já daquele tamanhinho correu pela casa toda, reconhecendo o terreno e marcando território.    Em poucos dias aprendeu onde fazer suas necessidades, mas, quanto ao local de dormir, não teve jeito, sempre foi no tapete, bem ao lado da minha cama.

Como era inteligente aquele danadinho.  Conhecia o timbre da minha voz e sabia exatamente o que fazer quando lhe ordenava qualquer coisa. Sabia quando eu estava triste, alegre, preocupada, brava, enfim, conhecia-me mais do que qualquer pessoa e reagia sempre da maneira mais acertada. Era a minha sombra adorada.

Quando eu estava trabalhando eu o sabia em casa me esperando. Ao chegar, era uma festa só, quase me sufocava, tanto latia e me lambia, seu rabinho girando loucamente. Quando eu viajava, eu o sabia em depressão. Ao regressar, me olhava ressabiado, ofendido com tanta ausência e era eu quem quase o sufocava de tanto que o abraçava e beijava pedindo perdão.  E ele sempre perdoava, voltando a me lamber e a abanar o rabo.

Vez em quando me tirava do sério. Era assim quando exigia que eu lançasse sua bolinha, incansavelmente, por mais de hora seguida, ou quando latia desesperado de ciúme ao ver-me abraçar um amigo ou brincar com outro animalzinho qualquer.

Vico era um lorde. Era um cão diferenciado, tal a sua elegância. Tinha a mania de levantar uma das patas dianteira antes de enfrentar qualquer terreno ou pessoa desconhecidos. Fazia esse gesto com tal graciosidade que era impossível não arrancar um sorriso de quem quer que fosse. Parava as pessoas na rua para admirá-lo. Enchia-me de orgulho.

Era o xodó no “pet shop” onde tomava banho, mas detestava quando lhe punham uma gravata ou o enfeitavam de qualquer forma. Enquanto não arrancava tudo, não sossegava. Era como se sua dignidade ficasse arranhada. Eu entendia e não permitia que lhe vestissem qualquer coisa. Afinal, Vico era um cão, tinha orgulho de assim ser e era assim que queria ser tratado. E como era valente o meu amigo! Enfrentava cachorro grande como se grande ele fosse. Chegava a ser agressivo com estranhos. Quando eu ralhava com ele, me olhava com olhos de orgulho de macho. Só de uma coisa o meu machinho tinha medo. Era do barulho de foguetes e trovões. Aliás, até com o estalido de bombinhas ele se apavorava. Nessas horas se achegava com o rabinho entre as pernas, tremendo feito vara verde, e me olhava com olhos de pavor. Eu o pegava e o acariciava até que se acalmasse.

Nunca mais me esqueço do dia em que chegou. Naquele mesmo dia, à tarde, perdi uma grande amiga. Reagi como sempre reajo quando alguém que amo muito vai embora. Costumo sentar no chão, encostar-me à parede e chorar desconsoladamente.  Acho que é um mecanismo inconsciente. Um precisar de algo sólido, firme o bastante, que segure minha alma, impedindo que ela escape me levando junto.  Vico ficou sentadinho na minha frente, inclinando a cabecinha ora para um lado, ora para outro, me olhando com olhos de presença. Parecia saber que só de tê-lo ali, pertinho de mim, já era um grande consolo.  E, nesses quase doze anos de convivência, sempre foi assim. Nesses doze anos perdi amigos, pais, irmãos e sempre, nessas horas terríveis, ali estava o Vico, perto de mim, inclinando a cabecinha de um lado para o outro, lambendo minhas lágrimas, me olhando com olhos de amor.

Nos momentos alegres, e foram muitos, Vico também estava ali, saltitando, dando voltas, correndo de um lado para o outro, me olhando com olhos de vida plena. Na casa de campo era uma festa. Todas as árvores, plantas e flores foram batizadas e rebatizadas por ele. Corria pelo jardim feito um corisco e que alegria ver aquela mancha branca como a neve contrastando com o verde intenso do gramado! Que paz senti-lo no colo ao apreciar o por do sol!  Que delícia, nas noites frias ou quentes, ir ao jardim antes de dormir, hábito meu, olhar para o céu estrelado, para a lua cheia ou minguante, sempre com ele ao meu lado. Nessas noites, quando me demorava a entrar, ele ia para a porta, latia e me olhava com olhos de sono.  Ah, Vico, que amigão você era!

Vico foi um cão saudável. Só visitava o veterinário para as vacinas de praxe e para limpar os dentes. Não me dava o menor trabalho nesse sentido.  Entretanto, um belo dia, quando ele já tinha oito anos de idade, percebi que, depois de uma corrida, arfava mais do que o normal. A partir daí, quando se assustava, sua língua, sempre vermelhinha, adquiria um tom arroxeado e, nessas horas, parecia que ia desfalecer.  O diagnóstico foi “traqueíte congênita”, e a receita, evitar corridas e sustos. Escondi a bolinha, mas era impossível segurar o Vico quando ele via uma cadelinha na rua, ou evitar que ele pulasse feito cabrito quando eu chegava do trabalho. Era impossível também impedir o barulho dos trovões ou dos foguetes. Contudo, e apesar de tudo, Vico e eu convivemos com sua “traqueíte” sem problemas, levando uma vida, que poderia dizer, normal.

Vico foi envelhecendo comigo. Seu focinho negro, antes tão brilhante, começou a raiar de branco. Ameaçava correr quando via algo que o interessasse na rua, mas logo desistia e me olhava com olhos de cansaço.  Seus passos foram ficando mais lentos e lá, no campo, já não corria pelo gramado, já não me acompanhava ao mirante para apreciar o céu. Ia, no máximo, até a varanda onde ficava a me esperar para entrar. Depois, nem isso. Preferia ficar deitado sob a cama ou no tapete da sala quando lá eu ouvia música ou assistia à televisão. Trocávamos olhares longos e angustiados. No entanto, como eu disse, Vico era valente. Foi vivendo assim, sempre a me fazer companhia, eu já aposentada. De manhã, única hora do dia em que ele esboçava algum entusiasmo, caminhava pelas ruas, só que agora devagarzinho, quase parando.

Dia desses aí atrás, fim de inverno, Vico estava bem. A mim me pareceu que ele até criara alma nova. Andou mais ligeiro pela casa e, não fosse pelo fato de que se recusara a comer, eu diria que Vico ficaria comigo mais uns dois anos. Foi dormir como sempre, na hora em que fui para o quarto, deitando-se ao meu lado.  No meio da noite, Vico latiu. Um latido só. Pensei em acender a luz e verificar se estava bem. Mas ele se aquietou, então eu dormi.  E Vico também dormiu. Só que eu amanheci e Vico não.  Até para morrer ele foi elegante. Deixou para mim seus olhinhos abertos, fixos e cristalinos como dois cristaizinhos a me olhar com olhos de adeus. Um fio vermelho discreto riscava seu pelo branco no canto da boca. Chorei desconsoladamente, como sempre sentada no chão e encostada à parede. Só que desta vez, Vico estava inerte nos meus braços. Não mais sentado à minha frente, a inclinar sua cabecinha de um lado para o outro, a me olhar com olhos de consolo, a lamber minhas lágrimas de saudade.

E agora Vico? E agora que não o sei em lugar algum, como é que eu fico? Como andar pelas ruas, pelo jardim do chalé, passar por todos os seus territórios, sem você? Como dormir sem ouvir o seu ressonar ou os seus passinhos pelo quarto? E agora Vico? Cadê você? Sabe, ainda estamos no verão. Temporada de chuva com raios e trovões. Será que você os ouve? Será que ainda tem medo?

Meu grande companheirinho, vou lhe contar um segredo. Quando chove como hoje, quando os relâmpagos riscam o céu, seguidos pelos estrondos, eu fico a tremer, também com medo. Só que agora não preciso fingir que sou corajosa. Você não está no meu colo, você não está mais aqui e isso de certa forma me consola... Consola?!
 
Ah, Vico, quanta ausência, quanta dor, quanta saudade!





sexta-feira, 11 de abril de 2014

Cotidiano



olhares sombrios, sem expressão
mãos caídas
pernas compridas
caminham
em suas tarefas inexpressivas, alimentando o sistema bizarro
e os velhos com seus rostos deformados
como caricaturas,
caminham, silenciosamente, entre seus narizes compridos e empelotados


 
The End





quinta-feira, 10 de abril de 2014

Por que a Copa poderia ser a melhor coisa que já ocorreu ao Brasil?


Henry Alfred Bugalho

Nenhum outro evento expôs nossos problemas de maneira tão evidente quanto a Copa. São temas dos quais o brasileiro sempre reclamou, em casa, entre amigos, na fila do mercado ou no ponto de ônibus, como corrupção, abuso de poder, desorganização, atrasos, malandragem, ganância e a nossa falta de seriedade.
Talvez pela primeira vez estamos vendo o nosso retrato estampado nestes estádios inacabados, os mais caros da História, em toda a falta de organização e planejamento do evento, e este retrato está sendo exibido para todo o mundo.
Quando enfim o gigante parecia haver acordado, com as grandes manifestações do ano passado, ele rapidamente vestiu de novo o pijama e voltou a dormir, outro exemplo clássico de nossa incapacidade de realizar mudanças duradouras e eficientes.
Todos temem o pior, inclusive a própria FIFA, e muitos gringos estão com medo do que poderão encontrar no Brasil, desde o custo excessivo de tudo até a violência sem controle. Se a Copa da África do Sul já foi considerada um fiasco, temos tudo para superá-la, dos piores modos possível.

Mas o problema essencial do Brasil não é governamental, a raiz de todos os males está em nosso próprio comportamento, em nossa natureza nacional de sempre tirar vantagem em tudo.
Quando alguém devolve um item valioso ou uma grande quantia em dinheiro para seu respectivo proprietário, isto vira notícia no jornal. E ainda assim é considerado um otário por muitos, instigando com que nós nos façamos a questão: "Eu teria feito o mesmo? Depende do valor..." (risinhos)

A corrupção dos nossos políticos é tão somente um espelho da nossa própria corrupção moral. Lembro-me de uma frase de algum dos mensaleiros: "Fiz porque todos estavam fazendo".
E é esta a nossa atitude secular. Fazemos porque todos estão fazendo, mas isto nunca nos levou a lugar algum, somente criou um estado insustentável, todo um país onde quase nada funciona, que se tornou uma piada global da qual somos os protagonistas e, ainda assim, somos os que mais estão rindo dela.

Muitas das mudanças significativas necessitam de revoluções para ocorrerem. No entanto, talvez nós precisemos do futebol, o único assunto que realmente levamos a sério, para, finalmente, realizarmos alguma mudança.
O fiasco da Copa é também o nosso fiasco como cidadãos, mais do que isto até, é o nosso fiasco como pessoas morais.

Nós somos e fomos sempre assim, mas até quando?