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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Juízo final



Reduzidos pelo fogo
ao carbono essencial

devolveremos ao mundo

o calor perdido






terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O caso Dodô


As referências ao estranho caso de Dodô são escassas e pouco elucidativas. Foi ao folhear números do Jornal de Anadia do ano de 1965, em pesquisas etnográficas, que encontrei uma pequena notícia no fim de uma página par. Não consigo reproduzir o texto, porque entretanto perdi a cópia, mas lembro-me que tratava de uma mulher que se tinha suicidado, após ter assistido a uma apresentação do Coro Paroquial de Arouca, no Teatro Bairradino. A notícia referia que o grupo coral carregava um histórico de outras mortes inexplicadas de espectadores e levantava suspeitas sobre uma possível influência perniciosa da soprano principal, a tal Dodô. Na altura, não lhe atribuí grande credibilidade. Sabemos bem como, por vezes, se empolam e se adulteram factos com “explicações” sem qualquer relação de causalidade.
Quis o âmbito da minha pesquisa que eu consultasse outros jornais da zona centro, algum tempo depois. O Vouzelense forneceu-me a segunda referência a Dodô: após o espetáculo coral na Casa do Povo, um homem atirou-se do viaduto ferroviário para as rochas. Não se conheciam à vítima problemas económicos ou depressivos. Desta vez, a curiosidade obrigou-me a maiores empenhos. Alarguei a minha pesquisa etnográfica ao jornal de Arouca, na esperança de encontrar outras referências a Dodô, na sua própria terra.
No Arouquense, em todos os anos de meados de 60, foram noticiados um ou dois casos funestos com espectadores do coro paroquial. Depois de vasculhar os arquivos do jornal, comecei a fazer perguntas pela terra. As memórias estavam invariavelmente “apagadas”, mas depois de ser empurrado de um lado para o outro, dei com um ancião disposto a falar. Era um ex-professor primário e tinha teorias próprias:
«Sim, conheci-a muito bem. Chamava-se Maria das Dores. Era de uma aldeia da Serra. Farta de frios e malpassar, veio para criada de servir, para uma casa dalém. Até aqui, tudo normal. No princípio da década de 60, o padre, influenciado pelo espírito do Vaticano II, resolveu criar um coro, e ela foi das primeiras a aderir.»
«O senhor nem imagina. A miúda tinha uma voz! Ia para lá do que é humano. O canto dela tocava-nos onde nada mais nos atingia. Ouvir o seu atormentado agudo de soprano solar o Stabat Mater Dolorosa, sobre os graves de mau agouro dos baixos, compungia todo o auditório. Parecia que entrevíamos o fim do mundo, cataclismos inomináveis. Inundava-nos uma angústia tão grande que se, no fim da peça, olhássemos em volta, iríamos deparar-nos com muitas faces inundadas de lágrimas. Havia quem soluçasse incontroladamente. Não me admiro que algumas pessoas não tenham aguentado e tenham praticado atos tresloucados, como diziam os jornais.»
«A música tem o que se lhe diga. Não sei se o senhor sabe, mas aquelas notas têm relações matemáticas exatas entre elas, que já Pitágoras tentou desvendar. Na Idade Média, a Música era uma das sete artes liberais que os homens ilustrados deviam estudar, como a Aritmética, a Geometria e a Astronomia. E é perigosa, sabe? Há algo de mágico e maligno naqueles doze tons. Doze, como os signos do Zodíaco. E como os apóstolos, em que um traiu. A música entra no nosso espírito sem licença, sem nós querermos. Retine e ecoa no mais íntimo de cada um. É absolutamente intrusiva, violadora, manipuladora. Nós podemos estar muito satisfeitos da vida, mas se formos atingidos pela melodia certa, podemos ficar taciturnos e sentir-nos os mais miseráveis dos humanos. Era o que acontecia quase sempre que Dodô atuava.»
No dia seguinte, rumei à aldeia de origem de Dodô, nos altos da Serra da Freita. Era um lugarejo humilde, quase miserável, encaixado numa dobra da serra, em que as habitações confinavam com currais, e as poucas pessoas conviviam com todo o tipo de detritos rurais. Consegui localizar uma prima, já bem velha, que me facultou alguma informação mais íntima.
Contou que, quando iam as duas buscar as vacas, no fim do dia, Dodô parecia por vezes embeber-se daquele silêncio global, só céu e serra, e ficava muito parada, como se contemplasse algo peculiar, que só ela via. Então, lançava um canto dorido que se estendia pela superfície do planalto escalvado, alcançava as serras mais afastadas e regressava num eco transmutado, entremeado por reverberações fantasmagóricas como miragens. Contou que, nessas alturas, toda a sua pele se arrepiava, como se uma multidão de pequenos seres invisíveis as envolvesse.
Para Dodô, aquele eco parecia funcionar como estímulo, e prosseguia em repetições de outros cantos, outros enleios, sempre tristes. Certo dia, com o eco, vieram lobos. Seis, cinzentos e de olhos amarelos. Contou que ficou paralisada de pânico, certa de estar no seu último dia, mas Dodô enfrentou os lobos, com um canto da serra, nostálgico, mas firme e destemido. As feras estacaram surpreendidas e, perante o tom enérgico e uivado do canto de Dodô, afastaram-se, dando mostras de algum receio. «Ela nunca falava nisso, mas, um irmão, um pouco mais novo, um dia perdeu-se na serra, ou caiu nalguma quebrada, e foi atacado. Quando o encontraram, estava quase todo roído pelos lobos.»
Resolvi visitar o planalto onde ambas se tinham confrontado com os lobos. Como então, o dia chegava ao fim. A aragem fria e sussurrante trazia apelos, rumores, ameaças. Em certo momento, o murmúrio cortante pareceu-me um canto humano, uma queixa dorida e muito aguda. Nunca me senti tão sozinho. Após uma luta de minutos contra a superstição e o medo, dei-me por vencido. Desatei a correr sem olhar para trás, absolutamente aterrorizado.
Abandonei ali a minha investigação da figura e da personalidade de Dodô. Nem quis visitar a sua campa. Só resolvi contar tudo isto agora, vinte anos depois, porque me lembrei do caso ao ler notícias recentes de um estranho suicídio na Serra da Freita. 

Joaquim Bispo
*

Imagem: Caspar David Friedrich, Montanhas dos Gigantes, 1835.
Museu Hermitage, São Petersburgo.

* * *





quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O NEONATAL

Vésperas de Natal, 2018.
Esperança que ânimos receberiam
panos quentes, diferenças seriam esquecidas,
certos assuntos delicados evitados.
- Vai ter Natal este ano?
- Vai, na casa da Tia Leninha. Como sempre.
- Vai todo mundo?
- Ah vai, o Natal é mágico para as crianças.
- E os adultos?
- Bico calado. Só vale falar do calor e das rabanadas.
- Hipocrisia.
- Relaxa, não vai ser diferente dos outros anos.
- Verdade. Vamos todos pelas crianças.
- Ah, detalhe: não vai ter amigo oculto.
- Tá certo. O clima está para inimigo declarado.
E chegou a noite. Todos lá. Uns falavam do Palmeiras,
outros do filme do Queen, um grupinho mais separado
comentava Spike Lee. Muitas bobices simpáticas.
Claro, havia um constrangimento no ar.
- Bonita a sua saia.
- É do ano passado.
- Que crise, hein? Mas agora tudo vai melhorar.
Silêncio.
- Esse seu tênis deve ser muito confortável.
- É. Parece que estou descalço.
- Descalço, mas com o rastro da Nike.
Silêncio.
- O que é isso?
- Gin Tonica. Voltou a moda.
- O que são essas bolinhas pretas?
- Zimbro.
- Deus-me-livre, parece cocô de cabrito.
- É de coelho. Afrodisíaco.
Silêncio,
- Você viu o show do Roberto Carlos?
- Sempre igual. Preferi o filme do reloginho da Globo.
- Muito bonito.
- Que produção!
- Sempre me emociono.
- Pena que é da Globo.
Silêncio.
- Pessoal, vamos servir a ceia.
- E os presentes?
- Depois, meu filho, sempre depois.
Tia Leninha, em sua ingenuidade generosa, apareceu da cozinha.
- Queridos, fiz um prato novo.
- Até que enfim! Uma novidade!
Tio Genilson  bateu continência para anfitriã.
Alguns morderam a língua, engoliram o prosecco a seco, outros
repetiram o gesto. Mas todos rodearam a mesa.
- Ora, vejam!
- Arroz de lula!
À primeira piadinha, seguiu-se um respostão, logo depois
a réplica, a tréplica e, claro, o charivari instaurado.
Dedos em riste, perdigotos traçantes, veias saltadas.
Não houve tempo para silêncios respeitosos.
Tia Nancy saiu com fragmentos de rabanada no laquê.
E as crianças só foram receber os presentes em casa,
dias depois.





sábado, 15 de dezembro de 2018

Bala[n]ço








Me ensinaram a chamar de alma esse lugar que dói. E me disseram que é cruz para se carregar no lombo a vida inteira a estrada que impede qualquer mudança no roteiro. Ao longo da trilha, a impotência das verdades que nos assumem devagar, subliminar e sub-repticiamente. E uns poucos bálsamos disfarçados. Pequenos alívios impedindo as têmporas do estouro final. Reprimindo o corpo das vontades de fim. Estrada comprida, fustigando os pés no caminhar ininterrupto sobre pedras sujas, feias, irregulares, pontiagudas. Vitrine de convites. Um pulo para o nada. Um frasco de químicos permitidos. Um cilindro de chumbo de ponta oca. Um talho ou dois a gume afiado. Um passo para a frente do caminhão sem freios. São machos os atalhos. Fêmea é a trilha. Que descarta os desfechos que sujam de miolos as paredes brancas ou respingam carmim no tapete do quarto. Fêmea. Como estrada / escolha / dor / solidão / realidade / rejeição / tortura / desistência. Ou como a morte, híbrida. Ou como a resistência, inútil.
Me ensinaram tantas coisas. Que chorar é na cama ou no banheiro. Eu choro embaixo do chuveiro. Mas ele chora melhor do que eu. Sem soluço. Sem nariz vermelho. Sem inchar as pálpebras. Sem pudor. Chora. Em mim. Comigo. Por mim. E em nossa pororoca desconexa, são dele as águas doces que me dessalgam as margens. Ele chora livramentos. Eu choro constrangimentos, ridículos, desatenções, afetos ignorados, amores que morreram, amores que viveram para outros amores. Até que nos calamos juntos. Exaustos. Enfim, uádis. 
Me ensinaram sobre os ventos violentos que antecedem as calmarias. Mas nunca me responderam sobre os que sopram depois. As calmarias me inquietam, emissárias de repentes. Prefiro a alma e os cabelos revirados por minuanos. Os marasmos me foram e me são enganos muito caros.  
Me ensinaram também, e muito, sobre os homens. Que me dariam amor. Que me trariam intensidade nos olhos, que me enxergariam para além das fronteiras das carnes, que me fariam poemas ou músicas, que me seriam abraço e riso. 
Foi a primeira vez que me ensinaram mentiras. 
Talvez se tivessem me ensinado sobre o sexo. Sobre as trepadas. Sobre os gemidos se sobrepondo ao vazio das palavras. Sobre os falos ávidos excursionando a vagina ávida. Sobre os roçares das bocas molhadas nos peitos duros de tesão. Sobre os sabores e cheiros das peles e dos fluidos. Sobre as partidas honestas, sem despedidas ou promessas. Sobre essas coisas fáceis de suportar.
Talvez se tivessem me dito que o amor não vem para todos. Que o amor não faz parte de algumas bulas e cardápios. Que o amor não está entre os bálsamos disfarçados nem entre os pequenos alívios.
Talvez se tivessem me ensinado a não sentir. 








terça-feira, 27 de novembro de 2018

Tormento



O tilintar do desespero

um chocalho de moedas
tremulando nas coxas do cego






segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Memórias de um piano


Sou um piano afetivo. Minha memória sensorial retém tanto melodias doces e arpejos esfuziantes quanto desempenhos trôpegos e experiências acidentadas. Conheço bem a minha senhora e sou fiel a ela. Gosto quando suas mãos passarinham sobre o meu teclado, quando ela se atreve a exaurir minhas cordas num exercício de mil ritornelos. Não faço música sozinho. Só emito sons quando bolinado. Posso ir do pp ao FF dentro dum mesmo compasso, manter a pulsação ou vacilar no tempo, mas sempre conforme as oscilações que ela imprime à vida dela, à minha vida, à nossa.

Aprendi a amar essa criatura que geralmente não me dá a atenção que mereço, mas que de repente aparece para me descobrir e estimular sorrisos em meus incisivos de marfim. Somos unidos desde qualquer antes e para qualquer sempre. Sou-lhe instrumento, sim, mas tenho também o meu poder como piano de estimação: é diante de mim que amiúde ela se prostra.

Estamos juntos há um tempo considerável. Ela ainda era menina de 13 para 14 anos quando me plantaram na sala do sobrado. Fui um presente dado pelo pai e pela mãe dela, adquirido num período instável, de turbulências financeiras. Oferenda singular e extravagante. Ela se surpreendeu quando me viu lá no canto, madeira lustrosa, porte imponente de Fritz Dobbert, todinho pra ela, todinho dela. “E agora? Vou ter de estudar de verdade?” — pensou. “Que lindo. Será que eu mereço?” — disse.

De lá pra cá, ela já deu uma boa melhorada na técnica e interpretação, mas nunca chegou ao virtuosismo que almejei. Vez ou outra consegue tirar um som bonito num estudo de Chopin, mas logo engasga na escala descendente da mão esquerda. Não venceu a dificuldade das oitavas nem dos acordes cheios. Mistura o canto com o acompanhamento. A postura das mãos ainda não é favorável. Titubeia na dinâmica e nunca chega ao andamento exigido. Apresenta músicas com sujeirinhas que não se limpam. E o pior: não faz nada de ouvido, não compõe nada, não reproduz nem MPB, toca sempre apoiada na bengala da partitura. Tem até um bom repertório, mas com capacidade de memorização nula, coitada.

Há pianos que formam estrelas. (Vocês devem ter visto o vídeo do Elton John e seu primeiro piano — https://www.youtube.com/watch…. Emocionante.) Eu não. Sou piano modesto, de pianista meia-boca. Teimosa e apaixonada, no entanto medíocre. Mas já me conformei. Eu simplesmente obedeço, reagindo com sons de zelo e cumplicidade. Um piano escravo, feito justamente para a pianista a quem fui consagrado.

Sou um piano de querenças e sempre me emociono junto com ela. Aceito as condições dessa mulher que me toca e que hoje faz 45 anos. Ela me leva aonde vai. Meu destino é ir com ela, estar com ela. Já passei por quatro mudanças e, ao longo do tempo, sofri avarias físicas e mesmo psicológicas. Um piano também envelhece, sabe? E se reconhece menos atlético e mais sujeito ao adoecimento. A afinação não está durando muito. O clima de Brasília me faz cada vez menos bem. Estou precisando de um novo jogo de cravelhas e conserto nos pedais. A cachorrinha nova, xodó da casa, agora deu de querer roer meus pés.

Também lamento alguns deslizes dela. Não a vi de noiva, por exemplo. Eu sonhava com o buquê sobre a minha caixa, e ela tocando a Marcha Nupcial com o vestido branco e chapéu charmosinho. Acho que o noivo também queria isso. Mas ela nos decepcionou.

Quando ela largou a solteirice, tive de acompanhá-la pro novo lar. Soube que os pais dela se queixaram do silêncio causado pela minha falta. Meu lugar ficou intocável por muito tempo, curtindo o vazio da ausência, até eles se acostumarem.

Conheço demais essa mulher. Para cada situação, ela vem com um toque diferente. Toda alegria e toda dor interferem na música dela e nos transformam. Acompanhei suas primeiras desventuras amorosas, os estudos pré-apresentações, as conquistas acadêmicas e profissionais, tive saudade quando viajou e demorou a voltar, percebi sua expressão pungente nos momentos de doenças e mortes na família, acompanhei sua mudança hormonal durante cada gravidez e cheguei a sentir as primeiras contrações uterinas. Ela adorava tocar de barrigão quase explodindo. Admirei quando, por tanto tempo, ela se fez alimento para as filhas. Também estive solidário quando dos sangramentos indesejados, entre outros desmanches de sonhos. Estive pertinho dela quando do câncer de tireoide e quando dos exames mais chatos. Estarei presente também na menopausa e na aposentadoria dela. (Quem sabe neste período sobre mais tempo para ela estudar?)

Respeito seu silêncio quando me evita, mas sempre torcendo para que volte logo a percorrer meu teclado alvinegro. Vejo sua felicidade quando ensaia e toca com as filhas, quando faz dueto com o irmão, quando improvisa um louvor a Deus, quando arrisca uma canção declaração de amor para o marido, quando interpreta Chiquinha Gonzaga, quando reúne os amigos para um sarau (e treme sempre, receosa de errar toda nota). Sei quando ama uma música e quando odeia uma música. Sei quando está me tocando por prazer e quando está repetindo um exercício de técnica por obrigação. Nunca será uma instrumentista profissional, mas, que maravilha, é amadora!

De vez em quando ela lê em voz alta os poemas e crônicas que escreve para mim. Apareço como personagem importante na seleta dela. Desta vez, o autor do texto homenagem sou eu. A convivência com ela me tornou este piano metido a escritor. E toda palavra aqui é feito abraço, é feito canção, é feito parabém.

Enquanto essa mulher madurece, vamos juntos e felizes, nos sensibilizando mutuamente. Enquanto ela se curva aos meus encantos, a música da vida vale a pena.

Piano da Maria Amélia Elói





domingo, 25 de novembro de 2018

Do lado de fora


Com o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano em que tal aconteceu. É provável que fosse outono.
A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo, talvez por se envergonhar da maior exposição a que se sujeitaria. Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter mais de cinquenta anos, mas nestas situações de fragilidade social é um pouco difícil fazer uma avaliação etária rigorosa.
Nunca soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua. Habituámo-nos à sua presença e quase nos passava despercebido. O incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos, porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida, não dizia nada literalmente. Nas várias tentativas que os vizinhos mais piedosos fizeram, perguntando-lhe se tinha família, se precisava de alguma coisa, obtiveram sempre a mesma reação. Ele virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Várias vizinhas lhe levavam comida, de vez em quando. A mais admirável era a velhota indiana que trazia do minimercado um saquinho de plástico já com víveres separados e que entregava ao homem. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com a cabeça e recolhia-se.
Certa vez, tendo eu achado uma chave junto à porta, achei que tinha um bom pretexto para interagir com ele e, eventualmente, pô-lo a falar. Abordei-o e pedi-lhe que a desse a quem a tivesse perdido. Aceitou. Um ou dois dias depois, apontou-me umas palavras a lápis no mármore, informando que a chave era da mulher da limpeza, escritas com uma excelente caligrafia. Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria tido uma vida bem mais confortável.
Esta recusa em comunicar foi talvez um obstáculo a que alguém conseguisse aliviar-lhe o mal-viver. A sua atitude asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá por quê. Lembro-me de muitas noites, de vários invernos, em que eu, chegando do trabalho pelas duas ou três da madrugada, o via a dobrar-se em cima do cartão, talvez com fome, talvez com dores de alguma mazela que se desconhecia. Algumas vezes acreditámos que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.
Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno, para saber por onde gastava o tempo. Levantei-me com o raiar do dia, mas quase se me escapava. Com a sua carga de sacos às costas, foi percorrendo o caminho para Loures, através da Quinta Nova. Ali, sentou-se uma boa hora à sombra de uma figueira, mastigando algo indefinível. Perto do meio-dia, atravessou para o Olival e, numa rua interior, aproximou-se da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso direito do sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e afastou-se em direção ao Vale do Forno. Um pouco antes, subiu uma vereda na encosta, até uma antiga fonte, com vista sobre o vale de Odivelas. Nesta parte, foi difícil segui-lo sem me expor, apesar de estar disfarçado com um boné e uns óculos escuros. Dei uma volta larga e aproximei-me do local numa posição sobranceira. Libertara-se da carga de sacos e estava sentado num banco de pedra, a olhar o vale. Tirou o embrulho do bolso e começou a comer, pausadamente, como quem não tem apetite. Devia ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera. Eu próprio já sentia o estômago a reclamar, pelo que desci o monte e comi uma sandes de ovo e chouriço, numa cervejaria, mas voltei rapidamente ao meu posto, com medo de lhe perder o rasto.
Não havia pressa. O almoço tinha acabado, mas não a digestão. O meu vizinho circunstancial estendera-se ao comprido no banco de pedra e parecia dormir a sono solto. Nada mais me restava que esperar. Ou ir-me embora. Resolvi ficar. Durante umas duas horas, entretive-me, eu próprio, a contemplar o vale, com a ribeira e as pequenas hortas clandestinas, rodeadas por prédios a perder de vista. Sem dúvida, era uma vista esplêndida. Era de estranhar que os prédios ainda não tivessem invadido as hortas.
Feita a sesta e reposta a carga, o meu vizinho — como seria o nome dele? É incrível como nos interessamos tão pouco pelos outros — atravessou novamente a ribeira e dali subiu o Bairro dos Pombais. Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto com umas árvores, e ficou-se a espreitar longamente algo lá longe, do outro lado do riacho. Passado um bocado, percebi que se agitava com o que estaria a ver. Lá em baixo, nada de especial acontecia: a mesma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal nas traseiras, em que alguns tinham improvisado galinheiros e outros procuravam ganhar terreno à ribeira para fazer horta. Ao voltar os binóculos para o meu vizinho, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. O que havia lá em baixo que lhe provocava esta comoção? Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção: duas crianças de uns quatro ou cinco anos brincavam despreocupadas num dos quintalecos, correndo atrás de uma galinha.
Estava descoberta uma ponta do segredo do vizinho. Apostaria que havia ali família dele. Seriam as crianças seus filhos? Ou netos? Ou, tão só, sobrinhos? Alguma ligação profunda existia entre o estranho vizinho e aquelas crianças. E, claro, as crianças teriam pais ou avós dentro de casa. Ou que chegariam mais tarde. Porque não se aproximava mais era, certamente, a chave do enigma.
Meditando sobre o assunto e congeminando das mais simples às mais abstrusas hipóteses, segui-o o resto do dia, só para cumprimento do plano decidido. Regressou placidamente às arcadas do meu prédio. E eu a casa, embrenhado nos mais piedosos pensamentos e imbuído das mais caritativas intenções.
No silêncio da noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio, eu tinha dormido pouco e tinha sono. Nem sabia muito bem aonde me devia dirigir. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência. Mais dias passaram, há muitas coisas para fazer, as anteriores preocupações são substituídas por outras mais frescas e tudo passa.
Aparentemente, terá havido pessoas e entidades que quiseram tirá-lo dali, mas ele sempre recusou. Uma vez, já no fim dos cinco anos que ali passou, vi uma mulher, acompanhada de uma assistente social da autarquia, a tentar convencê-lo a ir com elas. Sem êxito. No entanto, talvez um mês depois, aceitou relutantemente sair dali com a tal mulher. Correu o boato de que era filha. Que dramas escondia ele, que misérias estavam por detrás daquela situação, nunca o soubemos. Ou nem quisemos saber.

Joaquim Bispo
*
Esta crónica narrativa foi classificada em 45º lugar, em 134 candidatas, com a pontuação de 75%, no Concurso Literário Prêmio Flor do Ipê Antologia 2017, da Universidade Federal de Goiás, Brasil.

*
Imagem: Dominguez Alvarez, Louco, 1934.

* * *






terça-feira, 20 de novembro de 2018

O descasamento de Mirna e Raul

- Já deu.
- Já deu.
Não houve DR, nem louças quebradas. A indiferença decidiu.
22 anos de casados. Nenhum filho. Nenhum projeto comum.
Nenhum grupo de amigos assíduos. Nenhum cachorro.
Nenhum um gato. Nenhum hamster. Nem família tinham mais.
Todos os parentes bem distantes. Ou já falecidos.
- Já deu.
- Já deu.
A conclusão, pelo menos, foi a dois. De resto, nada de
afinidades. Ele, futebol, ela, paciência no celular.
Ele, exatas, ela, humanas. Ele, rabada com polenta,
ela, japa. Ele, pelada, ela, pilates.
- Já deu.
- Já deu.
O sexo era bissexto. Porém mecânico. Ele, ejaculação precoce.
Nem Boston Medical Group daria jeito. Ela, frigidez absoluta.
Ele, rápido para acabar a canseira. Ela, olhos abertos, contando
insetos mortos no lustre.
- Já deu.
- Já deu.
Não se dependiam financeiramente. O divórcio seria amigável.
Nenhum bem, nenhum mal. Tudo se arrastava para um fim sem graça.
Até que ele teve uma ideia.
- Uma festa!
- Uma festa?
- Sim! Convidaremos os padrinhos de 22 anos atrás, procuramos
um juiz para homologar o divórcio.
- Nem sabemos mais desse amigos.
- A gente acha. Lembro que eles adoravam uma boca livre.
Champanhe!
- Isso! Champanhe! Um brinde aos ex-casais civilizados.
Foram ao mesmo advogado de família.
- Vocês têm certeza?
- Toda certeza.
- Nenhuma dúvida.
Acharam os amigos nas redes sociais. Prepararam um convite informal.
“Mirna e Raul convidam para a cerimônia íntima de seu divórcio.
Sem tristeza, decisão madura, que queremos compartilhar com raros amigos”
- Que mau gosto.
- Ficaram malucos.
- Depois de 22 anos?
- Tem traição aí no meio.
Enganaram-se os amigos de outrora. Não havia traição. Apenas desgaste
natural das relações sem propósito que não atingem o sublime estágio
do amor companheiro. Nem briga por apertar errado a pasta de dente houve.
Nem por toalha jogada na cama. Nem por sutiã pendurado na maçaneta.
Estavam decididos e desejavam comemorar.
Dia da festa. No apartamento em Ipanema mesmo. Vista para Lagoa,
que entardecia como o amor deles. Os quatro casais foram chegando.
Eram recebidos com uma taça de champanhe na mão, sorrisos desenxabidos
e uma estranheza no ar. Não tocaram nos assuntos motivadores.
- Gente, obrigado pelos presentes!
- Que surpresa!
- É para cada um de vocês economizarem essas coisas chatas de casa nova
de solteiro.
- Um chá de panela às avessas.
Todos riram. O champanhe já fazia efeito. Mas houve um momento de silêncio.
- Senhoras e senhores, estou aqui de modo pouco usual para homologar uma
decisão menos usual ainda.
Todos riram mais alto.
-  Mas como Juiz de Vara de Família, o ritual me obriga a uma pergunta de
praxe: Mirna Cruz Madeira, você está consciente da decisão de se divorciar
amigavelmente de Raul Batista Madeira?
- Siiim!!!
- Raul Batista Madeira, você está consciente da decisão de se divorciar
amigavelmente de Mirna Cruz Madeira?
- Siiim!!
Até na enfática afirmação estavam afinados.
- A partir de agora, Mirna voltará a seu nome de origem: Mirna Melo Cruz.
De acordo?
- Siim.
- Por favor, testemunhas assinem o documento.
Após o ritual, foi servido o jantar. Roast beef com batata rosti,
saladas diversas, bobó de camarão. O champanhe deu lugar a infinitos
Bordeaux e Chardonnay. De sobremesa, frutas, mousse de chocolate amargo
e rocambole cremoso de morango. Não houve bolo, nem distribuição de
bem casados. Seria despautério demais.
Depois de muita dança, lá pelas tantas, todos se despediram. Padrinhos, madrinhas,
testemunhas e recém divorciados. Foram para suas casas trocando as pernas.
Mirna e Raul partiram cada um no seu Uber, cada um para um apart hotel próprio,
já arrumados para a nova vida.
Dois anos depois.
Claudio e Glória, duas das testemunhas daquela festa estranha, porém aninada,
avistaram ao longe Mirna e Raul saindo do cinema. De mãos dadas, sorridentes,
feições de pombinhos. Já abraçados, foram vistos entrando num bistrô no mesmo
shopping, começando a brindar com champanhe, trocando beijos ardentes e carícias
um tanto impróprias para o local.
- Você está vendo, Glorinha?
- Palhaçada. Quero as cafeteiras que comprei para cada um de volta.
- Relaxa, querida. Vai ver que a separação foi um fracasso.
E saíram os dois de fininho, Claudio e Glória, para não serem vistos por
Mirna e Raul.
Certos de que só o amor tem suas inexplicações.
E que não se fazem mais descasamentos como antigamente.








sábado, 17 de novembro de 2018

Maternidade








                       Observa a mãe o menino que muda a cada ano. A cada dia acrescido à sua vida, o filho vai se tornando outra pessoa, descobrindo os detalhes do mundo, como as pessoas são e como se comportam. A mãe, forte e estabilizada, tem que sempre reaprender. Não é de repente, do dia para a noite, que o menino se tornará adulto. Assistindo a novas conquistas, a novos começos, todos os dias ela é uma nova mãe. A maternidade é presenciar amorosamente a descoberta do mundo por aquele que insiste em abraçá-la sem se importar em nada com o que esteja acontecendo.








Ilustração: Ziraldo













sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O livro do rabino

O livro do rabino






Não me entendam mal. Sou uma mulher de fé. Apenas que não de uma única fé, ou, pelo menos, não dessas fés professadas na pele como marcas no dorso de animais. Nem de qualquer outra que se vista de paramentos e símbolos para convencer, para exibir força, para arrebatar adesões. Fé é coisa pessoal, cunhada por percepções e sentimentos que nos atingem, moldam, convencem, confortam, impulsionam. Individualmente. Tudo o mais é domínio. Ou mentira. Ou coletivo submisso.
No entanto, esbarrei com esse livro numa tarde de calor e livraria. Um olhar comprido à capa e uma leitura das orelhas, em homenagem ao título atraente: A alma imoral. Pronto. Eu já estava curiosa. Um rabino? Um sacerdote judeu falando do imoral? Que fosse italiano, polonês, espanhol. Sacerdotes não falam do imoral. Hipocrisia. Conflito de interesses.
Nada de folhear aquele livro pequeno. Como eu poderia? Detesto papéis dúbios, posições que confundem, prática e discurso dissonantes. Aos homens santos, as coisas santas. Nada de desvios. Que de imoralidade vivemos nós, os que respiramos fora da religião e dos acertos com deus, os que não brigamos em rinhas para ganhar um céu, os que não nos sujeitamos ao marca-passo das alienações. Mas aquele nome, aquele título esmurrou a porta do meu cérebro exigindo uma chance.
Como última resistência, agarrei-me à imagem habitual e entediante de um rabino que escreve sobre deus, vive em sinagogas e fala aos crédulos sedentos da palavra. De qualquer palavra que alivie os desejos, que perdoe as infrações chamadas de pecado, que conduza a um banalizado e eterno paraíso. Nada sobre o proibido. Porque um rabino não fala do proibido.
Abri assim mesmo. De uma vez. E deixei os meus olhos lerem sobre o transgredir. E sobre a traição. E sobre a desobediência. E sobre o desrespeito. Não havia ali um rabino, um sacerdote judeu. Pontos; contrapontos. Palavras de um homem inquieto, inquietante. De um homem firme. Pontos; contrapontos. Nem santidade nem doutrinação. Uma proposta. A alma que transgride para transformar. Que transforma para adaptar-se. Evolutiva como as espécies. Sobrevivente.
Lembrei-me da minha fé ciclotímica, repleta de um incessante questionar refletir ouvir depurar acolher questionar cuspir procurar questionar. Mas sempre fé. Inabalável em todas as suas dúvidas. Transgressora, imoral. Uma fé metamórfica. E tive vontade de acreditar na existência de um deus que paira sobre todas as coisas. Que faz com que o sentido de tantos caminhos seja um lugar aonde chegar. Que dá outro propósito ao sofrimento, às feridas, à deterioração da carne e da mente que não seja o de ganhar a vida eterna. 
Não acredito nesse deus da livraria. Nem acima nem abaixo das coisas. Na minha fé não há um deus a enfrentar, com quem brigar, ou a quem culpar, implorar, chorar ou pedir um pouco de carinho e de descansos. Não há respostas. Não há deus. Apenas silêncio. 
Mas, então, por que o meu silêncio não se cala? Por que me revolto com a inexistência dessa divindade que acende o imaginário de alguns, a esperança de outros? Qual o sentido disso tudo para os meus pensamentos que nunca cessam de se rever? Que estão sempre revogando o instituído e ordenando tentativas anárquicas? Como eu poderia ser uma mulher de fé, se sou uma mulher sem deuses? 
Estou cansada desta minha fé diferente. Desta perversidade reconfortante à qual me incentivo cotidianamente. Da serenidade entediante que só me convém por breves instantes. Sou uma criatura que se convida e se lança prazerosamente às violações. Contudo, não as do corpo, que sirvo de sexo, álcool, diversão e cuidados em iguais partes. Minhas violações são imateriais. Nutro a minha vida na destruição do vigente, no questionamento do que se enraíza em doentia imutabilidade. Não aceito preceitos. Aceito a fé. A que tenho em algumas coisas; a que tenho no nada. No nada que incita a repor. No nada que é inexistência a preceder existência.
Será essa a alma que transgride? Esse espaço que transborda e se esvazia em rompimentos? Essa força vital que corrompe o comodismo e se propõe à honestidade da incerteza? Se for verdade que seja desse jeito, eu posso pensar que alguma parte de mim é alma. Imoral e santa. Desobediente e dócil. Fiel e traidora. Consentida e rebelada. Se for mesmo assim, eu aguento ter alma.






sábado, 27 de outubro de 2018

Primavera



À flor da pele

regarei
com a gota d´água


desabrochando o caos






sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Rebentação


Entre mãe e filha
surgem silêncios
intransponíveis
dores que a palavra
inalcança
ranços impenetráveis
trançados de fel e espinho
abismos cercados de neve

Do amor incondicional
provêm pactos do imaculável
omissões toscas e rudes
simulacros
ilicitudes
vermes que não morrem
medos que
nem uma nem outra
tocam
ilhas de fogo
que não penetram
lacunas
que não preenchem

Espera-se de mãe e filha
esforço de tanto altruísmo
afeto tão reto e sem culpa
que a farsa
não raro se impõe
por mero casuísmo

Deviam
ousar a verdade
arrombar ruídos,
traumas, heranças
confessar
cada desvio
domar desgostos
infringir 
o sangue
qualquer paradigma
simplificar-se

Mãe e filha
cada uma
vez ou outra
bem que podia 
rasgar o véu
do afeto perfeito
largar a vergonha
perder as estribeiras

Devia 
assentir 
a sentença
soberana
de que tudo é obra
dá muito trabalho
manter esse elo

Rebentar como que 
de novo
enquanto mãe
enquanto filha
escalando o poço profundo
de cada dia

Aprender assim
pouco a pouco
materno-filialmente
a lançar-se
de mãos dadas
heroicas
peitando a pirambeira

(Maria Amélia Elói)





quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A selva




Há muito que os homens saíram da selva. Não lhes servia tanta incerteza, tanto perigo de vida. Aos poucos, com avanços e recuos, organizaram-se para autodefesa, assistência mútua, caça. Criaram normas de funcionamento coletivo do grupo, muitas vezes tácitas, outras bem expressas. Para evitar aproveitamentos egoístas. Para que o grupo fosse o lar de cada um. E afastaram-se da selva e das suas práticas ferozes.
Sem que o percebessem, os animais observavam-nos, curiosos, e acabaram por conseguir copiar o Conselho da Tribo. Pelo menos em alguns dos seus aspetos formais. Chamaram-lhe o Conselho da Selva e funciona desde então. Reúne-se uma vez por ano, ou a qualquer momento, em sessão extraordinária, a pedido de algum grupo. Geralmente, é apresentado um problema, levantada uma questão, feita uma queixa ou uma reivindicação. Segue-se alguma troca de ideias, muita algazarra, mas por fim o Conselho costuma concluir com uma declaração por maioria absoluta.
Muitas e muitas reuniões do Conselho já aconteceram ao longo dos milénios. Da maioria não restou memória, mas de outras foram guardados registos, geralmente em cascas de árvores ou numa escrita indecifrável em campos pedregosos. Por exemplo, há uns sessenta anos, foi realizada uma reunião a pedido dos castores. Decorreu numa mata contígua a um rio nórdico. Dado o início, um castor barbado com ar envelhecido, tomou a palavra:
Caros companheiros silvícolas, estamos fartos de cortar e transportar árvores de sol a sol, sem a ajuda de ninguém. Há milénios que o fazemos, sem lamúrias da nossa parte, nem razão de queixa, da vossa. As barragens vão-se construindo, com esforço nosso, que ninguém reconhece, mas com grande beneficio para todos. Continuaríamos a fazê-lo sem queixumes, se as condições não estivessem a mudar. Mas estão. Os nossos filhos precisam de acompanhamento, as nossas famílias precisam de atenção. Os tempos são de cuidados e apoio ao desenvolvimento dos jovens e de maior convívio familiar. Não podemos, não queremos, chegar a casa tão tarde e de ânimo derrubado por tanto trabalho. Daí, que chegámos a esta situação limite, em que temos de ser bem claros. Das duas, uma: ou algum dos excelentíssimos grupos aqui presentes se compromete a ajudar-nos a construir as barragens, ou não cortamos nem mais um galho depois das 17 horas. Gostaria que refletissem bem se querem os rios represados, de modo a servirem todos, ou se querem deixar a água ir-se embora.
Gerou-se um burburinho, mas que era habitual em cada Conselho. Algumas poucas vozes manifestaram-se a favor dos castores, mas a grande maioria estava até escandalizada com a desfaçatez daquela reivindicação. Ao fim de pouco mais de meia hora estava o consenso formado. Um gato gordo e lanudo foi o encarregado de resumir a superior posição conjunta do Conselho:
Oiçam, amigos dentolas — declarou ele —, não venham para aqui com essa moda dos homens, das oito horas de trabalho, que aqui não há regras nem regulações; aqui é a selva!
A reunião foi dada por encerrada e não se falou mais nisso.
Há quarenta anos, foi a vez da passarada granívora pedir a reunião do Conselho. Decorreu num campo de centeio ressequido e já ceifado. Um pardal empertigado, mas nervoso, explicou a reivindicação da classe:
Como sabem, recentes acontecimentos da área humana e suas decorrências provocaram uma grave rutura na já enfraquecida produção agrícola. Semeou-se muito menos, pelo que houve poucas searas. Temos estado a viver à míngua. Esquadrinhamos campos e mais campos, mas, entre grãos soltos e respigos, não conseguimos enganar a fome. O que reivindicamos é uma mesada, um papo mínimo de grãos, para podermos viver com dignidade, sem andar a pedir nem a roubar.
Como sempre, muito burburinho, alguma discussão e a sábia decisão do Conselho.
Ó companheiros dos bicos direitos — explicou o falcão encarregado de divulgar a determinação —, vocês até podem ter muita razão, mas não se percebe aonde se iria armazenar tanto grão, quem iria administrá-lo, nem quem iria buscá-lo, nem aonde... Um tal pacto social obrigaria à criação de uma organização enorme, que iria agravar o problema. Além disso, vêm aqui fazer reivindicações, mas nenhum ser que viva na selva pode reivindicar quaisquer direitos. Isso de salários mínimos são modas dos homens. Aqui, cada um que trate de si; é a selva. Quem não aguenta arreia… Por que não se tornam carnívoros?
A reunião terminou com muitos piados tristes e outros irados, mas a vida na selva prosseguiu como antes.
Outras vezes se reuniu entretanto o Conselho da Selva, mas o plenário do ano passado foi especialmente participado e demorado. Fora solicitado por um amplo conjunto de animais, com as seguintes queixas:
Tem havido muitos incêndios, há zonas em que o pasto desapareceu, mas há outras que se mantêm férteis — expôs um coelho. Seria sensato que se reservasse uma parte do pasto das zonas fartas, para apoiar as que o não têm.
Antes que houvesse oportunidade de se iniciar a vozearia, o presidente da mesa — um javali —, mandou avançar o segundo orador.
Há muitos rios poluídos — alegou um sável —, os nossos irmãos têm que se deslocar para águas não poluídas, mas onde a comida não dá para todos — os que estão e os que chegam. Seria inteligente criar uma bolsa de comida para distribuir pelos carenciados.
Novo gesto rápido do javali, novo orador.
A população cresceu, mas cada vez são menos as zonas livres de pesticidas, que envenenam larvas, insetos e minhocas — explicou um melro. — Os recursos, como estão distribuídos, não dão para todos. Deveríamos encontrar uma solução que permitisse que todos pudéssemos viver. Não faz sentido, nos tempos tão civilizados em que estamos, que uns vivam bem, sem dificuldades, sem preocupações de aonde ir buscar a comida, e que outros sobrevivam cada dia na angústia da fome.
Sabem o que ouço dizer aos homens? — continuou o melro. — Como é público, eles inventaram máquinas para tudo, de modo que muitos serviços são feitos por elas, e os trabalhos que exigem mão humana já não chegam para todos. Não se trata de não quererem trabalhar; é que ora uns, ora outros, muitos são obrigados a ficar sem trabalho. E os subsídios de desemprego, que deviam tapar os buracos no sistema, afunilam e deixam muitos homens de fora. Em risco de fome. Como nós. Ouço-os discutir e dizer que as sociedades humanas e organizadas não deviam ser tão ferozes com os seus desempregados; que têm a obrigação humanitária e lógica de criar condições de vida para todos; que deviam inventar um sistema em que cada cidadão tivesse acesso a uma distribuição mínima, só por estar vivo. Para se manter vivo. Quer trabalhasse ou não. Se trabalhasse, juntaria essa remuneração extra ao tal rendimento incondicional e poderia viver mais desafogado. Posso garantir-vos que eles estão a pensar seriamente nisso. Mas, é claro, eles são inteligentes.
Gerou-se uma algazarra diluvial. O caso não era para menos e suscitava o desagrado, quando não a revolta, de grande parte do auditório. Foi precisa a intervenção áspera do presidente, para trazer alguma contenção à reunião.
Tanto quanto sei — disse um cão —, eles gostariam de conseguir aplicar essa solução, mas não sabem aonde ir buscar tantos recursos para distribuir por todos. Alguns dizem que reservando metade de todos os rendimentos individuais, para distribuição equitativa geral, se conseguiria pôr o modelo em funcionamento.
Isso não faz nenhum sentido, na selva! — adiantou-se um lobo. — Nós nascemos na selva e nela queremos continuar a viver. É na selva que desenvolvemos o nosso estado natural. Alimentamo-nos, procriamos, sobrevivemos. Conhecemos os nossos amigos, conhecemos os nossos inimigos, sabemos aonde procurar comida, sabemos onde nos esconder. Nós devemos manter impoluta a nossa natureza. Leis, direitos, proteções especiais só viriam desvirtuar-nos. A nossa lei é a da sobrevivência, que não é uma lei; é um estado. Os mais fortes comem os mais fracos, os mais espertalhões sobrevivem melhor do que os menos astutos. Com genuinidade, com luta pela vida, com ferocidade e esperteza. E é assim que deve ser.
Esta intervenção provocou um ribombar de aplausos e clamores de entusiasmo, perante os olhares desanimados dos queixosos, e praticamente determinou o parecer final do Conselho.
Meus amigos — leu o bufo real, muito compenetrado —, todos sabemos que a vida é difícil para quem vive na selva e que por isso muitos gostariam de experimentar soluções abstrusas, que lhes parecem boas, mas sabemos que é o idealismo a falar. Sempre assim vivemos, sempre preferimos a selva às malucas derivas dos homens. Não há nenhum homem que goste de viver na selva mais do que nós. A selva é um ambiente natural. Não tem leis. A preocupação que temos com os outros é se pertencem à nossa cadeia alimentar. E se os comemos é sem rebates de consciência, sem hesitações, sem rancor. E ninguém fica incomodado com isso. Cada um faz o que quer, se puder. Cada um tenta sobreviver como pode. É o nosso amado modo de vida. Sabemos que pode parecer cruel, mas tem a beleza inigualável da autorregulação. Nem todos vivem bem, nem todos sobrevivem, mas é assim; é a selva.
Desde então, não tem havido reuniões extraordinárias do Conselho.

Joaquim Bispo

*
Imagem: Henri Rousseau (o alfandegário), Cavalo atacado por um jaguar, 1910.

* * *






sábado, 20 de outubro de 2018

RETINAS

(trecho de um dos capítulos de O Jardim dos Anjos, romance deste mesmo autor)


As retinas da pequena Marie D´Amboise não tinham dimensão do que estavam captando. À sua frente um mar azul se acarpetava, no estreito entre duas fortalezas com canhões que espiavam de suas janelinhas os que chegavam e os que saiam, ora cuspindo fogo aos malvindos, ora celebrando a paz em silêncio. Nem enxergou como deveria enxergar o mar que se se abria a um contorno de montanhas cobertas de florestas e algumas pedras infinitamente pontudas, postas sobre um filete nem branco nem bege, mas cor de areia, coisas que a menina desconhecia. Atentou para os salamaleques de boas vindas de um cardume de botos, sorriu, apontando seus bracinhos para eles como que quisesse acaricia-los.  Desapercebeu-se que à sua esquerda, uma escultura imensa de granito paleozoico surgia de dentro do mar em direção ao céu, quando interjeições maravilhadas soaram ao seu redor
Que belle, que belle, que belle.
O vapor seguiu lentamente espumando as águas comboiado pelo cardume saltitante e Marie desviou sua atenção para uma montanha pontuda à sua esquerda, um tanto longe do convés, bem atrás de um filete de areia, algumas pequenas casas e uma densa floresta tropical, mas suficiente para que ela apontasse para o tal topo distante e cutucasse a mãe:
- Mama, je regarde Jesus.
A mãe carola arrepiou-se e fez o Sinal da Cruz. A menina não via o que via, mas via o que imaginava. Décadas depois, uma imensa estátua de Cristo de braços abertos foi colocada naquele cume.
Nenhuma novidade para a menina que sempre vislumbrava Deus em tudo de bonito, generoso e exuberante que a Natureza lhe apresentava.  Conheceu assim à primeira vista e aos seus 3 anos e 8 meses de idade, sentada no colo da beatíssima mãe Chloé de Chandizont, o que depois lhe contariam que se chamava Riô de Janeirrô, cidade emergente, exótica, calorosa e promissora, para onde a euforia inovadora e aventureira da Belle Époque empurrava vapores e grandes veleiros.
A bordo de um deles, embarcara a pequena família Chandizont, cujo patriarca, o Professeur Docteur Pascal Pierre Chandizont, jovem cientista e curioso pelos trópicos, resolveu deixar o Vale do Loire para conhecer a fundo e cuidar de mazelas típicas de paragens quentes e úmidas da América do Sul. Riô de Janeirrô não poderia ser melhor destino: ali mesmo, em pleno 1900, nasciam o Instituto Soroterápico Federal de Manguinhos - perfeito para Pascal se sentir em casa – e residências em estilo francês num bairro próximo, igualmente perfeitas para um novo lar dos Chandizont.
Sem confrontar com o pensamento cientifico do marido, que jamais desassociava a fé cristã dos caminhos da ciência, Chloé sentia-se uma freira sem nunca ter sido. Sua devoção a Deus era tamanha que foi abençoada com uma filha que nascera com a vocação das missões divinas. A menina cresceu na paz de Cristo e com um calor desgraçado. Suava e abanava-se pelas ruas, ainda com seus leques e vestidos franceses, mas sem grandes estranhezas com o novo cenário que a acolhia.
Mas as retinas de Marie D´Amboise, como sempre, não tinham dimensão do que estavam captando.  Via o que queria ver, não enxergava o que estava para ver. Desapercebeu-se que um fim de tarde chuvoso e encalorado, lágrimas manchavam a gravata de seda do pai, enquanto os dois assistiam Chloé arder em febre e prostração sobre a cama. Se o destino lhe acenou com felicidade ao cruzar a entrada da Baía de Guanabara, o mesmo destino lhe sorria irônico, quando a peste bubônica entrara com ratos sem pedir licença na sua casa de estilo francês e se instalou nas entranhas de Chloé. Logo a peste bubônica, que por tantas noites de estudo e experiência sorvera as energias de Pascal. Logo a peste bubônica, que levou o Governo a caçar ratos e pagar por eles – e descobriu mais tarde que muitos criavam o roedor transmissor para trocá-los por dinheiro público. Logo a peste, cuja vacina estava quase no ponto de ser testada em cobaias – já que a população se recusou a experimentá-la, gerando as primeiras revoltas populares urbanas da História do Brasil.
Logo a peste bubônica, que ironia. Muito injusto que a primeira cobaia fosse sua mulher, mãe de sua pequena Marie. Em menos de uma semana, Chloé definhou e faleceu.
Pascal enterrou a esposa como se fosse ele mesmo um zumbi. Não chorou, não olhou para a morta, não perdeu o olhar para o horizonte. Deixou o cemitério para casa na mesma carruagem fúnebre que levara a esquife mais cara que a cidade podia oferecer. Foi ao lado do cocheiro, com Marie já com sete anos no seu colo. A menina também estava apoplética, porem resignada. Não olhava tão longe como o pai, mas fixou as retinas no balançar dos penachos roxos dos cavalos à sua frente, e manteve um silêncio interiorizado até chegar em casa. Lá, sim, correu para os aposentos dos pais, abriu o armário da mãe e abraçou todo vestuário de uma vez só, até derrubar o cabideiro inteiro. Rolou no chão enfurnada na panaria, chorou alto, chorou baixo, soluçou o mais que pode, gritou e chamou baixinho pela mãe. Enfiou o nariz molhado em todas as dobras, rendas e babados, pelos anversos e avessos, como se mergulhasse no cheiro de um passado que não poderia ter passado assim tão de repente. E quando não havia mais choro a chorar, arrastou seus joelhos até ao altar que Chloé trouxera da França, com a imagem piedosa da Santa Françoise D´Amboise.
A santa fora uma beata da Idade Média de origem nobre, que ao enviuvar de um Duque, entrou para o Carmelitas de Nantes, onde alcançou a missão de Priora do Convento. Depois de sua morte, foi canonizada por tanto cuidar de crianças enfermas e – por ironia do destino ou desígnios sábios de Deus – faleceu da mesma doença que ajudava a curar, para servir de exemplo de entrega, de desapego à própria vida para salvar outras vidas. Chloé e Pascal batizaram sua filha única com o nome D´Amboise – sem saber que Deus também elegera sua família para desapegar-se em função de outras vidas.
Depois de muitas orações diante de Santa Françoise, a menina correu para os braços do pai no avarandado, que ainda mirava olhares para os horizontes infinitos. Pascal recebeu um abraço firme, caloroso e da menina.
- Papa, quero ser freira.
O desejo da pequena Marie de ser freira não pegou Pascal de surpresa. O lar, agora combalido, sempre recebera fluidos de fé na presença de Marie, seus vislumbros e seu enxergar além das retinas. Seu destino não poderia ser interrompido pelas trapaças do próprio destino. Pascal era sábio e racional. Na mesma semana, tratou de matricular a filha no Liceu da Purificação, um colégio religioso preparatório para noviças. E assim Marie deu seu primeiro passo à sua vocação de devoção a Deus e caridade com os desfavorecidos, seja pela enfermidade, seja pelas desfavorecidos de uma sociedade que emergia injusta e cruel, com quem não havia nascido em berço esplêndido. Não que os Chandizonts teriam nascido nesse berço, mas por Deus, já eram considerados nobres e abastados em suas atitudes.
Assim que Marie fora entregue aos cuidados do Liceu Nossa Senhora da Purificação, Pascal lhe ofereceu um profundo abraço, que se misturaram a grossas lágrimas na porta do colégio interno. Foi a menina que consolou o pai.
- Allez  papa, Deus e mama estão olhando por você.
Após desfazer o sonho de um lar no Riô de Janeirrô e deixar um estudo profundo no Instituto Soroterápico de Manguinhos, Pascal embarcou num vapor em direção ao porto de Marseille. Deixava para trás uma cidade linda, uma experiência frustrante, várias saudades e uma dor. Mas se é que para toda dor existe um alívio, ao chegar na França, Pascal recebeu a notícia que a vacina que ajudara descobrir, estava começando a salvar vidas.








terça-feira, 16 de outubro de 2018

A Constituição de Tal

Foto: Faces em ovos de galinha, série criada por kozyrev-vjacheslav 


Domingo, oito da noite. Rua pequena, cidade grande. O tropel de cinco ou seis pares de botas não tem testemunhas senão a própria vítima. Socos, pontapés, massacre. Um grito de medo, muitos de impotência. 
Mais tarde, no leito de um hospital público, não é a dor que enlouquece o paciente, mas as palavras que estacionaram em seus ouvidos, como mantras do mal: Viado! Viado aidético!
João José Manuel Raimundo de Tal tem a cabeça rachada em três lugares. Ou, para falar no jargão médico, sofreu traumatismo craniano. Sofre, ainda, da incredulidade de que tudo tenha mesmo acontecido. 
Esse cenário de violência homofóbica repete-se dia sim outro também nas cidades, nos jornais e na história dos que apanham por serem diferentes do que lhes tenta impor a massa obtusa. Apanham por serem o que são. Pessoas. Como a bailarina cujos dedos do pé são feios e tortos. Como o mecânico cujas unhas estão sempre negras de graxa. Como a freira cuja fé repele os homens da Terra para se entregar à Trindade dos céus. Vontades libertadas por prazer, hábito ou fé. Escolhas. 
Enquanto isso, no hospital público, João José Manuel Raimundo de Tal, cidadão trabalhador, filho de alguém, irmão de alguém apalpa a cicatriz que desce pela face. Vidro cortado; enterrado com sadismo em sua bochecha. Quer entender também a cusparada que levou antes do corte. Porque cuspe é mais que dor de corte. É humilhação. E compreender a dor de desespero que arde e coça dentro do peito. Mais que a cicatriz.
O policial de plantão cumpre o seu papel. Anota nome, endereço, detalhes e dá a queixa como prestada. Segue para o próximo caso. Um travesti de programa. Estupro seguido de esfaqueamento. Ninguém responde por ele. O traveeti foi morto e o policial com a prancheta se aborrece porque acredita que preencher a papelada é tarefa menor. Ele pega bandido. Papel é coisa de babaca. Mas tem muito crime e poucos homens para cobrir a megalópole, cada vez mais inchada. 
João José Manuel Raimundo de Tal consegue um advogado. Um doutor que lhe conta a que leis vai recorrer para colocar atrás das grades os agressores, capturados em razão de novos ataques a homossexuais. De Tal presta atenção às palavras bonitas da Constituição brasileira. E acredita que, perante a lei, é igual a qualquer outro homem, protegido do preconceito, da surra, do cuspe na cara. Não sabe ainda que, no Brasil, a incoerência, o deboche e o ódio não acontecem pelo texto ilibado da lei, mas pela prática diária da impunidade, pelo abrandamento das penas, pela vilania disfarçada em bons modos. 
No tribunal, os skinheads são julgados. Seis meses depois. E condenados a prestar serviços à comunidade. Mas João José Manuel Raimundo de Tal não se impressiona com a morosidade da Justiça. Nem com o número de crimes similares de que são acusados os nazistas de cabeças-raspadas. Nem a pena branda. O que mais lhe chama a atenção é o juiz que profere a sentença sem olhar na sua direção ao menos uma vez. O juiz que repudia a homossexualidade de João José Manuel Raimundo de Tal. Mas que se faz de imparcial, porque é um homem de leis. 
A dor do traumatismo passou. A da cicatriz de dentro continua. Sem previsão de passar. É dor de preconceito.