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quinta-feira, 28 de maio de 2015

PELEJA DE DONA JOSEFA


Parecia que a ferida em sua perna estivera ali desde sempre. Deitada em uma rede que exalava bálsamos mortuários ― a morte naquela casa cheirava à sopa rala, mofo e aviltantes excrementos ―, dona Josefa aguardava, um pouco menos ansiosa que seus filhos e netos, pelo próprio passamento.

Já não espantavam as moscas que orbitavam a chaga aberta, feito o olho de um antigo cadáver que insiste em enxergar as boas-novas do mundo dos vivos. A matriarca havia deixado de ser digna do respeito e afeto dos seus, transmudara-se em uma desagradável e malcheirosa carcaça que atravancava a vida de todos ao redor, contaminados pelos agouros e predições maléficas que antecedem o último suspiro daqueles que já viveram mais do que a vida exige.

Acordavam antes dos galos a fim de constatarem se o peso moribundo que carregavam lhes presentearia em uma manhã qualquer com a prometida quietude que apenas o falecimento seria capaz de proporcionar. Rispidamente, abriam um dos olhos da velha, tocavam sua pele engelhada com as receosas costas da mão e observavam seu magro abdome, desejosos de que os fracos pulmões houvessem se afogado em senis líquidos.

Mas tudo em dona Josefa, estranhamente, permanecia.

― Morreu não ― dizia com enfado o averiguador do dia, cargo fúnebre que os filhos mais velhos haviam contraído desde que a mãe deitara-se naquela rede e não levantara mais. Carrascos sem cutelo, cuidavam dela rançosos, envergonhados da sincera vontade de ver morta aquela que lhes deu vida.

A criançada já não era mais repreendida quando embarafustava casa adentro aos gritos e gargalhadas. Endiabrados, os netos agarravam-se aos punhos da rede, onde a avó agonizava em profunda letargia, e fingiam-se macacos. Entendiam eles o quanto a morte é coisa simples, apesar da parcimônia com a qual os adultos debatiam o tema.

O tempo transformara dona Josefa em uma peça carcomida de mobiliário. Não rezavam mais por sua melhora, mas por seu cessamento. Era um incômodo tê-la disposta na sala de casa a definhar diante do olhar de todos, como um relógio velho, máquina gasta e incapaz de receber mais corda.

Se ao menos ela não evacuasse, se parasse de obrar, talvez o inconveniente não fosse tão flagrante. Há meses não esboçava um único gemido e mal remexia o saco de ossos no qual se tornara. Nada reclamava ou solicitava, não reagia ao próprio sofrimento. Todavia, acabara por cometer a maior de todas as inconveniências: demorava-se.     
  
À noite, todos se recolhiam às suas dormidas esperançosos de que, antes do raiar da alvorada encontrariam ― posto que os mortos não mijam ― enxuta a rede da teimosa anciã.

Imersa no silêncio moribundo da sala, dona Josefa sonhava um repetido e teimoso sonho. Por mais que a debilidade a consumisse, a mesmíssima cena onírica revolvia-se em sua mente como um rolo de filme que se reinicia no infinito.

Em seu sonho, era ela tal a cabrocha de ancas duras que fora nos áureos tempos de sua juventude. Encontrava-se à beira de um rio, cantarolando e batendo contra as pedras uma camisola que cheirava a sabão de coco. Seu finado Edilberto, também remoçado, acenava para ela da outra margem.


― Num posso travessiar, Dilberto ― queixava-se ― Num posso. Quem é que há de cuidar dos menino? Me espere só um cadinho mais, meu véio... Só um cadinho mais.





quarta-feira, 27 de maio de 2015

Colcha de Retalhos #9

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


MULHER BOMBA

Por dentro, explodia um não. Mas o único som que se ouviu foi o daquela voz, suave e sofrida:
- Aceito.
E prosseguiram com a cerimônia.




DESFIGURADO

Desceu daquele ônibus lambendo cada degrau com os pés. Sentiu o gosto quente do asfalto em sol a pino. Percorreu a praça dedilhando o aroma das flores enquanto o canto dos pássaros massageava suas pernas cansadas. Viu o toque do sino indo em sua direção, por todos os lados, ecoando pela catedral. Ouviu cada detalhe do que queria dizer cada escultura do museu. Deu voltas pela cidade em um cavalo branco e uma charrete tinta, amadeirada, com toques frutais e final suave.
Ao final do dia, ouviu o sol tombar no horizonte e, apesar do cheiro de chuva, não sentiu o gosto das nuvens. Durante a noite, todas as luzes eram artificiais, mas as sombras, caridosas, acolheram-no em suas camas e o cobriram com o sangue quente do jornal popular. Apesar do barulho dos tiros, zunindo a cada página e alojando-se em seu tímpano, dormiu.
No dia seguinte, acordou sendo lambido pelo sol, áspero, e continuou sua saga. Pegou o trem dos trilhos de pedra, de volta para Metáfora, ali do ladinho, logo depois de Eufemismo.




DITADURA DO SILÊNCIO

No país da impunidade, faz-se exceção à Lei do Silêncio, a única respeitada e temida.
Quem cala, contente. E os que ousam desafiar a lei, arruaceiros, sofrem as punições.




MUNDANO

O golpe ditatorial teve, no exército, seu braço armado.
E na imprensa, o desalmado.






terça-feira, 26 de maio de 2015

Liberdade

Numa visita íntima em presídio — nem privativa nem romântica, rápida e explícita, indigna do amor, imprópria para o prazer —, pegou menino. Fez um barrigão redondo e brilhante, lindo de se ver. Era a segunda criança dela concebida em contexto francamente infecundo.

Quando lhe perguntavam sobre o marido, ela baixava os olhos: — Tá lá ainda.

— Sai quando?

— Depende do juiz.

Carlos assazonara Renilda fora da estação, na despedida da infância dela, quando o alto-relevo dos verdes seios começava a despontar sob a malha fina do uniforme do colégio.

A menina adolesceu mulher incompleta, com sabor prejudicado. Granulou à força, aguada, acuada. O sexo virou costume antes do encanto das mãos dadas, antes do olhar que precede o beijo. E por não saber sequer sonhar, a menina não teve escolha nem fez objeção: cedeu ao absurdo.

Quando aliciou a menina, ele tinha 26. Era homem arrematado, mais vício que virtude, mais rudeza que cortesia. Renilda foi aceitando a relação por medo, inocência, conformismo, falta de escolha (?) e tomou dó de si mesma. Fazia parte do imaginário coletivo: toda mulher estaria segura ao lado de um homem.

Renilda atendia o marido porque ele assim exigia e porque ela não queria culpa. Levava frutas, biscoitos, sabonete e também o próprio corpo — em caso de permissão oficial para as intimidades. Raramente carregava a filha, com receio de que aquela imundície pudesse contaminar a pequena de alguma forma.

Não sei com quem Renilda aprendeu tanto carinho, tanto zelo. Era uma mulher pobre, órfã, condenada a um homem preso, grávida do cafajeste pela segunda vez. Por que tão apta para o amor?

O marido desconfiava dela e lhe cobrava fidelidade, como se Renilda fosse capaz do contrário. E lhe ordenava presença, sem aceitar desculpa. Outro dia, mesmo com o bebê ameaçando romper prematuro, ela foi ao encontro do maldito.

Cada visita à penitenciária significava falta ao trabalho. Prejuízo também para a patroa de Renilda, que dependia de seus serviços domésticos. — Largue esse homem, menina. Traficante não vale nada. Dê-se ao respeito — dizia a chefa. A empregada pedia perdão, compensava as horas não cumpridas e repetia a transgressão trabalhista.

E nasceu Carlos Júnior. Saudável, calminho, fofo da Silva Santos. Renilda sentiu aquela paixão ardida de novo. Um bebê em casa! Mais gastos, mais cansaço, mais problemas, mais pobreza, muito mais amor. O sentimento pela primogênita também ganhou amplitude: a mãe de 24 anos e a filha de 9 passaram a compartilhar a maternidade de Juninho. Cumplicidade que dava gosto! O lar agora estava completo.

Só que a pena foi integralmente cumprida. Carlos voltou a casa para degradar a harmonia da rotina. Não sabia nada de equilíbrio nem de paz familiar. Nem parecia interessado em aprender.

O trabalho aumentou sobremaneira com a chegada do ex-detento. Era mais roupa pra lavar, mais vasilha suja, mais humilhação. E a mulher tinha de se deitar com ele. O tormento das visitas íntimas era revivido cada vez que ele a tocava. Por mais que Carlos se lavasse, mais cheiro xadrez aquele corpo exalava.

O homem retomou rapidinho o serviço. O comércio de drogas continuou descarado, dentro de casa mesmo. Várias vezes, ela viu o marido molestar mulheres viciadas: as coitadas pagavam a droga como podiam. Ela consentia tudo, em silêncio. Não haveria redenção?

Pingou mais dinheiro para o mercado, mas Renilda vivia apavorada, com presságio de morte. Foi demitida do emprego. O temperamento de Júnior mudou rapidinho. O anjo tornou-se agressivo e chorão. Acordava à noite gritando, denso de sonhos ruins e xixi. As notas de Tatiana baixaram por causa de desconcentração e tristeza.

Cinco meses de inferno nível máximo! Saudade de ser mãe solteira. Vontade de ser viúva. Mas a mulher resistia com paciência e serenidade, rezando por possível recondução do marido ao presídio. Faltava só coragem para denunciá-lo à polícia.

Foi quando ela viu, pela fresta da porta, a intensão do olhar de Carlos sobre Tatiana. Nojenta e insuportável intenção! Com saliva de lobo, ele observava a tenra ovelhinha. “Vai violar a filha em breve” — apavorou-se Renilda.

Escondida no banheiro, a mulher chorou. Doeu-lhe a infância arruinada, a frustração da espera, a verdade da própria história e o futuro dos filhos. Pesou-lhe toneladamente o desespero da desgraça.

E assim, mais desprotegida que nunca, apoderou-se de súbita esperança. Que ninguém contradiga a teimosia da vida! Sem que o diabo notasse, aprontou a mala, abriu a cela e partiu com os filhos.

Maria Amélia Elói





segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Paladino



O rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na floresta de Gamywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme doze-hastes, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:
A esta distância, homem algum lhe consegue acertar!
Que prémio me dareis, se o atingir? ─ inquire Guloz, sobranceiro.
O rei semicerra os olhos e avalia a distância: “Impossível!”
O que me pedirdes! ─ declara o rei, categórico.
O senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo. Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal. Surpreendentemente, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.
Levanta-se um coro de regozijo na comitiva. O cavaleiro Potranc está apreensivo. O rei grita:
Hurrah! Que bela peça vamos ter hoje para a ceia. Felicitações, sire! Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei não volta atrás!
Guloz olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.
Quero a rainha Florence.
Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos das espadas. A rainha intervém:
Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafio justo.
Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.
Potranc diz ao rei:
Vós, pela vossa palavra, nada podeis fazer, mas eu, que não aceito a perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.
O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover. Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstáculo, sãos e salvos.
Logo à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desembainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se desequilibra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.
Potranc não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma bifurcação. Há sinais de cascos em ambos os caminhos. Vê um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:
Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu.
Todos os caminhos vão dar ao Senhor, mas o do evangelho é mais direto que o da epístola ─ responde o santo homem.
Deixai-vos de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes ─ riposta Potranc de mau humor. ─ Indicai-mo sem demora!
À vossa direita, sire ─ diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.
Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tomba e morre. O cavaleiro prossegue a pé.
Num troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com um enorme javali. O animal, ou porque está a defender o território ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc, surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga, mas o cavaleiro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de crânio aberto.
Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça no seu carro puxado por uma mula.
Para onde vais, almocreve? ─ indaga o cavaleiro apeado.
Para o castelo do rei Justin. Se quiserdes, posso levar-vos ─ responde o carregador, solícito.
Potranc não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.
Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita. Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio, pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria, arremete de espada em riste contra os sequazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz assoma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho.
Minha senhora, morrerei, se tal for preciso, para vos salvar ─ grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.
Guloz, com um gesto, manda parar o combate.
Que quereis daqui, cavaleiro?
A minha senhora, que vós, maliciosamente, usurpastes ─ responde Potranc enraivecido.
Vistes bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal.
Aposta, sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não tendes nobreza.
Já que quereis tanto bem à vossa senhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espada que deixei cair ao Lago do visco ─ enumera Guloz com um sorriso furtivo.
Não vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas ─ riposta Potranc. ─ Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a vossa própria palavra e criásseis outros obstáculos. Vós sois matreiro e cobarde!
O cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços, quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:
Guloz tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc, como seu paladino, tem direito a procurar contestar essa condição que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?
Ambos os contendores assentem. Na manhã seguinte, à hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se aglomeram junto ao palanque real, alinham-se os antagonistas. Justin dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O primeiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e recomeçam o combate.
Neste reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não se aproveita da vantagem. Desmonta e prossegue o combate a pé. Guloz já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantêm-se silenciosos, mas as damas não conseguem evitar um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o defensor da rainha Florence.
De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abundantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A rainha Florence será confiada à proteção de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do seu reino.
Após uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo nobremente ajaezado. Embrenham-se na floresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.
De repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não tenha segredos para a rainha, desta vez, não consegue dominá-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cavalo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.
Daí a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por um forno de carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estômago com maçãs silvestres e descansam, como podem ─ Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.
Na manhã seguinte, quando Potranc acorda, fica amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também, percebe o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manhã, e renova a enorme ternura que desde sempre sente por este jovem, que se sujeita a tantos perigos por sua causa. Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mutuamente afeiçoadas. Nenhum tenta resistir à atração. Os seus lábios encontram-se e os seus corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo há muito sublimado.
Nesse momento, o cavalo de Potranc relincha e ambos regressam à sua realidade.
Sei que me amais tanto quanto me respeitais ─ sussurra a rainha, enquanto deposita um beijo suave na fronte possante de Potranc. ─ Sois o meu mais querido paladino.
Sim, minha rainha, amo-vos mais do que a tudo na vida, e o meu respeito por vós só tem paralelo na minha lealdade ao nosso rei ─ declara Potranc, comovido. ─ Estarei sempre a vosso lado.
A emoção toma conta de ambos. Abraçam-se longamente, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris.
Retemperados, prosseguem o regresso ao castelo, onde as pessoas que são tudo nas suas vidas, os esperam inquietas, sem saber que Potranc já resgatou, galhardamente, a rainha e a traz de volta sã e salva. Cavalgando a caminho do seu lar, levando a sua senhora na garupa, Potranc é o cavaleiro mais feliz do mundo.


Joaquim Bispo
* * *
(Pastiche dos romances de cavalaria, especialmente Lancelote – o Cavaleiro da Carroça, de Chrétien de Troyes, séc. XII.)

* * * 





domingo, 24 de maio de 2015

TROVA DE EDWEINE LOUREIRO _ TEMA: PAZ

Continuo, este mês, publicando minhas trovas.

A responsável, agora, por esta linda concepção visual  é a querida e talentosa PoetAmiga Dáguima Verônica. Espero que curtam a leitura e até o próximo mês!

Abraços poéticos.

Edweine Loureiro






sexta-feira, 22 de maio de 2015

Texto em dia

A quantidade de linhas não importa. Até que importa, porque, tu sabes, o espaço está sempre escasso e a gente fica correndo atrás de milímetro, de sangria, de borda, então dá um jeito de ajustar as coisas, nem muito nem pouco, só o necessário. O entrelinhamento é simples, o recuo é de um e meio na primeira linha, bloco justificado. Times New Roman 12, tudo preto. Depois empilha um parágrafo embaixo do outro e já era. Nem pensar em caixa alta. Qualquer grifo vai em negrito. Melhor: em itálico, mais discreto. O texto. Assim que se bota um texto em ordem. Não é? Cada palavra acomodada na sua fila, de mão com a da frente e a de trás, não briguem que é feio, gurias. Tem texto que funciona tão bem assim, no quadradinho e na regra. Coesão e coerência a gente doma na pontuação. E no corte. Argumento rebelde também se curva a um bom delete. Texto bom é texto lindo. Lido. Ido. Não o que emperra. De acordo? 

Que nem vida. Tem que botar em dia. Tem que. Existe receita ~caseira~ até para limpar o vidro temperado do box do banheiro, não vai ter para colocar vida no eixo? Claro que vai. Dois cliques e o Google já diz. Dá para sofisticar a busca: com ajuda especializada, consulta entre cem e trezentos reais, incluído desconto do convênio. Mas para quê, né, se tem sempre um primo do filho do amigo que gosta de conversar e pode fazer uma avaliação de graça do caso, na parceria. Do jeito que a gente vive, nem precisa estudar caso a caso, é tudo igual, a mesma bagunça, o mesmo padrão, o mesmo tarja preta. E os especialistas também andam tão perdidos, que. O jeito caseiro de solucionar problema não falha. É sabedoria popular acumulada, pode confiar.

Eu posso dar um toques, experiência própria. Desde que o conflito seja o seu com seu umbigo. Se entrar um terceiro ou quarto elemento na conversa não meto a minha colher. Meto. Óbvio que meto, mas sou capaz de cobrar pelo serviço. Enfim, quero ajudar, então lá vai: faz de conta que a vida é texto. Força a justificação, arranja um sinônimo para não repetir palavra, ninguém gosta de ouvir a mesma coisa mais de uma vez, exceto se a coisa for do ninguém. Evita ponto de exclamação, que é de uma breguice sem tamanho. Afirma, que é melhor. O mundo anda tão sem paciência para as dúvidas, as perguntas, os “e se”. Objetividade é um bom truque: quer comer pão branco com salame italiano, come. Quer alisar o cabelo, alisa. Andar de bicicleta à noite, vai. Nem todo texto requer explicação ou final. E a patrulha do corretor linguístico estará sempre de prontidão. Aqui mais ao Sul poucos suportam um tu misturado com você numa conversa informal feito essa. Se quiser desviar de chateação, conjugue classicamente. E se a tua onda for experimentar, deixa combinar a segunda pessoa com a terceira, o singular com o infinito, que tudo bem. 

Quem precisa alinhar todos os tapetes às portas do corredor do prédio, quem sufoca diante de paredes com quadros desnivelados, quem foge de ruídos contínuos para não entrar em colapso: seus adoradores de vírgulas, vocês têm salvação! Organização é ar. Vocês não estão doidos, seus conteúdos têm nexo e sentido e humanidade, só precisam respirar mais do que os demais.





quinta-feira, 21 de maio de 2015

Jubileu

Ano de 2007. Sentou-se diante do computador em postura altiva, superior e preparou-se para digitar as primeiras linhas do seu romance. Caso acreditasse em Deus, estaria convencido que o toque do Criador o contemplara com um talento fabuloso. Era despeitado com críticas – no seu entender invejosas – aos seus trabalhos anteriores exibidos na grande rede. O tolo desconhecia que Deus nos brindava com um Rimbaud a cada cem milhões de nascimentos e, dada a seletividade divina, o resto da humanidade não abraçara a genialidade aos 20 anos de idade.
Nem um pretenso Deus muito menos os invejosos o atrapalhariam em seus planos de brilhar o universo das letras, pensava entre muxoxos banhados de desprezo. Manchou em tipos negros o virtual papel alvo que preenchia a tela com a expressão “A História de um Grande Presidente”. Sacudiu negativamente a cabeça. Um título demasiado simples para um livro candidato a  eternizar-se nos meios literários tupiniquins. Acionou a tecla “Del” e mandou “A História” paras os quintos dos infernos digitais, substituindo-a pela expressão “Revelações”.  Não gostou da sonoridade da palavra, considerando o título pobre sem atentar para o fato de faltar vocabulário no cemitério de idéias que era sua mente.
Buscou no dicionário eletrônico alojado no HD palavras bonitas para compor o título. Gastou cerca de uma hora pesquisando, juntando verbetes, amontoando expressões sem sentido para chegar ao rótulo definitivo de sua obra-prima. “Radiofotografia de Um Presidente” – escreveu desconhecendo todavia o significado da palavra a encabeçar o título. “Ficou bonito...” – sorriu triunfante.
Agora faltava o miolo, a alma do livro. Como ignorava que uma biografia, mesmo romanceada, tem a obrigação de se fiar na verdade dos fatos, inventou uma história inverossímil a respeito do biografado. Ávido, escreveu cerca de dez linhas para em breve estancar no deserto de criatividade a habitar sua caixa pensante.
Não se dando por vencido, enquanto tentava avançar em sua obra, alardeava em espaços virtuais suas façanhas sem comprovação como escritor laureado. Inventava prêmios recebidos, amigos escritores, gente famosa em seu rol de amizades. Tudo ruía ante a menor investigação, mas ele tanto mentia que passou a crer sinceramente em suas falsidades.
Estamos em 2057. Dezessete laudas da “Radiofotografia de Um Presidente”  foram compostas. Erros crassos de concordância e regência povoam a pretensa narrativa, equívocos ortográficos pululam o texto feito abelhas em torno de uma colmeia agredida.  Nada ali é aproveitável. Porém, o escritor, rosto carcomido pelas rugas, coluna antes ereta envergada para frente, castanha cabeleira pretérita agora embranquecida pela crueldade dos anos, ainda se engana. No jubileu de ouro de sua arrogância,  mirou a vista no título e exclamou “Sou um Gênio!” para em seguida dar prosseguimento a sua  triste e misantropa sina.






quarta-feira, 20 de maio de 2015

BODAS DE NEURAS

Há 25 anos faço análise com o mesmo analista. Dizem que não é bom esse tempo todo,
mas faço análise há 25 anos com o mesmo analista para não me deixar manipular por
estes “dizem” que o senso comum nos impõe.

Parece casamento.

Eu sou assíduo cliente de um austríaco de pai italiano, que foi trazido ainda no
colo dos Alpes fronteiriços da Itália para o Brasil, onde cresceu, adolesceu e
virou médico de especialização psicanalítica.

O nome dele é Ralph Bernnelli e duas vezes por semana tiro os sapatos e me jogo
nos almofadões do seu divã. Um analista de botequim parceiro de chope e bolinho
de bacalhau disse que chafurdar nos almofadões de um analista é nadar no líquido
amniótico da mãe.

Como ele não passa de um palpiteiro metido a falar difícil, eu disse que queria
chafurdar é na mãe dele. Nunca mais vi esse camarada.

Toda vez que saio da sessão, passo no hall dos elevadores vejo à direita uma dessas
vending machines – nome esquisito que esses marqueteiros inventam para máquinas que
vendem guloseimas, snacks (outra importação pedante intraduzível) e refrigerantes em
troca de alguns dinheiros enfiados num buraco. Pois a tal vending machine tem um
biscoitinho que me deixa doido: bolinhas de queijo
ocas e torradinhas.

Sempre gostei de biscoitinho de queijo com ar dentro.
Sempre gostei, não. Posso me considerar um devoto, um fetichista, um obsessivo,
um compulsivo devorador de biscoitinhos de queijo com ar dentro.

O espocar daquela crocância entre a língua e o céu da boca me representa a felicidade
plena, como para o carola é a hóstia desmanchando contra o palato, sei lá,
é o que dizem os católicos praticantes.

De novo, o “dizem”, esse sujeito indefinido chamado senso comum me persegue. Há 25 anos
luto contra ele no aconchego de Ralph, o companheiro profissional e afetivo que me acolheu.
Sem sexo, claro. Somos héteros. Pensando o quê?

Mas voltando aos biscoitinhos de queijo. Lembro quando criança que minha sofreguidão
era tanta na hora de rasgar o saquinho vermelho salpicado de estampas circulares
– sim, eram eles, os biscoitinhos em desenhos hiper-realistas provocando salivas e pressa
– sempre caía um no chão.
E minha avó gritava.
- Não come! Joga fora! Está infestado de micróbios!

E meus olhos ficavam fixados no biscoitinho caído solitário, condenado ao lixo.
Que peninha.

Dava uma tristeza aguda imaginar o périplo que o biscoitinho desgarrado percorreu
em vão. Misturado com farinha, sal, água e essência de parmezon, amassado, assado,
empacotado, encaixotado, sacolejando por estradas precárias até chegar à prateleira
do armazém.
Para quê? Para acabar no chão, na vala dos inúteis?

Essa compaixão me atormentava nos piores e melhores momentos, nào importa onde, quando
e por quê.

Toda vez que tocava punheta, despejando milhões de espermatozoides na água
morna do chuveiro, engolidos pelo ralo do box, lá vinha a tristeza pós gozo,
a culpa, a comiseração, a vontade de me esvair também.

Eu fazia isso dia sim dia não, sempre que chegava do Ralph. Porque sempre descia
no elevador comigo uma moreninha bustosa de saia justa, talvez recepcionista de
algum outro consultório, que me dava um “boa noite” gostoso aos meus ouvidos e
maldoso ao seu sorriso, e virava-se de costas para minha curiosidade observadora,
que não livrava nem as sapatilhas rasteirinhas nos pés que encerravam batatas de
perna torneadas e assanhadas, como seus mamares arrebitados e seus glúteos inspiradores.
E a pretexto de encontrá-la na imaginação, já entrava no chuveiro em riste.

Um dia a moça sai do elevador e em vez de seguir porta afora, dá meia volta e para
diante da vending machine, bem atrás de mim. Eu tinha acabado de enfiar uma nota de
dois reais para comprar um saco de biscoitinho de queijo. Em instantes, o biscoito
está na minha mão, enquanto a vending machine anuncia em letras vermelhas:
LAST CHEESE COOKIE.

A moça entendia inglês.
- Que chato, logo na minha vez.
E eu entendia de cavalheirismo.
- Não se preocupe, fica para você.
- Muita gentileza. Só vou aceitar porque por que esse biscoitinho mexe comigo.
- Ái meu Deus. Não disse, mas pensei.

De tão atrapalhado, rasquei o saco com a sofreguidão parksoniana. E um dos
biscoitinhos saltou para o chão.
Ela emendou:
- Não come! Joga fora! Está infestado de micróbios!

Teria ouvido o que ouvi?
Neste momento os olhares se encontraram cúmplices. Olhos iguais, ora nos biscoitinhos,
ora nos rostos mútuos, que se reconheciam arrasados, lacrimejosos, combalidos diante
de um biscoitinho condenado ao lixo.

Sessão seguinte, no Ralph.

- Encontrei minha alma gêmea.

Ralph tinha o hábito de tirar os óculos, dar uma baforada nas lentes, limpá-las com a manga da camisa e falar duas vezes a mesma coisa.

- Como você sabe? Como você sabe?

- Manias de mãos dadas.

- Prossiga, prossiga.

Essa mania do Ralph me irritava há 25 anos. Mas prossegui.

- Ela tem dó de coisas que se perdem. Restos de Coca Cola despejados na pia, tronquinhos 
de brócolis abandonados no prato, azeitonas deixadas de lado num prato de pizza, remédio 
que cai debaixo da mesa, caroço de milho cuspido, ervilhas que quicam no chão, 
biscoitinhos de queijo que caem do saco.

- Transtornos obsessivos se atraem ou se repelem. Transtornos obsessivos se atraem ou se repelem. Vamos ver. Vamos ver.


- Temos diferenças que nos completam. Eu só fico com pena de biscoitinho que o destino 
lhe nega o direito de cumprir sua missão. Ela guarda tudo.

- Guarda? Guarda?

- Quando nos encontramos, aqui embaixo no hall, um biscoitinho caiu no chão. 
Ela fez cara de dó, abriu a bolsa e tirou um saquinho plástico. Colocou o biscoitinho 
lá dentro e disse que levaria para casa, que acolhia objetos abandonados, extraviados, 
que nasceram e morreram à toa.

- Mais empreendedora que você. Mais empreendedora que você.

- Trocamos palavras celebrando nossos sentimentos afins. Ela me convidou para ir 
à casa dela.

- Houve penetração? Houve penetração?

Nesse momento Ralph repetiu o ritual da baforada nos óculos e se aprumou na poltrona.

- Não se apresse, Ralph. Vamos por etapas. Era uma sala e dois quartos na praça 
aqui perto. Num quarto, uma cama de casal, no outro, uma porta trancada.

- Ela mora sozinha? Ela mora sozinha?

- Sim e não.

- Respostas objetivas. Respostas objetivas. Por favor, seja claro. Por favor, seja claro.

- Sim, porque disse que mora sozinha. E não, porque quando ela abriu o quarto trancado, 
dei de cara com estantes e mais estantes repletas de saquinhos com milhões de coisas dentro. 
Ela tirou o biscoitinho no saquinho plástico da bolsa e colocou numa prateleira cheia de 
outros troços malucos. Ela disse que era apegada a tudo que seria importante à sua existência. 

- Você consegue descrever? Consegue descrever?

- Cascas de banana ressecadas, mechas de cabelos, recortes de panos e jornais, porções 
de terra e areia, conchas, cavalos marinhos, patas de caranguejo, molares, incisivos, 
caninos, livros despedaçados, calcinhas manchadas de vermelho, cuecas amareladas, 
cacos de materiais diversos, pedaços de reboco, meias luas de unhas do pé, rolhas 
e tampinhas, não dá para descrever tudo que eu via, muito menos entender a 
razão porque estavam ali. 

- Cada coisa deve ter lá sua representatividade  na história da moça. Cada coisa deve ter lá sua  representatividade na história da moça.

- Isso. Isso. 

Esse cacoete de linguagem é contagioso. Segue o relato.  

- Reparei que num lugar nobre da estante central havia um saquinho com um chumaço 
de gaze e sangue. “É meu umbigo, que caiu quanto tinha duas semanas de vida. 
Minha avó guardou. Quer ver?” Agradeci e disse que estava na hora de ir embora. 
Ela disse. “Se você ameaçar ir embora, corto seu pau, enfio num saquinho e coloco na estante 
das coisas que não aproveitei. Ao lado do biscoitinho.” 
Neste momento, cresceu uma ereção descomunal.

- Bingo, bingo! Neuroses se atraem, neuroses se atraem!

- Quer saber? Não houve muita conversa, nem uma penetração. Mas várias. Noite adentro 
de atração carnal ululante, intercalada de línguas em sacos, lábios, grandes e pequenos, 
róseos e aveludados, glande, veias pulsantes e clitóris, lambidas gerais, chupadas de mamilos 
e dedões do pé.

-  Ela tem joanete? Ela tem joanete? 

Nem respondi. Fiquei olhando para a cara do Ralph.  Acho que o senso comum tem razão. 25 anos ouvindo minhas manias e o cara esquece que não fodo mulher com joanete.





segunda-feira, 18 de maio de 2015

João Gostoso, Again










Naquela noite, João Gostoso chegou em casa às oito e meia, já com tudo preparado para a feira do dia seguinte. Em lugar de sua Maria das Dores, porém, encontrou foi o bilhete rabiscado no papel do pão: João, fui embora. Não me procure, fui com o Alfredo.
Pronto, só isso, nada mais, na letra de criança de Maria, em que cada traço saía difícil, ele lembrava quando ela aprendeu a ler e escrever, fazia pouco.
Por cinco noites os dias de João foram iguais: antes das dez na cama, pouco depois das três de pé, a lida na feira, carregando tomates e cebolas para a barraca do Rodrigo e da mulher, mais a filhinha do casal, que sempre ficava por lá e lhe sorria de um jeito que era ruim de ver, porque a filha que não teve olhava pra ele por ela.
Na sexta noite, João desistiu, não dava mais pra levar vida de sempre, hora de recomeçar. Das Dores não voltaria mesmo, precisava arrumar mulher, ficar feliz de novo. Nada melhor pra isso que o velho boteco de sempre, do Seu Joaquim, ali mesmo, na beirada do morro, lugar que Das Dores não suportava nem olhar, mas ele gostava, e como gostava. E agora era hora de redescobrir o gosto, viver a alegria e esquecer aquela dor no peito que queria levá-lo para onde não se sabe.
O bar Vinte de Novembro estava aberto, claro. Seu Joaquim olhou, apoiando-o em seus intentos, isso, nada de fazer drama, bebe pra arrumar outra, mulher na Babilônia, ora bolas, não falta, é o que mais tem! E o que vai querer hoje, João? Quero mesmo é pinga com limão, mas sem açúcar, pra descer ardendo. E foi bebendo, foi bebendo, nem pensando em quanto ia ficar, se ia ter dinheiro depois pro todo dia, se não. Tocava samba, que Seu Joaquim não avacalhava em seu boteco, era coisa de gente fina, nada dessas porcarias que se ouvem hoje em dia, mas samba dos bons, e João Gostoso dançava e se achegava às mulheres que pousavam por lá, não queria saber se dançava bem, se mal, queria só dançar e ficar com elas, perto delas. Pouco importava se a mulher era bonita, se era feiosa, baixinha, gorduchinha, até a dentuça da Josefa valia. Cantava as letras que sabia e inventava as partes que nunca tinha entendido, feliz da vida de verdade, ao menos era o que parecia.
Passava das duas quando lascou um beijo na Elizeth, ali mesmo, na frente do namorado novo dela, que ninguém nem o nome inda sabia, e saiu andando, sem olhar para trás. O tal namorado hesitou, não conhecia direito as regras do pedaço, não sabia se devia ir atrás do ousado que lhe roubara um beijo da moça, se brigava era com ela, e nessa indecisão João Gostoso se afastou o suficiente, livre de qualquer ameaça e caminhando em seu passo normal.

Ninguém soube dele até manhã cedinho do outro dia, quando a notícia de seu corpo boiando na Lagoa começou a correr e chegar até a Babilônia, pasmando a todos e, mais no fundo, a Elizeth e a Das Dores, que por meio de Alfredo ficou sabendo da notícia que logo foi registrada nas letras borradas de preto do jornal.





10 mandamentos pós 29 de abril de 2015

1. Professores são professores e sempre serão professores.

2. Professores exigem respeito e pagam seus impostos iguais a você.

3. Professores somente pedem o que é garantia do seu e outros governos.

4. Professores são unidos e não apenas em época de eleição igual vocês.

5. Professores apanham todos os dias - dos filhos da sociedade ao PM com um fuzil.

6. Professores não são black blocs e nem partidário de partido X ou Y.

7. Professores em greve lutam pelo melhor deles e dos filhos de todos.

8. Professores querem trabalhar e serem pagos como todo cidadão.

9. Professores servem e protegem de ignorâncias.


10. Professores em praça com nome de Santa clamam pela justiça.





domingo, 17 de maio de 2015

Ciuminho básico - o poema sórdido de Ana Elisa Ribeiro




Ciuminho básico


escuta
calado
a proposta rude
deste meu
ciúme:


vou cercar tua boca
com arame farpado


pôr cerca elétrica
ao redor dos braços
na envergadura
pra bloquear o abraço


vou serrar teus sorrisos
deixar apenas os sisos


esculhambar com teus olhos
furá-los com farpas
queimar os cabelos


no pau acendo uma tocha
que se apague apenas
ao sinal da minha xota


finco no cu uma placa
"não há vagas, vagabundas"

na bunda ponho uma cerca
 

proíbo os arrepios
exceto os de medo


e marco no lombo, a brasa,
a impressão única do meu dedo.





sábado, 16 de maio de 2015

Avareza

Se um corpo A aplicar uma força sobre um corpo B, receberá deste uma força, 
de mesma intensidade, mesma direção e de sentido contrário.
                                                                               (Isaac Newton)

Intensidade

Você quer cinco reais? Assim, de graça, menina? Não. Primeiro coça aqui as costas do papai. Mais um pouco... Isso... Muito bom. O dinheiro é para quê? ... Sorvete? Ah, não! Pensei que era pra coisa séria. Pra besteira não tem dinheiro, não! ... Mas o que é isso? Sem choro, menina. Para de chorar. Ah, não vai parar? Então, você agora me deve R$10,00. E se continuar chorando a dívida aumenta pra R$15,00. Pão-duro? Eu? Cala a boca, mulher! A menina precisa aprender que dinheiro não cai do céu! Cinco reais! Desse tamaninho e já pede logo cinco reais!! Sabe quanto tempo eu levo para ganhar esse dinheiro? Sabe o que eu preciso fazer para ganhar o que eu ganho? E o meu dinheiro não é capim, não! Não nasce em árvore! Quer saber? Você está de castigo, menina! Só sai do quarto quando entender o valor do dinheiro.


Direção 

Você cresce, cresce e não aprende, não é, menina? É isso mesmo! Coloquei corrente da geladeira, sim! Por acaso está na hora do almoço ou do jantar? Se quiser água, tem no filtro. Mas dentro da geladeira não tem nada que interesse a ninguém agora. Mas era só o que me faltava! Eu sei que a sua mãe fez gelatina escondido de mim. É isso, não é? Se eu tivesse visto, não tinha esse desperdício, não! Mas já que fez, é sobremesa. Só depois do jantar.


Sentido contrário 

O quê? O papai quer ir para um hospital particular? É isso mesmo que eu ouvi? Ele quer que eu pague para ele ficar sozinho num quarto? Que desperdício! O que é que ele está pensando? Que eu tenho dinheiro para jogar fora? Ele sabe o que eu preciso fazer pra ganhar o que eu ganho? Além do mais a doença dele é terminal, mamãe. Não importa em que hospital ele esteja, nós duas sabemos que ele vai morrer. E vai morrer logo. Então, para que esse luxo todo? ... Ah, mamãe, para de chorar! Se você continuar chorando eu vou desligar o telefone. 







quinta-feira, 14 de maio de 2015

Chá de gengibre




Ildefonso beberia uma chávena de chá e depois iria.
Nos cartões-de-visita tem escrito Mendes Cordeiro, médico. E, por baixo, em letras mais pequenas: obstetrícia e doenças de senhoras.
Beberia, sim, uma chávena de chá.
Ildefonso Mendes Cordeiro que já era canhoto antes do acidente usa sempre uma luva na mão com que antes se barbeava quando o fazia com Gillete ou com navalha, coisa que talvez tenha usado uma ou duas vezes. Ele sempre foi esquerdino para a máquina eléctrica e para tudo o resto, tanto que, no casamento, ia colocar a aliança no dedo da mão contrária de Madalena Andrade. Andariam ambos pelos vinte e quatro e corriam já os anos da guerra. Ildefonso foi mobilizado, mal terminou o curso.
Devemos evitar que um dia digamos desaforos um ao outro, escrevera-lhe Madalena numa carta imensa, folhas finíssimas deixando transparecer letras de um lado ao outro, palavras que se amalgamariam em discursos absurdos se fossem lidas com luz que incidisse em ângulo adequado sobre aquele papel de seda.
Deveremos não chorar a prole que nunca geraremos, assim pensara Ildefonso enquanto lhe dizia, numa carta lacónica, que sim, que ela tratasse do divórcio, mas se despedia com beijos ternos e saudade imensa do teu Id, diminutivo com que Madalena o tinha sempre tratado. E quando foi desmobilizado, tinham permanecido juntos.
Ildefonso beberia um chá fervendo ali mesmo, ao balcão, o açúcar deitado com a mesma mão com que o mexeria com a colherinha de plástico que tiraria do invólucro, os dentes da frente, ainda os que lhe tinham nascido por volta dos sete anos, ajudando a rasgar o papel. 
E não sorveria a beber um golinho. Madalena tinha horror a esse ruídoMas Ildefonso sopraria. Isso, faria. Um sopro sobre a superfície do líquido quente, qual ventinho suave que demoraria num gesto, todo ele, placebo. 
Ildefonso Mendes Cordeiro que se engasga, tosse, busca um guardanapo no suporte, e é um gesto aflito, demorado, esse de desentalar o papel, e ele tossicando para dentro da mão enluvada num cinzento rato, pele de uma boa marca trazida não saberia dizer de onde. Ildefonso com a mão esquerda atarantada e tossindo para a luva, inspira profundamente, acalma aquele engasgo, e pede um pingo de água que destempere o chá fervendo. 
O empregado traz-lhe um copinho raso, um vidro baço que Ildefonso segura com cuidado a verter apenas um fiozinho sobre o chá fumegante.
Gengibre, pedira ele, que gosta daquele travo doce-amargo.
E, sem querer perder o prazer que lhe dá o calor da loiça, Ildefonso envolve o bojo da chávena com as mãos, e fica saboreando o chá em golinhos esparsos.
Beberia um chá e depois iria, tinha ele pensado.
 

***


Em volta não havia horizonte. Descesse os olhos, e era o negro desde de ali até, nem Ildefonso sabia até onde era apenas escuridão e, lá no cimo, um céu pejado de pontos luminosos, uns dispersos, outros parecendo sobrepostos, uns mais cintilantes do que outros brilhando como pequeninos sóis.
Um céu estrelado, pensou Ildefonso já o carro se perdia num rumor rouco, e a escuridão rangia como ferrolho na cela do preso, e sentiu por instantes a respiração em descompasso e as mãos tremendo, mas logo se recompôs, o ar entrando e o ar sendo soprado e depois repetindo, e repetindo, até dar por ele a desejar uma aguardente, ele que não bebia desde aquela saída para o mato: todos mortos, excepto o condutor. O condutor e ele que ficara com a mão direita esfacelada.
Ildefonso respirando, calmo, o ar daquela noite dos deuses.
Terá que ser numa noite sem vento e sem lua, e terá que estar no ar uma temperatura de, ao menos, vinte graus, dissera a mulher que rodava entre os dedos uma enfiada de dentes de animal como se fossem contas de um rosário.
Ildefonso procurara ajuda e a mulher prometera que daria tudo certo.
De bruços sobre a areia morna, as mãos enterradas e o corpo ligeiramente apoiado sobre o lado esquerdo, de cada vez que move os dedos da mão esquerda e os que lhe sobram por baixo da luva, a areia desliza-lhe, fina, pelos  antebraços.
Ildefonso aguarda, seguindo os ensinamentos da mulher.
De vez em quando, parece distinguir a fralda branca dum vestido, mas é o branco, raro, de uma crista de onda; e um som que cuida ser de anjos é apenas o rumor das ondas deslizando espumas pela praia.
A mulher tinha-lhe dito: será melhor que não saiba onde.
E o táxi rodara em círculos, rolara descendo e roncara subindo.
O taxista era um rapaz bem-apessoado, mas receou-se: e se lhe acontece algum desastre?! e Ildefonso prometera-lhe que não iria acontecer fosse o que fosse e que não, que não seria caso de polícia. Era Ildefonso respondendo ao receio do taxista: depois, dizem que fui o último a vê-lo, e eu não quero porras com a justiça. 
Acabou por explicar-lhe que vinha encontrar-se com a esposa, que era assim uma espécie de jogo, mas não lhe falou em guerras, nem em anjos, nem noutros pormenores, e subiu a oferta, enquanto abria o livro de cheques e retirava a tampa duma vulgar esferográfica.
O rapaz do táxi esteve renitente, mas acabou acedendo e fez tudo tal e qual Ildefonso lhe pediu: que eu me perca, que eu não saiba onde me encontro.
A mulher tinha dito: fará de modo a não ter noção de local aonde ela irá.
A mesma mulher que lhe tinha perguntado: o senhor é medroso? e Ildefonso respondera que medo, medo mesmo, tinha sido o que sentiu uma vez apenas, e nem fora na guerra.


***

Virá rodeada de luzes, tinha dito a mulher.
E ainda assim, sabendo, Ildefonso sentiu o corpo contrair-se e o coração bater descompassado, tanto que lhe parecia querer sair pela boca para em seguida ficar retido entre as costelas, parado numa dor imensa que lhe tomava o peito: morto o coração de Ildefonso que logo esbaforia aos saltos.
Ildefonso desenterra as mãos e benze-se: a mão enluvada a traçar-lhe o peito com o sinal da cruz enquanto Ildefonso lhe balbucia o nome. Madalena. E repete.
A mulher tinha prometido que ela viria ao seu apelo, e Ildefonso balbucia, uma sílaba a seguir a outra sílaba.
Medo, não, ele nunca tinha tido medo senão quando ela lhe disse: Ildefonso, estou grávida, e sorria-lhe.
Ildefonso nunca lhe contara dos exames. Estéril, tinha sido o diagnóstico. 
Medo, mesmo medo, tinha sido aquele medo na alma, e mais que a mão desfeita lhe ficara o espírito. Um medo muito mais intenso do que o medo do estampido da mina, e era ou morrer ou ficar estropiado.
As luzes aproximam-se e Ildefonso continua a chamar-lhe o nome.
O retrato dela viera estampado nas primeiras páginas. Também viera o retrato dele, e acima, ao lado ou em baixo, em letras garrafais, o rapaz do táxi teria lido: anda a monte o médico que esfaqueou até à morte a esposa grávida.
Seriam luzes e seriam anjos antes que ela aparecesse, tinha dito a mulher a rolar pedrinhas sobre um pano.













terça-feira, 12 de maio de 2015

Desventuras de Margot (parte 01)



A ficha começou a cair quando puseram sobre a minha mesa, a mais diversificada do escritório, um livro para colorir. E de quebra um recadinho preso por um clipe à capa: “relaxe, meu bem. Aproveite e pinte com a mão esquerda. Serve como exercício de neuróbica. Seja feliz!”.
            Ok, ganhei atestado de mulher estressada, let’s relax.
            – Vai se foder quem colocou essa porra de Jardim Secreto na minha mesa! Eu quero uma passagem pro Caribe, alguém se prontifica? Hein? Prefiro tomar overdose de Fluoxetina do que ficar que nem uma retardada pintando, vocês não tem o que fazer não, é? Gente, que mundo é esse! Parem com essa infantilização, esse mimimi de que temos que resgatar a criancinha do seu interior! Acordem pra vida!
            As carinhas estateladas, a maioria por trás de lentes transitions, me olhando de suas cadeiras confortavelmente prontas para detonar todas as colunas.
            Sentei, respirei um ar gelado condicionado por uma máquina que respingava na cabeça dos ambulantes cinco andares abaixo. Fiz bolinha com o recadinho.
            – E ah, eu já bato punheta pro chefe toda semana com a canhotinha. Neuróbica ótima, me mantém empregada. Seus infelizes...
            Arremesso a bolinha no topete blindado de gel do Jackson. Sento de novo.
            Eu devia imaginar que essa do chefe causaria efeitos colaterais.
            – Não tem jeito, Margot. Depois dessa... você, você... pirou de vez! Como vou te manter no escritório depois dessa? O que vão pensar?
            – Que evoluí pro anal?
            – É, isso aí!... – exasperado, secando o suor da testa - você faria um anal, é?
            – Não ia doer tanto com você.
            – Porra é essa, Margot, tá dizendo que meu pau é pequeno?
            – Não, idiota. Quis dizer que já sou arrombada. Claro que é, né!
            – Olha aqui, você não está em posição de tirar onda com a minha cara, entendeu? Você tinha que rastejar aos meus pés. Implorar! Mas não, prefere me diminuir! Literalmente!
            – Quer saber, boss? Caguei pra você. Pra esse escritório mofado. Pra esses bafos de bala Halls preta que me dão náuseas.
            Ele cospe a bala na mão.
– Pra essa gente nada bronzeada que não se dá valor! Pra essas papeladas!
            E jogo papéis pro alto.
            – E vai fazer o que da vida, hein?
            – Faço ponto ao invés de bater ponto. Não digito mais nenhum ofício na vida dentro de uma sala com mais um monte de narizes fungando o tempo todo e respirando o mesmo ar.
            Antes de sair, ele pede que eu aguarde.
            – Lembra de me mandar o endereço da esquina que você for rodar tua bolsa, tá?
            Um dedo pra você.
            Recolho minhas coisas. Canetas, patuás, retratinho, caderneta, lixa, marca-texto, cataflan gel, calendário-brinde de supermercado, fone de ouvido, um pão embrulhado no papel alumínio de anteontem, calculadora (não, a calculadora é do babaca... ah, foda-se, vem de bônus).
Doralice me interrompe, trêmula.
            – Desculpa, eu, eu... só quis ajudar. Você parecia tão estressada ultimamente e...
            – Doralice, minha filha... vai colorir sua vida, vai. Pega uma praia, uma marquinha de biquíni... arranca esses boleros de veludo de vovozinha, cheio de pelo de coberta, coisa nojenta.
 – É que, é que faz frio aqui e eu tenho rinite e...
– Rinite o cacete, Doralice, quem tem rinite não dorme abraçada com ursinho de pelúcia!
– Não é ursinho, é um elefantinho rosa de infância, tá? Ah, e como você sabe que durmo com ele?
– Sai dessa, Doralice. Olha só, vem de decote pro escritório, frio é bom que faz o bico endurecer, dá aquele sinal sensual, sacou? Aproveita e tira esses grampos enferrujados da cabeça, solta esses cabelos, encharque de shampoo porque tá pingando óleo isso aí, usa um batom vermelho porque verde... tudo que é verde, minha amiga, não serve pra comer, né, vamos ser sinceras. Cata um macho, procura nesses Tinders da vida, hoje não tá difícil, o mundo tá carente.
– Mas, mas...
– Mas antes vai num cartório, abre um processo e troca de nome porque ninguém merece Doralice. Nem leitoa de novela de época das seis tem um nome poeirento desses.
 – Mas, mas... era o nome da minha avó! – já aos prantos.
– Ai, Doralice... me dá um abraço aqui.
Pronto, fiz minha boa ação do dia. Alma lavada.
Beijos, não me liga.
Catei minha trouxa e dei no pé daquele prédio. Dei o livro pra minha sobrinha de cinco anos e dias depois minha irmã me liga dizendo que já tinha largado os antidepressivos por conta do livro. Trancava a filha chorona no banheiro e assim podia se concentrar para encontrar o tesouro secreto através de um mundo multicolorido.
Já o meu mundo estava acinzentado, sem seguro desemprego, sem saldo no cartão, sem alguém pra dormir de conchinha, filando almoço na casa de parentes e amigos, economizando as economias...
Até que um dia ouvi o padre Marcelo, por acaso, numa rádio.
Troquei de estação. Pus meu cd do Alice in Chains em volume máximo, quebrei uns copos de requeijão que já me aborreciam há muito e acordei uns vizinhos vagabundos.
Num chopp dia desses com duas amigas, conversas foras, ex loves em pauta, paqueras e tal, solto uma gargalhada depois de ouvir da Sabrina que a vagina dela peida.
– Amiga... uau! Você é uma bruxa perfeita! – diz a Sabrina, arregalando os olhos.
– Que isso, Sabrina, tua vagina que peida e eu que faço feitiçaria?
As risadas continuam.
– Não, não é isso! A sua gargalhada agora me lembrou de uma coisa, hum... – dá uma golada no chopp – a minha mãe comentou em casa que vai rolar uma peça, uma parada do tipo, lá na escola dela, pro dia das crianças. E que ninguém queria fazer o papel da bruxa.
– Ok, ok, e você se lembrou disso por causa da minha gargalhada? Eu rio que nem uma bruxa?
– Não é isso, miga... é que você ri alto, engraçado, sei lá.
– Mentira, você acha meu nariz grande, né isso? Vai, confessa!
– Que isso, fala sério!
– Assim que eu tiver empregada de novo vou providenciar uma plástica nessa nareba, ah seu vou, escrevam isso!
– Nada, foi só por causa da risada mesmo amiga, desencana. Só pensei em você como uma possibilidade, e pá...
– Agora você quer me escalar pra ser a bruxinha malvada de uma peça infantil? É isso mesmo, produção?
– Por que não? Você é descolada e ainda é formada em professora!
– Querida, hello! Eu nunca dei uma aula na vida. Perdi três anos fazendo aquela bendita faculdade... só serviu pra ter um lance cult com o professor esquisito de Literatura Portuguesa.
 – Ah, sei, aquele que você disse que era amante do Camões? – recordou a Ana.
– É, ele dizia que tinha orgasmos lendo Camões... eu pensava que era no sentido figurado até o dia que encontrei porra na capa dos Lusíadas. Caí fora, lógico!
            – Vamos, amiga, topa, vai! Será divertido! Minha mãe tá desesperada, precisa pra ontem.
            Penso virando o chopp.
        – Ok, ok... Tua mãe é gorda, mas é gente fina... São quantas falas pra decorar nessa bagaça?

(Margot volta na parte 2...)