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domingo, 26 de março de 2017

Fecunda

Pra que outro filho, Maria? Já não basta? Ouvia dos amigos, irmãos, vizinhança, até da mãe. Mais um? Pra que mais tormento? E nova barriga se espichava, ano sim, ano sim. Botar no mundo pra sofrer e fazer sofrer? Ideia de jerica.

E Maria continuava gerando vida, certa de que assim era o certo, não exagerava. Casa sem berço é tristeza. Lar sem criança, aridez.

O marido não concordava nem se opunha. Pois se era isto que movia a mulher: a chance de ser mãe de novo e de exibir o quartinho amontoado de anjos. Teimosia? Dádiva? Não planejava nada, não remediava. É Deus quem dá. Ela sempre se alegrava com as boas-novas que chegavam, embrulhadas em fome e choro. Nem dormir fazia falta. Acostumou-se logo a atender filho doente e ninar filho manhoso. Um atrás de outro, às vezes um junto com outro.

Tinha pouco estudo, nenhum dinheiro. Não seria doutora nem teria luxo. Nunca viajaria para o Exterior nem conheceria Marte. Parar de parir por quê? Ir contra a natureza, se meu ventre acolhia tão bem cada nativo, se o mundo me pedia mais presente?

Andaram receitando umas ervas pra ela, umas pílulas, livramentos; mas ela rejeitou tudinho. Quem disse que eu quero tirar? Nem a cirurgia fez efeito. Engravidou logo depois e nem ficou triste. Só entendia de silêncio, aceitação, obediência. Andaram catequizando a mulher a favor do aborto, do direito de escolher.

Respeitem a minha opção. Eu só presto pra isso. Me deixem ter meus filhotes.

Você também pode doar os bebês, Maria. Tanta gente querendo adotar filho saudável. Vocês passando tanta necessidade.  

Nada disso. Ninguém sai daqui. É tudo meu. Sadio ou doente. Quanto mais, melhor.

Não se podia negar. Era boa parideira, jorrava leite e energia. Nunca se viu tão bom aproveitamento da idade fértil. E começou cedo, na adolescência. E demorou chegar à menopausa. Gostava de pelejar com os pequetitos e vê-los crescendo, ganhando peso, arranjando asa nesse mundo. E uns ajudando a cuidar dos outros, bebês virando adultos. Mãe e avó ao mesmo tempo. Dividia os grãos, cada vez em menor número, dentre cada vez mais bocas! E todas queriam comida e carinho. Mas não lamentava.

Ninguém entendia Maria. Em tempos tão difíceis, arrumar tanta criança! Em tempos tão modernos, meu Deus, quando já existe tanto jeito de evitar. Um filho, dois no máximo. É doida essa Maria.

O rebanho aumentava como bênção. Chuvinha fina, gotejando dentro de casa, transbordando nos colchões amontoados. Era menina, menino, menina, menino. Muita doença, muita falta, dificuldade no sustento; mas o colo de Maria estava sempre ali para acalmar, acomodar. Dava conta de tudo. Acalentava os filhos como quem nina o próprio Cristo. E eram tantos, que nem havia espaço para ciúme, disputa, egoísmo, discussão naquela casa. Havia uma história de paz costurando aquele povo. Tanta gente precisada, e uma harmonia que não se vê fácil por aí.

Quando morreu, missão cumprida, dezenas de filhos, netos, bisnetos, ninguém ousou criticar a opção de Maria. Só se ouvia elogio àquela que, enfim, descansava. Sequer reclamaram do testamento miserável. O silêncio sofrido que se ouvia no velório era de gratidão. Velavam ali uma grande defensora dos direitos humanos. Cada descendente depositou uma flor do campo sobre a urna. Nossa Senhora da Esperança, Nossa Senhora do Presépio, Nossa Senhora da Natividade. Cada um rogava. Obrigada, dona Maria, por tanta vida causada.

Maria Amélia Elói





sábado, 25 de março de 2017

A transmutação


Quando Cacilda deu por si, após um curto período de sensação de irrealidade, percebeu que se transformara numa árvore do jardim em frente de sua casa.
Permaneceu de braços levantados, curiosamente sem esforço, e pernas bem metidas na terra, como quem tem medo de se mexer em uma situação de perigo. Não conseguia discernir sons nem imagens, mas a agitação do ar trazia-lhe muita informação óbvia e outra que ainda não sabia bem interpretar, o mesmo acontecendo às subtis vibrações do solo que lhe faziam tremelicar as pernas.
«O que terá acontecido?», surgiu na nebulosa da sua consciência, o que lhe transmitiu um instante de confiança, por, ao menos, perceber que dispunha dessa capacidade de controlo de si. «Talvez tenha tido uma quebra de tensão quando me levantei. Ou já estava a tomar banho? Não me lembro.»
Era uma chatice, de qualquer modo: entrava às 10 no supermercado e não estava a ver como podia chegar a horas. Felizmente que no início do dia havia poucos clientes e talvez as colegas conseguissem aguentar o serviço sem grandes complicações. Mas do raspanete da chefe não se ia livrar.
Avaliou a situação com mais detalhe. Era mais do que as pernas o que tinha enterrado. Percebeu a pressão da terra até ao alto da anca, o que um leve roçar das ervas que lhe tocavam veio confirmar. Para baixo, era humidade e tensão firme. E uma certeza de imobilização. Para cima, secura, agitação do ar e vibração luminosa. Com esta vibração vinha um conforto de ganho de energia. Não enchia quaisquer pulmões, mas a sensação de plenitude respiratória era real.
«Estou com a pele muito rugosa», percebeu. «Então as partes da barriga e do peito estão bem escamosas. Peito, salvo seja. Está mais espalmado do que quando me deito de costas. Só se forem aquelas elevações junto à confluência dos braços mais baixos. Caramba! Se tiver de aplicar cremes a este corpanzil todo, tenho de trazer a prateleira inteira», gracejou com a situação.
Percebeu o carro dos do 3º andar a arrancar. «Ainda bem que não me viram.» Pouco depois, a vizinha da cave a passear o cão. «Se se aproximar, é capaz de reconhecer a tatuagem em forma de coração que tenho ao fundo das costas... Não, acho que nem olhou. E se o cão me vem urinar ao troço… Faço o quê? Atiro-lhe com umas pétalas? Nem sequer ainda tenho vagens rijas… Ai a minha vida!»
Percebeu pela primeira vez o toque múltiplo do que deveriam ser insetos. O primeiro pensamento foi de incómodo, mas pouco depois toda aquela azáfama por sobre o seu corpo, se lhe podia chamar isso, tornou-se confortável e até sensual.
«Sensual, como? Aonde fui buscar esta ideia?», admirou-se. Então percebeu que o seu sexo estava distribuído por uma miríade de pontos do seu corpo, onde as abelhas se atarefavam na recolha de pólen, o que lhe transmitia múltiplas sensações de regozijo. «Devo estar a fazer uma linda figura, de múltiplos braços no ar a agitar pequenos sexos coloridos, entusiasmada com os toques de quem chega, entra, deixa sémen de outras árvores que nem sequer conheço e se vai embora sem um beijo de despedida...» Sorriu-se com o próprio gracejo, mas duvidava que algum outro ser o tivesse notado.
Ser caixa no supermercado era muito cansativo e mal pago, mas tinha essa particularidade de permitir o contacto com muitas pessoas. Durante uma jornada de trabalho trocava palavras, sorrisos, olhares e toques de mãos com dezenas de mulheres e homens. Desde os gatões aos velhadas. Fora lá que conhecera o último namorado, da lista que já ia longa e mal sucedida. Fora assim num toque casual, na entrega do troco em moedas em que algumas tinham caído e houvera risos e troca de gracejos. Ele devia ter gostado, porque quando voltava procurava sempre a caixa dela. E voltava cada vez com mais frequência. Enfim, o costume, em tudo. Ao fim de uns meses a viverem juntos, arranjou uma desculpa esfarrapada de que precisava de espaço. «Espaço… Ele é que devia estar aqui para sentir o que é falta de espaço para as pernas.»
«A esta hora já deram pela minha falta. Vou ter de inventar qualquer coisa com a saúde da minha mãe. Lá se vai um dia de salário! E se isto se prolonga? Quem virá à minha procura? Não será a minha mãe, com certeza, que fica pesarosa quando não lhe atendo o telefone, mas mal sabe onde moro. E os ex-namorados foram de vez.»
Com o avançar do dia e do calor, os festões olorosos de flores brancas, pendentes dos múltiplos ramos da acácia bastarda em que Cacilda se transformara eram uma atração irresistível para muitas dezenas de abelhas e besouros. Ela não lhes resistia, antes se expunha, num deleite físico de entrega, à orgia que os insetos representavam. Nunca se entusiasmara com a ideia de ter sexo com mais de um homem, mas certa vez acontecera. Não gostara. A ilusão de excitação acrescida gorara-se em grande medida. Era muito membro para dar atenção, muito físico e pouca alma, egoísmo a dobrar.
«Será que vou passar aqui a noite? Deve estar frio.» A noite foi estranha. Com o entardecer veio uma espécie de sufocamento. As folhas já não recebiam luz, já não lhe transmitiam energia. Teve medo. Então, paulatinamente, recomeçou a “respirar” com conforto, expirando o que a estava a entupir. Frio não sentiu muito, só um ténue encarquilhamento das folhas. Deixou-se entorpecer, num sossego de que tanto precisava.
O novo dia trouxe-lhe a perceção ténue, fluida, da absorção que se produzia nos recônditos que os seus membros inferiores alcançavam. E a primeira ideia de imobilidade subterrânea também era falsa: impercetivelmente, as suas extremidades tateavam, sondavam e deslocavam-se milimetricamente para a humidade. E bebiam. «Ali, pelo menos, a pele deve estar bem hidratada.» E quando a orgia floral recomeçou, intuiu claramente os movimentos ínfimos que se produziam dentro das suas corolas. E esse conhecimento trouxe-lhe uma alegria que nunca tinha podido sentir — a de que ia ser mãe. Percebeu a evidência do processo de chegada dos frutos. Daí a uns dias, não podia ainda calcular quantos, ia “parir” vagens cheias de sementes. Era de uma grande ironia o que lhe estava a acontecer. E de certo modo trazia algum consolo às injustiças da vida. Ia gerar centenas de filhos, poucos meses depois da constatação dramática de que lhe tinha cessado o período. E não cessara por estar grávida, que já não estava com um homem havia quase um ano. «Nem tudo é mau», alegrou-se. Aliás, avaliando bem, quase tudo naquela situação era melhor do que na sua vida. Não precisava de ir aturar a chefe e toda a gentalha consumista. Não precisava das angústias de esperar por um homem, nem das humilhações de ser preterida ou rejeitada. Não precisava de se angustiar com o envelhecimento da sua mãe. Só ainda não tinha certeza se ia conseguir habituar-se a passar a vida sem sair do mesmo sítio. Muitas vezes, da janela do seu 2º andar, contemplara a acácia e a lamentara exatamente por esta imobilidade forçada. Mas, talvez, algumas vezes tivesse invejado a sua exuberância de flores e frutos, inconscientemente, pelo menos. Seria esta transformação um “castigo” por aquele pecado de inveja?
Esta lembrança e as conjeturas bizarras que lhe acudiam, trouxeram-lhe, no momento, uma suspeita assustadora: «E se tudo isto não passa de imaginação, de ideias na minha cabeça? Será que estou à janela a imaginar que sou uma acácia? Lembro-me de, há muitos anos, ter andado “cismática”.» Assim, explicava-se a sensação de irrealidade que experimentara antes de se ver transformada na acácia. Concentrou-se na hipótese, mas daí a pouco pareceu-lhe tão ou mais bizarra do que a própria transformação. «Mais provavelmente sou uma acácia que pensa que pode ser uma mulher na janela do 2º andar a imaginar-se acácia», riu-se, o que, desta vez, transmitiu uma ténue agitação a algumas das suas folhas. De qualquer modo, não havia como saber. Esta constatação foi o primeiro passo do necessário processo de habituação ao seu estado e de aceitação da ideia.
Com a chegada do verão e as cigarras a fazerem vibrar o ar que envolvia o seu corpo carregado de vagens pendentes, como uma mãe cheia de filhos, mais do que resignar-se à sua condição, abraçou-a com todos os ramos da sua fronde.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Gustav Klimt, A Árvore da Vida, 1909.
Museu de Artes Aplicadas, Viena, Áustria, 102 x 195 cm.

* * *
(Este conto recebeu uma Menção Especial «pelo seu realismo mágico e muita criatividade» no Concurso Literário da AFEMIL — Academia Feminina Mineira de Letras —, Belo Horizonte/MG, Brasil, em 2016)

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[Esta é a minha humilde homenagem a Kafka e à sua obra “A Metamorfose”, publicada há 102 anos, e que se tornou uma das mais importantes obras de referência da Literatura contemporânea.]

* * *





sexta-feira, 24 de março de 2017

TROVA PREMIADA NOS JOGOS FLORAIS DE NOVA FRIBURGO






segunda-feira, 20 de março de 2017

CRAVINHOS

- Duzinho, deita de bruços. Tira a camisa.
- Ah, não Bia...
- Cravinhos, Du. Vamos logo. Hora de tirar cravinhos
- Tô exausto, amor. Tive um dia desgraçado.
-  Conversa. Vamos lá. Quero cuidar de você.
- Sua unha dói...
- Tirar cravinho é amor. Amor não dói.
- Devagar, Bia...
- Duzinho... não tô achando cravinho...
- Claro, você tirou todos...
- Toda semana eu tiro. Nascem de novo.
- Bia, hoje não...
- Duzinho... cadê os cravinhos, Duzinho??? Eduardo!!!! Você tem uma amante!!!
- Que diabo é isso, Bia?
- Uma amante. Ela anda tirando seus cravinhos.
- Tá doida? Só quem tem esse fetiche é você.
- Ah, a outra não tem fetiche!?
- Que outra? Que fetiche? Tá doida?
- Eduardo! Você tem uma amante!
- Que amante? Não tenho idade nem saco nem para sexo casual!
- Ah, admite sexo casual!!! Eduardo! Você tem uma amante.
- Amante não é sexo casual.
- Então é o quê? Traição do mesmo jeito.
- Sei lá! Que saco! Não existe amante, nem sexo casual. Você sabe. Sou romântico.
- Então é amante mesmo. Eduardo, você tem uma amante!
- Que amante, Beatriz?
- O Peixoto tem uma amante. E você é unha e carne com ele.
- Que é isso, Bia?! Nunca mais te conto nada.
- Então não é o Peixoto. Você disfarçou bem. Eduardo, você é quem tem uma amante!
- É o Peixoto, sim. Eu sei a trabalheira que dá, coitado.
- Coitado? O cara trai a Marina e ainda é coitado?
- Beatriz, o problema é deles. Já disse! Não tenho amante.
- Então é sexo casual. Você anda por aí praticando o moderninho sexo casual, sem 
compromisso, sem cravinho, vapt vupt. É traição.
- Chega, Beatriz! E se fosse sexo casual? Não estou aqui, dedicado a você e às 
crianças 24 horas por dia?
- Ah, peguei: admite sexo casual?!!!
- Não admito nada, não tem amante, não tem sexo casual nenhum. Quer saber, tenho 
preguiça de tirar a roupa e colocar a mesma uma hora depois, apressado, voltando 
para o escritório. Além do mais, sexo só com você. Sou resolvido. Te amo.
- Papinho mais dissimulado. Diz que não tem amante, mas nada contra uma puladinha de cerca.
- Beatriz! Tá doida? Ou quer me enlouquecer?!

Eduardo pula da cama danado da vida. Beatriz permanece sobre o colchão. Pernas cruzadas e pensativa, conversando  baixinho consigo mesma.

- Sexo casual, sexo casual. Não tem problema, então.

Enquanto ouve o barulho do chuveiro, Beatriz pega o celular e procura o telefone do 
massagista tântrico. Aquele que a Marina disse que era espetacular.










quinta-feira, 16 de março de 2017

Cobrança - Conto de Marco Severo



Cobrança






Ao longe, Marieta conseguia enxergar a silhueta do que parecia ser uma mulher, se o que ela estivesse vendo fosse mesmo um vestido. Devia ser a prima. Já não era sem tempo, pensou.

Eleonora vinha caminhando devagar, trocando a mala de mão de vez em quando para descansar a coluna e um dos lados do corpo. Às vezes, parava um pouco. O sol estava mais baixo, mas quando a caminhada começou, depois de uma longa viagem de ônibus que havia durado mais de seis horas, ainda salpicava o ar e a terra com seu bafo escaldante, transformando cansaço em exaustão. Eleonora foi se aproximando da calçada onde Marieta a esperava. Fazia mais de vinte anos que não via ninguém daquelas bandas, e não tinha certeza se era ela mesmo. Havia seguido a orientação: No ponto final do ônibus, tem uma estrada batida de terra, caminhe por ela que vai dar em casa. Assim que a estrada acabar, virando não mais que um fiapo de chão, à direita vai estar nossa casa, não tem erro. E eu vou lhe esperar na calçada, havia dito a prima.

E assim ela fez, e parece mesmo que ia dando certo. Não sabia ainda como daria a notícia que tinha ido ali para dar. Quando ligara para o único resto de família que ainda tinha, não dera detalhes. Falara como quem manda um telegrama. Papai morreu. Preciso ir até vocês. Me digam o endereço. Eles o deram, sem entender. Mais tarde, um pouco mais refeita, ela finalmente falou com todos de maneira mais sóbria e se fez entender. Tinha havido um acidente, do qual a única vítima fora o pai. Ela queria muito ter ido até ali de carro, mas ele havia se acabado no desastre, de modo que precisara saber como chegar até lá de ônibus.

Embora não se vissem há tanto tempo, todos sabiam o motivo da visita de Eleonora: precisavam falar da casa em que ela morava com o pai.

Há sete anos, sua mãe havia saído de casa para ir morar em outra cidade com um homem muito mais jovem que seu pai, que ela conhecera durante uma visita que fizera a um centro cultural, onde haveria uma exposição, que ele estava ajudando a montar, levando os itens de um lado pro outro com a ajuda de outros homens. Nem ela nem seu pai jamais entenderam a atitude da mãe, mas um dia seu pai lhe falara do espírito indomável da mulher desde a época em que namoravam. Ela era dada a sumiços, e depois reaparecia como se sempre tivesse estado ali. Apaixonado, tudo perdoava, sem antever o que estava por vir e que, enfim, veio. Era da natureza dela, ele lhe disse, e as forças da natureza devem ser respeitadas. Ele falava essas coisas como se tivesse aceitado, mas quem o ouvisse compreenderia que suas palavras estavam mais próximas da resignação. A disposição para refazer a vida com alguém nunca veio. Um ano e pouco depois disso, ele admitiu que estava deprimido; e os irmãos, que eram quatro além dele, se reuniram a pedido dele mesmo, que fora até a cidade onde eles moravam para pedir que não continuassem o processo de venda da casa. Ele planejava comprar um outro apartamento, dali a um tempo, assim que pudesse, na verdade, mas não agora. Alguns acharam que era tolice: a casa era enorme, tinham tido propostas de duas construtoras, que queriam demoli-la para construir um prédio, E se o país atravessasse uma crise?, um dos irmãos questionou, as ofertas iriam sumir, disse, exasperado, e era uma grana que daria pra cada um comprar um apartamento, se quisessem, Inclusive o Leandro, disse uma das irmãs, sem a menor necessidade, mas no fim, com medo de uma disputa judicial que poderia protelar a venda do imóvel ainda mais, combinaram com ele um prazo de seis anos, que fora antecipado em dois anos, por conta de sua morte.

Marieta foi logo pedindo desculpas por não ter ido até ela e ajudado com a mala, e Eleonora disse que não tinha problema, afinal, ela nem tinha como ter certeza de que ela era mesmo a pessoa que aguardavam. Estavam tanto tempo sem se ver, justificou. Além do mais, disse Marieta, eu tenho medo de sair e os meninos escapulirem de casa. Mas vá entrando, vá entrando, disse a prima.

A porta da casa estava aberta, e assim que ela se viu na sala, notou que todos os seus parentes estavam espalhados ao redor do espaço. Uns sentados à mesa, outros no sofá, e um ou outro em pé, mas todos pareciam reunidos como para esperá-la. Eleonora não se fez de rogada e colocou a mala no chão. Quando levantou a cabeça, todas as feições que enxergava lhe eram completamente estranhas. As pessoas que não mais que dois segundos ela conseguia mais ou menos posicionar em algum momento da sua infância, quando vinha passar férias na casa de um dos tios, agora eram todos gente que ela nunca havia visto na vida. Deve ser o calor, pensou, e disse para os que ali estavam que precisava de uma cadeira e de um copo d’água, não estava muito bem, ao que alguém correu para a cozinha dizendo, Claro, claro, como pudemos ser tão insensíveis?!

Eleonora bebeu a água lentamente, de olhos fechados, na expectativa de que quando os abrisse tudo voltaria ao normal. Não voltou. Todas as pessoas que se encontravam ali, os dois tios, as duas tias, dois filhos de um de seus tios e o advogado que representava a família, continuavam sendo pessoas que nunca havia visto. Nervosa, Eleonora nem chegou a abrir a mala onde estavam apenas os documentos da casa e do processo da venda. Levantou-se, pediu licença e disse que voltaria em outra ocasião. Um dos supostos tios se interpôs em seu caminho, O que está acontecendo, Eleonora? Nós temos interesse em que isso se resolva o quanto antes! Sem conseguir olhar o estranho no rosto, ela disse, Eu também, mas não estou me sentindo nada bem. Uma mulher, que deveria ser sua tia, falou então, Deite um pouquinho, você deve estar cansada da viagem. Eu também achava que era isso, mas não é. Preciso ir embora, prometo a vocês que volto outro dia. Ainda ouviu um Se essa menina estiver aprontando alguma coisa pra cima da gente, e Ela pensa que estamos exigindo o quê além dos nossos direitos? antes de conseguir se desvencilhar do irmão de seu pai que barrava a porta e chegar novamente a calçada. Os tios ficaram falando alguma coisa dentro da casa, mas ela não distinguia mais as palavras. Não fazia ideia do que eles lhe fariam caso descobrissem que o pai havia morrido afundado em dívidas e que a casa seria tomada para pagá-las. Estaria seu cérebro inventando coisas como forma de defendê-la de algo pior?

Marieta levantou-se de onde estava na calçada assim que a viu, Já resolveram? Eleonora não conseguiu responder. Com a mala debaixo do braço e a lua já anunciada no céu, correu para longe dali o mais que pôde. A prima estacou, sem entender, e quando percebeu que Eleonora já ia lon- ge, jogou-se no chão, voltando-se para a porta da casa. A transformação levou menos de um minuto. Entrou na casa rastejando e sibilando, onde juntou-se a todos os outros parentes, que agora também deslizavam pela casa subindo nas maçanetas, deslizando pela porta da geladeira, entrando em gavetas, enfiando-se debaixo de algum móvel. Estavam atarantados, irados, chacoalhavam seus rabos com força, enlinhavam-se uns nos outros, doidos por algum ratinho ou pássaro que passasse por ali desavisado, porque se tem coisa que aplaca a raiva é comer.


Do livro Todo naufrágio é também um lugar de chegada. Editora Moinhos. 2016.