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terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A Obra Nasce

Na Madrugada dos Tempos – Parte 7

 

Deus quer, o Homem sonha,

A obra nasce.

 

Fernando Pessoa

Escritor português

(1888-1935)

 

O pequeno grupo de nómadas estabeleceu-se na aldeia e gradualmente, o clima de desconfiança da maioria dos vizinhos desvaneceu-se. Claro que havia exceções, sendo as mais conhecidas Fikri e Naci, a que se juntava Cemil, um dos irmãos de Erem, que continuavam a desprezar os recém-chegados. Acreditavam que eles eram deserdados da sorte, sem casa e atacados por todos, porque não tinham o favor dos deuses e estes não iriam gostar que os acolhessem.

Naci estava principalmente sensível devido ao estado de saúde da sua mulher Su, que nunca recuperara completamente desde o ataque aos homens-macaco. Nehir lograra fechar o ferimento, mas ocasionalmente atacavam-lhe “uns calores” muitos fortes e caía desacordada com o corpo todo a ferver. Nessas alturas, a curandeira passava o dia inteiro a tentar baixar-lhe a temperatura com folhas de videira molhadas na testa e fazendo-a engolir pastas de alho e mel para combater os maus espíritos do corpo, mas após cada uma dessas crises, ela estava mais fraca que antes.

Ignorando as vozes discordantes, vários aldeãos emprestaram peles e ajudaram os nómadas a erguer quatro tendas nos limites da povoação. Como agradecimento, a noite fria em volta da fogueira foi abrilhantada por Beki e os irmãos que fizeram um pequeno espetáculo de malabarismo e dança. O ritmo era mantido pelo bater sobre peles esticadas em vimes entrançados num círculo. Todos ficaram extasiados pelas cabriolas acrobáticas dos jovens, pela percussão e pelas cantigas das mulheres. Gritos de alegria e assombro ecoaram na noite sob o límpido teto de veludo ponteado a prata antes de todos irem descansar.

Nos dias seguintes, Erem avisou Alim que se esperava deles a participação em todas as atividades da comunidade e, entre elas, a construção do santuário. Todos os que tivessem força para levantar um pote de barro cheio de água teriam de ser recrutados para as tarefas. Foi uma forma de os integrar e dar mais confiança.

Após consultar os astros e conferenciar com as outras mulheres, Zia anunciou a chegada da Noite das Sombras, que marcava o início da estação fria[1]. Nesta noite, dizia-se, os espíritos dos que já se foram podiam vaguear entre mundo das sombras e o dos vivos. Havia até quem afirmasse que, nas noites de nevoeiro, podiam-se distinguir as fogueiras do lado das sombras. Era uma noite de apreensão, pois representava o fim do período de maior abundância de caça e frutas. Os cereais estavam já moídos em farinha que se esperava que aguentasse muitos meses e as cabras e ovelhas mais velhas abatidas e a sua carne seca para consumir durante o inverno. As peles e os ossos resultantes da matança armazenaram-se para utilização futura.

Zia preparava a cerimónia que daria as boas-vindas ao inverno; a época dos dias frios em que o sol dava mostras de morrer e no coração de todos ficava o medo de que não voltasse. Em volta dos ídolos de Swol e Mensis já se erguiam quatro imponentes megálitos, dos vinte e quatro previstos. As pedras eretas foram coroadas com ramos de oliveira e colocaram-se coroas e folhas nos locais onde se previam erigir as restantes.

Desde o início da construção existiu grande polémica acerca do número de pedras a erguer no santuário e se no início pensaram apenas em dezasseis, cedo começaram as discussões se não deveriam, isso, sim, representar toda a aldeia e erguer uma pedra por cada um. Nem assim chegavam a acordo, pois, se nascesse alguma criança, teriam de erguer rapidamente outra pedra, ou retirar se morresse alguém. As discussões em redor da fogueira por vezes eram apaixonadas e se uns achavam serem precisas muitas para honrar os deuses, outros havia que não queriam arrastar mais do que as estritamente necessárias… ou mesmo nenhumas. Por fim, foi Lemi quem deu a solução para resolver o dilema; cada homem tem dez dedos nas mãos e a mulher, porque um homem não deve viver sozinho, tem outros tantos dedos. Não teriam uma pedra para cada homem e cada mulher, mas apenas duas vezes dez pedras, isso simbolizava todo o clã, o número de dedos com que produzem tudo o que necessitam para sobreviver! Após uns segundos a “digerir” a ideia, ergueu-se um clamor de aprovação de toda a audiência. Zia acalmou-os erguendo as mãos e pedindo a palavra: “Concordo com as vinte pedras.” — Informou ela erguendo a voz acima do burburinho. — “Mas acrescento quatro! Quatro pedras que definirão esse círculo de dez mais dez e defini-lo-ão da mesma forma que é marcado e definido o círculo da nossa vida. Como nascemos, crescemos, amadurecemos e morremos, também Swol assim é. Renasce ao fim de muitos dias moribundo e começa a ganhar força, a erguer-se no céu e a trazer a luz por mais tempo, trazendo o cio nos dentes e despertando a caça. Depois reina sobre o céu, inchando os dias com luz e calor, dourando as espigas e chamando as grandes manadas de auroques e bisontes. Mais tarde começa a perder a força, no período das colheitas, enquanto se aproxima do fim da terra, até ficar moribundo. Fica depois quase morto com a chegada dos grandes frios, quando as sombras ameaçam a luz e trazem a incerteza do seu renascimento… quatro pedras do ciclo da vida de Swol.”

Zia era a autoridade incontestável na marcação dos dias e todos confiavam cegamente nas suas indicações de quando era a época para deitar as sementes à terra, quando haveria mais abundância de caça ou quando seria a altura de o rio transbordar. Com os muitos conhecimentos passados de pais para filhos, ela possuía uma pele onde estavam meticulosamente atados um conjunto de ossos e paus enfileirados que era um dos seus guias. Por ali conseguia seguir as fases da lua e complementava as suas medições com a observação do tamanho das sombras projetadas por um pau espetado no chão para distinguir os solstícios e os equinócios. A mulher, munida daquele compêndio dos saberes dos antigos, era um calendário vivo.

Dos quatro grandes monólitos que começavam a demarcar o círculo, o último, erguido apenas no dia anterior e era o que representaria o início da estação dos grandes frios, a morte de Swol[2]. Estava perfeitamente alinhado com o sol do meio-dia e a sua sombra alongada tocava o ídolo correspondente ao astro-rei no centro do complexo.

Zia fazia-se acompanhar de uma Su débil e insegura, que ninguém conseguira demover de colaborar na preparação das cerimónias. A sogra obrigava-a a que estivesse sentada a entrançar as plantas para as coroas, enquanto as restantes mulheres iam recolhê-las entre as árvores da floresta. Apesar do frio que já dominava, aquele dia mostrava-se com um sol invulgarmente quente que fazia transpirar os laboriosos celebrantes.

Su, tendo terminada uma pequena coroa verde que adornou com alguns fios dourados de feno, ergueu-se e caminhou até ao local onde haviam enterrado Ediz. A terra remexida, na sombra de um dos megálitos, ainda estava húmida pela geada noturna e a rapariga baixou-se para pousar a singela homenagem no lugar onde estaria a cabeça do guerreiro. Quando se ergueu, sentiu que todo o mundo começara a correr à sua volta e as enormes pedras rodopiavam e cabriolavam ameaçando cair sobre ela. A cabeça parecia explodir com uma dor insuportável e soltou um grito lancinante antes de cair desacordada.

Quando Naci chegou com os grupos que arrastavam os grandes toros de lenha para a fogueira no santuário, já a sua jovem esposa havia partido deste mundo. Ele soltou gritos furiosos, com os olhos injetados de sangue, empurrou quem o tentou acalmar e nem mesmo a mãe conseguiu que sossegasse. Entrou como um ciclone na sua casa, fazendo fugir as mulheres que velavam e ajoelhou-se banhado em lágrimas ao lado do corpo débil e sem vida da companheira. Saiu depois a correr cegamente na direção da floresta gritando imprecações contra os deuses.

 Ficava assombrada com tal perda a celebração do primeiro dia de inverno. Alguns diziam que uma morte no recinto do santuário não era um bom presságio, mas logo outros contrapunham que ela morrera na sua casa e não ali e, mesmo que assim não fosse, não era aquele também um monumento aos mortos? Embora com muito menos ânimo, resolveram continuar com os preparativos.

Erem, que começava a ficar preocupado com Naci, mandou dois homens procurá-lo, mas eles voltaram passado algum tempo sem o encontrarem. Acrescentaram que ele era um caçador experiente e conhecia bem as florestas e, se não quisesse ser encontrado não seria. Com a noite a cair, Zia estava preocupada porque o cadáver de Su não devia ficar insepulto depois do por-do-sol. Se isso acontecesse, ela não conseguiria encontrar o caminho para as grandes pastagens nos braços da Da Matter[3]e ficaria eternamente a vaguear sobre a terra como um Ansu[4] perdido.

A sacerdotisa tomou a iniciativa e mandou que fossem buscar a infeliz para o santuário; ficaria ali sepultada, no local onde tanto se esforçara para estar. Os filhos Zilo e Nali, o rapaz com quatro e a rapariga com dois anos, assistiram tristemente ao sepultamento abraçados pelas tias. A avó cantou as orações rituais presididas pelo olhar atento do avô, após o que todos caminharam sobre a sepultura acabada de tapar.

Os últimos laivos de luz desapareceram no horizonte e a noite aparecia fria, com um ar fino e gélido e a Lua Nova impercetível no céu. Um murmúrio de espanto e receio percorreu os aldeãos assim que se aperceberam de dois pequenos grupos com seis ou sete homens e mulheres cada, composto apenas por estrangeiros que se aproximaram timidamente do santuário. Lemi, encabeçando uma improvisada segurança com vários elementos do clã, questionou as intenções dos recém-chegados que exibiram algumas oferendas compostas por coroas de flores secas, peles e mesmo cabritos. Eram oriundos de duas aldeias próximas e pretendiam assistir à cerimónia, algo a que Erem assentiu com um gesto magnânimo.

A audiência amontoou-se vocalizando um som profundo e gutural, em volta do círculo definido pelas pedras já erguidas e os locais das próximas. Archotes compridos, feitos de vimes secos e gordura animal, crepitavam e pingavam no chão onde estavam espetados, deixando a audiência numa penumbra irreal. Iluminada pela luz bruxuleante da grande fogueira, Zia orou ao Sol para que voltasse e não abandonasse os seus filhos, enquanto a noite se enchia de pequenos pontos brilhantes e a Via-Láctea impressionava como um imenso rasgão no céu. A percussão nas peles esticadas sobre as coroas de vimes fazia tremer o peito e aumentava o temor e o sentimento de reverência pelos deuses.

Com maestria, a sacerdotisa espetou a faca de sílex no pescoço de uma pequena cabra e sangrou-a para um recipiente de barro. Em seguida aspergiu as chamas e a assistência com o sangue obtido gritando para os céus que aquela era uma oferta dos filhos de Sol que pediam para que regressasse rápido e trouxesse o ventre cheio de caça e espigas douradas. Dois dos rapazes mais jovens aproximaram-se dela sendo marcados em ambas as faces com três dedos ensanguentados, após o que voltaram o cadáver da cabrita de patas para cima expondo o ventre para Zia. A mulher do chefe fez um corte profundo expondo as entranhas do animal, sem as cortar. Extraiu os intestinos e todos os órgãos da carcaça, distribuindo-os cuidadosamente por vários recipientes, deitando especial atenção ao coração e ao fígado, que cortou em vários pedaços, chegando mesmo a comer alguns. Ergueu-se depois, com os braços abertos ao céu, as mãos escorrendo sangue e gritou: — Swol voltará! Vem aí muito frio, chuva e neve, onde Ele parecerá moribundo e ausente, mas não esquecerá os seus filhos e regressará para nós! Swol! — Gritou por três vezes, recebendo o eco de felicidade de toda a audiência.

Com o sangue recolhido, a sacerdotisa marcou cada um dos monólitos com uma mão carmim de dedos bem abertos.

Durante toda a cerimónia, o chefe do clã não tirava os olhos da orla da floresta, sempre esperando ver regressar Naci.

Quando todos se recolhiam, Zia queria organizar buscas pelo filho, mas foi Erem quem a desencorajou. Na busca por Naci, no meio da floresta e na escuridão, arriscavam-se a perder mais alguém.

— Por muito que me custe — o chefe sentenciou com as lágrimas nos olhos —, ele é um homem feito e um dos nossos melhores caçadores e pisteiros. Sabe para onde foi e saberá encontrar o caminho de volta… se quiser voltar.

A noite para ambos foi insone; de olhos abertos e em silêncio, sempre a esperar ouvir os cães a assinalar a chegada de alguém. Acabaram por adormecer completamente esgotados para serem chamados às primeiras horas do dia. Naci havia chegado e estava no santuário.

Correram para lá; o filho de ambos, com o rosto marcado por vários pequenos cortes e equimoses, estava embrulhado numa grossa pele de urso e sentado ao lado da sepultura da mulher. Na entrada do santuário, havia duas estacas exibindo as cabeças decepadas de dois homens-macaco.



[1] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro

[2] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro

[3] Deusa mãe

[4] Espírito

 

 

 

 

             6 - Os Outros Homens

Parte 6 – Os Outros Homens

A seguir:         

Parte 8 – O Mundo Pula e Avança

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

Manuel Amaro Mendonça

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sábado, 25 de fevereiro de 2023

Rua do Salitre, 87


Glória já tivera melhores dias. Quando casou, vinte e cinco anos antes, era uma estampa. Depois deixou-se engordar um bocadinho. Mas não terá sido por isso que o marido se embeiçou por uma mais nova; terão sido as circunstâncias. Tinha aceitado um emprego de técnico de frio em Mangualde e só vinha ao fim-de-semana a Lisboa. A Beira Alta é fria, as noites foram muitas. À segunda vez que Humberto telefonou a desculpar-se que tinha de acabar um projeto, que nesse fim-de-semana não dava, Glória meteu pernas ao caminho.

O grau de intimidade que encontrou e a longevidade da relação ditaram o corte. Cerce, ríspido, doloroso. Glória não queria fazer o papel de tantas, que iam alimentando a esperança de que o caso do marido não passasse de um devaneio temporário. Nem se via a perdoar aquilo que lhe doía tanto por dentro.

Durante uns três ou quatro anos, a queimar os 50, tentou reinventar um arremedo dos tempos de solteira, para contrariar a solidão — bares, discotecas, encontros furtivos —, mas já não tinha vida para aquilo. Os conhecimentos sucediam-se mas não duravam. Aos poucos foi ganhando um cansaço inultrapassável. Começava a não ter paciência para mais encontros, mais jantares, mais quecas fugazes e quase sempre insatisfatórias.

A certa altura, depois de melancólicas meditações, percebeu que não queria pedinchar companhia nem carinho e decidiu que não precisava de homens para nada. Podia fazer o que quisesse, sem controlos alheios; podia sair ou saborear a liberdade de estar sozinha. Reconheceu a profundidade da intimidade de se recolher consigo própria. E tudo isso lhe dava uma saborosa autoconfiança.

Não estava a inventar nada, claro. Há muito que homens e mulheres emancipados, assumiam essa opção, que agora tinha nome — Solitude: estar sozinho por escolha, e não dar guarida à angústia da solidão, antes pelo contrário.

Como em tudo, teve de fazer aprendizagens, algumas trabalhosas, mas, inesperadamente, na que julgava ir ter mais dificuldades, conseguia resultados surpreendentes: os níveis de deleite sexual que atingia sozinha passaram a superar, de longe, os prometidos por um macho.

Esta decisão foi, em parte, causada pelo contexto criado, então, com a morte da mãe. Glória herdou o andar dos pais, um primeiro andar antigo, por cima do seu, na Rua do Salitre, e calculou que podia sobreviver bem com as rendas desse espaço, em vez de aguentar o emprego num dos clubes de vídeo, que, nesse ano de 87, cresciam como cogumelos e se atropelavam uns aos outros.

Mudou-se para o andar da mãe e começou a arrendar o rés-do chão alto, em três fatias: a ala direita, que tinha cozinha, a um casal empregado; na ala esquerda, um quarto independente, a um fulano casado, que só lá ia uma ou duas vezes por mês; e um quarto grande, praticamente uma suite, a estudantes ou empregados. Ultimamente, tinha lá um rapaz que acabara de arranjar emprego na Regisconta.

Certa noite de sábado, enquanto se consolava como tão bem sabia, começou a perceber um chiado ténue e repetitivo, que a distraía. Apurou o ouvido e pareceu-lhe que vinha de baixo. Seria possível? Que situação divertida se o rapaz estivesse também em preparos de autocomprazimento.

Sem fazer ruído, desceu para o tapete e aplicou o ouvido ao soalho. Sem dúvida; por baixo do chiado da cama, percebia-se nitidamente que o rapaz ofegava e não demorou a concluir com uma expiração violenta.

Na noite seguinte, preparou-se com um copo, para amplificar o som. Então, de gatas em cima do tapete felpudo, de ouvido esquerdo colado ao copo pousado no pavimento, foi assistindo à respiração apressada do jovem, tão presente como se estivesse no mesmo quarto, a observá-lo. Com um sentimento gostoso de transgressão, tentou-se a fazer chegar um dedo médio aonde se fazia urgente. Quando o som de um urro abafado lhe atingiu o tímpano, a sua excitação disparou e não pôde evitar espasmos e tremores de pernas, que ameaçavam denunciá-la. A pujança e o entusiasmo de um homem real eram muito inspiradores.

A constatação deste facto fê-la reavaliar as suas opções. Continuava firme na decisão de viver sozinha e preservar essa liberdade, mas, nada a obrigava a respeitar a dieta. Com 56 anos, havia uns quatro que não estava com um homem... Admitiu que tinha saudades. E, de repente, aquele jovem de 19 anos tornou-se objeto da sedução de Glória.

Porquê aquele? Estava à mão, era jovem e algo ingénuo, medianamente bonito e robusto. E a proximidade e o ascendente de senhoria, prometiam-lhe tarefa facilitada. E comando das operações. Não era propriamente um direito de pernada, mas o rapaz estava no seu território... Porque não assumir um direito de sedução? — argumentava, em divagações demagógicas. Por outro lado, já lhe surpreendera olhares não indiferentes aos seus atrativos.

Podia ser seu filho, mas não o via assim. A diferença de idades era grande, sim, mas isso nunca foi entrave, para quem deseja. Aliás, Glória acarinhava o exemplo de “A Primeira Noite”, com o Dustin Hoffman. A coerência do filme era perfeita, apesar de uma diferença de idades semelhante. Estava decidido: avançaria.

Durante toda a semana, premeditou a estratégia. Atacaria a meio da manhã de domingo, antes de ele se levantar. Entregar-lhe a roupa lavada seria o pretexto para entrar no quarto. Diria que pensava que já tinha saído. Na altura, o seu improviso ditaria a continuação da aproximação.

Na sexta, pensou tê-lo ouvido tossir. Melhor. Entraria com a roupa, mas também com Vic, para lhe esfregar o peito, e um chá morno. O chá dava para se sentar na cama, a dar-lho; o Vic levava as mãos dela para o tronco nu dele. A partir daí, era velocidade de cruzeiro.

O que vestir? Uma blusa ligeira e larga, ou um roupão, sem nada por baixo? A meio da manhã, era compreensível o roupão. A partir do momento em que ele insinuasse uma mão por dentro do roupão dela, estava “perdido”. E havia mil e uma maneiras de o levar a tal gesto.

Nesse sábado, já não quis limitar-se aos ofegos que todas as noites continuavam a chegar do andar de baixo. Ao som inspirador do Elvis, no gravador de cassetes, empanturrou-se com devaneios que começavam com “It's now or never”, com ela a entrar na porta do quarto dele e prosseguiam com aproximações sensuais cada vez mais carnais, ao embalo de “Love me tender”. O auge, avassalador, sobreveio, com a sofreguidão de “I need your love tonight”, quando a fantasia a sentou na garupa daquele alazão, a galope. Que cavalgada! Se assim corresse, iria querer voltar às sessões de hipismo sempre que apetecesse.

Pelas dez e meia de domingo, Glória deslizou para o andar de baixo, luminosa e perfumada. Apesar do ascendente, estava um pouco nervosa. Dada a situação, aquele contacto significava muito para ela. Pousou o termo nas escadas, respirou fundo e entrou. O quarto estava escuro. Deu um “bom-dia” primaveril, pousou a roupa lavada sobre uma cadeira e foi abrir as cortinas da janela que dava para as traseiras.

Quando se virou, o espanto: uma cabeça feminina assomava, assustada, no limite dos lençóis.

— Ah, uma menina! — conseguiu articular.

Enquanto uma conversa de circunstância se desenrolava, a revolta e o ressentimento cresciam no peito de Glória. «Traidor! Tantos planos, tanta esperança, para isto: uma facada nas costas, como sempre.» A certo ponto, não aguentou e assumiu a rutura:

— Senhor Abel, eu vim cá a baixo tão cedo, porque queria avisá-lo de que preciso do quarto. Uma sobrinha minha vai voltar para Portugal e precisa de um quarto em Lisboa. Não leve a mal, mas, se não se importasse, agradecia que saísse no fim do mês.

Daí a pouco, de volta à cama, com os lençóis pela cabeça, chamava-se “estúpida”, “ingénua”, “oferecida”, e soluçava em surdina, culpando a fraqueza do corpo por aquele revés que a magoava. Era tão difícil ser indiferente aos homens! Mas, vendo bem, nem era esse o objetivo. Podia degustá-los ou não; não podia era deixar-se abater quando lhe caíam mal.

Depois de saborear mais um pouco o choro e a pena por si própria, levantou-se e reassumiu a habitual postura de brio e serenidade, evocando o lema que lhe era caro: «solitude, sim; solidão, não. Ok?». Ao almoço, iria oferecer-se um porco doce e umas líchias, no Peipim, da Duque de Loulé. Pagava ela, com muito gosto. 

Joaquim Bispo

*

Imagem:

Mike Nichols, (fotograma de) A Primeira Noite, 1967.

* * *





domingo, 19 de fevereiro de 2023

Vencido - venci

 



Havia dias em que simplesmente desmaiava na sala de casa. Noutros, queria correr em fuga desabalada. Era um reflexo de tudo que me consumia. Marina me chamava de sabotador, não só por isso, mas pelo meu esgotamento em ser “positivo”. “Você se entrega muito fácil, Lucas! Não vê que todo mundo batalha e que você não é o único?”. A verdade é que estava arrebentado por fazer, de forma maquinal, o serviço de conferência de documentos e despachos na prefeitura. Todo dia era a mesmíssima coisa. Queria me sentir útil, e percebia que o meu mísero trabalho poderia ser feito por um robô. Enquanto meus amigos sofriam com a iminência de perderem a boquinha – o “trabalho” – para máquinas sofisticadas, eu contava os dias para rebentar a novidade arrasadora, que me liberaria daí. Você pode estar pensando que eu não fazia nada além de reclamar – como também pensava Marina –, mas não é bem assim: em 2020, no grosso da terrível pandemia, quando tive de trabalhar em home office, fui requisitado para “organizar” o setor de memória da prefeitura, para gravar, documentar e arquivar os apontamentos, de 2000 para cá. Como diria o meu pai, era serviço para corno nenhum botar defeito – até onde sabia, não era corno, mas me senti um, com o fardo danado. Já cheio, imaginei o que devia bolar para me desligar do maldito ofício. Uma luz sucedeu, por conta de estar familiarizado ao setor de memória – veja como as peças se encaixam –: eu tinha a manha de operar, muito bem, as máquinas, os softwares e afins. “Poxa, por que não fazer uma faculdade de TI?”, cogitei, inquieto. Durante duas semanas, caí nas redes e sites de universidades, estudando as possibilidades para o pretenso curso. Marina, quando soube, me recriminou: “E agora você tem tempo, é? Para mim, não sobra um minutinho…”. Na mente, neguei que seria possível: esperávamos uma filha; havia um cabedal de problemas, e contas para pagar. Falei com meu pai, e ele, sabendo da minha aflição, disse que poderia me ajudar financeiramente. (Não lhe comentei que pretendia sair do trabalho; não era o momento; ele, decerto, se preocuparia). Um empurrãozinho: bastou esta palavra de ajuda para me animar. À noite, rezei dobrado: pedi a Santo Expedito que me livrasse do peso atual; que Nossa Senhora Desatadora dos Nós desatasse o meu novelo; que me iluminassem e me dessem forças para alcançar este projeto. No sonho, recebi a luz de que tanto precisava: estávamos eu, Marina e nossa filha viajando, talvez por Nova Iorque; trabalhava numa multinacional; usava terno e tomava café do Starbucks – sim, era bastante fiel. Acordei sorridente e Marina perguntou o que tinha me acontecido: “Nada não. Só porque vi um lindo dia pela janela”. Ela me olhou, estática, e coçou a cabeça. “Cuidado para não piorar da maluquice”. Matriculei-me no curso e na faculdade que me permitia fazê-lo à distância. De início, o nosso trato implícito era de mútua ajuda com os afazeres de casa; revezávamos nas lavagens de roupa, nas idas aos supermercados etc. O tempo passou como devia passar, apesar da minha ansiedade. No meio-tempo, começo de 2021, Liana nasceu, e quase alucinei de amor e de tensão. Marina pareceu reconhecer a minha felicidade e a minha luta, oferecia-se até para preparar lanchinhos nas horas mais inglórias. Liana foi o presente necessário para tudo acontecer. Nossos laços se estreitaram. Conseguia crer no futuro, e já me via morando nos Estados Unidos, com minhas pequenas, provando a vida no primeiro mundo. O trabalho na prefeitura, ao contrário de antes, injetava a energia de que eu precisava para entender o que, de fato, era bom para mim; estava decidido e engajado. No último ano de faculdade, recebi um convite de uma empresa americana para atuar justamente no trabalho dos sonhos: consultoria e desenvolvimento de softwares. Pulei de alegria quando cheguei em casa e Liana me abraçou como nunca. Dividi com meu pai a notícia, e ele disse que eu fazia muito bem; que, quando era novo, queria ter morado fora, comigo, meu irmão e minha mãe, mas que não tinha estudo para isso. Para o fim, vou cumprir um sonho que não é só meu. Agora parto para as aulas de inglês com o meu professor nativo, quem sabe o meu primeiro amigo do lado de lá.






sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Sensação de savana - poema de Luís Perdiz




Sensação de savana.
Sigo seus cabelos
tingidos de mato.
Carícias ágeis
e lábios de lança.





Do livro Poemas de Desejo de Terra (Patuá / Primata, 2019)






sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Demolição



Homero dirigia pela estrada acidentada em meio a pequenos morros e colinas onde ainda se preservava o pouco da mata original. Baixou os vidros do carro para aproveitar um pouco do ar da bela manhã ensolarada, porém, dependendo da direção do vento, o que vinha era o odor desagradável dos criadouros de porcos que movimentavam a economia local. Num tempo não tão distante, era a madeira que dominava o comércio e a indústria da região.

Ele procurava conhecer um pouco da história de cada lugar, de cada casa que demolia. Era uma forma de valorizar os móveis que construía e os objetos antigos que recuperava para vender como material de demolição. Então, repetia aos clientes os relatos ouvidos geralmente de gente mais velha.

Sentia o corpo cansado. A obesidade e o sedentarismo faziam mal para a sua saúde. Já era mais velho e precisava mudar a rotina. Encontrar companhia se tornou mais difícil depois de tantos relacionamentos frustrados, mas tinha certeza de que ainda encontraria o amor da sua vida.

Nessa viagem visitaria uma casa há muito abandonada, desde a época da guerra na Região Contestada por Paraná e Santa Catarina. Diziam foi construída por índios escravizados pelo Major António Salazar, um velho soldado vindo de terras paraguaias e que arrastou por quilômetros muitos guerreiros guaranis. Ocupou terras dos pobres bugres e dos membros da Irmandade, um bando de fanáticos, que seguiam os ensinamentos de um Monge que percorria a região e que parecia existir por gerações. Todos esperavam pelos seus milagres.

Protegido por alguém da República, Salazar conseguia se manter em meio aos militares que combatiam o Exército de São Sebastião. Instalou-se, mesmo com o controle da Lumber que explorava a madeira em nome do progresso e construía a ferrovia. Era odiado por todos. Já não bastasse uma bandeira americana hasteada perto dali, também havia o velho soldado da Guerra do Paraguai instalado no lugar.

Contavam também que o Major, octogenário, tomou para si Anahi, uma bela índia guarani, de apenas dezesseis anos.

Impotente, porém possessivo, a mantinha trancada num quarto secreto, construído na imensa casa de madeira. Ninguém conseguia acesso a ela, pois os homens que construíram o velho casarão, foram todos mortos após concluírem o serviço.

Alguns anos depois o homem morreu, dizem que louco. Porém Anahi nunca foi encontrada. Como o Major não tinha filhos, a casa foi ocupada por homens do exército. Desde então, coisas estranhas aconteciam.

Ao final das batalhas do Contestado, as terras foram divididas por moradores do local, porém a casa nunca foi ocupada. Diziam que a maldição do Monge fazia com que as pessoas que ocupassem o local, mesmo que por uma noite, teriam o mesmo fim que Salazar: loucura e suicídio.

Quando Homero chegou, percebeu a casa, construída no alto de uma colina. Curiosamente, a mata fechada no lugar, se abria em volta dela, que apesar do tempo, parecia ainda muito sólida, mesmo construída sem um único prego. Também conservava parte da tinta aplicada originalmente.

Pegou um facão que guardava no carro e abriu caminho até chegar mais perto. Uma varanda tomava conta de toda a fachada principal da casa, adornada com lambrequins. Nas janelas, alguns vidros coloridos sobrepunham o fechamento em madeira. Parecia tudo perfeitamente encaixado. Seria ótimo para os negócios ter um melhor aproveitamento do material.

Com cuidado, subiu a pequena escada que dava acesso a porta principal. O assoalho, apesar do rangido, parecia firme. Apoiou-se na madeira do baixo parapeito, construído sobre balaústres perfeitamente torneados. Olhou para a vista: deslumbrante.

Parou para escutar o som das águas de um riacho, com uma pequena queda d’água, podia se presumir. Neste momento, o vento começou a soprar mais forte e produzir sons quando passava pela imponente construção e pelos galhos das gigantes araucárias também preservadas. O assovio formado parecia trazer consigo um gemido, súplicas. Por um instante pareceu ter ouvido uma voz feminina, numa língua não familiar: “Che rohayhu yma guive”.

Sentiu seu corpo arrepiar, mesmo sem entender o significado das palavras. Só poderia ser a sua própria imaginação – pensou ele. Ao menos não era o Major querendo tomar conta da sua alma – Sentiu-se aliviado, embora não acreditasse em histórias fantásticas. Foram tantas as casas demolidas e em nenhuma delas percebeu algo de sobrenatural, muito embora algumas delas também se supunha fossem amaldiçoadas ou assombradas. Apenas folclore local, acreditava.

Havia tirado a sorte grande. O casarão tinha muito material aproveitável. No interior da casa encontrou móveis e objetos desgastados pelo tempo e pó, mas que poderiam ser recuperados e adaptados com certa facilidade.

Puxou o telefone do bolso e fez várias fotografias. Também tomou nota do que deveria ser feito na retirada do material da casa. Ainda precisava convencer o fiscal da prefeitura a autorizar a retirada do material. Nada que um pouco de dinheiro, um presentinho não pudesse resolver.

Quando se aproximou da cozinha, havia cheiro de fumaça, porém nem sinal de fogo. Depois, o aroma de tabaco queimado tomou conta do ambiente. Sentiu-se seguro, o facão que antes carregava, estava sobre a sólida mesa construída com uma única e larga prancha do que um dia teria sido uma imponente imbuia.

Empurrou uma janela, o vento invadiu a casa e junto com ele a mesma voz em tom de súplica: “Che rohayhu yma guive”. Com a voz, veio também o perfume de rosas. Sentiu-se atraído por ele. Começou a percorrer a casa desesperadamente tentando chegar a fonte de tão inebriante odor. Chegou a uma parede, aparentemente sólida, mas o perfume vinha de lá. Começou a examinar a madeira aplicada. Não havia abertura, nem uma ventilação aparente. Precisava de alguma ferramenta para examinar melhor. Quem sabe no carro tivesse alguma.

Ouviu um ruído estranho. Havia mais alguém na casa. Os passos eram lentos, cuidadosos. Apanhou um pedaço de madeira. Esperou. Ouviu-se um grito estridente e passos rápidos em fuga. Homero sentiu o corpo todo arrepiar. Parecia preso ao chão, no primeiro instante, depois correu em direção a saída e ao encontro dos passos que ouvia.

Quando chegou à varanda, encontrou o sujeito da prefeitura pálido, assustado. O homem não conseguia falar.

– Boa tarde! O senhor me assustou. Por que gritou? – perguntou Homero.

O homem levou ainda alguns segundos para conseguir folego.

– Não fui eu! Me arrependi de ter entrado. Dizem que quem entra na casa não sobrevive.

– Tudo tem uma explicação lógica. Não esperava encontrá-lo hoje.

– Sabe como é, cidade pequena. Disseram ter visto um carro em direção à casa do Major. Deduzi que fosse o senhor. Aí pensei que poderia me adiantar algum pela autorização de demolição da casa. Gostou do que viu?

– Eu esperava um pouco mais, – disse Homero pensando em melhorar o negócio – mas estou interessado assim mesmo.

– Só vou lhe autorizar a demolir a casa pagando a taxa combinada!

– Depois de avaliar a casa, só posso pagar dois terços do que me pediu. Posso lhe entregar o dinheiro agora mesmo. Caso não aceite, passo a noite na cidade e na manhã seguinte vou visitar um outro casarão aqui perto.

– Está bem, fechado! – respondeu o sujeito de cara emburrada, que salientava ainda mais o enorme nariz e a verruga assustadora no canto da boca.

– Acho que vou, já está tarde, na próxima semana envio uma equipe com caminhões e ferramentas.

– É melhor desmanchar esta casa logo, quem sabe os fantasmas e suas maldições vão com ela.

– Bobagem!

– Então não ouviu a voz, não sentiu o perfume?

– Sim, pareci ter ouvido uma voz, parecia uma súplica numa língua estranha.

– É tupi-guarani: Che rohayhu yma guive.

– O que quer dizer?

– Não sei Tupi-guarani, mas dizem que é algo como “tenho esperado por você!”

– Deve ser só o vento passando pelas araucárias e que repete um padrão.

– Bem, já tenho o meu dinheiro, melhor a Prefeitura já tem a sua taxa. Se não se importa, não quero esperar por Anahi, nem que ela me espere.

– Até qualquer dia!

Homero concluiu que tinha tudo o que precisava. O homem da Prefeitura não o perturbaria mais. Decidiu partir. O dia fora cansativo e ele já tinha o que precisava. Na volta ficou pensando como seria a figura da jovem Anahi, uma verdadeira lenda, pensou.

Na semana seguinte, foi com a equipe para os trabalhos de demolição. Deixou os equipamentos com os trabalhadores e foi até a cidade se certificar de que o alojamento estava preparado e que havia mantimentos para a semana.

Quando chegou na pensão, a senhora que tomava conta manteve a cabeça baixa, mas demonstrava preocupação. Percebendo, Homero a questionou se estava tudo certo, se o preço combinado lhe satisfizera.

– Não tenho certeza se poderá me pagar.

– A senhora não me conhece, mas o que está combinado é certo. Costumo honrar meus compromissos.

– Não questiono isso, o senhor me parece honesto. Mas não tenho certeza se sobreviverá para me pagar.

– Já sei, o casarão é amaldiçoado, quem entra nele não sobrevive.

– Pode parecer bobagem, eu sei. Mas o Cláudio foi mais uma vítima.

– O Cláudio Costa, o fiscal da prefeitura?

– Ele mesmo. Dizem que ele foi até o casarão na semana passada, entrou. Depois disso ficou alucinado. Tirou a própria vida, com uma faca cravada no peito. Seu corpo, como todos os outros, sem uma gota de sangue. Antes de morrer, gritava: eu quero lhe encontrar!

Com fome, Homero foi até a padaria, tomar um café. Só o que se falava era sobre a morte do fiscal e da maldição do casarão. Todos olhavam para ele com olhar de preocupação. Na verdade, todos acreditavam que ele seria mais uma das vítimas.

A atendente se aproximou e despejou o café e o leite na xícara dele. Perguntou:

– O senhor entrou na casa?

– Sim, na semana passada e hoje pela manhã.

– Então aproveite a oportunidade que a vida lhe deu e vá embora, a menos que queira ser o próximo.

Apressou-se com o café. Talvez fosse melhor acabar tudo logo e partir. Não podia deixar que sua equipe se abalasse com a história. Ele mesmo precisava contar-lhes, para evitar medo ou preocupação.

Quando chegou ao casarão, tudo estava muito silencioso. Mal tinham começado a trabalhar e já estavam descansando – Pensou.

As araucárias voltaram a ter os galhos balançados pelo vento: Che rohayhu yma guive.

O perfume de rosas tomava conta da casa. Ele foi entrando, procurando pelos homens. O único ruído era o de um pequeno rádio a pilhas, fora da faixa de sintonia. Quando chegou ao cômodo que visitara pela última vez, na semana anterior, a parede estava aberta. Aparentemente os homens haviam descoberto como abri-la ou alguém de dentro o fez. No chão, os corpos dos cinco homens que compunham a equipe. Pela disposição dos corpos, pareciam ter se digladiado, com as ferramentas que possuíam. Os corpos pálidos, sem uma gota de sangue derramado ao chão.

Pensou em correr, mas o perfume se acentuava, vindo depois da parede. Isto o atraía. Ele parecia anestesiado. Tudo o que queria era descobrir de onde vinha o cheiro.

Entrou. Havia uma escada que descia até o que poderia ser descrito como uma adega, escavada na rocha. Uma pequena abertura permitia a entrada de pouca luz, por uma estreita janela em vidro sujo pelo tempo.

Apanhou o telefone celular do bolso. Ligou a lanterna. Apontou para o fundo do ambiente.

Sentiu sua espinha gelar. A luz refletia em dois olhos negros como a noite, olhos que pareciam não reagir a luz.

A boca sussurrava: Che rohayhu yma guive. Os negros cabelos quase tocavam os pés da moça com belo corpo, seminu.

Tudo o que Homero queria era tocar aqueles lábios. Foi o que fez. Nunca encontrara tanta beleza numa só mulher.

Sentia-se bem, não percebendo que suas energias desapareciam. Ao final, Homero sentiu uma dor insuportável quando o coração lhe foi tirado do peito pelas mãos de longas unhas e de força descomunal. Salazar ainda não desistira de afastar os homens de sua Anahi. Se transformava atraindo cada um que se aproximava, os enlouquecia ou sugava suas forças como forma de perpetuação.

Homero caiu no chão, ao lado dos restos do que um dia foi uma bela jovem. Envolta em sua fíbula, uma argola presa a uma corrente fixada na rocha.

A parede voltou a se fechar. O casarão ainda abrigaria por um bom tempo a maldição do Monge e seus fanáticos.

 





quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Nunca é tarde


 

Quando o marido morreu inesperadamente de ataque cardíaco, Maria Leonor entrou imediatamente em pânico. Não sabia literalmente o que fazer, logo agora que iam iniciar uma nova etapa de vida. Sim, ao fim de tantos anos de labuta, a mais nova das três filhas saíra finalmente de casa, aos 26 anos, e iriam começar a gozar os seus anos dourados com um cruzeiro à volta do mundo, um sonho antigo e sempre adiado por razões familiares, mesmo depois da reforma dele.

Cancelou, claro, ou antes, as filhas e genros, vindos de fora, trataram de tudo o que era necessário, incluindo o funeral, ao verem que a mãe estava um verdadeiro caos. Apaparicaram-na o mais que puderam, tentaram resolver tudo o que podiam em termos burocráticos e financeiros, mas acabaram por ter de voltar às suas respetivas vidas com o usual comentário vago de “não te esqueças de nos visitares”.

E Maria Leonor viu-se só, totalmente só, pela primeira vez na vida. Não o quisera dizer às filhas por receio da sua reação, mas fora esse o verdadeiro motivo de todo o seu pânico e desânimo. É que por muito que tentasse, não se conseguia recordar de nenhuma outra ocasião da sua já longa vida em que não estivesse rodeada de pessoas. De muitas pessoas, até.

Apesar de ser filha única, a sua casa de infância estivera sempre cheia de gente e de crianças da sua idade. Os pais tinham uma vida social intensa e faziam questão de conviver com vizinhos, colegas de trabalho, pessoas que conheciam aqui e ali, fazendo os possíveis por incluírem sempre uma boa dose de pais de crianças com a idade da filha, nem que não fossem muito do seu agrado.

Por isso, entre estes filhos de amigos, colegas de escola e primos, podia-se dizer que só estava só quando dormia... e nem sempre, as festas de pijama eram habituais, quase sempre lá em casa, e muito concorridas.

E a mãe incutira-lhe desde muito nova a ideia de que não havia nada pior do que uma pessoa estar sozinha. Não recordava que idade teria quando lho começou a dizer, mas ainda se lembrava nitidamente de um dia, na pré-primária, ter reparado numa colega muito pouco social, que preferia desfolhar livros a brincar ou conviver com outras crianças, e da pena imensa que sentira por aquela criaturinha tão só, apesar de ela parecer tudo menos infeliz.

Já um pouco mais velha, apercebeu-se de que também o pai acreditava que a maior tragédia do mundo era estar só, daí a intensíssima vida social que se esforçava por ter. Era, aliás, um traço de família, ou antes de ambas as famílias. Dizem que a natureza odeia o vácuo, pois bem, isso nada era comparado com o ódio profundo que todos eles tinham à solidão. Como a tia Mira, que casara com alguém totalmente desinteressante e de quem nem sequer gostava porque “era bem melhor do que ficar sozinha”.

E Maria Leonor entrara nessa onda, sem mesmo a questionar. Na Universidade, apesar de poder ter um quarto individual, optara por partilhar uma casa com vários colegas, apesar de alguns não serem nada do seu agrado. E as férias eram passadas num autêntico corrupio de festas, saídas e convívios de todo o tipo, bons ou maus, desde que envolvessem muita gente.

Mais ainda, quando se formara os pais tinham querido oferecer-lhe uma viagem mundo fora, como muitos jovens começavam a fazer, antes de começar a trabalhar. Mas acabara por recusar porque, apesar de ter uma amiga, ou antes, uma conhecida, interessada em passar umas semanas na Austrália, o seu ponto de partida, depois estaria por própria conta, sem a menor garantia de conseguir alguém com quem continuar a viagem.

Casou pouco depois de ter começado a trabalhar, com o amigo de um primo que conhecera numa das muitas festas da família. O António não padecia da mesma fobia à solidão, mas, como passava o dia a trabalhar isolado num gabinete individual, sabia-lhe bem conviver fora do horário laboral. Depois vieram as filhas, os malabarismos entre trabalho, casa e vida social, enfim, uma vida muito preenchida de atividades e pessoas.

Mesmo os últimos anos “a dois” tinham sido muito bem planeados por Maria Leonor para lhe proporcionarem o máximo convívio possível. Primeiro, o tal cruzeiro, onde, entre mil e tal passageiros ali fechados haveria certamente muitas oportunidades de criar amizades... pelo menos temporárias. E depois já tinham lugar marcado numa espécie de condomínio fechado só para gente da sua idade onde haveria, dia e noite, distrações e atividades de todo o tipo.

Não tinha era contado com a morte abrupta do António, que a deixara à deriva. A ideia do cruzeiro metia-lha agora mais medo do que antecipação. Sim, sempre fora muito dada, mas era inevitável passar alguns momentos isolada, pelo menos nos primeiros dias. Pior ainda, ficara com a ideia de que os passageiros eram todos, ou quase todos, casais e quem quereria dar-se com uma viúva recente? Ela, pelo menos, nunca o fizeram pondo prontamente de parte qualquer “amiga” que entretanto enviuvasse ou se divorciasse. E todas as suas conhecidas faziam exatamente o mesmo.

A nova casa também não era uma opção, a vaga que iriam ocupar seria só daí a ano e meio uma vez que o projeto ainda estava na fase inicial de alargamento. E o que fazer durante essa longa espera?

Ainda pensou visitar as filhas, uma a uma, mas, como todas trabalhavam fora de casa e nem sequer havia netos, em que ocuparia os dias, sobretudo em países estrangeiros de que não dominava a língua?

Não, tinha de se resignar à ideia de que se tornara a criatura patética de que a mãe sempre a avisara, alguém só no mundo.

E as primeiras semanas foram realmente atrozes. A ideia de sair, de comer fora, causavam-lhe pânico e vergonha. Sim, não queria ser a cliente sozinha que se relega para uma mesa secundária e que é olhada de soslaio por todos. Nem uma ida às compras a tentava, sempre o fizera com o marido ou amigas de ocasião – mas estas nunca o tinham sido verdadeiramente e, com as novas atividades em vista, deixara de se esforçar por manter o contacto, largando-as, até, uma a uma.

Acabou por depender da Internet para todas as suas necessidades e passava os dias na cama ou especada em frente a uma televisão a que nem prestava atenção, mas que mantinha sempre ligada porque “sempre era uma companhia”. Ou a ilusão de uma.

Mas o que é demais enjoa, como se costuma dizer. E ao fim de umas semanas de lamúrias e de autocompaixão, Maria Leonor começou a sentir-se irrequieta fechada entre aquelas quatro paredes. E numa bela tarde ensolarada e quente, decidiu ir dar uma voltinha.

Da janela do seu quarto avistava-se o que parecia ser um parque, mas que nunca visitara durante os muitos anos que ali vivera, nem mesmo quando as filhas eram pequenas, embora visse dirigirem-se para lá inúmeras mães – ou avós – com crianças em carrinhos ou pela mão e, de manhã, grupos de crianças que supunha serem de alguma escolinha da zona.

O verde do arvoredo parecia bem apetecível, por isso equipou-se com roupa desportiva para parecer que estava ali apenas para se exercitar e não por ter companhia. Mesmo assim ainda hesitou já junto à porta, voltou para a sala várias vezes, mas acabou por se decidir. Se não gostasse, podia sempre voltar para trás. E era altamente improvável que encontrasse alguém conhecido que a visse ali, “triste e só”.

Passou os largos portões e, com grande espanto seu, viu pela frente um laguito até bastante grande, com um percurso a toda a volta e outros caminhos que penetravam no arvoredo que avistara. Era bem maior do que imaginara, atendendo a que aquela era uma zona urbana já bem antiga, sem um único terreno vago.

Inicialmente, manteve um passo apressado de quem anda a treinar para uma corrida, mas havia demasiadas coisas para ver, incluindo inúmeros patos na água. Acabou, pois, por reduzir muito a velocidade e até, sem saber como, viu-se sentada num dos muitos bancos existentes a observar o que a rodeava.

O alarme do telemóvel alertando-a para a medicação que lhe tinham receitado apanhou-a de surpresa, não fazia ideia de que já era tão tarde, as horas tinham passado sem que desse conta disso, ao contrário do que acontecia desde a morte do António. Dirigiu-se, pois, para casa, prometendo a si mesma voltar uma outra tarde.

E assim fez. Acabou, até, por se tornar um hábito diário, ou de manhã ou à tarde lá ia ela para esta sua nova “descoberta”. Curiosamente, atendendo aos seus hábitos de uma vida inteira, preferia até o período logo após ao almoço em que o espaço estava mais vazio de gente.

Um belo dia surpreendeu-se, até, a ficar para o almoço no pequeno café que descobrira num recanto do parque. Era a única cliente sozinha, mas isso não a impediu de apreciar a refeição e, sobretudo, aquele belo ambiente.

Pouco a pouco, Maria Leonor foi mudando de hábitos, sem sequer dar por isso. Umas compras agora, uma ida a um restaurante que lhe chamara a atenção ao passar, até uma matiné, coisa que nunca estivera nos seus hábitos.

Sentia a falta de companhia, claro, mas não o desespero de precisar dela a todo o custo por não conseguir estar só. Descobriu, espantada, que até gostava da sua própria companhia.

E quando a empresa turística com quem marcara o cruzeiro à volta do mundo a contactou para saber se pretendia um lugar no próximo, daí a umas semanas, decidiu aceitar fazê-lo só que, desta vez, mais a pensar nos belos sítios que iria ver e não tanto em quem conheceria a bordo ou, até, se encontraria com quem conviver...

Quanto ao condomínio para onde tinha planeado mudar-se, sobretudo pelas suas muitas distrações e equipamentos, pois bem, decidiu vender o andar ainda por concluir e ficar onde estava, usando o dinheiro assim poupado para se mimar futuramente com novas viagens ou outros pequenos prazeres.

Pois, a  mãe, ou antes, os pais, estavam completamente errados. Estar só e sofrer de solidão não são mesmo nada a mesma coisa!

Luísa Lopes

Foto de Atharva Tulsi na Unsplash





sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

ALGUMA COISA PASSADA


 

Um dos rapazes que ali estava tinha sono. Era madrugada de um dia qualquer que nenhum deles se lembra mais. Ali sentados na calçada já não esperavam mais nada de ninguém nem de nada. No entanto o sangue etílico os incitava a fazer algo de inusitado que, diante da impossibilidade de realizarem, se recusavam também a ir para casa.

Aquela cidade parecia inexistir. Nenhuma pessoa na rua além dos três, que sabiam que naquelas casas havia o pulsar da vida e que talvez uma nova vida se insinuasse num coito anônimo em andamento.

Nisto chegou um quarto rapaz levado por um quinto. Cumprimentaram-se em silêncio e dali todos foram embora como que levados por um pacto sinistro que se fazem entre bêbados ou talvez pela própria ausência de perspectivas.

Naquela noite (o que restava dela) Carlos dormiu relativamente bem e o sono avançou pela manhã. Quando acordou não tinha perdido nada. Almoçou como se aquele almoço fosse o primeiro desde a sua chegada, assim fazendo tinha a impressão de que chegara naquele dia e a noite anterior não fora perdida.

Cuidou então em preparar o momento a vir. Deitou-se novamente sem ter sono ou se tinha não soube, pois não dormiu. Deitou-se apenas porque queria fugir do tempo e do tédio que o ameaçavam de aniquilamento. Mas cansou-se de tudo e saiu pela chuva, encontrando os dois rapazes da madrugada. Juntos, eles se exilaram de si mesmos numa mesa de bar reservada por concessão do proprietário que (conhecedor da mania dos três em se isolarem) queria tê-los como fregueses. A despesa que faziam era considerável.

A noite chegou e os encontrou ébrios de copos, músicas que cantaram e conversas muitas. Aproximava-se o momento e Carlos não teve tempo e nem paciência para tomar banho. Chegando em casa comeu da sopa que havia e quando foi fritar um ovo se atrapalhou: a sopa derramada na gaveta de onde fora tirar uma colher era um sinal dele e de sua vida que escorria neutra. Acabada a refeição, Carlos se dirigiu à rua depois de pegar um livro. Passando por uma padaria comprou um maço de cigarros e destinou-se a casa dela sem a certeza de que devia fazê-lo.

-- Ela não está.

-- Obrigado. Volto depois.

Carlos sentou-se numa praça aparentemente deserta nas imediações para esperar. O livro deixado a um canto do banco. Fazia uma bela noite e ele pôde verificar a lua e dois velhos que, sentados no banco ao lado, conversavam qualquer coisa a que não deu atenção. Os olhos presos ao relógio.

Não havia perdido nada até que duas mulheres (ou seriam crianças?) da janela, com seus alardes, anunciaram-no e a todos quanto houvesse, a queda de um homem na rua. Carlos o reconheceu e foi ao seu encontro, levando-o bêbado ao seu barraco sem luz e esperanças. Deixou-o na cama que ocupava todo o espaço daquele quarto. Minúsculo barraco para quatro. Seriam seis, não houvesse a morte de dois filhos por inanição. A mulher do homem e os dois filhos pequenos que restavam receberam-no sem o menor sinal de espanto.

-- Isso acontece todos os dias, disse a mulher resignada. Você sabe como é... já expliquei pra ele, mas de que adianta? Agora a pouco quando vinha, vi ele e um outro de chapéu de feltro com os copos até aqui de pinga.

Aquele homem, Zé, era subempregado de um órgão público. Pagavam a ele o que queriam e o que pagavam não era nada. Mas o Zé não podia reclamar, pois senão nem isso. Esteve algum tempo em São Paulo como empregado (quando se conseguia serviço) da construção civil. Mas foi sendo mandato embora daqui pra lá, de lá pra cá, até que chegou aqui: cidade onde nascera e que confessava gostar. Afinal tinha sua mulher, seus filhos, aquele barraco e uma fome permanente. Mas são muitos os Zés espalhados pelo Brasil que, inevitavelmente, um dia irão se juntar. Não pode estar distante este dia. A lua cheia, quase explodindo de ódio, era uma prova disso.

Carlos deixou o barraco com aquela tênue luz de uma lamparina e uma ainda mais tênue esperança de melhores dias. Mas a lamparina insistente queimava o querosene e o fogo dela há de incendiar os povos para esta realidade zé-brasileira-mundo.

Ainda naquela hora, Carlos não havia perdido nada (ou quase nada) de si mesmo. Anterior a tudo seguiu para a casa dela, Mariana. O livro na mão trêmula e esta num corpo em expectativa. Mas era sempre assim. No livro uma ligeira, certa impressão de ser ridícula, dedicatória.

-- Ainda não voltou. Deixa recado?

-- Não. Encontro-a por aí. Obrigado.

Não havia perdido nada e ainda era tempo de receber alguma coisa daquilo que, deliberadamente, ofertara. Mas Carlos não sabia. Sempre foi bastante ingênuo. Dedicou-se à essência de si mesmo e se esqueceu de tudo, inclusive da existência. São coisas indissociáveis, mas há uma ordem de precedência segundo um filósofo e que Carlos desconhecia ou voluntariamente ignorava.

Encontrou-a num lugar onde não se sentia bem. Mas tinha que ir até lá. Era onde poderia encontrá-la e ele queria encontrar-se com ela. Contrariando a intuição de Carlos, bastaram algumas palavras para ele perceber que já era tarde demais para tudo. Havia um abismo e isto era o que havia. Disse a ela algumas poucas/bobas palavras de praxe e isso foi tudo o que disse. Estava acabado.

Carlos desceu a calçada até o bar onde estavam os dois rapazes. Expôs a eles alguma coisa do ocorrido, bebeu dois copos d’água e, deixando com eles dois cheques, foi embora. Sentou-se à porta de sua casa sem coragem para entrar. Se o fizesse, haveria uma série de perguntas para as quais não tinha respostas. Estava confuso, mas não tardou muito em se recolher. Deveria viajar na manhã seguinte (se houvesse manhã seguinte, é claro). O relógio importunava-o com aquele maldito barulho. Pensou em jogá-lo fora, mas não passou daí.

No quarto, a cama de casal era demais para seu pequeno corpo, posto que já o sendo, ainda se sentia menos. Nas paredes desgastadas um quadro de uma santa já um tanto descrente de sua santidade ao vê-lo. Deteve-se por alguns instantes na foto sorridente do dia do casamento. Aquilo o reconfortava em parte. Sentiu que nem tudo estava perdido para todos, na verdade estava acabado.

Pela veneziana entrava um pouco da luz que emanava de um poste em frente. Fechou as vidraças como se fechasse a si mesmo. O cinzeiro acusava o quarto cigarro e o relógio assinalava 3 horas da madrugada. A insônia e o peso de tudo exasperavam-no. E depois aquela dívida que ele tinha. Amanhã viriam os credores a despeito de tudo. Ignoravam tudo, menos as dívidas. Mas haveria de arranjar um jeito.

O dente podre e a cabeça oca lhe doíam. Tomou um analgésico e um copo de erva-doce. Isto acalma e dá sono, disse-lhe a mãe, preocupada com os fatos evidentes da desgraça do filho, mesmo sem conhecer as verdadeiras causas que determinavam isto ou aquilo. Diabos, mas ele também não falava, não se abria. Estava arruinado e todos sabiam disso, mas não havia como ajudar.

Voltou para a cama e acendeu outro cigarro. O dia amanhecia e nada de sono. O dia amanhecera de todo.

Desistiu da viagem. Trabalhar não pôde. Esqueceu-se de tudo e pegando uma caneta escreveu no papel higiênico: “Se algum dia eu me arrepender de alguma coisa, não vou culpar a mim mesmo e nem aos outros. Não vou culpar ninguém. Vou apenas justificar-me perante as diferenças individuais”.

Leu e releu o escrito. O pensamento não era de todo ruim, mas ficou em dúvida quanto ao caráter genérico ou específico do mesmo. Usou o papel para o fim que lhe é destinado, puxou a descarga e desfalcado de si mesmo foi almoçar.