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segunda-feira, 29 de junho de 2020

O Assalto


Naquela tarde quente de agosto de mil oitocentos e qualquer coisa, três homens conversavam, por entre a frescura bem-vinda das árvores. Faziam um interessante trio. Com roupas que já conheceram melhores dias e socas de pau, espraiavam-se na pequena clareira, como que esperando que algo acontecesse.
— Pois é como te digo, Xico. — Dizia o das fartas suíças, sentado num tronco de árvore, enquanto acariciava uma bela pistola ornamentada. — Desta vez não há que enganar! Se algum se armar em galaró, amando-lhe um chumbo entre os olhos, que há de logo ir dar com os cornos aos pés do mafarrico.
O mais novo dos três, com largas melenas encaracoladas, a escapar-se do chapéu puído, benzeu-se apressadamente.
— Ora, tem juízo, Zé. — O terceiro, um tronco de barrica, barba farta e pele morena, rematou. — Aposto que nem sabes usar esse farragatcho. Estoura-se-te o bacamarte na mão e quem vai desta p’ra melhor és tu!
— Quê? — O outro ergueu-se de um salto, sacudindo a arma no ar. — Nem tu imaginas as bujardas que já mandei com esta daqui!
— Ensina-me a atirar com o bacamarte, Zé! — Pediu o mais novo.
— Isto não é um bacamarte, Tone, sua cavalgadura! — Exclamou o visado, com ar de entendido. — Isto é uma pistola! E uma pistola de fidalgo, por sinal.
— E atão onde arranjaste essa fidalguia? — Quis saber o Xico.
— Não te alembras da “visita” à casa do juiz Sarmento?
— Bô! — O outro não queria acreditar. — Pois astreveste-te a pôr as unhas na pistola do velho baboso? E não disseste nada?
— Ora pois, aqui, como a vês!
— Deixa-me atirar, Zé! — Tone insistiu.
— Quieto! Isto não é brinquedo, Tone, ainda matas alguém! Deixa-te por aí com o varapau e a faca, que é onde és mais artista!
— Pois a merda do juiz pouco lá tinha que se aproveitasse. Uns cobres descuidados e umas pratas... aposto que o fideputa ainda tem os dobrões enterrados por lá.
— Não te podes queixar muito. — Continuou Zé. — Lembras-te do presuntinho que mamamos na taberna do Julião à custa do que conseguimos lá?
— Atão não? E aquele tinto de estalo? — Xico concordou.
— Dispara tu, então, Zé! Deixa-me ouvir! — Tone insistia indiferente às lembranças gastronómicas.
— Deixa-o, Tone! — Riu-se Xico. — Tenho cá a ideia, que esse patranhas, nem sabe usar a geringonça.
— Dizes tu, ò zangão! — Zé enervou-se pela utilização da sua alcunha e ofendeu o outro com a dele. Mas começou a explicação aos dois, que, entretanto, se aproximaram... — Isto é só carregar a póvora e a bala e já está! Ósdepois puxa-se aqui o fecho e está pronta a...
Um potente estampido produzido pela arma deixou todos sem fala enquanto o chapéu de palha do Xico voava e o seu rosto ficava coberto de fuligem.
— Ah! Excomungado dos demónios! — Gritou o Xico Zangão erguendo o varapau. — Por um cibo não me arrebentavas com os cornos, filho de um cabrão!
— Foi sem querer, desculpa! — Gritou o patranhas fugindo para trás de umas pedras próximas.
— Deixa-o! — Pediu Tone colocando-se no caminho do ofendido. — Não vês que foi sem querer? 
— Se tornas a chegar-te a mim com esse estadulho dos infernos, racho-te à barduada! Seu patranhas desmiolado!
— Pronto! Desculpa, já disse, fugiu-me o fecho dos dedos. — Desculpou-se Zé.
Amuado, Xico sentou-se numa pedra a resmungar sozinho. Não era sem motivo, que era conhecido por zangão; as suas fúrias repentinas e o ar de poucos amigos, punham qualquer um em respeito. A aldeia raiana de onde provinham, era fértil em rebatizar os seus habitantes e Zé, por seu lado, era o patranhas, sempre a exagerar as histórias em que se envolvia e os resultados delas, que a maior parte das vezes lhe eram desfavoráveis. Já o Tone, irmão de Xico, era o canhoto, ou o russo. Poucos gostavam das alcunhas que lhes davam, mas todos colaboravam nos batismos populares que, à falta de outra coisa, podiam servir como insulto ou pura diversão.
Mantendo um olho na arma e o outro a vigiar o Xico, Zé recarregou a pistola com pólvora e colocou a esfera metálica que pressionou para o fundo do cano, várias vezes, com a vareta. Em seguida, testou o fecho de pederneira, várias vezes, para se certificar que não se repetia o acidente. Tone falava baixo com o irmão que não parava de resmungar.
O relincho próximo de um cavalo, deixou os três de ouvido apurado. Breve se começaram a escutar vozes masculinas que conversavam calmamente.
— Estão aí! — Sussurrou Zé, correndo para junto dos outros.
Ato contínuo, Tone, em vários saltos, deslocou-se sobre as pedras para o maciço de árvores que os separava da estrada e pôs-se a espreitar.
— Já lá vêm! — Sussurrou.
— Quantos são? — Quis saber Xico.
— Dois na carroça e um a cavalo. O cavaleiro deve ser gente fina, belo chapéu, boas botas...
— Merda! Deve ser coisa fina, mesmo. Para trazer um guarda...  — Reconheceu Zé. — Hoje vamo-nos consolar outra vez na taberna… ai o presuntinho…
— O badocha não te disse o que traziam? — Xico ficou desconfiado.
— Não. Disse que levavam coisa fina para o solar dos Resendes.
— Oh! Raios me partam, que caio sempre nas tuas patranhas.
— Bô! Mas que queres tu? Não encheste os bolsos com o outro mercador de Penafiel? E o peleiro de Amarante? Não vinha cheio de moedas? O badocha não se costuma enganar!
— Pouca ladradeira aí! — Sussurrou Tone. — Tão quase a chegar! Apresta-te lá prà frente deles, Zé, já que tens o bacamarte.
— Pistola, asno! — Ralhou-lhe o visado enquanto corria para emboscar a carroça.
Na estrada, se se pode chamar assim ao caminho de terra batida que ziguezagueava por entre as árvores, os dois carroceiros conversavam despreocupadamente. O cavaleiro que os seguia parecia dormitar em cima da sela. A caixa da carroça vinha ocupada com seis arcas de madeira, cobertas com uma enorme sarapilheira suja.
Com a cara tapada por um colorido lenço e a pistola apontada aos viajantes, o patranhas caminhou calmamente da berma para o meio da estrada, até que o vissem.
— Alto lá! — Ordenou.
— Que é isto? — Indignou-se o condutor da carroça.
— Isto é um negócio a não perder, amigos forasteiros, — Brincou Zé. — Vocês deixam a carroça e os cavalos e eu deixo-vos ir embora vivos.
O cavaleiro preparou-se para esporear o cavalo, mas, ao nível do rosto, surgiu-lhe a ponta do varapau de Xico que avisou:
— Quietinho aí ò echelência! Não queremos amassar esse bonito chapéu, pois não?
— Que querem vocês, escumalha da estrada? — A voz carregada de desprezo, fez-se ouvir, enquanto mirava o salteador maltrapilho, que o ameaçava, de cara tapada.
— Não vos disse já o meu amigo ao que vínhamos? — Tone saltou para a carroça, com um varapau numa mão e uma faca com doze centímetros de lâmina na outra. — Queremos o que tão bem guardais!
— Pois sabes tu quem queres roubar? — Perguntou o carroceiro voltando-se para o salteador nas suas costas. — Esta encomenda é para o casamento da filha do senhor da casa do Pinheiro!
— E a filha também aqui vem? Se viesse talvez se lhe arranjasse serventia! — Riu Tone.
— Pelo menos durante algum tempo! — Apoiou Zé soltando uma gargalhada.
— Escumalha! — Sem dar tempo a Xico reagir, o cavaleiro puxou de uma pistola que apontou para Zé. O visado, que tinha a sua própria arma apontada para o ar, baixou rapidamente a pistola para disparar. A esfera de chumbo caiu do cano, para espanto de todos.
Quem salva a situação é Xico. Desfechou uma violenta pancada na arma do cavaleiro fazendo-a disparar-se inadvertidamente junto à orelha da montada. Assustado, o animal empinou-se, derrubando o cavaleiro em cima do assaltante e desatando num galope desenfreado. Zé conseguiu atirar-se para o lado no último momento e salvar-se de ser pisoteado. O carroceiro controlou o outro cavalo com dificuldade, enquanto Tone ameaçava o pendura com a faca:
— Quieto aí, ò artajeiro! Não te astrevas a mexer!
A força descomunal de Xico foi suficiente para, com um empurrão e um soco, levar a melhor sobre o cavaleiro apeado e ameaçá-lo com a sua faca:
— Quieto já! Ou queres ir visitar o barzabu? — Sem tirar os olhos do homem, gritou para Zé. — Que os diabos te encham de pulgas, trampolineiro de um raio! Não te disse que esse bassouro só ia arranjar bosta? 
— Caiu a porcaria da bala! Que queres que te faça? Era pequena! — Desculpou-se ele.
— Vocês são uns pantomineiros! — Acabou por rir-se o cavaleiro. — O circo está montado!
Xico socou o homem com força num braço:
— Estás a pedi-las! Vamos levar as coisas e deixar-vos aqui, vê lá se queres que te deixe uma perna partida.
— Deixem-se de refustedo! — Gritou Tone. — Amarra esse fideputa, e tu, Zé, anda aqui ajudar a amarrar estes! Deixa a excomungada da bala, não procures mais!
Rapidamente, os três homens foram sentados de costas uns para os outros e amarrados todos juntos. Os apavorados carroceiros mantinham as cabeças baixas, mas o cavaleiro continuava desaforado e olhava furiosamente os assaltantes.
— Que foi? — Xico deu-lhe um pontapé num braço. — Queres comer-me é? Tens muito que crescer, ò fininho!
— Ainda hei de descobrir quem são vocês! Arranjarei com que vão dar com o lombo no calabouço, seus facínoras!
— Isso querias tu, fidalgote! — Agora era Zé apontava a pistola ao nariz do provocador. — Olha que já está carregada!
— Onde arranjaste uma arma decorada a prata, pelintra? — O homem não se intimidava.
Os três assaltantes olharam-se antes de observarem a arma com mais atenção.
— Não sabiam! — O cavaleiro soltou uma gargalhada. — Vocês são os ladrões da mais triste figura que já vi!
— Vamos embora daqui antes que eu arrebente os cornos a este artajeiro. — Disse Xico.
Saltaram os três para a carroça e começaram a deslocar-se rindo-se e acenando adeus ao infortunados assaltados. O cavaleiro ficou a insultá-los e a amaldiçoá-los em altos berros.
Depois de uma viagem de mais de uma hora, em que Xico não parou de insultar e humilhar um amuado Zé, pararam afastados da estrada, junto de uma descida para o rio.
Atiraram-se às arcas e rebentaram os fechos para verem o valor da presa; a primeira, estava cheia de pratos da mais fina porcelana, pintados à mão. Tone ficou-se de boca aberta a olhar para os outros exibindo uma das coloridas peças de loiça.
Furiosos, abriram todas as arcas. Mais pratos e copos de cristal. Não havia dúvidas que tinham entre mãos a loiças destinadas ao casamento da filha do senhor da casa do Pinheiro.
— Por todos os demónios dos infernos!!!!! — Gritou Xico numa fúria, dando murros e quase desfazendo as tampas das arcas. — Só roubamos cacos!!!! Que cabra de sorte!!!
— Quando eu puser as mãos no moncoso do badocha, vou fazê-lo em pedaços!!! — Exclamou Zé, ultrajado.
— Eu havia de te arrebentar as fuças a ti, seu patranhas do inferno! Tu é que nos meteste nesta porcaria! Porque é que me deixo sempre levar por ti? — Xico ergueu Zé pelos colarinhos enquanto encostava nariz com nariz.
— Esperem, esperem! — Tone sorria. — Sei de um galego em Chaves que dará bom dinheiro por isto, os pais dele têm uma tenda na Espanha e vendem esta bosta toda lá. Às tantas, ainda compra o cavalo e a carroça também. Estamos safos!
Xico atirou com Zé para o chão da carroça:
— Pode ser que não seja por hora que mando este infeliz para o inferno! Vamos ver também se não quer comprar uma pistola decorada a prata! 
Cabisbaixo, Zé ergueu-se, apanhou a adorada pistola do soalho da carroça e meteu-a na cinta. Prendeu-a pela corda que lhe segurava as calças puídas.
— Vamos embora então. — Disse Tone enquanto se sentava no lugar de condutor da carroça. — Temos de chegar ainda com dia.
Zé encaminhou-se para o lugar do pendura e estava a sentar-se quando Xico o empurrou para fora:
— Espera lá! Agora vou eu aí!
Desequilibrado, ele saltou da boleia para junto das patas traseiras do cavalo. A pistola caiu-lhe da cinta e bateu com força numa pedra. O disparo ecoou como uma bomba no silêncio do vale e o animal espantou-se com o súbito ruído. Com um potente coice na carroça, fez cair os dois bandidos e partiu à desfilada, levando a carga aos saltos pelo caminho pedregoso. Logo na primeira curva, o veículo voltou-se e despedaçou-se num estrondo de cacos e vidros. Sentindo-se solto, o cavalo aumentou o galope e desapareceu de vista.
Os três infelizes quedaram-se incrédulos a assistir ao epílogo da sua aventura, até que Zé, olhando para os outros dois, desatou a correr na direção contrária à tomada pelo animal.
— Espera aí, seu manhuço! Filho de um coirão! — Xico começou a correr atrás dele. — Não fujas, vou-te dar uma saronda que te racho, cochino, labrego! Espera que já as vais larpar, seu gandulo! Não fujas!
Desanimado, Tone quedou-se a olhar a nuvem de poeira deixada pelo cavalo em fuga e para os restos despedaçados da carroça. Depois olhou para o outro lado, onde o seu irmão perseguia o patranhas, aos gritos. Baixou-se, apanhou a pistola e prendeu-a na cinta. 
“Pelo menos a prata deverá valer alguma coisa, porque como bacamarte, é uma desgraça.” — Pensou enquanto se metia ao caminho, atrás dos outros dois. — “Talvez consigamos chegar a casa ainda antes da meia noite… mas desta vez não pomos os dentes no presunto da taberna do Julião.”





sexta-feira, 26 de junho de 2020

Veludo


Programou-se para receber a segunda visita no quinze de abril. Desde então, esperou precavidinha por dezessete dias, trazendo sempre um protetor longo, almofadado e cheio de abas – matéria estranha que incomodava a menina e absorvia a espontaneidade de seus movimentos.

Com a prolonga da espera, a pele dos fundilhos foi ficando áspera e descamada, chegando a assar. Então, Janaína simplesmente desistiu do aguardo e parou de usar o monstrengo. “Viva. Estou livre.” Ficou feliz, porque não via vantagem nenhuma no tal presente mensal encarnado. Leu sobre mocinhas irregulares, que só sabiam falhar e falhar. “Oba. Deve ser o meu caso. Acho que agora vai demorar a vir de novo.”

Não queria ser chamada de pré, nem muito menos de adola, adolescente. Tudo ia muito bem, aquela infância confortável de novo. Janaína brincando, andando de bicicleta, cambalhotando, nadando na piscina da Bia, bailando o Just Dance, respirando, dormindo, agindo normalmente, sem sofrer sangramento.

Mas a regra percebeu a desobediência da menina e, só para provar que não aceitava freio, resolveu causar durante a aula de geografia. Desceu fluente e desembaraçada, breando a calcinha, a bermuda e a carteira onde se sentava, bem na primeira fileira. Ela se arrependeu do descuido quando sentiu a inundação avançando. Enfim era chegada a hora da hemo-hecatombe, e dentro da sala do 7° Ano B.

Devia ter se levantado logo que sentiu o primeiro pingo, mas ficou esperando. “Deve ser só impressão minha.” Mas o jato foi aumentando loucamente, e ela não achou jeito de se defender. Tocou a sirene baixa para o intervalo, e Jana não quis sair. Tocou a sirene alta da volta do recreio, e Jana sentada no mesmo lugar. Bateu a saída, agudíssima, e a menina ainda sem jeito de ir embora.

Previu o escândalo dos colegas quando vissem a supermancha. A turma do bullying adorava tirar sarro da cara dela! O bigodinho aparente, os cabelos armados sempre presos na faixa laranja, a sobrancelha lagarta de fogo... “Ah, preciso me desmaterializar agora.”

Foi o Bernardo, aluno mais inibido da turma, que chegou na maior naturalidade e, sem esparrar, tirou o próprio casaco e entregou na mão dela: “Pode ir pra casa com ele. Depois você traz pra mim.”
Nos quatro meses seguintes, Jana levou para a escola, dentro da mochila, o agasalho que tomou emprestado de Bernardo. Queria devolvê-lo limpo, cheiroso, bem dobrado e embalado, como novo. Queria dizer seu obrigada. Mas o menino faltou à aula todos esses dias.

O professor de ciências explicou que o aluno estava afastado para se tratar de uma doença grave. Parece que o sangue dele estava estragado. Jana não conseguiu entender bem. Não sabia se era anemia, leucemia ou mal de outra cor, se o sangue dele estava forte, claro demais ou escuro demais. Não sabia se ele podia receber doação de A ou B ou se nada disso adiantava. Não sabia se Bernardo ainda tinha cabelo, se estava consciente, hospitalizado. Demorou. Os colegas nem lembravam mais o rosto do Bernardo. A voz é que não lembravam mesmo.

Foi só quando o ciclo da Jana ficou mais regulado (e ela já aceitava e entendia melhor a visitinha sangrenta) que o colega retornou para a escola, cabelo apontando. Estava magro e pálido, mas oitenta e cinco por cento sarado.


Em casa, à noite, depois dos remédios, quando se preparava para dormir, Bernardo pôs a mão num dos bolsos de dentro do moletom do uniforme e encontrou um pacotinho macio e misterioso. Desembrulhou o pequeno presente de veludo, que estava bem dobrado. “Um absorvente?” – lembrou-se dos que tinha visto no comercial de um canal do YouTube. Quando abriu o mimo branco, viu que a face de dentro trazia uma breve oração caligráfica, escrita de caneta vermelha: “Pela cura do Bernardo. Amém.” 

Maria Amélia Elói





quinta-feira, 25 de junho de 2020

Vencido



Na distante China, tinha surgido mais um vírus. Como tantas vezes antes. Não costumava chegar cá e, quando chegava, não passava de uma gripe fugaz. Os chineses tinham lá aqueles ambientes insalubres. Víamo-los andar frequentemente de máscara, por causa da poluição, por causa de uma fuga química, por causa de um dos vírus deles.
Agora, pareciam estar bastante aflitos, a fechar cidades e fronteiras, a controlar milhões de pessoas por meios eletrónicos. A mandarem-nas ficar fechadas em casa. O número de infetados começava a ser assustador. E o de mortos parecia irreal. Tudo por causa de um vírus que passara de um morcego para um pangolim, que alguém comera? Esperávamos que conseguissem ultrapassar o problema, que, felizmente, não chegara cá. Nem chegaria — asseguravam-nos.
Era por meados de fevereiro. Manuel Gondim juntou a família para comemorar os seus 76 anos. Era bom ter os mais pequenos na sua festa, brincar com eles. Não tinha preço o enlevo.
Em poucos dias, começou a ouvir-se falar em infetados no Irão, em Itália, em Espanha… «Aqui ao lado? Oh, caraças!» Pelos ditos, era gente que tinha estado na China e viera infetada. Parecia ser meia dúzia de episódios infelizes. A eficácia dos sistemas de saúde ocidentais iria travar a propagação, sem problema — pensava-se.
Começou então a perceber-se que o mundo se tornara um lugar global, no qual as pessoas se deslocavam entre todos os lugares em números astronómicos. Que, enquanto se tratava um doente, muitas outras pessoas já tinham sido contaminadas por ele, sem ninguém perceber. E que, a cada momento, milhares de infetados estavam a contaminar milhares de outras pessoas insuspeitas. E que este vírus não provocava uma gripe vulgar. Estava a matar em números inimagináveis.
Manuel aproveitou uma previsão de uma semana de bom tempo para ir à terra plantar árvores. Agora, de velho, interiorizara a necessidade ambientalista de contribuir para deixar um planeta menos inóspito aos netos. Árvores, oxigénio, humidade, biodiversidade. O quintal era grande; dava para uma vintena de árvores, mesmo separadas por intervalos de seis ou sete metros. Plantou nogueiras, castanheiros, limoeiros, macieiras. Até a bizarria de uma pimenteira. Não se importou com a imagem de velho alquebrado a manejar uma enxada. Só os braços se queixaram. Três dias depois, contemplou aqueles caules frágeis a fazer verdejar meia dúzia de folhinhas, cada. Tinha parecido uma utopia e, afinal, fora tão fácil. Esperava que daí a um ano já tivessem um metro de altura. E daí a cinco anos?
No regresso, as notícias vieram derrubar o seu contentamento: o governo aconselhava isolamento social, dado o perigo de morte de quem fosse contaminado, em idades elevadas. O vírus tinha uma taxa de letalidade de mais de dez por cento, em pessoas acima dos setenta. Fechou-se em casa com a mulher, com a consciência cada vez mais aguda de que sair à rua era uma jogada de roleta russa. Podia-se ir à mercearia em frente e voltar são, ou trazer para casa uma silenciosa sentença de morte.
Foi tentando entreter-se a acabar as dezenas de leituras que deixara a meio e a acompanhar uma ou outra série, mas a apreensão nunca o abandonava. Sabia que o assassino andava lá fora, pronto a apanhá-lo, não tinha dúvidas. Os dados da sua cidade indicavam uma subida constante de infetados que, em pouco tempo, já ia em várias centenas. Quantas outras centenas de infetados andariam já por aí, sem ninguém saber?
O mundo transformara-se na mais aterradora versão de um filme-catástrofe de série B. As imagens das grandes cidades europeias mostravam ruas tão vazias como a sua. Eram vulgares por todo o mundo imagens de filas de caixões, lares de idosos cheios de velhos mortos, sepultamentos em valas comuns. O diabo fora libertado e cobrava corpos com todo o rancor que os livros sagrados afiançavam.
Manuel ia registando os números fornecidos pelas autoridades de saúde, compondo gráficos de progressão, sempre na esperança de notar as curvas vergarem-se ao controlo humano. E observava a limpidez saudável do mapa do seu concelho de origem: sem registo de infetados.
As informações dominantes diziam que toda a gente acabaria por ter contacto com o vírus; a estratégia nacional era defensiva e procurava que esse contacto se desse o mais tarde possível, para que o sistema de saúde fosse mantendo, ao longo do tempo, a capacidade para tratar quem ficasse doente, sem colapsar. A esperança — ténue — era só a de maior disponibilidade de meios de tratamento, não de cura. Não era dada nenhuma garantia de que ele, ou qualquer outro, se salvasse, se só fosse infetado daí a muito tempo. Tudo dependia da capacidade de internamento hospitalar.
A meio de abril, Manuel desabou de desalento: morrera do vírus o escritor Luís Sepúlveda, no mesmo dia em que a limpidez cartográfica do seu concelho fora manchada pelos primeiros infetados. Um choro rouco saiu-lhe da garganta.
Havia que tomar uma posição pessoal sobre a própria vida. Afinal, devia ter medo da morte ou enfrentar a ideia com toda a racionalidade? Não se entregaria, não; se ela o quisesse, teria de vir buscá-lo. Mas também não se importaria de morrer, concluiu, com tristeza. Pensando bem, tivera uma vida boa e razoavelmente longa. A conclusão deu-lhe uma calma que já não tinha havia algum tempo.
Manuel começou a preparar o que ia deixar. Era bom que os herdeiros encontrassem as papeladas organizadas. Iriam agradecer-lhe. Passou a embrenhar-se nos inúmeros papéis que abundavam nas estantes da arrecadação. Tanta coisa irrelevante, tanta tralha de que já não se lembrava. Mesmo quando estava bem arrumada em dossiês. Foi enchendo sacos de papelada inútil. Que ia despejar ao papelão, noite adentro, para não encontrar ninguém.
As reflexões desencadeadas pela situação de confinamento social produziram nele algumas alterações subtis. Começou a prestar maior atenção à passarada que, com a menor quantidade de gente nas ruas, passou a fazer festas e concertos nas árvores próximas. Gostava especialmente do canto dos melros, muito mais sociáveis do que eram na sua adolescência rural. E passou a dedicar muito tempo a vê-los caçar no jardim traseiro e a deslocar-se como cães de caça, no típico corre-e-para, a perceber onde está a minhoca, que devem achar saborosa.
Finalmente, os números começaram a abrandar a ferocidade. Claramente, tinha passado o pico da pandemia e começava a falar-se em desconfinamento. Havia que pensar agora na economia. Gradualmente, reabriram barbeiros, restaurantes, escolas, centros comerciais. A normalidade anunciava-se com otimismo. Cortaram-se as florestas capilares, voltou a saborear-se o prato especial no restaurante favorito, os pais de crianças e jovens em idade escolar suspiraram de alívio por voltarem a ter um pouco de sossego em casa.
Manuel Gondim voltou a reunir em casa filhos e netos, no almoço de domingo. Um sentimento de esperança na vida andava no ar. Qualquer dia iria à terra verificar se as suas árvorezinhas se tinham aguentado.
Mas a besta não tinha desaparecido. Mantinha-se alapada em pulmões insuspeitos, manhosa e cobarde. Então, passadas poucas semanas, as notícias davam conta da explosão de vários focos de centenas de infetados por conta, ora de festas ou ajuntamentos com inúmeros convivas fartos de confinamento, ora de lares de idosos que pareciam pegar a infeção como a palha pega fogo. E também por via das condições precárias de transporte das multidões de gentes que tinham de viajar engarrafadas pela madrugada, para compor os cenários de trabalho de camadas de população não tão desfavorecidas. Foi reimposto o isolamento social radical em várias cidades, inclusive, na sua. Nos Estados Unidos e no Brasil, os números descomunais de mortos refletiam o delírio negacionista de matriz evangélica dos presidentes.
Manuel voltou a remeter-se ao exílio caseiro. Uma grande tristeza ia invadindo o seu olhar, enquanto testemunhava o ermo em que voltara a transformar-se a sua rua.
Por inícios de julho, começou a tossir; tosse seca, persistente, não produtiva. Como se tivesse a garganta arranhada. Não valorizou. Quis acreditar que devia ser outra coisa qualquer. Podia ter apanhado um golpe de frio, ao ir de noite à rua. Ou ser uma irritação ao omnipresente álcool-gel. Mesmo que fosse uma constipação… Com o aparecimento de febre, ligou para a linha dedicada à Covid-19. Uma equipa especializada foi fazer-lhe um teste de despiste. Mandaram-no passar a dormir noutro quarto, e que os cônjuges usassem máscara nos contactos imprescindíveis. Telefonariam com regularidade, para avaliar a evolução.
Continuou a piorar sensivelmente ao longo da noite. No dia seguinte, uma ambulância foi buscá-lo e levou-o para o hospital público — blocos de Covid-19. O teste dera positivo.
«Como? Onde? Quando?» — perguntava-se, revoltado com a cobardia da besta e a injustiça perante o seu imaculado confinamento. Quiseram saber quem o poderia ter infetado. Como saber? Talvez numa das idas à mercearia, apesar da máscara. Ou daquela vez que encontrou um desgraçado a vasculhar o caixote, quando foi despejar lixo.
Manuel estava sozinho, mas percebeu muitos outros doentes, no bloco. Depois da administração dos fármacos que então se considerava darem resultados, embora incertos, a equipa médica percebeu que ele começava a ter dificuldade em respirar e que, se não fosse ligado a um ventilador, corria risco de vida.
Apesar de envolvido por uma neblina de ansiedade e estupefação, sentiu a atrapalhação de médicos e enfermeiros. «Só há um ventilador» — pareceu-lhe perceber da conversa. Lembrou-se então das palavras recentes de um general que, de peito feito, tinha declarado que, em caso de necessidade, abdicaria de um ventilador a favor de um homem com mulher e filhos. Dando a entender que qualquer idoso devia fazer o mesmo.
Era um gesto bonito, um ato digno de ser o último de uma vida. Decidiu-se por ele; sentiu orgulho de si.
Sem tentar reprimir o alagamento dos olhos, conseguiu chamar uma enfermeira e comunicou-lhe a terrível decisão:
Se tiverem alguém mais jovem… — inspirou duas ou três vezes antes de conseguir completar — deem-lhe o ventilador antes a ele.
E deixou cair a cabeça, derrotado, mas sereno.
Não se preocupe, senhor Manuel. Vamos levá-lo para os Cuidados Intensivos onde será devidamente tratado. Há lá muitos ventiladores, com certeza. Vai ficar tudo bem!
Foram as últimas palavras que ouviu, antes de se apagar. O sentimento de fracasso neste último gesto esvaiu-se com ele.
Apesar da respiração assistida por um ventilador, não voltou a dar acordo de si. O óbito foi declarado ao fim de dezoito dias.

Joaquim Bispo
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Imagem: Giorgio de Chirico, Praça de Itália com político, s/ data [1913–14].
* * *





terça-feira, 23 de junho de 2020

DRIBLES DO PASSADO



                                                                              

                                                                              
 A igreja era modesta, miúda, suficiente para abrigar os fiéis. Uma capelinha. O restante da praça, área imensa, servia a todos os moradores. Ali se juntavam, aproveitando o sol da manhã, colocavam a conversa em dia, faziam pequenos negócios, e, na parte da tarde, aquela terra batida, com pouca areia solta, pertencia aos moleques. As peladas aconteciam. 
Todas as crianças da vila frequentavam a escola de manhã. Depois da aula, bastava o tempo de tirar uniforme e engolir o almoço, os pequenos iam brotando feito pipoca nas ruas, nas esquinas, num converseiro danado. O bando, adensado, discutia os times, reclamava da pegada do dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava um bom tempo até tudo se ajeitar.
Todos descalços, as botinas só eram usadas na escola. Os times dividiam-se: de camisa, sem camisa. E eram camisas de botão. Não existiam camisetas para crianças, apenas os adultos as usavam sob as camisas. Cavadas. O espaço da trave, que geralmente era medido por cinco passos, motivo de muita briga, ficava delimitado por botinas regaçadas recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado por tijolos, paus, pedras. Depois de muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram pelas velhas botinas. As passadas eram motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava que a perna do contador era grande demais, o artilheiro queria que o mais alto da turma fizesse a marcação. Era um tal de puxar o sapatão para lá e para cá...
A bola era de meia. Bola de capotão era artigo de luxo que só aparecia quando chegava algum primo distante.  Assim mesmo, só podia ser usada se o primo escolhesse o time, o que não agradava a molecada. Os meninos da cidade grande eram sem ginga, sem malemolência, sem contar que as chuteiras espantavam os pés dribladores dos moleques da vila.
A cada semana, a bola era revestida com velhas meias, catadas nas casas. Material cada vez mais escasso.
E, sob sol escaldante ou chuva mansa, as peladas eram sem fim. Interrompidas apenas quando os raios cortavam o céu e os trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria era tanta que nem os sapatões das traves eram recolhidos. E quantas camisas ficavam para trás! Ai! E quantos puxões de orelha...
As crianças nem percebiam o tempo passar, os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava. Satisfazia, era prazeroso.
De repente, um novo pároco chegou. Por inúmeras vezes, as crianças o avistavam na porta da igreja, com as mãos em conchas protegendo a vista do sol, olhando de um lado, olhando de outro... Nem imaginavam as caraminholas que estavam sendo urdidas dentro daquela cabeça.
Não demorou muito e a notícia se espalhou. O padre decidira fazer uma igreja do tamanho da praça. De ponta a ponta!
Os meninos, de início, ficaram assustados, mas esqueceram. As peladas continuaram. Continuaram até que um dia, ao chegarem na praça, a escavação estava iniciada. Muitos pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas, ocupavam a área do campinho. Dois caminhões carregados de tijolos estavam alinhados na beirada do terreno.
Desapontados, os meninos foram se esgueirando pela velha igreja, calados. Caminhavam e olhavam, com tristeza, a terra vermelha sendo retirada das valas. O padre, na porta da igreja, nem percebeu a decepção das crianças.
Naquela tarde, tudo ficou estranho. Nem havia burburinho, silêncio cavernoso.  Não houve escolha de time, não houve onde colocar os sapatões, não houve medição... Tudo quieto.
Passados alguns dias, outro canto foi arranjado para as peladas. Ficava na baixada, um descampado de capim verde. Sem a menor graça.
E a igreja?! Durante quatro anos, com muitas festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam recursos para erguer a igreja do pároco megalômano.  E ainda bem que a capelinha foi mantida dentro do esqueleto suntuoso da construção. As paredes começaram a ser erguidas em toda a volta do quarteirão, descomunal, um colosso. Não havia material que bastasse para a construção, um despropósito.
Talvez pela visão fantasiosa, pela ambição exacerbada e majestosa do pároco, o bispado entendeu certa patologia naquele empreendimento. Então, o padre foi substituído. Na vila, como herança, restou o esqueleto vermelho, inacabado e inconcebível, da catedral que nunca foi.
Os meninos poderiam ter o campinho de volta. Não quiseram. O encanto, para eles, havia passado. Estavam crescidos.


Regina Ruth Rincon Caires






sábado, 20 de junho de 2020

O HOMEM SÓ

O homem só não liga por ser só.
Acostumou. Casa vazia, cama vazia, peito vazio.
Não por falta de tentativas ou de oportunidades.
Até teve. Marias e Tânias,
Beatrizes e Lucianes, Glórias e Janaínas.
Não se ajeitou com nenhuma.
Todas um chiclete: deliciosas no início,
sem graça no fim.
Foi cuspindo uma a uma.

O homem só sempre foi só. Menino só. Adolesceu e madurou só.
Não que não tivesse tido amigos. Até teve. Geraldinhos e Pingos,
Xandes e Inácios, Claudios e Marquinhos, Moreiras e Almeidas.
Não plantou amizade com nenhum deles.
Todos um porre: divertidos no início, enjoados no fim.
Foi vomitando um a um.

O homem só tem manias que só ele. Não dorme de luz apagada,
se enxuga com toalha molhada, esquece a televisão ligada,
não atende telefone por nada. Deixa o celular morrer de tocar.
Muitas vezes nem responde a ligação.
Pra quê? Para quem?
Só se fala ao homem só somente o indispensável.

O homem só se vira sempre só. Não tem nojo de pia, de cueca usada,
de pijama amarelado. Cata farelo do chão, passa pano nas coisas,
tira teia dos cantos. Lava roupa, lava louça, limpa ralo, janela
e panela. Espana a vida sozinho. Não vê do que se queixar.

O homem só tem dois horrores: gente e cebola. A faca que corta a
laranja não pode cortar cebola. Fica o gosto e o desgosto.
Lembra da mãe desatenta, da avó sem cuidados, do pai caladão.

O homem só trabalha só. Escreve por encomenda, redige por intuição.
Ao som de um piano ao longe, inventa um mundo de gente e gente de
todo mundo. Conversa com Joões, conta casos para Marias, discursa
para multidões, enche a cara com Gustavos, namora Desirées,
tem filhos com Rosanas. Vive instantes intensos rodeado de vidas
geradas por palavras e expressões. É amigo e ouvidor, conselheiro e
fiador, companheiro e porta-voz, inimigo e desafeto de infinitas criaturas.
Assim como as cria, mata todas numa teclada só.
Quando o tempo acaba, o saco enche, o piano cansa.

Aos primeiros acordes ao longe, ressuscita um a um com o elixir da imaginação.
Quando o abstrato se dissipa e a concretude emerge esfregando a verdade no
seu nariz, o homem só volta a ser só. Tão absolutamente só que não se dá conta
que não é tão somente só no mundo.

O homem só tem uma vizinha. Que também é só. Que não liga por ser só.
Acostumou. Casa vazia, cama vazia, peito vazio. Não por falta de tentativa.
Até quis Maurícios e Joaquins, Pablos e Melquiades, Reinaldos e Beneditos.
Mas as tintas do destino também a pintaram só. E só vive a fazer a vida longe
da rua, longe de gente, longe de tudo.
Tal e qual seu vizinho, o homem só.

A vizinha só não escreve. Toca piano. Pelas mãos que passeiam a bailar,
viaja porta afora. Conversa com Marias, conta casos para Joões,
encanta plateias distintas, toma chás com Enedinas, namora Adamastores,
tem filhos com Rafael, vive instantes intensos inebriada de vidas geradas
por notas musicais. É amiga e ouvidora, conselheira e faladeira,
companheira e porta-voz. Inimiga e desafeto de infinitas criaturas.
Quando a música chega ao fim, de duas uma: ou busca outra no ar, para encher
a vida de tantas vidas, ou fecha o piano.
É neste exato silêncio que a verdade grita.
E a vizinha só volta a ser só. Tão absolutamente só que não se dá conta
que não é tão somente só no mundo.

Quando pisca duas vezes a luz na varanda ao lado, iluminando a copa do oitizeiro
da calçada, as folhas sombreadas dizem que está na hora.
O homem só e a vizinha só, sós como são, a sós se dão.

Não se encontram, mas se encostam pela parede.
Mãos, ouvidos, corpos juntos, porém separados, separados, porém juntos.
Não se abrem os olhos, mas se vivem. Não se denominam, mas se desejam.
Não se exclamam, mas se beijam. Não se perguntam, mas se tocam.
Não se falam, mas se despem. Não se dizem, mas se apertam.
Não se pronunciam, mas se sugam. Não se anunciam, mas se invadem.
E se contraem, e se mexem. E se viram, e se desviram.
E se sobem, e se descem. E se ondulam, e se tremem.
Até que ela emite um aviso gutural crescente e ele responde com
uma respiração ofegante, libidinosa, satisfeita.
Chegam onde querem chegar quase que ao mesmo tempo.
Explosões silenciosas, jorros secretos, acelerações, desacelerações.
Altas e baixas de pressões. Restauram-se os dois, pós-gulosos que são.
Aceitam-se num carinho breve e infinito, saboreiam um torpor como uma
sobremesa dos deuses. Até que se afastam. Cada um pro seu canto,
cada um para o seu mundo.Sem uma palavra, sem um "durma bem, meu bem",
sem um sorriso só.

Bem, assim era como acontecia.
Mas como tudo que acontece na vida, desaconteceu.

Um dia, a luz ao lado parou de piscar duas vezes.
As sombras das folhas do oitizeiro emudeceram de vez.
Foi o sinal derradeiro. Ninguém mais se apareceu.

Sem o alento do piano ao longe, cansado de tanto não escrever,
tomado por uma inquietude curiosa, o homem só debruçou-se na
varanda contígua, pescoço de girafa à procura aflita de suas
razões e emoções de viver. Antes que despencasse no jardim,
caiu num pranto só.
Viu nada, nada, nada.
Só uma sala vazia, vazia, vazia.
Sem vida, sem vizinha, sem coisas, nem o piano.

Pela primeira vez, o homem só sentiu a falta de companhia.
E sucumbiu de sua verdadeira solidão.





sexta-feira, 19 de junho de 2020

Os desígnios da vida


Natércia falava entredentes, para não me aborrecer: “Isso é livramento… Deus tenha piedade… Maria, passa na frente!”. Claro, escutavam-se os bodejos de sua cisma por minha dita incúria com os afazeres domésticos; por não ser obediente; por não querer seguir ao Senhor.
O fato de ela ser beata e eu ateu não mexeu muito, por anos, nosso jeito de viver, talvez pelo bem-querer, por costume ou preguiça de mudar – ela no canto dela, e eu no meu; até o surgimento dessa maldição de vírus, que nos pôs cara a cara, [praticamente] todos os dias, durante três meses consecutivos. Pensava que daria merda; que a panela de pressão, à qual fomos forçosamente colocados, ia estourar, mais cedo ou mais tarde.
E houve um grande erro de estratégia de minha parte: desleixado, confesso, não me atinei para a crescente paixão por minha salvação – e, por conseguinte, sua salvação. Ou seja, Natércia mergulhou, progressiva e cegamente, nos dogmas da igreja por minha causa – por favor, não posso mais me penitenciar pela falta de filtro de Natércia; de um suposto dom natural (se é que existe) de saber se safar de roubadas.
Pelo que sei, pelo que a família dela contou, Natércia sempre foi um cordeirinho – aí, no sentido estrito da palavra, casta, pura, impenetrável em suas particularidades. Para se ter uma ideia, não foi possível saber, nesses vinte anos, qual é o seu principal dilema, se acata mansamente as minhas vontades e, quando está acabrunhada, ou desgostosa da vida, se debanda para a igreja – é o seu refúgio; entendo, todos nós temos refúgios.
Imagino que pouco ou nada mudei. No entanto, é verdade que, à medida que Natércia ia se enfurnando na igrejinha, passando praticamente mais tempo lá que cá, com a impertinente desculpa: “Sou voluntária, benzinho, serva de deus; preciso ajudar o padre Tony”; o desgosto foi aumentando em mim; as dúvidas; as incertezas quanto ao nosso futuro.
Padre Tony se intrometeu nessa história em meados de 2015. Era, depois de “Jesus” e “Maria”, a palavra mais relatada em minha casa. Cada conto, cada historieta, vinha carregada de Tonys. Peguei abuso do cara, dado o exagero. Não era ciúme, nem nada – ao contrário do que seu risinho oblíquo dava a entender. Eu não suportava a tal figura brasileira, descendente de índio, certamente, assim como eu, com nome americanizado. Não é verdade que padre ou freira pode mudar o nome quando entra na vida religiosa? Vi isso em algum lugar. Padre Tony, que depois descobri ser Antonielson, quem sabe tenha preferido o codinome para não ser desconsiderado pelos fiéis – não me conformo, não tem justificativa; usasse, então, Nielson, em homenagem ao pai ou avô; o que seja, menos ter nome de cantor brega da década de sessenta, setenta, imitação barata e pelego ianque.   
Um dia, cansado da conversa de Natércia e Maria, a vizinha, de onde só se ouvia padre Tony isso, padre Tony aquilo, empurrei a porta emperrada da cozinha, com tanta força – óbvio, involuntária –, que Maria se estabacou no chão. Levantei-a entre desculpas; sinceras desculpas. Perguntei, enquanto a mulher olhava assombrada para mim, coçando o cotovelo e choramingando, se não podiam mudar a estação do rádio e sintonizar em outra vibração, menos chata. As duas me olharam confusas, caras de desentendidas – “oi, é comigo?!” –, pelo que fui obrigado a ser ríspido e direto: “Parem de falar desse Tony! Ele é um deus, por acaso? Já não aguento mais!”. “Benzinho, não fale ‘esse’ Tony; é o nosso pastor, um homem de Deus”. Não me contive, mais uma vez, e bati à porta; pensei numa estratégia para vedar quaisquer brechas que porventura existissem entre a cozinha e a sala.
Nem lembro quanto “tá repreendido; Maria, passa na frente!” ouvi. Saí zonzo, enjoado da cara de Natércia, de recriminação, e pensando no engodo em que havia me metido, e como o caldo estava engrossando, rápido – decerto, ela também não suportava a minha insubordinação.
No período inicial de quarentena, Natércia organizava terços virtuais, pelo WhatsApp, inclusive puxados pelo dito cujo, para um séquito sequioso de mulheres lamuriosas, aflitas nos infinitos pedidos a um deus surdo. Não paravam de gritar e chorar, praticamente em transe. O sentido eu não sei, se, pelos meus estudos, deus é onisciente, onipresente.
Não podia mais conversar com Natércia, travar uma discussão crítica, que ela vinha com: “São os desígnios de Deus”; “Ninguém contesta a vontade de Deus”; “Ele quer assim, então será”, etc. e tal.
Já próximo aos cinquenta dias de isolamento, ela resolveu sair para além dos pontos habituais, farmácia e supermercado, e se aventurou a ir, de ônibus, antes que eu acordasse – portanto, saiu sem avisar, e de fininho –, para a residência do padre. Passou toda a manhã, trazendo o almoço num marmitex vagabundo; dizendo que teria ido ajudar o padre, que estava sem nenhum funcionário, todos doentes; ainda, garantiu que o padre, amparado pela graça, não estaria doente, de forma nenhuma.
O padre ligou insistentemente dois dias depois. Notei que Natércia se aperreava; preocupada mais que comigo. Vi, de soslaio, a sua cara de susto e, ao passo que tentava acalmá-lo, pegava o terço e o levava ao coração: “Você vai ficar bem, com os poderes de Deus! Isso não é nada; Deus já operou o milagre!”.
Saiu do canto como se nada tivesse acontecido. Porém, a denunciava a sua pálida cara. Perguntei qual era o mistério: “Não há mistério algum, benzinho! O padre está angustiado, porque está só…”. Fez que falaria mais, mas, abruptamente, desistiu. “Diga, diga! Não me esconda nada!”. Natércia começou a chorar. Ajoelhou-se, quase aos meus pés; e chorou por cinco minutos: falou que o padre poderia estar acometido de Covid-19. Não falou mais; evidentemente, intuí que poderia estar nessa tabocada.
Boboca, colocou-nos em patente risco, com a cegueira de uma toupeira e o cérebro de ervilha. Quantas vezes falei para não extrapolar; que o veneno para o incauto é forte – ou a morte. Veio na pior hora. Estávamos, sim, todos com Covid-19.
Agonizávamos, cada um no seu quarto. Eu, um pouco mais forte, ainda batia na sua porta três ou quatro vezes ao dia, enquanto ela, mesmo sem forças, continuava a rezar. Preparava o seu aerossol. Dava-lhe muita água, suco de laranja; remédios para febre e antigripal. Deixava, em sua porta, sopa – ou, estando mais disposta, chamava-a para almoçar. A minha vontade era de sacudi-la, para recobrar a vida. Devíamos resistir.
De mim, ninguém se lembrava; elucubrava o trágico abandono. Até que apareceu o meu sobrinho Artur, que, sendo médico, resolveu tomar a frente da situação. Vendo que a taxa de oxigenação de Natércia era baixíssima, mandou-a direto ao pronto-socorro e para a UTI. Lutamos dois dias por uma vaga. Enfim, quando conseguiu, restava pouco a fazer. Artur me pediu para ser forte; para me preparar para o pior.
Senti falta de Natércia. Algo que imaginava não ter mais, o coração, batia ao lembrar de seu rostinho angelical, que ainda guardava os traços da nossa linda juventude; a voz serena, o olhar tranquilo, as palavras poucas e certeiras. Seria amor, se é que posso chamar assim, maduro, de cuidado e de consideração. Afinal, Natércia sempre esteve ao meu lado, mesmo não concordando em tudo comigo.
Dessa feita, sem saber também que possuía glândula lacrimal, chorei por exatos dezessete dias, várias vezes, até Natércia voltar à sala de tratamento semi-intensivo, sob os cuidados de meu querido Artur.
Não possuindo qualquer sintoma ou resquício da doença, com a autorização de meu sobrinho, fui ao hospital, carregado de prudências. Natércia não podia falar; estava entubada, com vários fios espalhados pelo corpo. Ela simplesmente atendia pelo olhar, expressiva, como se quisesse me perguntar algo e eu não queria imaginar que fosse algo sobre Tony, aquele sujeito com nome de cantor de banda de pagode. Assim, conversamos longos minutos pelo olhar, suficientemente pelo olhar; e percebi que perguntava por mim, queria saber de mim, se estava bem.
Nossos tempos eram exiguíssimos; havia horários de visitação. Contudo, dado o desconforto da pandemia, só consegui ir duas vezes na semana crucial, intercalando os horários. E mais Natércia ganhava corpo, vida; dava para ver pela cor da pele, pelos olhos, sobretudo. Mais vinte dias e, felizmente, foi liberada, sob uma chuva de aplausos da equipe médica.
Fomos para casa. Tocamo-nos como não fazíamos há anos. Senti sua pele na minha, o toque transcendental que nos uniu, como naquele fim de tarde de 23 de março de 2000.
Natércia dava indícios de que, daqui para frente, seria só minha.





quarta-feira, 17 de junho de 2020

Trocar a lâmpada










Nesses dias em que não se pode sair, eu mexo ainda mais na minha casa, nos pequenos espaços, nos detalhes pouco visitados. Havia dias, já, que uma das lâmpadas da cozinha estava me incomodando, era uma velha lâmpada fluorescente, com seu pequeno e pesado reator, que estavam na casa há muitos anos, até antes de mim. E comigo ela permaneceu anos ainda, continuando no apartamento quando eu fui morar em outra cidade. Já queria trocá-la porque sua luz estava tênue, trêmula, fraca. Ao desmontar o sistema, retirar o reator e instalar a nova lâmpada, eletrônica, que precisa apenas de um simples conector, a luz ficou forte, decidida, decisiva. Rapidamente retirei de dentro do apartamento o que tinha ficado obsoleto e o ar da casa ficou leve, como se alguma coisa pesada, ultrapassada, fosse removida. Quanto mais minha casa está arrumada, consertada, modernizada, melhor eu compreendo o mundo e o mundo me compreende.



































terça-feira, 16 de junho de 2020

O que deu pra ser



Do que nós fomos, é disso que não me desgarro. Tanto. Pouco. A intensidade oscilante entre dois. A imperfeição consentida. Havia tudo isso. O que não havia era tempo, esse desfrute que se adianta em morte ou se eterniza em passado.
Uma menina feia. Encolhida num jeans errado. Perguntando alguma coisa. A boca pálida se expressando em reticências e monossílabos. Olhos de fossas oceânicas. Olhos de risco. Blindados pelas lentes escuras de um ray-ban falsificado. O resto era de verdade. E as pessoas de verdade nunca chegam com alarde. Vão se ajeitando devagar. Como os gatos, silenciosos, insinuantes. Os gatos que tanto nos determinam: se; quando; quanto. Plenos. Leves. Senhores da casa. Como a menina feia. 
Aconteceu quando foi hora. Sem nenhum depois sugerido pela insegurança das posses. Trepa comigo, ela disse. E eu inteiro respondi que sim. Apertando, chupando, mordendo. Apressado como os meninos de primeira levaUm estardalhaço de gemidos brigando com o barulho das buzinas lá embaixo. Ela me curando da urgência. Gozando em monossílabos fortes. 
Era uma coisa das tardes. Uns beijos curtos, roçados, descambando em trepadas sem roteiro. Tesão. Tão forte que às vezes explodia ainda no lençol. Depois, ela ia embora. Sem despedida. E eu ficava gritando Volta logo! Mas gritando por dentro.  Com medo de não acontecer. Acontecia. E éramos de novo nós dois naquela cama de Sodoma. Midat Sodom. A cama justa. Sem amputações nem estiramentos. Apenas nós, cabendo na medida exata. Salificados um pelo outro. Fornicação e conversas. Política. Casamento. Filhos. Aborto. Dinheiro. Trepadas. Quantas coisas se deitavam naquela cama estreita. Sem nos alertar que quando tudo se completa é que tudo se rompe. 

Uma dia ela veio. Mas não era mais ela. Eram palavras que eu não queria escutar. Câncer. Morte. Verdades descabidas para uma cama exata. Ela que não era mais ela. Deitada ao meu lado. Sem me tocar. Como se morte pegasse. Deitada. Vomitando a si mesma. Resgatando projetos antigos de uma igreja e de um homem de terno e de um vestido de noiva e de um véu bem comprido e de um buquê disputado por mulheres que procuram atalhos. E de uma casa perfeita, de um marido devotado, de filhos que seriam engenheiros, médicos, advogados, empreiteiros. Inteligentes. Ricos. Estudados. Educados. Educados até para cheirar pó. Sem fungar. Resgatando projetos antigos de ser puta. De usar batom vermelho, calcinha enfiada na bunda, salto alto. De chupar dois ou três paus por noite. Ou vários. De fazer uma espanhola na rua imunda até sentir o vento arrepiar o bico dos peitos. De arregaçar a bunda para todas as picas. De falar caralho!, porra!, mete com força! com a intensidade das mentiras. De fingir gritos e orgasmos — personagens da pantomima de foder. De comprar presentes para a família perfeita com o dinheiro das trepadas. Senhora. Puta. Felicidade dobrada. 

De tanto, só deu para ser câncer e morte. No meio do verão. Cedo demais.








terça-feira, 9 de junho de 2020

Mudar de Vida


Era o primeiro dia de liberdade após o confinamento obrigatório e Mariana apressou-se logo a aproveitá-lo. Durante o longo período de quarentena meditara muito a sério no modo como até então passava os seus dias e tomara algumas decisões importantes para o futuro. Assim que tudo acabasse, iria mudar de vida!
Fizera até uma lista com os pontos mais importantes a cumprir religiosamente:
1)        Dar um passeio todos os dias, curto ou longo não importava, quer estivesse ou não muito ocupada com o trabalho.
2)        Falar com vizinhos, pessoal das lojas, pessoas em paragens de autocarro ou cafés, enfim, ter pelo menos uma conversa por dia sem ser pelo telefone ou computador.
3)        Retomar os almoços de domingo com a família, recebendo à vez os filhos e respetivas famílias.
Era estranho a quarentena tê-la afetado tanto. Viúva, trabalhava em casa há anos e desde que os filhos tinham partido, primeiro para os estudos e depois para as suas próprias vidas, vivia bastante isolada. Inicialmente ainda saía bastante para contactar lojas em busca de clientes ou para entregar encomendas, mas desde que um dos filhos criara uma página de Internet com as peças de artesanato que criava e vendia, reduzira as saídas a uma ida semanal aos Correios do bairro, altura em que aproveitava para fazer algumas compras, poucas, já que recebia quase tudo em casa.
Ainda mesmo durante os poucos anos do casamento, e sobretudo desde que enviuvara, fora-se distanciando, sem mal se dar conta disso, das poucas amigas que tinha, reduzindo os contactos a uns telefonemas esporádicos ou, mais recentemente, a meras mensagens de telemóvel.
Também o contacto com os filhos se foi espaçando, casados e com filhos tinham vidas muito ocupadas e com o passar dos anos descobrira que pouco ou nada tinham em comum. E apesar de adorar os netos, estes ainda eram pequenos e o barulho e agitação que pareciam acompanhá-los sempre faziam-lhe uma certa confusão, habituada como estava ao silêncio e sossego do seu pequeno apartamento e da rua calma em que vivia.
Se lhe tivessem perguntado no início de tudo isto se iria ter problemas por ficar fechada em casa, diria imediatamente que não, sem a menor hesitação. Que diferença lhe faria cortar uma saída por semana? Nada lhe faltaria, habituada como estava a comprar pela Internet. E com a pausa inevitável nas vendas por não poder fazer entregas, teria finalmente tempo para planear novas peças e dedicar-se a experimentar um novo tipo de artesanato que tinha há muito em mente. E podia também ir adiantando serviço, aumentando o stock das suas peças mais populares para não ficar assoberbada quando tudo recomeçasse. Sem falar em pôr finalmente o sono em dia, desde que as suas peças se tinham tornado mais conhecidas sofria de um deficit permanente, o dia nunca tinha horas suficientes para tudo e eram sempre as horas de descanso que sofriam.
Mas a realidade fora bem diferente. Talvez porque sempre fora um pouco do contra, saber que não podia sair causava-lhe ansiedade profunda. A casa, que sempre lhe parecera acolhedora, um verdadeiro ninho onde adorava passar o máximo de tempo possível, surgiu-lhe de repente como uma prisão, uma caixa claustrofóbica onde se sentia sufocar. A televisão, que suspirava por nunca ter tempo de ver nada, tornara-se entediante e uma perda de tempo. O monte de livros que aguardavam há anos que tivesse um tempinho para os ler continuavam quase tão intactos como dantes, folheara apenas alguns, logo desistindo por falta de interesse. E os projetos novos? Nada fizera, nem novas técnicas, nem reforço do stock.
Passara simplesmente os dias a andar de um lado para o outro, sem ter sossego onde quer que se sentasse, irrequieta como nunca o fora, nem em miúda, sem se conseguir concentrar em nada. Nem o sono pusera em dia, agora que podia dormir à vontade sofria, pela primeira vez, na vida de graves insónias que a faziam passar a noite a revirar-se na cama sem arranjar uma posição cómoda.
Mas agora que já se podia sair, embora com restrições, ia ser tudo bem diferente. Sim, iria pôr em prática a sua lista e começaria logo hoje, o primeiro dia de liberdade.
Ainda não eram 8 horas e já estava na rua, a caminho de uma pastelaria por onde passava frequentemente sem nunca entrar e onde decidira tomar o pequeno-almoço. Mal se viu finalmente fora do prédio, respirou fundo e começou a andar a passos largos, apesar de não ser longe. Os primeiros minutos foram tudo o que sonhara. Mas depois o som dos carros em hora de ponta, as buzinadelas, o bulício das ruas, o ter de se desviar vezes sem conta de outros peões de ar apressado, a caminho sabe-se lá de onde, recordaram-lhe as razões de não gostar muito de sair. E foi com alívio que entrou finalmente na pastelaria, infelizmente a abarrotar e com um nível de ruído que excedia certamente os limites legais.
Uma vez sentada, o que acarretou uma longa espera por entre empurrões e cotoveladas, tentou pôr em prática o segundo ponto da lista metendo conversa com o empregado que a serviu. Mas o movimento era muito e as suas tentativas caíram literalmente em ouvidos moucos. Teve até de devolver a torrada que pedira com manteiga e que veio seca.
Olhou à volta para ver se teria mais sorte com as mesas vizinhas, mas não viu ninguém que parecesse ter disponibilidade para dar dois dedos de conversa, estavam todos concentrados nos respetivos telemóveis, mesmo os que estavam claramente acompanhados. Para não ser a única a olhar para o ar, tirou o seu da carteira e fingiu que o consultava enquanto comia.
No trajeto de regresso a casa, tendo desistido de um passeio mais longo por ter ficado com uma tremenda dor de cabeça e uma certa azia imediata devido ao galão quase frio que tomara, esforçou-se apesar de tudo por observar o que a rodeava na esperança de passar uns momentos de convívio e averbar o segundo elemento da sua lista. Mas só via pessoas azafamadas, de rostos fechados e olhos no chão ou a falarem ao inevitável telemóvel. Ao entrar no seu prédio, teve a sorte de encontrar a vizinha do andar de baixo, que chegava ao mesmo tempo carregada de compras. Mas meia dúzia de palavras bastaram para lhe recordar que nunca se tinham dado bem e que sempre a achara uma idiota convencida.
E foi com um suspiro de satisfação que entrou em casa, na sua bela, confortável e acolhedora casa, jurando não voltar a repetir tão triste experiência.
O terceiro ponto da lista foi o que mais durou. Cada um dos quatro filhos teve direito a dois almoços dominicais, preparados a rigor como no tempo em que o marido ainda vivia e insistia num convívio dominical de acordo com as tradições da sua família. Gostou de os ver, claro, aos netos sobretudo, apesar de nada ter para lhes dizer nem eles a ela. Mas quando chegou o momento da terceira ronda arranjou a desculpa de uma gripe oportuna para interromper a nova rotina. E passadas umas semanas sem que a “gripe” passasse, foi um dado adquirido para todos que se voltariam a ver como dantes, esporadicamente e por pouco tempo.
E a vida voltou ao normal!

Luísa Lopes