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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Catarse

Tasso não sabia cozinhar. Carla não andava de bicicleta. Ulisses era maltratado pela informática. Mônica não cantava nem no banheiro. Já Catarina não sabia era cagar, coitada. Via-se obrigada a manobras radicais durante a prática do número dois. Ah, a solidão dolorosa, a desgraça aguda de uma mulher prostrada em seu trono — qual náufraga ilhada há meses no coração do mar...

Chegava para se sentar no vaso cheia de esperança, mas logo se desiludia com o fracasso. Não era de muito drama, mas durante cada esforço defecatório sempre se queixava da vida. Às vezes fazia troça de si mesma: como uma profissional bem-sucedida, influente e respeitada era incapaz de executar uma tarefa tão básica e primordial como fazer caquinha?

Quando nasceu, sabia obrar com perfeição. Era um bebê normalzinho, coliquento, que enchia fraldas e chorava de bunda suja, reclamando a atenção da mãe, como qualquer outro neném. Foi desaprendendo com o tempo, por conta dum ressecamento cada vez mais crônico. A partir da adolescência, a preguiça do intestino se instalou com poder. Principalmente quando a garota passava um tempo fora de casa. Ensino médio, faculdade, mestrado, doutorado, empregos, viagens, namoro, noivado, casamento... Tudinho enfrentado com constipação. As gravidezes e os nascimentos dos filhos — por partos normais — agravaram o problema.

A princípio, ela procurou a ajuda de clínicos gerais e gastroenterologistas. Falou com a obstetra também. Colecionou dicas e receitas de purgantes e reguladores intestinais, comprados em farmácias alopáticas e homeopáticas, nas raizeiras da esquina ou arrancados da horta da vó. Experimentou azeite, ameixa, sene, pitanga, almeida prado, lactulona, naturetti, lactopurga, muvinlax e outros de sufixo lax, óleo mineral, metamucil, tamarine, supositórios de glicerina... (Na época ainda não se podia recorrer ao tal ministro laxante.) Experimentou até um remédio de nome esquisito, caríssimo, que, segundo o médico, iria dar "inteligência" para o intestino, iria ensiná-lo a funcionar legal. Papo reto? Não resolveu.

Catarina fez inclusive umas sessões de fisioterapia para reabilitação da musculatura do assoalho pélvico (um tratamento para tentar recuperar a ordem funcional proctológica — como se fossem umas aulinhas práticas de autoescola para o mau cagador aprender a dirigir os movimentos dos próprios fundos até chegar ao êxtase da expurgação). Mas a fisioterapia também não deu jeito. Outra experiência sem sucesso foi deitar-se no divã e abrir seu coração para o psicoterapeuta. Nem a cuca sarada ajudou a corrigir o funcionamento do traseiro.

É que o problema era fisiológico! Comprovou-se um autêntico defeito nos países baixos de Catarina. O diagnóstico só foi dado depois de muita labuta, quando ela enfim se consultou com um proctologista renomado da cidade. O doutor submeteu o fiofó da nossa heroína a vários exames e descobriu, afinal, o que causava o enguiço da paciente. Ela passou até pela abominável defecografia (um raio X da ação de cagar, exame deprimente, oferecido por hospital de rede pública: primeiro enfiam uma massa branca no ânus da sujeita e depois ela tem de se sentar numa cabine e apresentar ao seleto público de médicos e radiologistas como se comporta antes, durante e após seu belo espetáculo de catarse fecal).

O resultado da defecografia confirmou que Catarina precisava de uma correção cirúrgica de retocele. O tecido entre a parede posterior da vagina e a parede anterior de seu reto era frouxo, o que dificultava a passagem das fezes. As bostas ficavam lá, retidas naquela bolsa, teimando em não sair. Por isso, a coitada sofria com a defecação incompleta, força excessiva e manobras inacreditáveis para ejetar as preciosas pedras no vaso. A falta de disciplina e controle lhe causava constrangimento, desconforto, mal-estar, dor, fraqueza e uma coleção de hemorroidas.

Mas a história de Catarina não continuou essa bosta cocozenta pra sempre. Teve uma reviravolta de sucesso há alguns meses. O especialista entrou no palco do teatro da vida dela para salvá-la de sua proctodisfunção. Merda! Deu um show. Acertou em cheio na performance! A paciente enfrentou a cirurgia, teve o fiofó remendado e grampeado (procedimento bem chatinho, pós-operatório doloroso) e, enfim, reaprendeu a cagar como dantes. Aleluia.

Agora, antes de sair de casa para exercer a profissão, Catarina toma café da manhã, senta-se no vaso, faz seu serviço com eficiência, toma banho e se emperiquita toda, plena em suas faculdades vitais, como a maior parte dos cidadãos. Qualidade de vida adubada!

Pois bem. Tasso ainda não se garante na cozinha. Mônica não canta nada. Mas Catarina reaprendeu a evacuar e está feliz com seu hábil fiofó.

Ah, esta é uma obra de ficção e não deve entrar para os Anais da História. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência. 

Maria Amélia Elói





segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Doze Passas do Ano Velho


(12 Passas do Ano Velho. Calibre micro: até 300 caracteres)



Terminal
Naquele tempo, eu trabalhava no terminal de contentores do porto de Lisboa. Certo dia, fui incumbido de verificar um, chegado da Líbia com tâmaras, que vertia líquidos. Trinta e dois corpos, alguns já em decomposição, amontoavam-se no pouco espaço livre. Sete eram de mulheres, dois de crianças.
*


Sensível
Bruno colocou o automóvel no túnel da lavagem automática e afastou-se, para evitar olhares incómodos. Assim que as escovas mecânicas começaram a esfregar a superfície do carro, começou um diabólico festival de buzinas, faróis e solavancos.
Ninguém acreditava, mas eram cócegas.
*

Mistério
Ouvi uma lenda sobre o meu prédio assim que me mudei para cá: haveria uma costureira fantasma, que cosia roupa à máquina. Na verdade, dias depois, ouvi o tic-tic-tic fantasmático, mas pareceu-me o ruído normal de um contador de água. Para o confirmar, bati a todas as portas. O prédio estava vazio.
*


Gestão
Quem deu a novidade foi o encarregado da chave da latrina: a partir daquele dia, todos os operários teriam de trazer as necessidades feitas de casa, ou trabalhariam mais uma hora por cada dez minutos de retrete. A revolta entrou nos peitos tão furtiva como a nova fragrância do ar.
*

Encontro à 1 e 5
Apático, observo o relógio da sala silenciosa. O elegante ponteiro dos minutos apressa-se, impaciente. O das horas — sereno, anca larga, de uma sensualidade manifesta —, parece esperá-lo. Ouço uma badalada quando se avistam. Dali a cinco minutos roçam-se um no outro, sem pudor. Desvio o olhar.
*


Casal
Na casa da aldeia havia uma máquina de escrever antiga, com uma fita de duas cores. Quis experimentar a velharia e tentei um microconto. As letras metálicas batiam na união das cores. No papel, consegui ler uma história na metade preta de cima, e outra na metade vermelha de baixo. Complementares.
*

Corpos celestes
Sabendo da magia especial dessa noite, Eduardo prometeu à namorada uma surpresa. Conduziu-a de olhos vendados e revelou-lhe a lua cheia, imponente no seu zénite. «É tua, meu amor; dou-ta!» Ela, maravilhada e enamorada, mostrou-lhe a via láctea, sem nada dizer. A paixão explodiu, cósmica.
*


“Alma cibernética”
O primeiro processador compunha frases simples, a partir de longas listas de substantivos, adjetivos, verbos e complementos. Os seguintes geravam conjugações mais complexas. Por fim, o inventor publicou um livro de poemas.
A crítica elogiou-lhe as sonoridades e a profundidade de algumas reflexões.
*

Caridade
Na sua placidez de árvore de jardim, Acácia apreciava a azáfama dos animais, desde os lúbricos insetos aos inexplicáveis humanos. Naquela manhã, enrugou-se com o aspeto famélico de um cão que por ali farejava. Largou uma vagem, mas ele ignorou-a. Não conseguiu conter duas gotas de orvalho.
*


Inspiração
A diva iniciou a sedução do público com um “adagio” terno e enamorado, entusiasmou-o com um “allegro” vivo e jubiloso, e arrebatou-o num “presto” sôfrego e frenético. «Interpretação vívida, memorável.» Só a cantora sabia que se tinha inspirado nos andamentos do seu último desatino orgástico.
*

Injustiça
O número das botas seria um 32, e tinham sido feitas à mão — cabedal de lado, borracha de pneu por baixo. Para um miúdo da segunda classe, era um veículo todo-o-terreno. No intervalo foi patinhar nas poças da chuva. A professora sublinhou a proeza com 12 reguadas. Doeu-lhe mais a injustiça.
*


Santos anónimos
Todos elogiam a magnificência da catedral: as torres que furam os céus, os arcobotantes, as arquivoltas esculpidas do portal. Todos sentem enlevos celestiais ao contemplar a serenidade etérea da Virgem pintada no retábulo. Nem um só evoca os operários que operaram tais milagres.
*
Joaquim Bispo

Imagem: Giuseppe Arcimboldo, Cabeça Reversível com Cesto de Fruta, c. 1590.

* * *





domingo, 24 de dezembro de 2017

TROVA PREMIADA - Edweine Loureiro

Desejo a todos os amigos da Revista Samizdat um Feliz Natal e um 2018 repleto de paz e alegrias.
Edweine Loureiro






quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

BACALHAU QUE NUNCA CHEGA.

Me chamavam de Ruth ou tia Ruth ou vó Ruth ou Dona Ruth. Minha filha Maria Eulália não
me chama de mãe, nunca chamou. Ruth, Ruth, Ruth. Meu neto Marcelinho me chamava de vovó, mas quando morou aqui em casa me chamava só de velha. Velha, sua velha. Eu nunca liguei.
A velhice tem dessas coisas: você escolhe se é carinho ou não é. Eu achava que era. Minha filha
diz que não. Diz que Marcelinho não tinha mais jeito, se perdeu com as más companhias.
Eu não acredito. No fundo, no fundo, ele é um bom menino, filho de uma mãe, essa sim,
desmiolada.

Todo Natal Maria Eulália me aparece com um marido diferente. Já perdi as contas dos Natais
em que ela vem sem meu neto, chega de mãos dadas com um sujeito cara de fuinha,
equilibrando uma bandeja de rabanada, dizendo que o filho vem depois. Mas Marcelinho
nunca chega. Já faz mais de cinco maridos da mãe que ele não vem ver a velha. Mas esse ano
ele vem. Com a mãe desmiolada e seu valete da vez.

Meu neto sempre gostou de bacalhau. Na cadeirinha de bebê, lambia os beiços, sujava as
mãozinhas e eu sempre cuidava de tirar o caroço da azeitona. Tenho pânico de engasgo de
criança. Mas graças ao Jesus Menino, nunca aconteceu. Nem com azeitona nem com espinha
do bacalhau. Sempre foi do bom. Nunca economizei. Sem espinha, autêntico norueguês do
Lidador. Aprendi a receita com minha bisavó lisboeta, que chamava o prato de Bacalhau
Que Nunca Chega e dizia que um rei de Portugal não parava de comer a iguaria, amolando os
cozinheiros num ritual sem fim.

Parece que estou ouvindo minha bisavó. Primeiro, você desfia bem desfiadinho o bacalhau.
Depois, numa panela aberta, frita a cebola e o alho até dourar. É hora de jogar presunto picadinho. Quando tudo a saltitar, você dispõe o bacalhau, as azeitonas, batata frita fininha e um ovo.
Abaixa o fogo, e vai mexendo, mexendo, mexendo. E não esquece de respingar, comedidamente, azeite português para servir pelando. Quando estiver acabando na terrina, comece tudo de novo.

Pronto. A mesa está pronta. Quatro pratos. Já foi tempo em que o Natal aqui em casa tinha doze pratos. Eu disse: doze pratos. Eles foram quebrando um a um e eu resolvi tirar as cadeiras da mesa conforme os pratos iam rareando.Cadeira para quê? Aqui só senta memória. E memória não tem bunda, fica vagando pelo ar, entrando pelas rugas, encharcando os olhos. Velhice tem dessas coisas. Você escolhe se chora de tristeza ou alegria pelo que viveu. Eu acho que é alegria. Minha filha diz que não. Diz que é arteriosclerose misturada com amargura de ver o tempo
passar. Diz que eu estou mofada, não sei mexer no celular. Filha desmiolada. Cada Natal,
um marido diferente. Cada Natal, dizendo que Marcelinho vai chegar. Cada Natal, inventando
coisas desagradáveis a meu respeito na frente de uma criatura que nunca vi mais gorda.

Quatro pratos, quatro cadeiras. Ah, chegaram. Minha filha, rabanadas e um tal de Gilson.
Gilson? Não era o do ano passado, Maria Eulália? Não, Ruth, o do ano passado era Gildo,
Gil-dô, aquele cafajeste. Minha filha, você não é nada original. Cadê o Marcelinho? Gilson
trouxe um vinho, Ruth. Mudou de assunto por quê? Cadê o Marcelinho? Gilson é um homem
de sensibilidade, Ruth, canta num quiosque da praia. Foi lá que o conheci. Não quero saber
de suas intimidades, minha filha, não quero saber que esse Gildo é cantor, - Gilson, Ruth,
fala baixo, Ruth.... Não quero saber que o vinho ele trouxe para me chaleirar. Quero saber
do Marcelinho.

Quatro pratos, três à mesa, um silêncio que espeta como agulha de tricô. Só os talheres tilintando
e ao longe algumas risadas na vizinhança. A conversa nem engrenou e a travessa está vazia.
O tal do Gilson raspa o prato, ensaia um elogio vulgar, pega o chaveiro e começa a bater as
chaves na palma da mão. “Tóf, tóf, tóf, tóf, tóf, tóf...é noite de Natal, tóf, chegou Papai Noel, 
tóf, estrelinhas a bilhar, blim blom, os sinos a badalar, blim blom, tóf, tóf... ” Mais um idiota
que minha filha me traz de presente. Dessa vez com voz de cana rachada. Isso sim me dá
vontade de chorar. Dizem que é melancolia. Disfarço, recolho os pratos e vou à cozinha recomeçar
o preparo do bacalhau para o Marcelinho. Vai que dessa vez ele chega.

Olho na pia poucas louças empilhadas, poucos talheres sujos, uma panela com resto do bacalhau grudado e no aparador uma bandeja de rabanadas. Parecem sola de sapato. Vindo da sala, ouço
tóf, tóf, tóf. Maria Eulália também resolve cantar.“É noite de Natal... chegou Papai Noel, tóf, tóf...”. Aí dói no peito. Saudade do tempo em que meu neto mexia na minha bolsa e sumia com
as minhas joias.

Já passa de meia noite. Tóf, tóf, tóf. Mas Marcelinho vai chegar. Vou começar a desfiar uma
outra posta de bacalhau bem desfiadinha, tirar caroço das azeitonas. Natal tem dessas coisas.
Você escolhe no que quer acreditar. Enxugo a lágrima com a ponta do avental e
fico feliz de novo.





domingo, 17 de dezembro de 2017

A baía de Edo











A baía de Edo:
o olho do peixe 
é maior.






 
Edo é o antigo nome da capital do Japão, Tóquio.







sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Acaba comigo

Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor... Tem, sim, senhor...  

Amanheceu com o bordão ecoando no cérebro. Não bastassem os anos da sua vida comidos pelo circo, ainda, de um tempo para cá, tinha dado para sonhar com as pessoas da trupe. No começo, fora tudo engraçado. Nada parecia ser o que era. Um mágico que tirava pessoas da cartola; um equilibrista que caminhava pé ante pé por um fio grudado no chão; um palhaço que usava terno e gravata, e bebia champanha no picadeiro.  Acordava ainda rindo, torcendo para que o sonho voltasse na noite seguinte. Voltou. Noite após noite, mês após mês, até ele quase enlouquecer.
De início, não ligou para o refrão. Que o que fica dos sonhos é mais a forma do que os sons; mais as cores do que os cheiros. Mas um dia percebeu que, de igual, os sonhos só tinham aquele estribilho batido e velho. Hoje tem marmelada? Tem, sim, senhor! Para sua maior irritação, nunca sonhava com o bordão completo. Uma frase hoje, outra amanhã. E voltava à primeira... Hoje tem espetáculo?... 
Demorou para notar que algo mais o incomodava. Descartou o refrão pobre, pensou nas pessoas que apareciam nos seus sonhos, imaginou significados ocultos, teve medos de souar a camisa, dores de cabeça inesperadas, palpitações. Por fim, deu-se conta: estava obsessivo. Logo ele, que já rira de tanta gente com suas manias de só pisar em ladrilhos inteiros, de perfilar objetos sobre a cômoda, de pendurar terços brancos no pescoço — e só serviam brancos — de contar e recontar as luzes no picadeiro, de usar a mesma cadeira para a maquilagem, de pintar as unhas deixando o dedo mínimo para o final. Logo ele, vivia agora com os dois versos caquéticos que aprendera em criança na boca, como uma espécie de mantra doentio... Hoje tem espet... Porra! O que tem hoje é trabalho! Para ele, sempre muito. 
Um circo de porte pequeno é uma família em crescimento — enfatizava Mestre Ambrósio, dono da trupe. — É preciso cuidar de tudo com carinho, com atenção, com tenacidade. Como se fosse a sua própria família, Geraldo Magela. 
A mesma ladainha, ano após ano. 
Mestre Ambrósio tinha sido palhaço em seus melhores anos. E dos bons. Desses que trabalham em companhias internacionais e dão entrevista nas cidades por onde passam.  Orgulhava-se de poder dizer que, ao contrário dos colegas de profissão, tinha conseguido economizar, para nunca mais ser empregado de ninguém. Quando a idade começou a pesar e outros mais jovens ganharam a preferência do público, ele se aposentou antes que o despedissem. Com o dinheiro das economias, abriu o seu próprio circo, pequeno, sem muitas atrações, mas organizado e promissor. 
Desde quando um palhaço vira dono de circo, hein?, exibia-se para os amigos. Pois este aqui virou!, dizia, batendo no peito magro.
Quem via de longe a figura ereta e magra de Mestre Ambrósio, cabelos pretos e finos que o vento sempre levantava, jurava, a princípio, tratar-se de um homem ainda jovem, talvez apenas maduro. Era bem de perto, na certeza das rugas vincadas como estradas de barro seco, que se contavam os anos. Muitos deles. Tantos que nem a pasta preta usada nos cabelos, dia sim, dia não, conseguia disfarçar ou amenizar. Mestre Ambrósio era realmente velho. Mas que todos guardassem para si essa opinião, não pedida nem admitida por ele. Só não se achava na flor da idade porque uma antiga amante, esperta, o havia convencido de que se dizer um homem maduro ou um homem vivido era mais charmoso e confiável do que se declarar um rapazola sem eira nem beira, sem juízo, sem lastro, sem recursos. Foi a partir daí que ele passou a proclamar-se vivido, maduro.  
Outra coisa interessante sobre ele era a necessidade que sentia de fazer uso de palavras difíceis. Palavras como tenacidade eram, portanto, um jeito de impressionar o interlocutor e fazê-lo pensar duas, três, várias vezes antes de dar uma resposta que não fosse à altura; ou de fazê-lo calar-se logo. Havia, ainda, muitas outras palavras que o velho gostava de ouvir soar nos próprios ouvidos, como soberbo, impávido — que vez ou outra substituía por intrépido —, deleite, estrepitoso, inusitado, vicissitude, peremptório. Guardava o voluptuosa para as mulheres, a quem chamava de damas ou senhoras, fossem ou não. E dirigia-se às que o interessavam usando um minha princesa ou um minha rainha, dependendo da idade de cada uma. 
A realidade é que ele, Geraldo Magela, ouvia essa história de “como se fosse a sua própria família” havia anos. Seguida de pequenos sermões repletos de palavras empoladas. Tudo sempre acompanhado do seu nome completo. Nada de Geraldinho, Gera ou Gê, como diziam os outros. Geraldo Magela era pronunciado quase como o nome do santo. Nunca havia entendido por que a mãe e o pai tinham lhe dado ess nome. Um santo que fora sacristão, jardineiro, porteiro, enfermeiro e alfaiate. Em resumo, pobre. Ora, que ideia! Adolescente, tinha feito pesquisas sobre alguns santos nobres, ricos. E imaginou-se sendo rebatizado como Ivo, Nolasco, Inácio. Nomes com melhor sina para atrair dinheiro. Enfim, coincidência ou não, tivera uma vida tão difícil quanto o dono original do nome.
Ali, no circo, era o faz-tudo. Lavava, limpava, maquilava os mais velhos, cujas mãos trêmulas e cujos olhos de catarata lhes roubavam a autossuficiência. Coordenava o pessoal da montagem e desmontagem da tenda principal, orientava os trailers na hora de formar um pequeno acampamento e, de quebra, era também o bilheteiro. 
Cansado de tanto trabalho, dirigira-se a Mestre Ambrósio para pedir uma redução nas suas funções. Afinal, além de ser o homem da força bruta no carregamento de peso e na limpeza dos banheiros, e de ser também o homem de mãos firmes para arrumar cabelos, perucas e chapéus, ainda tinha que atuar naquela função tediosa de bilheteiro. Recebido com tapinhas nas costas pelo patrão, ouviu dele uma explicação que satisfez a sua pouca vaidade. Por isso, dias depois, quando percebeu que havia sido apenas engabelado, deu de ombros. É que, para impedi-lo de deixar a bilheteria, o patrão apresentara argumentos que o dobraram: 

A quem mais posso confiar o meu dinheiro, sem medo de ser roubado, Geraldo Magela? Quem mais aqui, nesta companhia, é incapaz do furto, da burla, do ludíbrio?

Já amaciado pela metade, ouviu em seguida a outra metade do elogio: 

E quem mais tem uma esposa tão linda, educada, talentosa e valente como a sua, Geraldo Magela? Quem mais dorme ao lado de uma deusa e acorda relaxado e feliz todos os dias?

Era verdade. Aos 50 anos de idade, apaixonara-se por Rafaella, a estonteante atiradora de facas de apenas 19 anos que começava no circo na profissão herdada do pai. Quase cego, alcoólatra, cansado, Vladimir, o Rei das Facas, comunicou a Mestre Ambrósio que encerrava carreira. Antes que o desespero sequer chegasse à boca do patrão, anunciou-lhe também a solução: Rafaella, a filha que estudava na capital, assumiria o seu lugar no picadeiro. De início, houve apreensão por parte de todos, em especial do rapazinho que servia de alvo na arena. Mas assim que fizeram o primeiro treino, todos perceberam que aquela moça, além de bonita, dominava o ofício. A paixão começara nesse dia, ao vê-la tão segura e selvagem atirando aquelas facas. No entanto, nunca deu um passo em direção a ela. Acostumado a pensar em si mesmo como um homem insignificante, baixava os olhos sempre que a via. Foi ela quem, numa noite de trovões e falta de luz, aconchegou-se a ele, com medo da tempestade. E se fartaram de sexo na cama estreita do trailer. Gritos abafados pelas trovoadas; rostos mal iluminados pela luz ocasional de um ou outro relâmpago. E ela repetindo, sem parar: Acaba comigo! Acaba comigo! 
Aprendeu muito com Rafaella. Naquela noite e em outras que vieram em sequência. E nunca lhe ocorreu perguntar de onde vinham tanta experiência e tanta sede por sexo. Ele não ligava.
Passou a fechar a bilheteria com pressa, para correr ao picadeiro na hora em que ela se apresentava. Não lhe importavam as facas brilhantes, o rapazinho que servia de alvo, os aplausos e assovios intensos. Ele ficava ali, durante todo o número, vendo-a se movimentar na arena. Olhando para aquela bunda empinada dentro do maiô branco e apertado, contrastando com as pernas morenas, longas e lisas. As botas de salto muito alto, as mesmas que ela usava para pisar no peito dele durante a madrugada; os lábios vermelhos; o cabelo imenso solto sobre os ombros, e que ela girava no ar antes de cada faca ser atirada. Tudo o excitava. E era para tudo isso que ele corria. Embaixo das arquibancadas, no escuro, segurava com uma das mãos o membro teimoso que se agitava só em vê-la. Com a outra, afastava a cortina de entrada, para poder continuar olhando fixamente para Rafaella. E se imaginava rolando com ela bem ali, no picadeiro.
Foi ela quem o pediu em casamento. E ele achou graça na iniciativa. Dois meses depois, no cartório de uma cidade pequena, casaram-se. Em seguida, uma festa no circo, com os artistas, o pai dela e duas amigas que vieram da capital só para o casamento. Da mãe, ninguém sabia. 
Rapariga — disseram —Abandonou Vladimir com a menina e caiu no mundo com o amante fazendeiro. 
Alguns achavam que Rafaella era filha do amante, mas nunca tiveram certeza. E Vladimir cuidou dela, dando-lhe sempre do melhor. 
Geraldo Magela não queria saber daquelas histórias. Só pensava em estar com ela o tempo todo, filha de quem fosse. Amanheciam no sexo nervoso e intenso na cama estreita, e, ao longo do dia, ela o procurava para convidá-lo a voltar ao trailer. Rafaella era o espetáculo. E a ele só importava o espetáculo.
Agora, depois de tantos anos, tinha o mesmo tesão pela mulher. Mas, aos 62 anos, já não lhe era possível ter tantas ereções, antes tão fáceis. No entanto, Rafaella vinha se mostrando compreensiva em relação a isso. Nem reclamação, nem raiva, nem desprezo. Ao contrário, sempre que ele se desesperava em tentativas inúteis, ela o consolava dizendo que cada um é como é. Inconformado, ele procurou um médico na capital. A decepção foi imensa. Alimentara a certeza de que voltaria de lá com as pílulas azuis na mão, pronto para ser de novo o amante que sempre fora. Mas o coração, que já nascera com problema, não permitiu. Se tomar, morre, disse-lhe sem rodeios o especialista. Mais uma vez, Rafaella ficou ao lado dele. Tranquila, alegre, compreensiva, relaxada.

Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor... 

Não, de novo, não! Que sonho idiota! Desse jeito ia acabar maluco. Já nem sabia mais se estava dormindo ou acordado. Apertou os olhos com força, se recusando a abri-los. Estava decidido a não sair da cama antes de sonhar com o refrão inteiro. Quem sabe assim fosse capaz de se ver livre daqueles versos irritantes. Permaneceu quieto, mas não adiantou. Lentamente, foi ouvindo os sons externos se tornando mais altos que o próprio pensamento. Aborrecido, sentou-se na beira da cama e pensou que deveria procurar um outro tipo de médico. Um que arrancasse da sua cabeça aqueles sonhos doidos.
Ouviu, sem querer, a vozinha fraca da criança que passava ao lado do trailer:

Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor! 
Hoje tem marmelada? Tem, sim, senhor!

Não foi logo que a boca amargou. Eufórico com a coincidência, começou a repetir o refrão sem parar. Até que o verso final, do qual não se lembrava, gritou em seus ouvidos:


E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher!

Naquela noite, alegando febre alta, não foi para a bilheteria. Devagar, caminhou até o trailer elegante do velho Mestre Ambrósio, rezando para não ser o que parecia, pensando em si mesmo como um monstro, como um homem indigno, de pensamentos abjetos. Mas, enquanto caminhava, voltavam-lhe nitidamente à memória as palavras que o consumiam: 

Quem mais dorme ao lado de uma deusa e acorda relaxado e feliz todos os dias?

Ele não estava relaxado. Nem era mais feliz todos os dias. Era Geraldo Magela, o faz-tudo. 
Quis correr, dar meia-volta, evitar a qualquer custo a certeza. Então, escutou os gritos que escapavam de dentro do trailer imenso: 

Acaba comigo! Acaba comigo!