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segunda-feira, 26 de junho de 2017

Como lidar com os terrorismos?

Seguro, seguro, ninguém está. Livre das balas perdidas, imune à dengue ou ao colesterol alto, incólume ao preconceito, a salvo de traições, vacinado contra “Eu quero tchu, eu quero tchá”, isento de impostos, resistente ao estresse, vedado contra suborno, dispensado do voto, falto de risco iminente, fora do alvo da morte, personne.
Desconheço tecnologias 100% eficientes de blindagem contra o mal. Para escapar de possíveis acidentes e de crimes cada vez mais deliberados, prefiro a oração fervorosa – gratuita e menos invasiva que a maior parte dos equipamentos de segurança pessoal. Meu búnquer é uma capela doméstica, adornada com meus santos de devoção. Mas minha fé não vem ao caso agora. Cada um se defende como pode.
Enquanto a violência procria em qualquer habitat, cresce o número de cidadãos apavorados que se cativam nas próprias residências. Na tentativa de se proteger, reforçam portas e janelas, blindam vidros e constroem aposentos secretos – casamatas a serem usadas como refúgio da família em caso de assalto ou sequestro. Uma reportagem da Veja de seis anos atrás contava que, naquela época, já havia mais de cem búnqueres em residências brasileiras. (Perdoem-me os puristas; mas, aportuguesada, a palavrinha ficou esquisita, hein? Então, como já esnobei o plural de hambúrguer, ou melhor, de búnquer, vou mudar a grafia do termo daqui em diante.) A matéria jornalística se referia a bunkers de verdade, edificados sob a casa ou o quintal, com direito a isolamento total, paredes revestidas de chapas de aço, geradores de eletricidade, linhas telefônicas privativas e estoques de mantimentos. Esse número já deve ter ultrapassado as 500 moradias, hein? Dia a dia, a população gasta mais em segurança privada, tendo crescido a obsessão por redomas.
Meus conhecidos não têm casamatas. Pelo menos que eu saiba. A maior parte deles usa grades, cadeados, trancas, cercas elétricas e alarmes para garantir a segurança de seus veículos e casas. Alguns já foram sequestrados; quase todos, assaltados. Sons de carro roubados, portas arrombadas nem são mais novidade. As vítimas preferem nem procurar a delegacia para registrar ocorrenciazinhas fúteis assim. Muitos amigos já sofreram com a clonagem de cheques e cartões, entre outras fraudes. Um primo professor foi assassinado quando saía do trabalho. A colega de uma sobrinha apanhou de uma gangue de meninas no pátio da escola: perdeu as unhas postiças, muitos fios implantados de cabelo e o celular com capinha da Hello Kitty. Será que as instituições de ensino têm perdido seu caráter de fortaleza?
Citei alguns tipos de violências factíveis, concretas. Mas o que fazer para se poupar dos ataques verbais, das humilhações, da negligência, falta de diálogo, incompreensões, fraudes amorosas e do bullying? Como se preservar dessas brutalidades “menores”, “frescuritizinhas” que passam despercebidas por outrem?
Quem se sente psicologicamente coagido demais procura construir um bunker a sua maneira. Algumas pessoas decidem usar o divã do terapeuta como escudo; muitas pedem ajuda a drogas; outros frequentam templos ou grupos de oração; muitos outros se ensimesmam, infelizes com a dor do silêncio que lhes lateja na alma; alguns optam pelo suicídio. Estes últimos devem considerar que o sepulcro seja a casamata mais segura de todas, onde a perturbação orle o zero – exceto em casos de exumação do corpo ou assalto a cemitérios, dentre outras possibilidades esquisitas.
Também há como se esconder por trás de um outro perfil, de uma máscara ou avatar. Pelo menos no mundo virtual, o procedimento é bem utilizado. Para se vingar dos insultos sofridos pelos colegas de classe ou pelos parceiros, demonstrar maturidade e autoaceitação, proclamar-se lindo, inteligente, querido e poderoso, o sujeito toma para si uma identidade fantástica. Assim, pela internet, agrega seguidores, fãs, súditos, amantes... Enquanto o mundo real o oprime, o indivíduo se relaciona muito bem com os entes do mundo virtual – desvencilhando-se inclusive dos ataques terroristas dos pais, amigos, irmãos, professores e companheiros. Não sei se é saudável e eficiente, mas a internet é um bunker bem mais barato que os tradicionais.
            Seguro, seguro, ninguém está. Mas não vou construir nenhuma casamata, não. Deus me proteja! Quero zanzar bem livre por aí, mesmo correndo o risco de ouvir o Despacito na esquina. 

                Maria Amélia Elói





domingo, 25 de junho de 2017

As mulheres da Paradanta


As mulheres da Paradanta são o amparo da casa. Robustas e determinadas, são por isso admiradas e protegidas pelas deusas primordiais. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos, balançando as ancas cheias. Como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na Paradanta, para lhes fruírem a atividade, em vez da rigidez de antanho.
Na década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e brilhante. Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e pelo meio dos pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, tenteando o peso, abanando as ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática de igreja, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas paradantenses e, disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para abusar de alguma delas.
Na década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da Paradanta voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro. Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milheirais, melanciais e aboborais, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade, em setembro, feijoeiro a feijoeiro. Calcorreavam extensões enormes, dobradas, apanhando as vagens maduras para as cestas, que eram despejadas em panais, que eram atados em trouxas quando as pilhas transbordavam, que eram carregadas para o carro de vacas, que as levava para a eira. Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida. A mais nova estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita. Se houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra ninguém. Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam no domingo à noite. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!
Na década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Paradanta amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas. Mesmo com poucos homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora da Orada. No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Paradanta, cantando modas menos religiosas que à ida.
Na década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a vulgarização do gás e a chegada da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de cinzas. As mulheres da Paradanta punham os cântaros à cabeça e percorriam distâncias até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o seu caminhar! Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.
Aos poucos, as mulheres da Paradanta deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças. Felizmente, Hera, também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Paradanta voltaram a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso deleitado, no rosto divino.

Joaquim Bispo

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Imagem: Cariátides [figuras femininas esculpidas servindo como suportes de arquitetura — colunas ou pilares] do templo Erecteion, Acrópole de Atenas, século V a.C.

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(Este conto integra a coletânea resultante do X Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil, em 2016.)

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sábado, 24 de junho de 2017

TROVAS DE EDWEINE LOUREIRO - II






terça-feira, 20 de junho de 2017

SIM, ROUBEI

Uma mulher de 40 anos se casa com um viúvo bem-sucedido, pai de um filho pré-adolescente,
ainda inconformado com a perda da mãe. No processo penoso e diplomático de conquista da
confiança e do possível amor do enteado, acontece o inusitado, o inexplicável, o incontrolável:
a mulher é surpreendida por uma ensandecida atração carnal pelo menino, que por sua vez, com
a sexualidade em riste, alimenta o tesão recíproco. Parece um caso escabroso de pedofilia e
perversão, daqueles em que a gente esbarra nos noticiários, e que quase sempre acabam em
escândalo,quando não em tragédias acachapantes. Mas tudo isso é fruto da imaginação de Mario
Vargas Llosa, expresso com requintes de poesia e erotismo no romance " Elogio da Madrasta."
Por que isso agora?
Porque não consigo pensar em outra coisa senão em histórias extraordinárias de amor e sexo,
conseqüência angustiante do inicio do meu processo criativo. É sempre assim. Começar a
escrever uma história é de dar frio na barriga e palpitações de tamborim. Enrolo o mais que
posso, chacoalho o mouse, passo um paninho na ameaçadora tela em branco, sopro farelinhos
entre as teclas, troco a fonte das letras, bato pernas pelo Google, opero manobras ridículas
para dar tempo ao tempo, até que uma ideia, uma mísera inspiração que seja, se aproxime e
se enrosque em mim.
Enquanto ela não vem, caio na armadilha das lembranças de tantas histórias entulhadas no
sótão do inconsciente. Elas me surgem, esfregando na minha cara inveja de seus férteis
criadores, na inocente e descabida pretensão de que eu poderia – ou gostaria – de ter sido
um deles.
E na sequência da madrasta tarada, aparece um Nelson Rodrigues decantando a desventura de
um homem que ao sair do trabalho, passava na casa da amante, onde se locupletava na cama e
na lauta mesa posta. Desconfiada, a mulher oficial resolve em silenciosa vingança preparar
supremas iguarias para o jantar tardio.  Covarde, o sujeito jantava duas vezes. Uma rabada
antes e um bobó depois, macarronadas e seguidas bacalhoadas, estrogonofes e imediatos vatapás.
Tudo cabia no estômago enfastiado do infeliz, vítima de uma duplicidade amorosa que não
conseguia se desvencilhar. Não digo o final. Procurem “O homem que jantava duas vezes”, conto
da série “A vida como ela é”, obra tão contundente e humana quanto, por exemplo, uma história ácida de Rubem Fonseca, que me persegue em momentos de lacuna criativa. Trata-se de um jovem casal recém-casado, que vai em lua de mel para um acampamento nas margens de um rio no Colorado. Mesmo tendo vivido o sexo prévio, a lua de mel é um desastre. O rapaz perde
totalmente o desejo pela mulher, uma patricinha afetada, passa a agredi-la com o desprezo sexual
e se instala o tormento. A cada dia, não se reconhecem mais. O casamento mal começou e já vive a
iminência de um desastre, até que o rapaz vê a mulher saindo do sanitário rústico do acampamento
com um rolo de papel higiênico na mão. Sem que ela perceba, vai até lá e vê: uma formação cilíndrica semi submersa, portentosa, repugnante. E a partir da simbologia do extremo da intimidade, o desejo reacende. Transam a transa das transas sem parar, como humanos e animais que são.
Forte, esse Rubem Fonseca, não?
Mas não mais que Sófocles que escreve um Édipo que mata o pai e tem relações sexuais com a mãe, sem saber o quanto essa história daria pano para manga. Na esteira do mote, vem um filme com Marcello Mastroianni, que faz o papel de um homem que 20 anos depois volta a uma vila, para reviver um amor da sua adolescência. Claro que não encontra mais a mulher, mas para não perder
a viagem, tem um caso com uma ninfetíssima Natasha Kinski. E no auge dos orgasmos múltiplos, desconfia que é sua filha, fruto daquela tal paixão deixada para trás. Doideira.
Quer outra?
Maria Eduarda e Carlos Eduardo se apaixonam. Vivem um amor intenso, até que descobrem que
são irmãos, numa trama genial de Eça de Queirós.
Agora quem me aparece é Machado de Assis, com sua indecifrável dúvida sobre a fidelidade de Capitu, e logo depois, Jorge Amado me cutuca com a história de uma mulher mais feia que o diabo com dor de dente, que atraía os homens mais bonitos da cidade, fenômeno justificado pelo fato de a mulher possuir uma “vagina chupeta”, “em cujas profundezas havia um anjo a chupitar”.
Vale esclarecer que a primeira palavra da sutil descrição do autor não é vagina, mas aquela mesma,
de rima rica com chupeta e de despudorada sonoridade.
Coisas de Jorge Amado, o mesmo que presenteou o mundo com o caso da cozinheira que
prevaricava com o fantasma do primeiro marido.
E por aí vai meu pensamento, bloqueado pelos amantes de Verona, pelo fetiche da Belle de Jour,
pela comovente Madame Butterfly, pelo persistente amor dos tempos do cólera, pela impossibilidade
da paixão de um gorila por uma loura, pela felicidade engolida numa neblina de Casablanca.
Enredos e fábulas de amor e sexo me atropelam como um trem desembestado, mas idéia nova que é bom, nada.
Chego ao momento de entregar os pontos. Meu processo criativo não passou da primeira fase
– fracassei ao primeiro beijo - e me curvo diante do assalto de tanta ficção já escrita e bem escrita.
Sim, roubei histórias alheias para preencher esse espaço, para aplacar minha angústia.
Peço desculpas a quem me lê pela falta de imaginação, e aos citados pela usurpação.
O que me consola é que, se a inspiração me derrubou, pelo menos, acho que sugeri algumas
histórias formidáveis, que podem ser visitadas ou revisitadas, em livros, cinema, DVDs, TVs, internet, tanto faz.
O importante é que, assim como o amor, o sexo e os relacionamentos complexos e humanos,
as boas ideias ousadas e poderosas engrandecem a nossa alma.





sábado, 17 de junho de 2017

Guardada e consequente

                 










                   Meu primeiro amor, meu primeiro amor reapareceu. Inesperadamente. Faz tanto tempo que aconteceu! Ver seu rosto, aquele rosto que estivera ao meu lado, e senti-la presente, guardada e consequente, faz com que eu navegue novamente rumo às Américas, em busca de uma riqueza que julguei esquecida em mim.



















sexta-feira, 16 de junho de 2017

Não é


Não é ele, doutor. Tenho certeza. O senhor me trouxe até aqui à toa. Isso tudo é um engano. Uma perda de tempo. E eu com tanto trabalho pra fazer. Tenho chão de cozinha pra lavar, casa pra varrer, quarto de criança pra limpar, cachorro pra levar pra passear. Tem louça do almoço na pia, tem lixo no banheiro. Eu não posso ficar aqui, doutor. Ainda mais pra ouvir o senhor dizer besteira. Que o meu menino morreu. Que ele levou tiro da polícia. Que ele tava roubando carro junto com bandido. Bandido fichado. Mas o que é isso, doutor! O meu menino só tem doze anos. Doze! Eu deixei ele dormindo lá em casa. Como eu deixo todo dia. Quatro e meia. É a hora que eu levanto. Saio de casa às cinco pra pegar dois ônibus até essa casa onde eu trabalho. O meu menino levanta só às sete. E vai direto pra escola. Vai, sim. Ele adora a escola. A professora me disse que ele é bom aluno. Só tem dificuldade em matemática. Como é que ela ia me dizer isso se ele fosse menino de matar aula? Acredite em mim, doutor, o meu menino está em casa. Ou brincando na rua. De pipa, de bola de gude. Ou jogando videogame. Porque hoje não tem aula. É feriado na escola. Verdade. O meu menino não mente pra mim, doutor. Ele não é vagabundo. Ele sabe que tem que estudar. Que não é pra se meter com bandido. Nem com droga. Ele sabe que eu me mato de trabalhar pra dar as coisas pra ele. E não é só comida, não, doutor. É tênis, é camiseta, é bermuda, é óculos de sol, é corrente, é boné, é CD. Dei até bicicleta e videogame. Ele tem de tudo, doutor. Ia roubar carro pra quê? Ele só tem doze anos. Não é ele, com certeza. Então por que é que o senhor me trouxe pra esta sala? Por que é que eu tenho que olhar pra esse menino aí deitado? O meu menino está lá em casa, doutor. Lá em casa! Eu já disse. O senhor não quer ouvir, que merda! Presta atenção no que eu tô dizendo, pelo amor de Deus! O meu menino tem uma marca de nascença na coxa. Igual a essa aí. Tem uma tatuagem de caveira que ele fez escondido de mim. Igual a essa aí. No mesmo lugar. O meu menino tem as unhas roídas. E um dedo torto que ele quebrou no futebol. E uma cicatriz de tombo. E o dente da frente com a ponta quebrada. E as orelhas de abano. Como esse aí. Mas esse não é o meu menino, não é, não é, não é!  Não importa que os vizinhos viram o roubo, a viatura que apareceu cantando pneu, a troca de tiros, os bandidos que foram mortos. Não importa quem disse que era o meu menino que tava lá com uma arma na mão e duas pedras de crack no bolso. Nem quem deu o meu nome para o senhor, doutor. Sim, Maria do Amparo da Silva sou eu. E o meu esposo é o José dos Santos. O nome do meu menino é José Eustáquio da Silva Santos, sim senhor. Mas me escuta, por favor. O meu menino não tem esse olho arrebentado de bala. Não tem essa cara inchada. Não é gelado assim. Não rouba carro. Esse aí é bandido. É ladrão. É menino que engana a mãe que trabalha fora o dia inteiro. Mãe que sai de casa antes do dia clarear que deixa o filho dormindo que não sabe o que o ele faz quando acorda que acredita que ele tá no colégio que pensa que ele é bom aluno que jura que ele é feliz com o tênis, a camiseta, a bermuda, o videogame. 
Como é que eu vou reconhecer filho dos outros, doutor? Tá surdo? Eu tô aqui repetindo que esse aí não é o meu menino, caralho! Que o meu tá lá em casa, porra! Que hoje nem tem aula. 





quinta-feira, 15 de junho de 2017

nunca soube...




Menina loura. 
Menina doce e meiga.
Esse teu estar de porcelana e mel ter-se-á formado, decerto, conforme foste descobrindo. Que tu terás descoberto que havia um negro ainda mais negro do que aquele que já conhecias, e terás sentido necessidade de compor esse sorriso: várias horas por dia, um dia atrás do outro dia, um minuto depois de outro minuto. 
Tu disfarçando, e que Deus te perdoasse.
E nem papel de embrulho nem lâmpadas de filamento embrulhadas em simpatia, um sorriso atando como se fosse guita, nem uma braçada de fio de cobre isolado: apenas o sorriso que terás aprendido a colocar como colocarias o naperão para disfarçar o risco ou para que se abafassem sons de loiça, tu que terás um dia descoberto que havia gritos ainda mais imensos do que os que ouviras pelas noites: tu, menina, de cabeça escondida no travesseiro.
Terá sido desse modo paulatino e terá sido pela vida inteira.
E eu que nem te conheci senão o mel e os afagos, eu que de ti mal vislumbrei o desencanto no fundo dos olhos, já tu te despedias e eu sem dar por isso: um desencanto que vinha lá do âmago de ti mesma e no qual nunca tinhas sequer querido acreditar, tu que eras temente a um Deus de infinita Bondade;
eu que perpassei por ti como se nem fossemos carne de igual carne, sangue que escorria, um e o mesmo, tal e qual, fosse por picar o dedo em bico de agulha enfiada em linha ou em bico de piteira, ou fosse, a cada ciclo, o sangue de mulher;
eu que nunca soube dizer-te
nunca soube desvelar-me de cuidados.
Eu a abrir gavetas e arcas e armários, encontrei de ti apenas silêncios.
Alguns estavam já esmigalhados, sobretudo nalgum esconso;
outros eram enormes, intensos, brilhantes e compactos;
macios, no entanto;
eram os que surgiam das letras que, folha a folha, desenhaste, e os que ficaram naquela mala velha que gostavas de trazer a tiracolo.





segunda-feira, 5 de junho de 2017

microclima



previsão de chuva 
no céu da boca 
a umidade no jardim 
de suas coxas
atingiu o pico 
de duas montanhas
arrepiando a vegetação 
da mata tântrica 
revirando a cama 
para a semeadura






domingo, 4 de junho de 2017

NUNCA MAIS




 
À noite, quando tudo é tão difuso,
E um vulto, na neblina, bate à porta,
Indago-me, entre cético e confuso,
Se seria a Esperança, que conforta.

A batida é firme; e forte, meu intruso,
Aquele que o meu sossego corta.
Ignora o porquê de eu ser recluso,
Logo agora, que nada mais importa.

Como ave de rapina, desde Poe,
Crocitando dos umbrais, insuportável,
Saqueando solidões, um vil pirata,

Também esta, para quem um dia amou,
Exibe o seu caráter implacável:
É a última que morre, mas me mata.