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quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Teu Brilho Esta Noite



Estava uma noite serena e morna. Pequenos diamantes refulgiam sobre o puro veludo negro da noite, guardando a descomunal lua de prata, que pairava sobre a paisagem. O ambiente ideal para meditar ou sonhar, naquele terraço do hotel, com vista sobre a cidade de luzes douradas na margem contrária do rio. A perturbar tão idílico ambiente, estava o som de fundo de vozes, risos e copos a tilintar. O homem de estatura média, cabelo escuro e barba aparada, segurando o copo com o líquido dourado e reluzente, preferia o silêncio da noite estival, à animação que decorria nas suas costas.

André, assim se chamava, ponderara muito, antes de aceitar comparecer àquela festa, especialmente aquela. Perdera o hábito de frequentar tais convívios e transformara-se num autêntico eremita. Desperdiçara mais de três anos, numa embriaguez permanente, enquanto escrevia crónicas com língua viperina, para as revistas “cor-de-rosa”. Meses de recuperação alcoólica, disseram-lhe que não poderia viver daquela maneira e afastou-se do gin e da sociedade. Em vão recebia convites de conhecidos, para que fosse a este ou aquele convívio, na esperança de serem contemplados, para o bem ou para o mal, num dos artigos que repentinamente deixaram de jorrar da sua caneta. Desaparecera do mundo, refugiara-se no seu apartamento e num contrato com uma revista, a escrever o que lhe pediam. Na verdade, fora mais do que um problema alcoólico a afastá-lo da sociedade; havia aquela mulher, que não via há uns anos e que lhe deixara um vazio imenso, a mesma cuja eventual presença o fizera aceitar este convite. Sofia, era a mulher que nunca conseguiu esquecer, talvez por ser a única que não se deixou prender na sua teia depressiva e resolveu seguir em frente, antes que ele a deixasse.

Apreciou o copo quase vazio, sabendo perfeitamente que não deveria ter aceitado aquela bebida e ponderou deitar o resto no canteiro ali ao lado. Decidiu-se por não desperdiçar aquela fuga à sua disciplina e esgotou o conteúdo do copo, inclinando despudoradamente a cabeça para trás, para não perder nem uma gota. Tendo consciência dos efeitos do álcool no seu já destreinado organismo, olhou em volta em busca de um local onde pousar o recipiente esgotado e foi quando a viu.

Atravessando uma das enormes portas que davam acesso ao terraço e olhando em volta, como se procurasse alguém, ali estava Sofia; trazia um vestido preto sem alças que contornava os peitos e acentuava a sua cintura fina, continuando numa saia que abria num gracioso leque terminada por um rendilhado preto sobre o joelho. Nos pés, calçava sapatos também negros, onde reluziam alguns brilhantes em volta do tornozelo. Mas era o seu cabelo acobreado escuro, natural, solto e luxuriante, envolvendo o rosto de linhas firmes e nariz aquilino, que faziam com que não se conseguisse tirar os olhos dela. O seu sorriso, enquanto cumprimentava os conhecidos, continuava deslumbrante e toda ela irradiava luz, ofuscando a própria iluminação artificial.

Quando ela o viu, foi como se uma nuvem tapasse o sol e o resplandecente sorriso transformou o belo rosto com um ar preocupado e triste. Ele apercebeu-se que estava sem respirar e soltou um suspiro involuntário, enquanto o copo tremeu ligeiramente na sua mão.

— Olá, André. — A voz quente envolveu-o, assim que ela se aproximou em passos calculados para que a sua passagem fosse notada. — Há muito que não te via… estás mais magro. Fica-te bem!

— Em compensação, tu estás cada vez mais bonita. Parabéns. Continuas a atrair os olhos de toda a gente… — ele aproximou o rosto do dela para um cândido beijo, enquanto sussurrava — … homens e mulheres.

— Vejo que continuas a ser um comentador acutilante. — Ela sorriu, sem corresponder ao beijo, mas sem se afastar. — Fico feliz por aceitares o meu convite. Vai ser agora que me vais brindar com umas linhas num dos teus artigos de gosto duvidoso, naquela revista execrável?

— A revista execrável paga-me o ordenado, sem ter de arriscar a vida nas guerras deste mundo, como fazia antes… fazíamos. — André encostou-se à balaustrada da varanda e cruzou os braços sobre o peito, sem soltar o copo vazio. — De resto, não fui o único a procurar uma “atividade” mais segura e rentável, deves recordar-te porque me tornei um “vampiro dos costumes”.

— “Touché.” — Reconheceu Sofia com um sorriso maroto. — Penso que estás a definir o meu casamento com um rico industrial da hotelaria como uma “atividade segura e rentável”. Já sei que ninguém consegue esgrimir palavras contigo sem sofrer uma estocada mortal.

— Ambos trocamos um jornalismo de ação… por atividades diferentes. — Ele retribuiu o sorriso e a ironia. — Por mim, teve de ser mesmo assim; os industriais da hotelaria nunca quiseram nada comigo, apenas os editores de revistas execráveis… pelo menos também não tenho de dormir com nenhum. Mas descansa — continuou — nunca escreveria nada sobre ti… pelo menos de mal e o tipo de matéria que eventualmente sairia, não interessa aos meus patrões.

— Fico feliz que assim seja. — Ela pousou suavemente uma mão sobre a dele, num gesto de uma cumplicidade antiga, que o fez estremecer. — Espero que essa trégua abranja o meu futuro marido.

— Não há aqui nenhuma trégua, para isso teria de haver uma guerra, não te parece? — André endireitou-se enquanto tentava, sem sucesso, agarrar a mão dela que recuava.

— Oh, mas há, meu querido. — Ela cruzou candidamente as mãos sobre o ventre. — Uma guerra fria! Há quase dez anos que tens os misseis apontados na minha direção, à espera de uma “causam belli”.

— Não é verdade. Nunca estive zangado contigo… — defendeu-se ele. — … apenas desiludido. Aproveitares a minha reportagem para surgires de repente com o fim da tua carreira ao lado desse… palhaço.

— Eu?!? Aproveitei a tua reportagem? — Ela soltou uma gargalhada nervosa e cínica. — Depois de te pedir encarecidamente que não fosses… estiveste fora um ano!

— Foi complicado… — Ele acalmou-se perturbado pelas recordações. — Fui sequestrado e…

— Bem sei! — Sofia atirou com irritação. — Segui cada notícia, contactei todos os que conhecia, chateei, persegui um secretário de estado, para que se interessassem pelo teu problema. — Perante o olhar de espanto dele, ela fez uma careta cínica. — Achas que te libertaram pelos teus lindos olhos? Ou pelo teu talento jornalístico?

— Não sabia…

— Bem sei que não! Pedi que não dissessem. — Ela volveu o olhar ao chão. — Também não deves saber que abortei três meses após a tua partida…

— Meu Deus! — O espanto de André dizia tudo. — Que aconteceu? O nosso filho, estavas grávida?

— Quando te foste também ainda não sabia. Não sei o que foi, alguma incompatibilidade, deficiência, stress, sei lá. Agora também não interessa, não quero falar disso. — Sofia falou rapidamente enquanto atirava tudo para trás, com um gesto e uma expressão triste. — Isto não está a correr nada como eu esperava. Queria que ficássemos amigos, tenho saudades das nossas conversas…

— Só das conversas? — Ele baixou a cabeça para lhe poder ver os olhos verdes que lhe devolveram o olhar nervosamente. — Nunca deixei de te amar…

— Meu querido. — Sofia ergueu a cabeça, endireitou os ombros e deu um passo atrás. — O que foi não volta a ser! Estou casada e feliz há dez anos. Gosto muito de ti e gostava muito que fossemos amigos, mas só isso.

— Que esperavas? Que festejasse contigo? — André enfureceu-se. — Regresso de uma das piores experiências da minha vida para encontrar a mulher com que amava casada com o playboy dos hotéis!

— E que esperavas tu? — Por uns instantes os olhos dela faiscaram de raiva. — Foste embora na altura em que mais precisava de ti, porque a tua carreira, ou o teu desejo de morte, era mais forte! Preferias a adrenalina de arriscar a vida nas reportagens dos conflitos, do que a alternativa de uma existência medíocre de classe média… ao meu lado. — O rosto suavizou-se e acariciou-lhe ternamente a face. — Acabaste por deixar tudo na mesma, para te tornares ainda mais amargo, do que já eras em tempos de paz.

— Vem comigo! — Pediu André tentando segurar a mão gelada que lhe acariciava a face. — Deixa tudo isto, as luzes, a riqueza desse homem que não vale nada. Sabes que o negócio dos hotéis é a capa para a venda de armas nos conflitos, por isso nos encontrávamos os três, muitas vezes, durante o nosso trabalho.

— Também nós e tu mais do que eu, vivemos desses mesmos conflitos. — Ela puxou a mão suavemente. — Por mim já tinha demasiado tempo, suja de terra nos campos de batalha, ou nos hotéis bombardeados, sempre à espera que o meu quarto fosso próximo atingido e pedia que, quando o fosse, atingisse em cheio e não me deixasse estropiada ou a sofrer. — Sofia pousou os olhos no chão. — Chama-me fútil, mas estou numa vida cómoda rodeada pelo luxo e tudo o mais que quiser. Não vou retroceder.

André fitou a mulher com estranheza, como se a visse pela primeira vez. Aquela não era a sua antiga companheira, aquela que partilhou o perigo com ele, em mais de uma dezena de conflitos por esse mundo fora. Que tivera nos seus braços, escondidos entre os escombros, durante os bombardeamentos. Não era a mulher que tirara fotos fantásticas que ilustraram os seus relatórios apaixonantes e que fizeram as páginas principais de revistas e jornais. Afinal, também ele já não era o repórter de guerra, mas sim um frívolo cronista, mais ocupado com quem dorme com quem na sociedade. Já não contava histórias de morte e paixão pela liberdade, mas sim os podres da existência humana em tempos de paz, vivida às custas de outras guerras.

— Este senhor está a incomodar-te, querida? — Ao lado dela apareceu um homem, ligeiramente mais baixo, praticamente careca, mas impecavelmente vestido com um fato de corte moderno. — Queres que chame os seguranças? — Exibiu um sorriso de superioridade, enquanto abraçava a mulher pela cintura. — Como estás, André? Quem é a “vítima” do teu desprezo pela sociedade esta noite? Espero que não a minha doce Sofia.

— Já a descansei a ela e descanso-te a ti também, meu caro Ricardo. — Respondeu o visado erguendo o copo vazio à guisa de um brinde. — Façamos desta noite, uma noite de paz e… tréguas.

— Ah, a guerra fria! — O outro fingiu um olhar sonhador e divertido. — Em tempos de paz, prepara-te para a guerra! Há que armazenar mais e mais armas!

 — Graças a isso, há quem enriqueça mais e mais, sobre armazéns de armas, ou pilhas de cadáveres! — Atirou André amargamente, fazendo com que Sofia arregalasse os olhos num aviso.

— Acutilância! — Divertido, Ricardo piscou um olho e apontou o indicador ao outro, numa expressão marota. — Em todos os conflitos, ganha quem tiver mais recursos! É uma lei da vida! — Apertou mais e agitou significativamente a cinta de Sofia. — Julguei que tivesses aprendido alguma coisa nos anos de guerra que ambos vivemos. — O sorriso desapareceu rapidamente enquanto olhava para a mulher. — Temos de ir, querida, o presidente da câmara está ansioso por te conhecer. — Depois tornou para André. — Aprecia o melhor que puderes desta festa. Sei que o tema não te agrada, mas enfim, quando não podemos caçar, comemos do que nos dão!

Sofia deixou que Ricardo a puxasse suavemente, deitando apenas um último olhar contristado ao antigo companheiro.

André ficou ali, encostado na balaustrada, vendo os dois afastarem-se, dividido entre o olhar triste de Sofia e o sorriso triunfante de Ricardo. Com ela, ia-se o sol embora de vez e repousava sobre os seus ombros uma noite eterna e fria, que teria de passar sem a mulher que amava.

— Aproveitemos o que nos dão, enquanto se dissipa o brilho de Sofia! — Concluiu para si próprio, afastando-se da parede e caminhando lentamente para o salão. —  Preciso de uma boa bebida, para tirar este sabor amargo da garganta.







segunda-feira, 26 de abril de 2021

Protagonista


Agora se fiam nela?
Na história que ela conta,
no verso que ela jorra?

Respeitam sua letra de sangue
assombro açúcar?
Publicam seus saltos filosóficos,
rimas e piruetas? 

Desde quando diz e desdiz
o mundo próprio e abre outros?
Desde quando tece assim,
se amostrando tanto?

Narra com o cérebro
a cor da pele
o útero
a mística
o sexo
soda cáustica
à luz da lua? 

Deixou de ser bruxa?
Ainda é musa? Santa? Eremita?

Faz só quando o homem deixa?
Enquanto as crianças dormem? 

Cria pra quê, essa criatura,
se há milênios ecoa uma mesma ordem grave,
falando por faustos falos?
Não basta ler, ouvir, obedecer?

Quer falar por si
a verdade
a lacuna
o estrume?
Quer alcançar o infinito? 

Cabe-lhe ainda o instinto? 
E a dor do parto? 

Pois este é o seu status
(pode ser atualizado):
ela se sabe mulher
e está farta de tribunal.

Escreve só porque quer.
Como quando enquanto onde
tudo o que bem quiser.

É no fluxo
de seus desejos
que a vida mora
sem ponto
nem final


Maria Amélia Elói


Imagem: "Um canto do meu ateliê" (1884), de Abigail de Andrade





domingo, 25 de abril de 2021

O desconhecido

 


As nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio; só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar. Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê. Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece, talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração, cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o primeiro dia.

Há uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira, caminhando. Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.

Mário já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões. Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não. Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.

Já? — lançou, em tom dorido, ao desconhecido.

Este olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.

Em breve!

Lá à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma canção de hossanas à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao estranho:

Podes dizer-me antes o que há do lado de lá?

Nada te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.

Não sabes ou não queres dizer?

Eu nada sei.

Se nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.

Eu não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.

Mário calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia descansar.


O trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono, mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos, chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa antes de se deitar.

Depois de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de sono descansado.

Queres jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado, frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.

Não me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.

O tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se perderes...

Por uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável? Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos, ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?

Fazes tantas perguntas...

Porque é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te escapa?

Também se chama mortais aos viventes…


A noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem os seus 78 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida. Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E, de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou tudo não passava de acaso?

Na outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.


A alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe o peregrino de branco.

Pode ser hoje? — indagou, cortês.

Mário não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.

Deixa-me chegar a Fátima. Talvez a nossa senhora interceda por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há deus, não há?

Faz diferença?

Deve haver; senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?

Eu nunca o vi.

Será possível que esta indelével impressão íntima não passe de um mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso, por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?

É possível...

É uma grande ironia, se não há deus. E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se esconder num misto de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual seria então a razão disto tudo?

Essa lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.

Como é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal, sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não responde ele às nossas perguntas?

Talvez seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.

Oh, deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?

Eu, pelo menos, sou evidente e incontornável.

E se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são imortais.

Até que nos encontremos…

Oh! Não se pode falar contigo.

Mário sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume da noite.


A dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois dias que ainda durou a caminhada.

Então, ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!

Então, não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário, fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.

Vejo-o tão calado...

Também nunca fui muito reinadio!

O velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras. Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.

Os últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa, em vez de um ancião esquálido de branco.


A entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado. Abraçaram-se emocionados, improvisaram mesmo uma dança de roda, num estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse ganho uma segunda vida.

A poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana, parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.


Joaquim Bispo

*

Este conto foi apresentado pela primeira vez na Festa do Livro do Centro Artístico Albicastrense — uma organização conjunta com a Alma Azul —, em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade Sénior Albicastrense).

*

Imagem: Jakub Schikaneder, A última jornada, c. 1880.

Coleção privada.

* * *





sexta-feira, 23 de abril de 2021

AJURICABA DO NASCIMENTO

 

 



 

         − Aceita um refrigerante? Água?

         Ao mesmo tempo em que meneia a cabeça negativamente, coloca a mão à frente reforçando recusa para a comissária.

         Ajeitando-se na poltrona, procura afastar o incômodo. Desde a decolagem, o estômago trava uma batalha insólita com os bons costumes. Sem dúvida, se tivesse o corpo mais sadio e aguentasse a longa viagem por estradas, o retorno seria menos sofrido. Nem de longe imaginaria entrar num avião. E agora está ali. Desconfortável, sentado ao lado do passageiro que tem fone atolado nos ouvidos e come amendoim salgado num mastigar desembestado, enquanto vê numa das telas, entre as muitas dependuradas no teto, um filme cheio de explosões, tiro para todos os lados. O cheiro do óleo torrado é nauseante. É. Talvez tenha demorado muito a regressar.

         Fecha os olhos para embaçar a luz intensa. E leva um tremendo susto com o balanço forte do avião. Não tolera altura, não queria estar ali, e essa brincadeira não estava combinada. Segura firme nos braços da poltrona enquanto aperta os olhos. Pensa ser hora de pedir perdão a Deus. Os solavancos persistem, um silêncio doído toma conta do ambiente. Retesado, procura fixar a cabeça no encosto. As mãos latejam. A aeronave estabiliza-se, e então o comandante explica que atravessaram uma tempestade com ventos extremamente fortes, deseja um bom descanso a todos e informa que, em pouco mais de uma hora, estarão sobrevoando a floresta.

        

         Pouco sabia dele mesmo. Padre Leôncio contava que, naqueles tempos, a malária matava muita gente, e então a missionária encontrou uma índia cambaleando na estrada, ardendo em febre, com muita falta de ar, inchada, amarelenta, trazendo enganchado nas ancas um moleque que chorava sem parar. Levados ao abrigo, a mulher pouco falou. Tinha nome de Anaí. Muito mal, disse que o menino, desde que nascera, foi chamado de Ajuricaba pelo pai. Horas depois, ela morreu. E, no documento do cartório, foi anotado Ajuricaba do Nascimento, filho de Anaí dos Anjos.

         Levado ao orfanato, o menino cresceu sob os cuidados dos religiosos. Havia outras crianças, todos meninos. E, devido ao nome de difícil pronúncia, ganhou o apelido de Jura. Não havia do que se queixar. A comida era boa, farta. A cama asseada ofertava abrigo. Poucas lembranças restaram do antes. A morada de janelas largas, piso tijolado, grande, ficava nos fundos da igreja, ao lado da casa paroquial.

Da mesma idade de Jura, havia mais cinco: Zinho, Tomé, Tico, Zé Mudinho e Bié. E cada qual possuía quinhão de tarefa. No geral, além das aulas com Padre Leôncio que ocupavam parte da manhã, sobrava tempo para brincar. A tarde ficava para a feitura dos rosários de contas de capiá, vendidos na igreja da capital. Ocupação que relaxava. Bastava costurar com linha forte de carretel e ter atenção na contagem das bolinhas. Cinco mistérios com dez Ave-Marias, Glória e Pai Nosso em cada um. Fechado o círculo do terço, o acabamento era feito com as rezas: Creio em Deus Pai e Salve Rainha, e, como enfeite final, uma cruz de contas. Tudo separado com nós de três laçadas.

Zé Mudinho não fazia rosário. Não aprendeu a ler nem a escrever e não sabia contar as ave-marias. Nesse trabalho, ficava incumbido de colher as contas. Bastava colocar o velho caldeirão vazio nas mãos dele, partia numa corrida desvairada para as touceiras de capiá, lá na baixada. Era bom no serviço. Voltava com o caldeirão abarrotado de contas, material para muitos dias de trabalho. E, enquanto os outros costuravam, passava o tempo riscando a areia do terreiro com um pau. Fazia traços que só ele entendia, e ficava feliz. Não sofria de leseira, apenas o silêncio é que era muito. Alma boa. Não havia olhar dirigido a ele que não fosse pago com sorriso.

Além disso, ficava para Jura o afazer de pescar. Sempre na tardinha. Zé Mudinho ajudava a arrancar minhocas, mas não ia com ele. Na mata, não podia ser gago do ouvido. O sinal do perigo exigia todos os sentidos.

Com caniço e isca, rumava para o igarapé. Soltava a canoa até onde a corda, enlaçada na árvore, permitia. Arremessava a linha para perto das folhas de jaçanã, e o anzol iscado bailava na água serena. Dava para ver o peixe abocanhando o chamarisco e tentando se desvencilhar do enrosco, provocando marolas na água e balançando as folhas redondas.

Em menos de hora, duas enormes fieiras de peixes se formavam. Então, chegava a hora do gozo. Trazendo a canoa para a margem, Jura tirava a camisa e mergulhava no rio. Sentia-se rei, dava braçadas enérgicas, piruetas acrobáticas. O corpo parecia feito só de carne, tamanho o desembaraço. Quando emergia, só lhe enxergavam os dentes mostrados em sonoras gargalhadas. Era o ópio. A água cristalina a lavar a alma e o perfume das flores de jaçanã desabrochando na entrada da noite.    

Refrescado, tomava a direção de casa. Nas mãos, as fieiras abarrotadas. Logo, logo, os peixes estariam ticados e marinando nos temperos de dona Zefa. E, naquela quase noite, o olhar para a mata fechada se mostrava cravejado de mirabolantes luzeiros: a dança dos pirilampos.

O tempo mudou tudo. Iranduba ficara pequena para Jura e a maioridade exigia asas. Na cidade, corria a notícia de que a construção da nova capital do país recrutava trabalhadores de todos os cantos. E o transporte era sem custo. Padre Leôncio reforçou o intento, arrumou a velha mala, juntou algumas roupas, e repassou a Jura uma pequena reserva de dinheiro. E, assim, sem abraço e sem choro, no normal da vida, acenou adeus aos que ficaram.

No Planalto Central, chegou meio atordoado. Árvores nanicas, raleadas. Tudo era construção, terra, poeira vermelha. Nada de fartura de água, nada de chuva. Secura.  Trabalhou pesado, mas por pouco tempo, pouco mais de três meses. Ali, nada mostrava graça. Nem o sol podia ser visto, e calor não era melado. Ressecava o couro. Sem rio para se banhar, só a poeira cobria tudo, tirava a beleza do dia. Sequidão.

         Assim, no meio de uma prosa, conseguiu encaixe num transporte que o levaria para São Paulo.

        

         As luzes internas do avião são apagadas. Não há mais filmes nas telas, tudo quieto. Alheado de tudo, Jura nem havia percebido. Assusta-se. Pelo horário e conforme a fala do comandante, a aeronave deve estar sobrevoando a floresta. Na cabeça de Jura, pura aflição. Pavoroso pensar que, se o avião caísse, ficaria perdido no meio da selva. Coça a cabeça enxotando o mau agouro. Do lado, o parceiro da viagem está largado na poltrona, a sono solto. Corre os olhos, todos estão com as poltronas deitadas. Passa a mão pelos lados do assento, apalpa toda a volta. Nada de achar o botão para abaixar o encosto. Contém o ímpeto de cutucar o parceiro para pedir ajuda. Não, não teria cabimento. Tenta mais uma vez descobrir o infeliz do botão, mas desiste. Ajeita-se como pode, na vertical. Afinal, sabe que não vai dormir. Além do medo que esfria as tripas, a ânsia de chegar dá comichão.            

 

São Paulo era um desvario de tamanho. Abraçado à mala, foi deixado na praça do centro. Final do dia, céu encharcado de nuvens pretas. Gente de passo apressado, gritaria de vendedor, buzinas estridentes, confusão medonha. Ali, nem Zé Mudinho teria paz. Sorriu com a lembrança do amigo. Saudade batia forte. Procurou uma ponta de banco, precisava ajeitar as ideias. Sentado, observava. E o movimento de gente, assim como a aflição, foi serenando. Logo, poucas pessoas continuavam na praça.

E apareceu Zuleica. Rapariga bonita que só vendo! Novinha, apesar da roupa estranha e da maquiagem exagerada, não mostrava acesume. Andava devagar, gestos certeiros, sem ruído. Agora, os olhos... Ah! Os olhos eram safados. Matreiros, incisivos, falavam mais que a boca. Então, achegou-se, e o perfume da flor de jaçanã anuviou os sentidos de Jura. Cheirava à flor, tal e qual. Olhando a velha mala junto ao banco, Zuleica percebeu que ali estava um forasteiro. Sentou-se ao lado, bem perto, e falava baixinho. Falava bem perto do cangote, os lábios quase encostados no ouvido, e arrepiava. E as palavras eram bonitas. Não demorou nada e Jura se achou esparramado na cama do hotel onde Zuleica vivia. E ali ficou por dias, semanas. Até que o dinheiro acabou.

Não foi apenas Jura que se enrabichou por Zuleica. Percebia-se afeição entre os dois. Por um bom tempo, ela não atendeu outros clientes. Os dois, alegremente, dividiam pão com mortadela e guaraná. Mesmo quando Zuleica precisou voltar ao trabalho, continuaram dividindo o quarto. O inconveniente era que Jura precisava ficar na porta do hotel enquanto ela dava expediente. Mas, convencido pela lábia de Zuleica, o dono do hotel contratou Jura para o serviço de limpeza e cedeu-lhe o quartinho dos fundos. Jura conheceu outras mulheres que faziam programas ali. E foi um desacerto. Refestelou-se na esbórnia. Talvez tenha sido o tesão do mormaço, tão falado na sua terra. Ficava pensando no esculacho que levaria se Padre Leôncio aparecesse por ali. Certamente levaria petelecos. Nem saberia contar quantas doenças pegou, de quantas tratou. Só tomou jeito quando ficou maninho. Foi o médico que disse, e foi uma tristeza danada.

A amizade com Zuleica era o que lhe animava. E foi ela que o ajudou a arrumar os documentos, todos, e ainda cuidou dele durante as doenças. Tinha paciência de explicar tudo da cidade grande, ensinar as malícias nos tratos e nos destratos. Jura era desprovido de maldade, demorava a perceber a sutileza de insultos.

Certo dia, Zuleica contou que havia conhecido um sujeito estribado. Político lá das Minas Gerais, gentil, amoroso e que recebera proposta de se mudar para um apartamento de dois quartos, perto dali. Seria teúda e manteúda. E estava feliz, teria seu canto, sua privacidade. Mas havia imposto uma condição: o mineiro teria de permitir que Jura ocupasse um quarto do apartamento. E assim aconteceu.

A convivência era pacífica. O mineiro aparecia duas vezes no mês. Nestes dias, Jura dobrava turno no trabalho. Queria ser discreto, dar mais intimidade ao casal. E, ao contrário, nas folgas do trabalho, zanzava pelas redondezas. Caminhava ao léu, até encontrar o prédio em forma de peixe. Amor à primeira vista. A ondulação da fachada era o retrato do movimento da enguia nas águas do igarapé. E essa figura ziguezagueava nos pensamentos dele, dia e noite.

Foram várias visitas, e, a cada vez, os olhos apanhavam detalhes da construção ondulada, desenhada pelo mesmo homem que imaginou os prédios do Planalto Central. As curvas eram alucinantes, mexiam com o corpo. E Jura decidiu que um dia trabalharia lá. Persistiu. Semanalmente, perguntava ao porteiro se havia vaga para pessoal de limpeza. Foram meses, até conseguir colocação. E Zuleica foi junto quando ele levou a carteira de trabalho para ser preenchida. Dali em diante, era feliz feito passarinho. Cuidava da limpeza do térreo e do primeiro andar do bloco A, local movimentado, cheio de vida. 

Zuleica resolveu seguir para Minas, o político a assumiria como companheira. Antes disso, escriturou tudo certinho no Cartório e surpreendeu Jura quando lhe doou o apartamento e uma boa quantia em dinheiro, depositada no banco. Foi uma choradeira sem fim, talvez a única e última de que se lembrava. E, quando ela partiu, não sabia que seria o último abraço. Mas foi.  Meses depois, o casal foi para o estrangeiro, definitivamente.

A vida seguiu o rumo. Jura continuou só. Não havia do que se queixar. E chegou um momento de desvalorização assustadora dos apartamentos do condomínio em que trabalhava. Aproveitou a chance, vendeu o apartamento que Zuleica lhe dera e comprou outro ali, no primeiro andar do prédio em forma de peixe. Bênção. Incrédulo, nem conseguiu dormir na noite em que se mudou.   

Guardava apenas um desejo além do de retornar para a sua terra, onde descansaria. Queria ver o prédio lá de cima. Mas o pavor por altura nunca lhe permitiu tal façanha. Jamais falou sobre isso. Fazia algum tempo que relutava com o medo. Estava envelhecendo e precisava acelerar a proeza. Foi num domingo. Entrou no elevador, subiu até o trigésimo segundo andar. Nem raciocinava, não queria pensar em que altura estava, não queria que as pernas tremessem. Chegando lá, abriu a porta da escada de incêndio. Ficou um tempo parado. Fez o Em Nome do Pai, beijou o crucifixo do cordão, e foi alteando os pés na escada. Quando botou a cabeça acima do topo, o vento desenfreado lhe levou o boné. Agachou-se, instintivamente. Estava apavorado, mas não iria retroceder. Deu mais um tempo, esperou o coração desacelerar, foi erguendo o corpo aos pouquinhos. Havia mais dois degraus. Se subisse os dois, veria tudo com clareza. Segurando firme no corrimão, subiu. E o que viu jamais esqueceria. O serpenteado de concreto era ainda mais belo visto dali. Enguia gigante. Para não quebrar o encanto, ficou estático, sem olhar para os lados ou para baixo. Sentia vontade de gritar tanta beleza, mas nem a voz saía. A luta contra o medo e o êxtase do momento deixaram-no como Zé Mudinho. Feliz e sem fala. Esta foi a primeira e última vez que viu tudo aquilo. Ficou registrado.

E chegou o dia de voltar. Aposentado, sem nada mais que o prendesse ali, desfez-se de tudo. De sobra, apenas a mala de roupas. Já não mais a velha mala. Nova, de rodinhas, cheia de modernidade. Nem combinava com ele. E partiu sem olhar para trás, sem tristeza, sem remorso. Havia realizado um propósito. Feito.

 

As luzes são acesas, a comissária avisa que logo o avião pousará. Jura sente as pernas dormentes, a posição incômoda da poltrona desandou a coluna. Dá sapateadas no chão, massageia as coxas, os joelhos doem. Que sofrimento! E ainda vem esse pouso! A batalha do estômago reinicia. A voz do comandante enche o ar e avisa sobre o procedimento de pouso. Jura aperta os olhos, pensa nas contas do rosário. Ave-Maria, Glória, Pai Nosso, Salve Rainha, mas não reza. O avião baixa de pouquinho, parece descer escada. Cada degrau traz o estômago na goela. De olhos fechados, tem a sensação de estar de cara empinada para frente, feito passarinho em queda livre. Cerra os dentes com tanta força que sente a dentadura cortar a gengiva. Isso mesmo. A vida também lhe tirou os dentes.

Quando o avião toca a pista, abre os olhos e vê que está no nível da terra. E freia. Aperta os pés no estribo de descanso com tamanha força que os tornozelos estalam.

É madrugada, início. As portas são abertas e os passageiros saem por um túnel, diretamente para a sala do aeroporto. Depois de pegar a mala e chegar do lado externo do prédio, Jura sente a mormaceira, aquele calor melado que oleia a pele. De volta. Abraçado.

Desperta do enlevo com a chamada do taxista. Entra no carro e pede informação ao motorista. Quer saber como chegar a Iranduba. Qual barco deveria tomar? O taxista cai na risada.

− Homem de Deus! De que planeta você veio? Daqui até Iranduba vai pela ponte, e faz muito tempo!

Sem jeito, Jura dá uma risadinha e combina que é esse o trajeto a fazer. Menos de hora, lá está ele, diante do hotel em Iranduba. De frente para a igreja, que não é a mesma. Nem acredita. Sente vontade de andar, ver tudo, mas não convém. É madrugada e o corpo precisa de descanso. Clama por repouso.  

Dorme profundamente. Acorda com sol alto. Nem bem toma café, bota os pés na rua. Entra na igreja. Modificada, moderna, mas os santos são os mesmos. Junto ao altar, uma lápide com placa de mármore trazendo escrito o nome de Padre Leôncio. Ajoelha-se. Agora consegue proferir todas as rezas. Em silêncio, fala com ele. Agradece a oportunidade da vida que lhe proporcionou. Emociona-se. Depois, fica tempo sentado no banco da frente. Sem pensar, sentindo.

Dá uma volta no quarteirão. A casa paroquial imponente, nada parecida com a antiga, de muro alto e grades vazadas, mostram o belo jardim. Não há mais o orfanato. No lugar, um salão de festa imenso. Nada de ruas de terra. Na baixada que segue até o rio, lá longe, tudo é asfalto. Não há moitas de capim capiá, nem terra para arrancar minhocas. É outra cidade, estranha. Vagarosamente segue pelas ruas. Tenta associar algumas construções às lembranças que guarda. Algumas vezes, perde a noção de onde está. Muitos jardins, creches, escolas, ônibus circulando por todos os lados. Crianças brincam nos parques cobertos por arvoredos. Gente, gente... Estranhos. Tão estranhos como a gente que via nos parques de São Paulo. Afinal, carregamos em nós as estranhezas.

Hora do almoço, volta para o hotel. Na recepção, procura informações sobre casa à venda, sobre os amigos do passado. Recebe cartão de uma imobiliária. A cozinheira, passando por ali, ouve a pergunta sobre Zé Mudinho e fala que nada sabe sobre os outros nomes, mas que conheceu Mudinho. Morreu logo depois de Padre Leôncio, e está enterrado perto da capelinha do cemitério.

Banzeado, Jura perde o apetite e só trisca a salada. Descansa pouco no sofá. Sai, pega a direção do rio. As chuvas intensas continuam e a cheia é das maiores já vistas por ali. O tempo continua carregado. Por fim, ele chega ao igarapé da saudade. As águas quase cobrem todo o tronco da árvore onde amarrava a canoa. Está longe da margem, rodeada pelas jaçanãs. Jura acocora-se no barranco. As pernas doem, a caminhada foi grande.

O olhar de saudade busca as jaçanãs. Quer sentir o perfume, perfume de Zuleica. A doce Zuleica, bonita que só. Quer pescar e comer os jaraquis ticados de dona Zefa, quer mergulhar nas águas do seu igarapé. Queria tanto ter voltado antes...

Das nuvens carregadas, começam os gotejos. Chove de mansinho. De repente, um aguaceiro descomunal escurece tudo, e a cortina de água turva os olhos. Jura olha para o rio. As jaçanãs se desprendem da raiz, a cheia arrebentou-lhes os cordões. E elas seguem se distanciando da árvore, adentrando o rio. É a morte. Sem flores, sem perfume. Jura mergulha nas águas, dá braçadas enérgicas, faz piruetas, sai em busca da flor de jaçanã. Quanto mais se debate, mais a flor se distancia.

No hotel, apenas a mala o espera.

 

                                                                                     

Regina Ruth Rincon Caires

Campinas/SP

 

 

 





terça-feira, 20 de abril de 2021

O QUE GUARDA UM GUARDA-ROUPA



Não sou capaz de precisar o tempo, talvez estivesse beirando os quatro 

anos, quando vi minha mãe amparada pela minha avó, num crepúsculo de um 

dia qualquer, entrar pela casa e caminhar a passos frágeis até o quarto 

onde dormia com meu pai. 


Pela porta entreaberta o olhar espantado de eu menininho nem piscou. 

Minha mãe abriu o guarda-roupa e abraçou de uma só vez o que estivesse 

em cabides: ternos, paletós, calças de linho e tergal, casacos, camisas 

de cambraia, capote de chuva. E enlaçou para si tudo com tanto fervor, 

desespero e lágrimas, como se abraçasse com paixão o dono daquela rouparia 

que ali permanecia indiferente ao recente acontecimento. 

Abraçou com todo o amor que cabe entre braços sinceros, tal como recebia 

o marido quando chegava pouco antes do jantar, depois de perambular 

pelo Rio de Janeiro fechando negócios de seguro. 


Diziam que meu pai mexia com seguros e era um bom vendedor. Tenaz, simpático 

e convincente, que de porta em porta de casas distantes trazia para a nossa 

um bom viver no que chamam de amoroso lar. 


Isso é que me diziam sobre meu pai, que, com tamanha vontade minha de ouvir 

repetidamente sobre sua pessoa, gestos, atitudes histórias e cheiro, acreditava 

acompanhá-lo em suas andanças. Mentira. Me recusava a crer que numa dessa idas 

e vindas pelas esquinas da formigante Avenida Central estivesse eu ao seu lado 

quando um táxi desembestado o levantou para o alto, deixando meu pai lá em cima 

para todo sempre. 


Dizem que minha mãe não derramou uma lágrima no velório, corriam cochichos que 

portou-se como uma dama da alta nobreza tijucana, recebendo a todos com a 

dignidade alinhada de uma Jackeline Kennedy. Mas perdeu as estribeiras quando 

a urna baixou sepultura. Tiveram que conter o esperneio na medida do compreensível, 

mas não a borrasca de prantos, soluços e gritos amaldiçoados contra o destino. 

E assim a trouxeram em estado lastimável para casa, sem um sapato. 


Minha mãe era uma professorinha formosa e não merecia tão bruta interrupção na 

normalidade da vida. Muito menos eu, filho único de quase quatro anos, não merecia 

não me permitir mais andar agarrado nas pernas do meu pai, pisando firme sobre 

seus sapatos reluzentes por tudo quanto é canto da casa. 


Disso me lembro com importante nitidez: o calor de suas mãos me assegurando 

cumplicidade e seu vozeirão aveludando o hino da Cavalaria, “tu és na guerra 

a nossa estrela guia.” Foi desse jeito que venci a Batalha de Waterloo nas fileiras 

napoleônicas e resisti à blitzkrieg nazista contra a Polônia, evitando a Segunda 

Guerra Mundial.  Do alto dos sapatos do meu pai eu era o herói. 


Mas nada é tão vivo, mais que seus bigodes bem aparados, mais que seu perfume 

discreto de Lancaster flutuando pela casa, mais que seus abraços na minha mãe 

- que sempre terminavam no quarto do casal - nada é tão existente quanto seu 

guarda roupa, dias depois, esvaziado de ternos, camisas, calças, calçados, 

desengavetado de meias, lenços, cuecas samba canção de presilhas que faziam tlec, 

abotoaduras douradas ou prateadas conforme a cor da gravata.  

Permaneceu monumental o armário de jacarandá, entrando pela minha adolescência 

de herói sem cavalo como a real lembrança do breve pai. 


O resto é memória que aflora com a certeza fantasiosa de que fora vivenciada, 

de tanto minha mãe, meus avós e a parentada me contarem sobre meu pai. Ai de 

quem duvidar que não vivi, tal a clareza e a preciosidade dos detalhes. 


Numa certa tarde, voltando de bonde do Ginasial, minha mãe me esperava no portão 

e me chamou para uma conversa na beira do sofá da sala. Ela segurou minha mão e 

senti seus dedos de unhas bem feitas trêmulos, frios, suarentos. Ela suspirou, 

fechou os olhos e confessou que estava apaixonada, como se de mim carecesse 

alguma permissão. Falou de um médico distinto, solteirão, poliglota, culto e 

com sérias pretensões em se casar com ela. 


Foi um choque. Não me imaginava cavalgando por outros pés. Como os sentimentos 

legítimos e imediatos às vezes batem de frente com a razão, compreendi que a 

formosa professorinha, depois de sobras de luto e choramingo por quase dez anos, 

merecia recompor a vida. 


Noites seguintes, sonhei com um irmãozinho ou uma irmãzinha, já que a companhia de 

um cachorro sempre me foi negada, me levando a brincar, prosear e brigar com amigos 

imaginários, coisa que fazia minha avó dizer que eu falava com as paredes. 


A confissão da paixão da minha mãe e o consequente desembarque do distinto médico, 

se durante o dia trazia de novo uma rara mulher ensolarando a casa, à noite me abria 

um céu de tempestades e medos da escuridão. Acordava suado de madrugada a ponto de 

repetir um ritual, um mecanismo de defesa contra tormentos noturnos: entrar de mansinho 

no quarto deles, ver os dois de conchinha, nas profundezas de um sono restaurador, 

talvez depois uma suposta sessão de saliência devida e merecida -  duro de imaginar 

para um filho único, ainda mais sem a concretude de um pai biológico. 


Mas não me cabiam raiva, mágoa, sentimentos corrosivos, havia uma tarefa soberana, 

rotineira e clandestina a cumprir: abrir o guarda-roupa em silêncio, respirar o seu 

vazio, me embriagar do discreto perfume de Lancaster que jamais deixou o lugar. 

A conferida sorrateira toda noite no guarda-roupa, tal como uma celebração da pureza 

da vida tenra, sossegava minhas aflições. 


O armário de jacarandá oco com seus gavetões vazios entulhados de memórias estava 

preservado e só pertencia a mim e às lembranças do menino herói. Um templo mágico 

e eterno, sem sinais de invasões estrangeiras. 

Sábia professorinha formosa. 







segunda-feira, 19 de abril de 2021

Cada-falso

 


Na sexta-feira, véspera de carnaval – um carnaval pró-forma, porque estamos em quarentena e não havia nada que aludisse ao nome da fornicação –, Lise me ligou para um almoço ocasional, como se não quisesse nada. Ela estava tranquila, aparentemente. Não senti nenhuma alteração na voz, nada de hesitação. Claro, disso eu sei, ela é fria – ou tenta se fazer de durona. Respondi-lhe como se não houvesse nada de anormal naquela conversa. O que me inculcou foi o fato de Lise saber o meu novo número. Alguém, por maldade, teria liberado a informação. Mas quem? Não importa, não farei o mínimo esforço para descobrir. Deve ser um dos meus trinta desafetos. Lise, na época em que trabalhamos juntas, foi uma boa parceira, considero assim. Trocávamos figurinhas, sobre os casos do Bernardo, o sonso do administrador, casado; a completa falta de senso de ridículo, com a fauna de roupas esdrúxulas, da Luísa, a “gestora”; o descompasso de Cinira, que, não raro, quebrava copos, arrancava fios, lesionava pessoas, involuntariamente, porque não tinha controle nem percepção de espaço – vivíamos, por isso, longe dela –; e, óbvio, arranjávamos motivos, vários, para falar mal do chefe, que, ao contrário, se portava como bom moço, sendo intitulado não como chefe, pela maioria, mas “líder” – essas coisas de modernidade coaching; de bajulação. Lise e eu somos ferinas, quando queremos – e quase sempre queremos. Uma hora ou outra poderia sair faísca; de dois polos altamente inflamáveis – sabíamos disso e dosávamos as distâncias. No fechamento do mês de setembro, atulhada de boletos para pagar e transferências para fazer, Lise apareceu na sala, demandando a minha presença, urgente. Não explicou nada, de início, insistindo para que a seguisse; e eu confiei cegamente. Ademais, no fim das contas, eu era subordinada a ela; mas uma subordinação de fachada, porque sabíamos os podres uma da outra. Lise, imediata do chefe, tinha acesso livre ao quarto escuro; um troço sinistro, abandonado. Era tratado como mero “quarto de entulhos”. Despejavam os cacarecos ultrapassados, máquinas do tempo da internet discada; coisas absolutamente descartáveis e desnecessárias. O chefe, sendo um homem de vanguarda, não admitia um computador com mais de três anos de uso. Quando dava um problema, ele não mandava ajeitar; e, sim, jogar no “entulho”, para, futuramente, fazer dinheiro com a carcaça. Todos os pensamentos da águia eram direcionados ao dinheiro. Pois bem, era horário de almoço; eu não tinha ido almoçar, para adiantar o serviço, e fui envolvida nessa situação. Assim que entramos no quarto, o que me tomou foi o arrepio; parecia uma cena de filme de terror. Não havia luz. Andávamos com a lanterna do celular de Lise, afastando as teias de aranha. Tudo isso era proposital; você vai entender. Lise batia na parede, oca, para mostrar que seria mais que um simples quarto. Num ponto específico, atrás de um quadro imenso, destroçado pelo cupim; desses de museu, com a pintura, de corpo inteiro, de um rei do período medieval, notamos uma falta de uniformidade com o restante; dava a perceber ser uma portinhola maciça. Tentávamos, a todo custo, encontrar um trinco, um botão ou alavanca que abrisse aquela estrutura. Coisa de filme: Indiana Jones, com a produção de Steven Spielberg. Sabida – um cão farejador quando quer –, Lise encontrou um botão camuflado no peito do rei da citada pintura. Ela apertava e não acionava nada. Já frustradas, e eu desencorajando a investida, pois o período de almoço estava prestes a encerrar, pedi que abandonássemos a missão enquanto era tempo; que outro dia viríamos concluir o serviço – quando, na minha mente, pensava que eu teria mais o que fazer. Lise, então, apertou ainda com mais força, quase a ponto de arrebentar o fundo de madeira. O portal se abriu. Caramba, ficamos embasbacadas. Não saiu nenhuma luz ou raio, como no filme O templo da perdição. Lise fez toda a encenação, direcionou a lanterna do celular para o fundo do buraco, movendo-se como uma arqueóloga experimentada, que acabara de encontrar a múmia de Tutancâmon. “Pode ter algum alarme aqui. É preciso assegurar que não há nenhum sensor”. “Ô, Lise, não viaja! Vamos logo com isso!”. “Xiiiiii!”, ela me repreendeu, com a cara de fera que faz quando está com raiva; com o indicador vertical, cortando a linha de seus lábios. Senti-me como no assalto ao Banco Central. Quis abortar a operação. Ela determinou, recorrendo ao poder de superiora, zangada: “Você veio, então vamos terminar isso juntas!”. Não havia nenhum sensor aparente. Lise passava as mãos nas paredes do buraco. Uma barata correu por sua mão, usando-a como ponte para sair do esconderijo. Ela, sendo impassível como uma bandida, não reagiu. Deu-me ânsia de vômito. Fiquei engulhando por uns dois minutos, e ela tapando a minha boca, atrapalhando a respiração. Sentei-me no chão, já não aguentava mais. O ambiente, também, causara uma sensação que nunca mais havia sentido: claustrofobia. Lise estava puta da vida comigo, queria me xingar e me bater, dava para ver em sua feição diabólica, possuída. Se ela pudesse, ou se eu perturbasse os seus planos mais um tiquinho, me mataria. Nas minhas contas, estávamos ali, suadas, abafadas, ridículas, por uns dez minutos; mais dez, todos estariam em seus postos. Pedi que, pelo amor de Deus, agilizasse; que eu estava passando mal. “Maldita a hora que eu resolvi te trazer! Merda!”. Lise vasculhou, enfiando a cabeça no buraco. A decepção: ela achou uns trecos antigos, enferrujados e sem utilidade: relógio de bolso quebrado; uma minivitrola, com um tubo ou um cone virado para cima; uma dúzia de broches, que mais pareciam de latão, com umas pedras vagabundas; e, para finalizar, um par de sapatos velhos, mais ainda lustrosos, com um ligeiro salto e uma fivela à frente. Lise não gosta de velharia. Fechou a porta da toca com tanta raiva que faltou pouco para desmoronar o recinto. Talvez a pobrezinha esperasse encontrar dinheiro vivo ou barras de ouro. Tive pena de sua desilusão. Ela não é acostumada a perder. Os dias passavam, arrastados, pesados. O trabalho infernal triplicou, e o santo do pau oco do chefe dizia, como um gravador emperrado, que o nosso trabalho era uma porcaria; que mais dia, menos dia, nos colocaria no olho da rua se não resolvêssemos “isso”. De fato, nos colocou, para dar lugar a uma novinha, bonitinha e ordinária, sem carreira, recém-saída da faculdade; umazinha para fazer o serviço das duas, ou para fazer “algo mais”, que desconfiávamos ser a razão da despedida. Lise achava muito estranho anos e anos na empresa degringolarem tão rápido, depois daquele episódio. Passamos, as duas, dois meses desempregadas. Por um milagre, Lise me ligou, primeiro, para falar que haviam surgido duas vagas na Ambev, e queria que eu fosse com ela – decerto não me achava uma concorrente à altura; para fazer uma média, pagar de amiguinha, com a intenção de se reaproximar. Mas a bomba estava por vir: no bendito almoço, ela me mostrou a capa de um jornal, que havia comprado para guardar de recordação. Eis que a imagem do supremo líder despontava, também, no televisor do restaurante: “Empresário é preso por suspeita de chefiar uma rede de contrabando de artigos de personalidades históricas, como os sapatos do rei decapitado, Luís XVI, e broches com pedras preciosas, da rainha Maria Antonieta, que teve a mesma sorte do marido na Revolução Francesa. Os pertences, que estavam perdidos há séculos, ficarão provisoriamente sob os cuidados da Pinacoteca, em São Paulo”. Lise não sabia se chorava ou se ria. “Mulher, eu peguei nos sapatos do rei. Tu tem noção? Se eu tivesse pegado um brochezinho daquele, estaria rica!”. “Ainda bem que tu não se sujou, né, amiga? Já pensou tu metida nesse bolo?”. E sorrimos, comendo bife à parmegiana, em homenagem ao antigo chefinho; era o seu prato preferido.