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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Miúdo chão: belezas


Não me canso de recolher as belezas baldias que pousam “no chão breve do cotidiano” (Alexandra Rodrigues). Não me canso de espalhar o que transborda da minha arca de nonadas. Hoje, retiro da minha arca três dessas belezas.

Penso que a delicadeza devia ser pauta obrigatória no convívio humano. Quando ela passa a chamar a atenção, algo vai mal, mas vai mal demais. Certa manhã, uma delicadeza passou veloz pela minha retina e quase que não a percebo. O alvo da delicadeza foi um moço que encontro na parada, dia sim, dia não. É bem possível que ele seja vigilante de algum prédio das redondezas (em se tratando de Brasília, melhor seria dizer das quadradezas). Preocupado com o meu próprio ônibus, ainda assim percebi o moço correndo (e muito) para longe da parada. Bem à frente, uns cinqüenta metros além da parada, havia um ônibus parado. Era em direção a esse ônibus que o moço corria – e levava estampado na cara o mais largo e agradecido dos sorrisos. Não teria me perdoado se tivesse deixado escapar a magia daquele gesto poético tão gratuito, tão fugaz, tão feito para a desatenção de todos nós. Eu senti em mim a felicidade do moço que, graças à delicadeza de um motorista para quem a vida não deve ser nem um pouco delicada, pôde economizar um bom tempo de espera pelo próximo ônibus. E se o moço era um trabalhador da noite, como eu presumo, a pressa de chegar em casa devia ser grande. Daria tudo pra ter embarcado no mesmo ônibus apenas para testemunhar, uma vez mais, a cara de felicidade do moço, ouvir o que conversaria com o motorista emissário do gesto poético. Desejaria ficar mais tempo próximo daquela vibração de delicadeza tão rara nesses tempos ásperos e desesperançados. Fico feliz de ter aprisionado aquele flagrante de beleza que cruzou meu campo de visão em vôo ultra-rápido. O que vi e mal descrevi vai inteiro para o estojo da memória. E na alma fica o desejo de que outros gestos poéticos, tão mágicos quanto este, cruzem o meu (nosso) caminho. Assim seja!
* * *

Estendi minha fidelidade ao restaurante Green’s, que ia de segunda a sexta, até o almoço do sábado. No sábado gosto de almoçar um pouquinho mais cedo – pouco antes do meio-dia. Eu e um casal simpaticíssimo que me chamou a atenção desde o primeiro almoço. De cara pensei que fossem os dois, Sr. Carlos e Sra. Cecília, pais do dono do restaurante. Desconfiei disso porque todos os funcionários da casa iam falar com eles. E foi isso que perguntei à moça do caixa. Não, não são pais do dono. São clientes normais, fidelíssimos como eu, inclusive quanto ao horário. Encontro-os todo sábado, mas ainda não falei com eles. Gosto mais de observar, de entreouvir conversas, de participar calado – mas atentíssimo. O nome deles descobri graças a uma pequena delicadeza do proprietário. Na mesa que eles ocupam há uma plaquinha: “Reservado. Sr. Carlos e Sra. Cecília”. Achei lindo. Antes de se servirem, cada qual pede um suco. Ele, abacaxi com hortelã; ela, beterraba. Calculo que eles tenham coisa de 75 anos. Dona Cecília está com uns curativos num dos joelhos. Talvez uma queda acidental. O Sr. Carlos senta-se de costas para mim. Dona Cecília vejo bem. Quando saio, eles ainda nem começaram a se servir. Dona Cecília parece meio dona do lugar: dá ordens (severa sem deixar de ser delicada), manda ligar/desligar ventilador, observa coisas fora do lugar, chama a atenção dos garçons... Melhor dizendo: chama a atenção dos filhos. É um pouco assim que ela os trata; é um pouco assim que os funcionários os tratam – como pais. Tudo muito bonito de se ver. Vendo aqueles dois tão harmoniosos, tão entregues ao apetite de viver, não importando que estejam em pleno crepúsculo e a noite talvez não tarde a chegar, sinto vontade de aplaudir a Senhora Dona Vida coberta de ouro e prata.

* * *

Há quem pense que só olho para o próprio umbigo. Se fosse verdade, responderia com estas palavras do poeta Manoel de Barros: “Não tenho forças para desencostar-me”. Eu penso que a realidade é bem outra. E não poderia ser diferente: gosto tanto de observar meus vizinhos de vida que me esqueço de mim. Não fosse o gosto de observar, eu não teria sido agraciado com a cena que passo a contar. Após o café e a leitura de toda manhã, prazeres sagrados, reservo uns minutinhos para gastar numa banca de revistas ao lado da cafeteria. Lá compro jornal às segundas e quartas, além de algumas revistas ao longo do mês. Pois foi nesses minutinhos que testemunhei uma cena linda. Uma mulher entra na banca, cumprimenta as atendentes e vai em direção da dona, a Almira, dizendo: “Dê cá um abraço que hoje eu tô precisando de calor humano!” E dá um longo abraço na dona. A mulher é funcionária de alguma loja vizinha – e funcionária da cozinha, pois estava com uma touca nada fashion na cabeça. Conversaram um pouquinho, a mulher perguntou quanto devia, reclamou de algumas revistas etc., e eu retardei o quanto pude minha permanência na banca apenas para acompanhar aquela manifestação espontânea de afeto, aquela lindeza de despojamento e simplicidade. Afetei desinteresse folheando disfarçadamente uma revista... De verdade, eu só tinha atenção para o que falavam as duas, para a beleza do ordinário que sempre irrompe sem aviso. Eu tive de sair antes que elas se despedissem, mas saí feliz de a manhã ter posto um sorriso na minha alma de forma tão gratuita e inesperada.





quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Intragável



Ele abriu o novo tablete e colocou sobre os restos da manteiga velha que resistiam no fundo da manteigueira, já arados pela faca de serra. Sabe-se lá há quanto tempo vinha fazendo isso.

Ela tentou comer, mas deixou a torrada no prato e o afastou sutilmente em direção ao centro da mesa. Tentou distrair-se lendo o jornal, mas ao tentar virar as páginas sentia como se estivesse com as pontas dos dedos oleosas, rançosas.

Quando ele levantou, já atrasado, e tentou beijá-la, o afastamento brusco, com o rosto virado para o lado, foi inevitável. O casamento acabou, de fato, naquele instante.







terça-feira, 26 de novembro de 2013

Um personagem em busca de seu autor - Tão longo amor tão curta a vida, de Helder Macedo


Tão longo amor tão curta a vida. O título do mais recente romance do português Helder Macedo (1935) e lançado agora pela Editora Rocco é também a última estrofe do soneto Sete anos de pastor Jacob servia, de Camões. Jacob, sabe-se, ficou com as duas irmãs, Raquel e Lea. 

Victor Marques da Costa é um diplomata português que está em Londres para uma conferência sobre o Oriente Médio. Sobre uma Líbia sem Kadafi, sobre uma Síria com Bashar, sobre o Irã. Ele aparece, repentinamente, na casa de seu amigo, um conterrâneo, escritor (Macedo?). Aflito, dizendo-se vítima de um sequestro, começa a contar-lhe uma história, tão interessante quanto improvável. O diplomata admira o amigo escritor, que no entanto não tem tanta certeza assim deste apreço. 

O escritor então começa a ouvir a história do atormentado amigo, que um dia conheceu uma certa Lenia Nachtigal, quando servia em Berlim Oriental em seus últimos dias. A história que conta é confusa - a jovem, filha de agente da Stasi, é cantora lírica. Resolve atravessar o Muro e, ao que parece, nunca mais é vista. A partir daí, Victor Marques da Costa está à sua procura; a cada ópera que assiste pensa tê-la finalmente encontrado.

Mas Macedo começa a duvidar desta história. Num momento que lembra Machado de Assis (de quem é admirador confesso), desabafa: "convenhamos que até agora tenho sido um autor disciplinado e comedido, reduzindo ao mínimo as minhas intervenções pessoais" - e completa: "Longe de mim ser um daqueles oportunistas pós-modernos que aproveitam os leitores estarem distraídos com a vida dos outros para se meterem logo à frente da narrativa". 

O fato de o amigo diplomata estar com a camisa ensanguentada o leva a pensar se não seria ele o autor de algum crime. Um assassino, talvez. Desiste de escrever o romance ao qual vinha se dedicando. Lenia conhece uma outra Lenia, uma brasileira, filha de empresário, uma Lenia Benamor - "É, no Brasil as vogais se abriram com o calor". Esta, por sua vez, quer encontrar o antigo amante da recém-conhecida.

Macedo então resolve contar a sua versão da história que acaba de ouvir. Torna-se tão personagem quanto o próprio Victor Marques da Costa. A trama vai se enrolando cada vez mais - e os limites entre realidade e ficção perdem-se quase por completo.

Victor Marques da Costa busca incessantemente por um autor - que finalmente encontra, como também encontram as duas Lenias e Otto - o funcionário da embaixada portuguesa na Alemanha Oriental. Como em Pirandello, quatro personagens em busca de um autor.





Leite quente

Amamentação. Palavra cheia de vida, que alimenta e fortalece. Por outro lado, na crueza do dia a dia, prática que enfraquece as leiteiras e as condena à perda do viço. Porque é batata: enquanto o bebezão cresce e ganha dobras, a mãe definha e perde a sã consciência. A criadora é consumida pela cria, coitadinha (da mãe). 

O pós-parto é momento de exaustão, perda de memória, desligamento, desvario. Durante a licença de 120 dias — ou 180, se a mãe for muito sortuda, digo, uma agraciada funcionária pública —, os meses, horas e segundos se resumem a dar leite, muito leite, em irregulares e ininterruptos intervalos, que desrespeitam a madrugada e ferem de morte a saúde do sono. Pensa que é fácil ver grudado ao peito, pendendo nos braços e coluna, o bezerrinho que ganha gramas, quilos, arrobas?

Pois eu conheci uma mãe condenada a cumprir nove anos de xilindró só porque amamentava. A maior injustiça. Certamente o juiz nunca conviveu com uma nutriz (palavra mais linda, hein?). Foi assim: a tal mulher, Letícia, pôs para ferver numa panela seus dois protetores de mamilo — aquelas conchas de silicone usadas entre o sutiã e os peitos, que servem para aparar as perdas de leite. São apetrechos muito úteis, que livram as pobres vacas holandesas da vergonha de serem vistas com as blusas ensopadas bem nos alvos. Como fazia todos os dias à noite, Letícia largou as conchinhas no fogão e deitou-se ao lado do berço do filho. A ideia era só descansar até a água borbulhar; mas a mulher adormeceu rápido, logo alcançando o mais abençoado dos sonos e sonhando o mais intenso dos sonhos. Esqueceu-se, é claro, de desligar o fogo. 

E como as tragédias não dão trégua nem para as estéreis tampouco para as férteis, calhando no seco e no borbotoante, o pior aconteceu: a borracha do silicone derreteu, a panela virou chama, o botijão de gás explodiu, os barracos de madeira vizinhos se contaminaram, a rede elétrica e suas gambiarras deram curto, a fumaça e as labaredas tomaram conta de tudo. Por causa do engarrafamento nas vias, o acesso ficou difícil e o socorro dos bombeiros demorou a chegar àquele que era o subúrbio de uma moderna metrópole. Assim, de explosão em explosão, no mês mais seco do ano, cidade e vegetação próxima foram se consumindo no inferno causado pela culposa negligência da doce mãezinha. Com a boa intenção de dar um peito asseado ao filhote, a mãe provocou um incêndio gigantesco, a morte de oito criaturas desmamadas e a destruição de centenas de residências e estabelecimentos comerciais. Sr. Osvaldo, o padeiro que vendia leite de cabra, foi uma das vítimas do incêndio. Em quase duas horas de fogo, o cenário virou carvão.

Letícia saiu ilesa do fogo. Nenhuma queimadura sequer. Tudo ao redor tostou e ruiu, enquanto ela e seu gorduchinho nada sofreram. Quando acordou, cutucada pelos peritos, assustou-se com todo aquele cinza e a catinga de queimado absoluto. Era hora de amamentar, pensou, sem o menor sentimento de culpa. O bezerrinho começava a berrar de fome. Os seios da criminosa jorravam leite.





segunda-feira, 25 de novembro de 2013

– Natal é todo o ano!


Joaquim Bispo 



– Todo o ano? Qual Natal, pai, o dos nascimentos ou o das prendas?
– O nosso, que não fazemos outra coisa senão presépios, anjinhos e outras figurinhas alusivas, em barro.
– Estas meias-pinhas não têm muito que ver com o Natal…
– Meias, não, Tiago. As metades de baixo que estás a moldar… Pressiona bem esse barro no molde, para não ficar com falhas! Dizia eu, as tuas metades mais as de cima, ali da tua mãe, unidas e retocadas por mim, fazem pinhas inteirinhas e, depois de irem ao forno, ficam bem bonitas.
– Eh!
– É uma peça barata para oferecer como gentileza, nesta época. Não é um presente de marido para mulher ou de avô para neto, mas é uma boa ideia para oferecer entre colegas de trabalho, ou entre amigas. Como sabes, há até empresas que as compram às dezenas para acompanhar outras prendas aos empregados.
– Sim, eu sei, não é a primeira vez que venho ajudar; mas o que é que têm que ver com o Natal?
– O Natal reteve muitas das práticas das festas pagãs dos antigos, para festejar o solstício do inverno. Mantém uma grande ligação ao campo, à floresta. E pinha lembra floresta. Não é, Teresa?
– Com certeza. E fogo. Sequinha, é a melhor acendalha que há. Nas aldeias, ainda hoje se acendem grandes madeiros, no adro da igreja. Já viste, lá na Amieira, o povo todo à volta da fogueira na noite de Natal! Pinha, fogueira e Natal andam associados.
– E essas bolinhas?
– Azevinho. Algumas pessoas também ornamentam as casas com ele, quer as ombreiras das portas, quer as lareiras e as mesas. Estas bagas, que hão de ser pintadas de vermelho, e estas folhas, aqui em cima da pinha, são de azevinho.
– Salvo seja, mãe!
– Olha que não estão nada más! Zé, tens aqui mais cinco.
– Aonde é que vamos passar o Natal, este ano?
– Então, vamos à Amieira! O ano passado foram os tios que vieram cá…
– À Amieira?! Ganda seca! Porque é que não vamos para o Algarve?
– O Natal é a festa da família, Tiago. Se não estivermos reunidos nesta altura, só nos vemos nos enterros.
– Tiago, oca bem essa metade! Se o barro ficar muito grosso, estala na cozedura.
Fogo! Os tios só me oferecem livros com histórias que não interessam nem ao Menino Jesus.
– Se calhar não te fazia mal nenhum lê-los, em vez de estares sempre agarrado à consola de jogos.
– Bela consola, esta! Estou todo consolado! Já deito pinhas pelos olhos!
– Tiago Manuel! Não menosprezes este trabalho. Cada uma rende pouco, mas se vendermos seiscentas como no ano passado… Dão mais do que meia dúzia de presépios como aquele ali, que já me leva uns cinco dias de trabalho. Ali, debaixo daquele pano húmido! A propósito, lembras-te de a tua mãe dizer que não era muito lógico o pastor levar uma lebre no braço?
– Sim, até apostaste com ela um lanche na pastelaria. As apostas forretas do costume! O que é que tu dizias, mãe?
– Que fazia mais sentido ser um cabrito ou um borrego. Se é um pastor…
– Pois! Mas o que me parecia ver na estampa da Adoração dos pastores era uma lebre. No domingo de tarde, enquanto estavas para o cinema, eu e a tua mãe fomos de propósito ao Museu de Arte Antiga tirar as teimas. Realmente, ver o quadro do pintor Gregório Lopes, ali mesmo à nossa frente, é outra coisa! Fiquei convencido de que é um cabrito. Perdi! Sempre me tinha parecido uma lebre.
– Não ganhei grande coisa nessa aposta. Se fosse o Euromilhões! Zé, o que é que tu gostavas que eu te desse, agora no Natal, se me tivesse saído muito dinheiro?
– Uma autocaravana.
– Assim, levas uma camisa, oh-oh!
– Eu quero uma viola elétrica.
– Para quê? Tu não sabes tocar!
– Como é que eu posso aprender? A ver telediscos?
– Já tens uma acústica, de madeira.
– E toco! Mas a música agora tem de ter amplificação e encher o espaço.
– Era só o que nos faltava – barulheira. Eu gosto pouco de barulho.
– Então um leitor de mp4. Com auscultadores.
– O que é que achas, Teresa?
– Eu não me importo. Só tenho medo que ele fique surdo como o filho do vizinho. Andava sempre com aquilo nos ouvidos, que não dava por ninguém. E ao teu irmão, o que é que havemos de dar?
– Isso é que é mais difícil! Ele já tem tudo. Também não lhe vamos dar uma moto de água, para andar na barragem, que é só no que ele fala agora!
– Tem de ser uma coisa boa!
– Mesmo que ele já tenha, mãe?
– Uma camisola faz sempre falta. Mas das boas, que lá o frio até corta. Fancaria é que não. Como uns brincos de pechisbeque que o teu pai me deu uma vez.
– Gostaste deles, confessa!
– Eh! Estávamos casados só há um ano. Não ia dizer que não gostava ou que não queria. Estão para ali. Passa-me essa espátula, Tiago.
– Já estou cansado…
– E se fizéssemos uma pausa para lanchar, Zé?
– Sabem o que me apetecia agora, com esta conversa? Uma filhó.
– Ainda bem que falas nisso. Este ano, estamos a atrasar-nos. A ver se amanhã vou comprar farinha. No sábado que vem, amasso-as, e à noite fritamo-las.
– Eu viro-as.
– E eu espalho o açúcar por cima, posso?
– Vai parecer o presépio.
– Falta o burro e a vaca. Não querem convidar os vizinhos do rés-do-chão?
– Tiago Manuel!
– Tiago Manuel…





domingo, 24 de novembro de 2013

CRÔNICAS LONDRINAS – PARTE II

PERDENDO-ME EM LONDRES

Não gosto de mapas. Quando viajo pela primeira vez a uma cidade, prefiro simplesmente caminhar ao léu; pois acredito que, desse modo, posso descobrir, fora das rotas turísticas, lugares igualmente maravilhosos. Ainda que, paradoxalmente, escolha sempre um local conhecido para iniciar minhas andanças: Umeda, em Osaka; Praça da República, em São Paulo; e, no caso de Londres, como não podia deixar de ser, o Big Ben. 

A famosa “torre do relógio” é visualizada tão logo se saia da Estação de Westminster – e imagino o calvário de quem trabalha nas redondezas, tendo que deparar-se, todos os dias, à saída da estação, com uma legião de turistas, fotografando e atrapalhando o caminho do cidadão britânico. Mas, como a timidez não é um de meus atributos, continuei a pedir a quem surgisse pela frente para que me fotografasse, tendo como pano de fundo o acima referido Big Ben, a estátua de Churchill, a Abadia de Westminster... enfim, tudo que parecesse historicamente britânico (numa dessas, confundi-me e, perguntando ao meu fotógrafo quem era o grande vulto inglês eternizado no monumento, ele respondeu-me: “Mandela...”).

Na famosa Abadia de Westminster, “preferi” não entrar. E por duas razões: a multidão que lá estava (sim, sou agorafóbico) e o preço (oitenta pounds?... No, Sir!). Mas a simpática Igreja de St. Margaret, no mesmo terreno, foi uma grande recompensa espiritual: lá, uma princesa foi sepultada, e Churchill (ele, de novo!) casou-se. E foi nesse templo que orei e fiz um pedido; como costumo fazer quando visito uma igreja pela primeira vez.

Saindo de St. Margaret, continuei minha peregrinação: almocei em “St Stephen’s Tavern”, o pub onde os políticos ingleses costumam encontrar-se, e iniciei minha caminhada rumo ao Palácio Buckingham, atravessando da Ponte de Westminster até a Ponte Hungerford (entre elas, podemos visualizar o recente London Eye (o “Olho de Londres”))...

E foi exatamente ao descer de Hungerford que deparei-me com a primeira surpresa: um modesto edifício – até bastante escondido, achei –, cuja pequena placa anunciava, numa tradução aproximada: Aqui viveu o Poeta Heinrich Heine... Só naquela frase, pensei de imediato, a viagem já havia valido a pena.

Dessa forma, entusiasmado com a descoberta, decidi continuar minha desnorteada caminhada em busca de mais literatura. E não me arrependi: pois, ainda na mesma tarde, meus irrequietos sapatos me levariam a Baker Street...

Mas essa já é uma outra história, meu caro Watson.

***







sábado, 23 de novembro de 2013

Ser feliz – um poema ao invés de um conto

Ideia demais atrapalha? Eu acho que não, o que atrapalha mesmo é falta de foco.

No início do mês de novembro, separei algumas ideias para escrever um conto especialmente para a SAMIZDAT, porém havia esquecido que novembro era o mês do  NaNoWriMo. Basicamente é um projeto  que desafia escritores ao redor do mundo a escreverem um romance em um mês. Aceitei o desafio.

Logo nos primeiros dias percebi que se não focasse na escrita do romance, reservando horários para escrever eu não conseguiria finalizá-lo.

O conto ficará para o próximo mês, por hoje deixo os com um poema que estava (estou) trabalhando.

Ser feliz 

Ser feliz é aceitar que tudo passa,
que nada é eterno,
que amores acabam,
que amizades passam.

É aceitar que um dia você sorri
e no outro chora.
Que você cai,
que as coisas não dão certo,
que as pessoas magoam,
que os amigos magoam.

Ser feliz é aceitar.
É entender que tudo passa.

Que nada é eterno,
nem mesmo, a dor da perda.

Ser feliz é entender
que o tempo passa,
que as coisas mudam.
É entender
que os amigos vão e vem,
que alguns permanecem,
que às vezes amizades se renovam,
e novas amizades.

É entender
que surgem novos amores.

A vida continua.
Que tudo continua.

Ser feliz é perceber que tudo na vida é passageiro,
que não adianta tentar prender aquele segundo de felicidade,
por que quando você tentar
já passou.

É perceber que você não pode segurar a felicidade
e que isso é bom,
porque assim
você também não segura a tristeza.

A felicidade é a água do mar,
às vezes fria outras quente,
o segredo é aceita-la como ela é.

pode ser fria como a tristeza, mas boa para refrescar,
ou quente como a paixão e boa para aquecer,
ou morna, parada para se renovar.

Por isso eu digo, ser feliz é aceitar,
aceitar momentos tristes e alegres,
novos amores e rompimentos,
ser feliz é estar em harmonia com tudo que a vida nos dá.






sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Carona

Calor escaldante. Ela fez uma lista enorme dos itens que faltavam em casa, trocou o pijama por roupas confortáveis e colocou no ombro a sacola ecológica tamanho G, de alças largas e verdes e corpo de lona estampada de peixes ameaçados de extinção. Dentro da sacola, uma garrafa plástica com água colhida na torneira da cozinha, a carteira e as chaves do apartamento. Supermercado era tortura a qualquer momento, pela manhã, à tarde, à noite, de segunda à sexta, domingo ou feriado, talvez se houvesse algum que funcionasse na madrugada, inventava alternativa a mulher da geladeira vazia. Mas não havia. O jeito era preparar-se para o sufoco do carrinho pesado, das filas, dos papinhos sobre academia, futebol, carnaval, filhos pequenos e malcriados, parentes doentes que precisam de oração, e toda a sorte de assunto que corredores estreitos e prateleiras abarrotadas inspiram.

Foi conformada. A pé, pela sombra, o pensamento no final de semana. Quase lá, reparou no carro azul, que andava mais devagar e mais próximo do cordão do que a maioria dos automóveis. Reparou, assim, com o canto do olho, e, estranhando, apurou o passo. O carro azul apurou também e a acompanhou por alguns metros, até que ela ouviu barulho do vidro descendo. Oi, vai pro centro, topa carona, queria saber um homem jovem, de sorriso aberto. Não vou, obrigada, ela foi dizendo, sem graça. Mas eu te levo para onde estás indo, aonde é? Moço, eu não quero carona e eu tô com pressa, obrigada, respondeu, quase correndo. O vidro subiu e o carro seguiu, dobrou na primeira esquina e pronto, que coisa estranha, o que esse cara pensa, ensinamento bem aprendido da infância foi esse de jamais pegar carona com estranhos, onde já se viu. Ela ainda conferiu a blusa, o short, os tênis, o cabelo – será que havia algo fora do lugar chamando atenção de desconhecido? – antes de retomar o ritmo da caminhada. 

Parou para cruzar a rua, observou à esquerda, tudo livre, e à direita, o carro azul estacionado, um arrepio nas costas, uma agonia de repente. Começou a travessia e. Ao acordar lembrou do estrondo e sentiu dor aguda na cabeça. Os punhos e os tornozelos atados, a boca tapada com uma camada grossa de adesivo ou coisa parecida. Não identificava o lugar, reconhecia apenas a sacola com seus pertences atirada no chão e o pedaço do carro azul que conseguia ver pela janela aberta. Tinha berros por dentro, tinha choro e uma raiva funda. Nada disso escapava nem ganhava a rua, porque ela estava, mesmo, bem amarrada e amordaçada. Não queria perder a esperança ou a resistência, mas sabia que viria o pior. Aproveitou todas as brechas que pareciam chances de fuga, sem sucesso. Brigou, mordeu, cuspiu, implorou, desistiu. O homem do carro azul parecia surdo à voz e às reações dela. Ele queria. Ela nunca quis. 

Dias depois ela reapareceu. Em pedaços no matagal atrás do supermercado. Encontraram primeiro a sacola ecológica intacta, em seguida o corpo devassado, no bolso a lista: ovos, leite, pão, margarina... Que horror, disseram. Foi dito também que a culpa era dela, não se vai às compras de short curto e regata, tudo à mostra. Não se vai.





quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Brincando de Boneca

Mamãe diz que brincar de boneca é coisa de menina. Nem ligo pro que ela diz. Sou homem e posso provar. Haja vista as mulheres que amei. Além disso, o que há demais em brincar um pouquinho? Tem adulto que joga videogame. Meu hobby é esse, passatempo da hora de almoço. Esta perna cabe aqui no corpinho, vai ficar diferente da outra, mas pior se ficasse perneta. A cabeça, felizmente, não se perdeu. É original, mas deu um trabalho colocar de volta no lugar. Os braços eu vou utilizar dessa outra aqui. Braços negros e corpo caucasiano? Paciência, é o que se pode arranjar no momento. Vou ter que prender com algum parafuso. O Geraldo da manutenção deve ter um do tamanho necessário. Melhor não. Geraldo não entenderia. O vestido eu pego com a dona Marta lá na lavanderia. A droga é que branco fica parecendo noiva. Depois eu dou um banho nela, pra espantar este cheiro podre de membros amputados aqui do lixo hospitalar. Será que vão dar por falta de você lá na sala de autópsia, meu amor? Que marido horrível que você tinha, precisava te esquartejar e jogar as partes na Lagoa Rodrigo de Freitas?





quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O tempo e a saudade

Acorda antes do despertador, lava o rosto com gel purificante, dá tapinhas nas bochechas,
entra no legging, se afina, calça os dois tênis de uma vez, veste o bustiê francês,
prende o rabo (de cavalo), enfia o ipod no ouvido, vai um yogurte no embalo, garrafinha de
chá na cintura, sai correndo pela escada, ganha a rua, correr é tesão, entra pela academia,
disfarçando a tensão, cantarolando alegria. Sobe na bike estilosa, spinning até cansar,
mas como não cansa jamais, ginástica localizada é a vez: peso nas canelas, bunda dura é bunda desejada, perna bela é perna torneada, abre o peitoral, fecha o peitoral, halteres pra lá,
halteres pra cá, sobe ferro, baixa ferro, puxa aqui, puxa dali, trinta abdominais,
cinquenta abdominais, cem abdominais, duzentas, trezentas, quinhentas, vai pro Guiness essa mulher. Pinga o suor, parece que se esvai, fitinha na testa não deixa rosto a impressão do sofrer. Alonga daqui, alonga dali, beija o chão e os pés sem dobrar a perna. Uma sessão de pilates encerra a longa e atribulada manhã. Suaves movimentos energéticos. À casa, aos trotes. Fé na lipo, no lifting, na plástica onde for preciso, crença na beleza eterna. Chuveiro morno e gostoso, banho de deusa,
quase gozo. Cremes e anti rugas, botox ficou maravilha, boquinha de boneca, beijinho arrebitado no espelho, peitinho em riste pelo silicone, pálpebras em permanente estado de alerta, o corpo fininho, tudo em cima. Alface é a refeição, suco de beterraba com mamão, direto para o salão, hora da massagem, das unhas e da depilação. Fica em dia com o mundo por Caras e Contigo, comenta com o cabeleireiro amigo o progresso do processo de emagrecimento da jornalista e do jogador no Fantástico. - É Fantástico, fica feliz em dizer. Sai lisinha feito Barbie, leve, ereta, sequinha,
um vara pau. Zanza pelo shopping sem cair do salto, pouco sorri – dá pé de galinha. Encontra as amigas para um chá, falam que a vida é o que há.
À noitinha, de volta para casa, hora de relaxar. Que dia! Que banho! De sais, desta vez. Uma nova mulher, assim se sente. O vestido solto, a sapatilha que vela o joanete, o cabelo escorrido - uma cortina progressiva -, o batom indiscreto, o pescoço rijo, o nariz em pé.
A bronca na empregada, sobre o único e recorrente assunto:
- Já disse, Maribel, eu não como nada, quem gosta de jantar é o seu Osmar.
O marido provedor, cansado de não sei de quê, chega austero e faminto, dá-lhe um falso beijo na testa e lhe fita da cabeça aos pés. No fundo, o infeliz pensa o que não diz:
- Uma boneca inflável. Durinha, lisinha, peladinha, e sem nada por dentro.
E no instante seguinte, cai o ogro no chão: o estúpido pensar sucumbe por si só e desaba-lhe uma culpa torrencial. Abraça a mulher com ternura e afeto, sente contra o peito seu corpo seco e a alma oca. A cada afago, lembra com saudade e delicadeza a rechonchuda gostosa, alegre, cheia de vida e
bom humor, por quem um dia se apaixonou. Tempos, tempos atrás.





terça-feira, 19 de novembro de 2013

E agora, José?

E agora, José?

Faz alguma coisa. Mexa-se. Fuja. 

O relógio-ponto marca 8:59 da manhã. É mais um dia na fábrica, mais um dia em meio a tecidos, linha e botões. No entanto, José trabalha no almoxarifado cuidando de todos os itens de limpeza. É encarregado de organizar amaciantes, alvejantes, sabão líquido e demais produtos, de forma que o tecido das roupas produzidas ali chegue ao consumidor com uma aparência de roupa limpa, sem cheiro de “guardado.” 
Num ato de coragem, José sai correndo e deixa o relógio-ponto carregando lentamente os seus ponteiros, como se fossem os fardos suportados em cada dia de trabalho naquele local sufocante.
Uma vez efetuado o ato de fuga, precisa pensar no que fazer. Lembra de uma praça com lindas margaridas, cuja beleza nunca conseguiu admirar totalmente, pois chegar na hora era a regra do dia. Move suas pernas, ainda hesitantes, para o local desejado. Senta-se na grama mesmo, deixando o ar verde invadir os seus pulmões. Ouve sua mãe reclamando de seu ato inconsequente. Vai comer o que? Vai vestir o que, de agora em diante? Eu não vou te sustentar! Marmanjo. Nunca foi pra trabalho mesmo!

Pobre José. Há 10 anos trabalhando em um emprego totalmente mecânico, solitário. As pessoas consumidas no movimento enferrujado daquelas máquinas não tinham tempo de conversar entre si, mal conseguiam balbuciar um bom dia. É assim a realidade da classe cuja liberdade de gostar de viver, de sentir prazer de abrir os olhos todas as manhãs, lhe foi roubada. O que existe é o verbo agir, não pensar. O relógio-ponto te chama, você marca no cartão que estava ali naquele momento, que irá seguir trabalhando o resto do dia e tudo bem. 
Resolve sair da praça e dirige-se a um bar não muito longe dali. Lembra que seu café da manhã consistiu em um copo de café e um pão com margarina, muito pouco para aguentar as reclamações de seu estômago até o horário do almoço na fábrica. Entra no estabelecimento. Percebe que ali, algumas pessoas estão bem animadas. Um senhor de idade lhe sorri com os olhos e faz um sinal simpático com as mãos. José senta em uma mesa, em seguida vem uma moça anotar seu pedido. Ela é bonita, simpática. Deseja-lhe bom dia, pergunta com entusiasmo o que irá querer, diz que a torrada da casa é uma ótima pedida para as primeiras horas da manhã, etc., etc. 

O falatório da mulher deixa José tonto, confuso diante de tanta vida em lugar tão trivial. Pede o sugerido pela garçonete. Ah, e uma cerveja, por favor. Enquanto o pedido não vem, José saboreia uma sensação há muito não sentida. É estranho estar ali, numa manhã de segunda-feira, às nove horas. Nesse momento, deveria estar trancado em sua salinha, fazendo o levantamento de quantos sabões líquidos foram usados durante a semana e quantos mais serão necessários para dar conta da produção mensal. Tudo isso anotado em uma planilha. O dia de José é basicamente contar recipientes, anotar os dados num papel, fazer as contas de cabeça e lançar os resultados para um homem que anda sempre de camisa e gravata. 
Seu pedido chega. A aparência da torrada lhe faz salivar. Come com avidez, bebe a cerveja com calma, como se cada minuto de sua vida dependesse de cada uma daquelas gotas consumidas. Como era bom o gosto daquele pão com queijo e presunto, prensado. O que faria agora? Era preciso pensar nisso, também. Afinal, em pouquíssimo tempo, já não teria mais como pagar nem por um cafezinho, dirá uma cerveja.
O importante é não ser covarde, José. A economia do país está mudando. Dizem que as condições de emprego estão melhorando, está mais fácil de entrar para a universidade... sempre quis ser advogado... será que esse era o sinal do destino, o toque do sino em sua mente, o empurrão final que lhe faltava? Será?
Paga a conta, deseja um bom dia para a garçonete alegre (provavelmente tão saturada daquilo tudo quanto ele daquela fábrica), acena timidamente para o homem idoso, como se dissesse “nos vemos por aí” e sai a esmo, como que para resolver um problema, mas sem nenhuma urgência. Apenas um problema para ser resolvido e nada mais. 

Caminha toda a Avenida principal pensando no que fará de seu futuro. Ah, dane-se! Ainda tem arroz e feijão nos armário. Bastante coisa, meso. Café, açúcar. Leite não preciso disso. Falo com o Ribeirinha e ele me arruma uns serviço pra fazer na sapataria. Vou no horário que bem entendo e ganho uns troco pra me manter. Praquela fábrica é que não volto mais. As lágrimas invadem os olhos de José, mas ele é forte, de humilhação ele está soterrado. Com sólidas barreiras de orgulho, represa todo o mar que quer irromper. 
Mais alguns passos, se rende ao mundo real. Encurvado sobre si mesmo, escora-se em uma parede qualquer, em um ponto deserto da rua e começa a sufocar, e chorar, e um grito se abafa em seus próprios pensamentos. Quer morrer, quer matar, não. Quer lutar, ah, o que será que ele quer, meu deus? Não é possível! Foi tão difícil tomar essa decisão, por que desistir agora? Recompõe-se. Com as mangas de seu macacão, limpa bem seu rosto. Respira novamente, pensando que a liberdade não há de ser tão ruim assim. O pânico da liberdade deve, é obrigado a ser, mais suportável que o pânico da prisão. Ah, o dinheiro. Aquilo nem dava pra nada meso. Troquei o nada pelo nada, mas agora consigo andar pelas rua e olhar pras pessoa, pelo menos. A moça garçonete... quanto tempo que eu não falava com uma moça tão animada. Mas ela também devia era estar cansada da vida. Acho que a gente percebe isso nos olho dos outro que são como a gente é. 

Faz alguma coisa, José. 

José. José. José.

Ô José! Grita Bonifácio, colega de fábrica de José. Vai marcar o ponto hoje ou não?
Com um clack José marca sua entrada às 9:00 da manhã, segunda-feira, mais um dia naquela fábrica. 
O que poderia ter sido, não foi e José voltou ao que julgou mais seguro – ainda que sombrio. 





segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Quando as luzes nos enganam

Crônica de uma noite de chuva
 Otávio Martins

   Olhando pela janela do meu quarto, no terceiro andar, as luzes suspensas por altíssimos postes, dão-me a plena incerteza da distância, a qual, no momento estou interessado em, teoricamente, perceber entre mim e a minha amada. Modo de dizer, entre o meu quarto e a casa onde ela mora.

   Tento fazer alguns cálculos, por cima, pelas lâmpadas, ou luzes, propriamente ditas e por mim aceitas. As primeiras apresentam-se com um intervalo de distância, mais ou menos regulares, claro, diminuindo, muito pouco, na medida em que se distanciam do ponto de partida que, eu mesmo, escolhi. Porém, depois da quinta ou sexta luz, devidamente acomodadas no pico dos postes, vão-se afastando, pior, formando um feixe, agrupadas. Perco a noção. O que talvez esteja longe, onde essas luzes quase se encontram, pode apresentar-se para mim, como um ponto “logo ali”. Explico a seguir:

   Isso é só um passatempo para o meu ego; eu sei que a minha amada vive aquém das luzes, dos postes, das distâncias ou de qualquer referência visível. Pode parecer muita pretensão, mas a minha amada vive, romântica e, virtualmente junto ao meu coração. Costumo fazer esses cálculos, só pra prevalecer-me, ao final, dessa constatação: o meu amor está sempre perto, justo onde eu desejo que esteja.

                                                              Bagé 11.11.2013.





domingo, 17 de novembro de 2013

Um poema de Charles Marlon

Work in progress



Os dias passam arrastados
e
pesam nos pés de cada
(mal dado)
passo. A vassoura de

palha submerg-
ida na cor morta da
folhagem. Cismando
so-
zinho

esbarro nas grandes grades do coreto,
onde
cor-
ríamos muito e
onde
um dia me disseste:

- Rápido, teu avô...
De repente, ao deleite do acaso, a pele perde
muito de seu calor e se ouriça para dar combate ao vento
e o
som do sinal da fábrica vem avis-
                               ar
que já são seis horas
outra vez. Outra vez

a secura do vento virulento vem
fustigando como quem quer cortar-
me a
vida. Os faróis dos carros se acendem,

há um poste sem luz sobre a cabeça da menina,
na esquina logo enfrente, há qualquer
tumulto de gente. O fogo

do semáforo me rouba o foco
e
parado, quase pen-
so:

- Pra onde é mesmo que
               eu
         ia?



Charles Marlon, in Poesia Ltda, Editora Patuá.





sábado, 16 de novembro de 2013

Breu

 

Estou aqui. São minhas estas narinas que se dilatam, estas pupilas que mordem a escuridão. Meus estes passos indecisos e os tropeços que infligem sons de estouro à madeira do assoalho. Estou aqui. Com medo de cair no chão de tábuas. Esticando os braços para afastar o nada, esse medo maior. Dissolvida no breu. 
Mas como há de ser que seja eu?
Eu estou aí fora, nessa mesa farta. Ocupando a boca com qualquer entulho. Com a comida que empurra silêncios para dentro. Com o vinho que abranda as bochechas enrijecidas pela falta do riso. Sim, sou eu mesma aí sentada. Reconheço os anéis, os brincos, o vestido de verão. E ainda assim, ainda assim... Como há de ser que seja eu? 
Parece-se comigo. Apenas isso. Os traços, os gestos; os cabelos presos no alto. Olhos que nunca se afastam porque não sabem voltar. Semelhanças. Mas não sou eu. Eu estou aqui. Disforme, repleta de invisível. Mas aqui. 
Essa que está aí brilha. E eu já me livrei da luz. Quebrei as lâmpadas com o cabo da vassoura. Senti nas solas dos pés os cacos finos que arrancaram sangue, que arrancaram lágrimas, que aleijaram a caminhada. Escondi as lamparinas. Joguei no tanque o querosene. E descartei pela janela os fósforos, fetos abortados. Virei ausência. 
Eu estou aqui. Vendo nos seus olhos medrosos que ainda há reflexos de luz. Gestando a hora em que se apagarão e se aceitarão noite opaca. Então, você não estará mais aí, doendo em mim como cicatriz aberta. E seremos, enfim, apenas eu neste breu que me toca.
 
 





sexta-feira, 15 de novembro de 2013

tinha uma pedra




Foi nos instantes imediatamente antes e durante de Feliciana se sentar na pedra.
Era um calhau igual a tantos que havia pela praia, não fosse destoar das restantes por ser tão lisa. E seria de ser batida pela água e pelo sol, sovada pelas ventanias que levantavam areias. Fosse de que fosse, era um pedregulho liso o que a acolheu como se de um verdadeiro assento se tratasse.
Uma poltrona rija e desconfortável, mas uma poltrona.
Estava o Outono quase a despontar e nem vivalma  pelo areal. Feliciana tinha por costume vir, assim, ao clarear do dia. Vinha em passeio, respirar o ar salgado, caminhar um pouco, tomar um banho se desse. Ficar tão só magicando a enterrar na areia morna os pés descalços.
Feliciana respirou fundo a sentir o perfume intenso do iodo. E, como tinha por costume, entreteve-se a apanhar cascas de búzios, conchas, pequeninos calhaus, pedrinhas soltas.
Enchia com essa tranquitana as algibeiras do vestido que trouxesse ou levava-as embrulhadas no regaço.
Feliciana que sempre achara curioso que tanto nesta vida fossem pedrinhas, umas mais soltas do que outras.
Pensara isso num dia em que descobriu, na estante, meio esquecida entre pastas e livros, a lousa preta onde aprendera a desenhar as primeiras letras, a mesma onde jogou  tanto ao jogo da forca.
Ontem a neta pedira-lhe: avó empresta-me a tua pedra, que era como Feliciana chamava à lousa, aquele rectângulo de xisto negro debruado a madeira.
E terá sido disso que naquela manhã Feliciana vinha cismando a andar na areia.
Cismava em como tanto de cada um de nós se produz em torno de pedras: ou que seja o material de que é feito o balcão onde fazemos as refeições, ou o tanque onde esfregamos a roupa – já não se usa, mas era dantes e ainda é assim em muito recanto do planeta e haja água e que nunca a energia se esgote ou teremos que tornar aos métodos das  nossas avós.
Feliciana cismando em torno das pedras da vida da gente que poderá ser a, assim designada, pedra nos rins ou na vesícula. Ou a alguém, por sina ou destino, cai-lhe uma pedra em cima. Ou subimos àquela pedra mais alta a escalar um monte. Ou fitamos o fim do horizonte numa falésia a pique sobre o mar.
E é também uma pedra a enfeitar o anel do bispo e o anel de fim de curso ou o anel de noivado.
Pedras no nosso caminho a cada instante, é uma realidade.
E Feliciana sorriu-se do que ia magicando, e lembrou-se do pedacinho de xisto torneado em redondo que em dias muito idos lhe servia de lápis: ela muito menina e agora o neto a imitá-la.
E, nessa sucessão de pensamento, Feliciana evocou as pedrinhas que compõem os mistérios de um terço.
Tantas pedras na vida da gente! balbuciou Feliciana e sorriu um sorriso triste, que ela já pensava em outras pedras que são metáforas que fazemos. Verdadeiros pedregulhos, essas.
E  indo nisso, caiu-lhe para o ombro a alça do vestido.  Aquele vermelho já coçado do uso. Feliciana gostava dele: a saia a roçar o tornozelo e as alças finas a segurarem um decote que quase lhe descobria os seios.
Ajeitou o pedaço de tecido e foi disso que a mão sentiu o montinho sob a pele. Foi no mesmo instante em que Feliciana descobriu a pedra lisa, quase cor de rosa, ou seria branca, ou seria de um tom claro de castanho. Uma pedra enorme que era quase um cadeirão a convidar que ela se sentasse.
E Feliciana sentou-se.
E a sentar-se, ela vinha já debruçada sobre o próprio corpo, quase a fazer uma argola na tentativa de ver o que seria aquele sentir estranho por debaixo dos dedos.
Apalpou e era como se fosse uma pedrinha mais saliente no meio das pedrinhas que lhe rolavam debaixo dos pés.
E levantou-se. E andou os passos, poucos, que a separavam da água deslizada sobre outras, muitas pedras. Pedras revestidas do verde e negro dos limos. Pedras a fazerem covinhas, a aninharem água transparente e a refractarem, enormes, delicados bichos multicores. E Feliciana foi saltitando os pés descalços sobre as rochas naquela maré vaza muito escoada e, nem que não quisesse, as lágrimas rolaram-lhe pelo rosto.
Ou nem terá sido mais do que a maresia a depositar-se na perle dela, igualmente pedrinhas infinitamente pequenas de sal dissolvido em água.
Feliciana acabada de perceber aquele duro no seu corpo, lembrou-se do poema.
Letra a letra, foi balbuciando cada verso.
No meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Depois, caiu-lhe um a um o cabelo, que nem ela o cortou, antes, e teria evitado que tivesse ficado aquele desastre. À pedrada, como a mãe dizia dos cabelos mal cortados. Se bem que nunca tenha percebido, porque chamavam assim ao cabelo muito curto, desarrumado na franja e no pescoço. Mas Feliciana percebeu que o dela foi ficando assim, tal e qual.
E colocou boinas ou um lenço. Ou nada, simplesmente.
E não fosse o sorriso dele a sorrir-lhe. Não fosse a voz com que lhe dizia, sucessivo, generoso: obrigada! pelo que quer que fosse ou sem ser por nada. Não fosse o rolar das pedrinhas do terço entre os seus dedos: uma conta e depois a outra, mesmo quando Feliciana balbuciava apenas palavras inventadas em vez das orações.
Não fossem as pedrinhas que trazia da praia embrulhadas na roda do vestido ou a encher algibeiras.
Não fossem os desenhos: isto é um cão, isto é uma flor, dizia ela ao neto.
Não fossem as pedrinhas, que era o que semelhavam ser os olhos dele. Os olhos dele tal e qual os olhos do neto que lhe pedia: avó desenha outro.
Não fossem os versos do poeta a lembrar-lhe: no meio do caminho tinha uma pedra, e a repetirem em outro verso, trocando apenas o local onde estava escrito o predicado.
Não fossem, esses e outros a taparem aquela pedra do seu caminho como se fossem flores, e Feliciana não teria ido.
Não fosse o veio branco sobre o negro do xisto, e o sem cor teria invadido a sua vida.
Não fosse, e ela não teria ficado manhãs inteiras longe da chuva que caía, ou do sol radioso, o líquido a escorrer lento, demasiado lento tantas vezes.
Feliciana, horas, dias, meses, a encarar o pedregulho.
Feliciana a balbuciar baixinho:
No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho.