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sábado, 25 de maio de 2019

Cioccolato



Este relato começa quase no final da volta que Roberto Gama costuma dar pelo hipermercado local, ao fim da tarde, arrastando o cesto de plástico com rodas que vai fazendo o troc-troc típico no piso de mosaicos. A certo momento, conferiu o que já levava: uma piza pré-cozinhada em forno de lenha, um frasco de azeitonas, leite, tostas, nêsperas... Para esse dia, chegava, mas, antes de se dirigir às caixas de pagamento, era altura de passar pelos corredores onde gostava de se apropriar de algum bem facilmente escamoteável: uma embalagem de fatias de presunto; uma caixa de preservativos; uma escova de dentes — tudo mercadorias achatadas e leves. Desta vez, escolheu um chocolate de leite de uma marca conhecida e, com a destreza do hábito, meteu-o por dentro da camisa previamente forrada de papel de alumínio, por causa da deteção eletrónica.
Como se percebe, esta prática a que ele chamava “taxa de cliente frequente” era mais um jogo lúdico e rebelde que lhe vinha da adolescência do que uma manha de falsário. Agradava-lhe uma certa tensão que sempre experimentava e gostava de pensar que introduzia uma minúscula, mas real, reposição de justiça de tipo “Robin Hood” nas relações comerciais que os magnatas das mercearias impõem ao grande público. Mas sempre sem exagerar, não se desse o caso de ser apanhado. Dirigia-se já para as caixas, quando deu de caras com uma antiga namorada no corredor das conservas.
Roby! Que surpresa! — quase gritou ela, ao vê-lo. — Moras por aqui?
Olá! Há quanto tempo! — exteriorizou também Roberto, em luta mental para se lembrar do nome da amiga. — Moro ali na Arroja. E tu?
Moro em Loures. Vim à Loja do Cidadão e acabei por entrar aqui no Super.
Que interessante! Não nos vemos desde quando?
Eu sei lá… Para aí há dez anos. Eu devia ter uns vinte e cinco! Casaste?
Não; e tu? Na altura foste atrás dum tipo mais velho…
Não, não correu bem. Continuo solteirinha e boa rapariga… Nem sempre por opção… — riu-se com a graça da queixa.
Nesse momento, Roberto lembrou-se da tablete de chocolate. Desconfiou que tinha amolecido. Era natural; havia já um bocado que estava próxima do calor do corpo. Ainda mais agora…
Olha, eu preciso de ir à casa de banho. Ainda vais fazer mais compras?
Não, só levo aqui uma lasanha, para logo; e achei barata esta garrafa de vodka.
A passagem pela caixa não foi tão rápida como convinha a Roberto. A dupla tensão fez os seus estragos — começou a sentir nitidamente uma massa pastosa a escorrer-lhe pelo umbigo.
Depois de saírem, o problema já não parecia tão grave; só um pouco constrangedor. Prosseguiram a conversa pelos corredores do centro comercial, em direção ao parque de estacionamento.
Roby; quem havia de dizer que te encontrava aqui! Lembras-te que nos conhecemos também num centro comercial? E tu não eras de modas… convidaste-me logo para ir ao teu quarto.
Bons tempos! As paródias que a gente fazia…
Tu eras muito maluco! Daquela vez que querias no elevador!
Do elevador não me lembro; mas quando fomos apanhados no provador da Zara? — Roberto riu-se com gosto, relembrando o episódio. «Tinham sido tempos realmente desvairados. Como é que ela se chamava?»
Ela também se riu, comprazida com as recordações. Praticamente, saltitava ao seu lado. Para ele, estas lembranças estavam a piorar sensivelmente a situação. Fechou um pouco o riso quando sentiu que a pasta de chocolate estava cada vez mais fluida e vencera a resistência do cinto na cintura. A invasão das zonas íntimas não era completamente desagradável, mas não era o momento... De qualquer modo, tinha de se livrar rapidamente da companhia, para poder compor-se. «Mas, com esta conversa, não é o momento...»
E as experiências que tu inventavas… Uma vez arranjaste ovos cozidos… Outra, chantili… Lambuzámos o lençol todo. “Ganda” bodeguice!
Olha se tivesse sido chocolate!
Hum! Cioccolato! — o trejeito de deleite indicava que a sonoridade da língua italiana lhe trazia boas emoções. Sou doida por cioccolato. Era o que devias ter arranjado... Até o lambia...
Sabe-se que os mais brilhantes homens perdem parte da capacidade racional quando as funções cerebrais responsáveis pelo pensamento lógico são atordoadas pelas emoções. De um momento para o outro, Roberto deixou de se preocupar com a tablete liquefeita que descia pelo seu corpo e vislumbrou uma promessa de resto de dia como antigamente. E, antes que o córtex pré-frontal retomasse o comando, saiu-lhe da boca o convite:
Lá em casa tenho cioccolato
Maroto! E é bom o teu cioccolato? — perguntou ela, em tom insinuante.
Do melhor. Suíço! — abriu-se Roberto em sorriso. — Vou só ali à casa de banho.
Aproximavam-se das casas de banho e da escada rolante para o estacionamento, quando a jovem reparou que as pessoas se viravam à passagem deles. Viu então que Roberto tinha os sapatos manchados e ia deixando um rasto de pingos castanhos. Estacou e encarou-o, em pedido mudo de explicações.
É chocolate! — respondeu ele, confrangido, mas o esgar no rosto dela afastando-se indicava que não tinha sido convincente.
Olha! Olha! Amiga! Eu posso explicar — lançou ainda Roberto, ignorando os olhares de censura que o cercavam.
Regina! — respondeu a rapariga, virando o rosto sem abrandar o passo.

Joaquim Bispo

*
Por seleção em concurso literário, este conto integra a antologia “Doçaria Cristal” — páginas 48 a 50 — da Editora Jogo de Palavras:

*

Imagem: Mel Ramos, Virnaburger, 1965.
Museu Coleção Berardo, Lisboa.
* * *






domingo, 19 de maio de 2019

Triz

Gosto muito da palavra triz. Pela forma gostosa de pronunciar.
Trisss para a turma de São Paulo e Gerais, triezz para gauchada
e trish para cariocada. Não me ocorre como seja em outras regiões
do Brasil. Mas não importa como se diz, mas porque se diz.

A origem é discutível, mas fico com a tese de que ela vem do grego thriks,
que significa fio de cabelo. Faz todo sentido, quando precedida pela
preposição Por e pelo artigo indefinido Um. Pronto. Por um triz.
Por um fio de cabelo uma coisa deixa de acontecer ou acontece.
Metáfora perfeita, pois não há limite mais frágil do que aquele
determinado por um instante capilar.

Outro ponto que me encanta é que quando as pessoas expressam um
autêntico, oportuno e legítimo Por um triz, elas discreta ou indiscretamente
arregalam os olhos e dão à expressão adverbial uma expressão facial
que complementa a dramaticidade dos fatos.

Há quem atribua a divindades superiores o comando dos nossos destinos.
Respeito, compreendo e já tentei inúmeras vezes comprar tal ideia.
Mas, na altura do meu campeonato, confesso que ainda não encontrei
identificação com deuses ou demônios, capazes de tirar dos seus caderninhos
os comandos que regem vidas. Resisto a crer no estava escrito, ou foi 
a vontade de Deus ou isso é coisa do diabo. 

Quantas coisas acontecem ou desacontecem por um triz, ficam no quase,
no por pouco ou por um fio. Assim penso que é, sem justificativas
que vêm do Além.

O desesperado Romeu em busca de um encontro definitivo com sua Julieta,
por um triz não encontra o mensageiro que cruza na estrada levando o
recado que o veneno que a moça tomara era de mentirinha,
tudo combinado para ela despertar e os dois fugirem. A mensagem que
não chega a Romeu, poderia ter mudado o rumo da prosa.
Shakespeare, o criador da situação, operou o simples por um triz 
no lugar de um final feliz banal.

Na fatídica Copa de 82, o goleiro italiano Zoff, já nos acréscimos,
toma uma bola no pé da trave. Ela volta nas suas mãos e por um triz
não cai na ponta da chuteira do Sócrates (ou do Zico???) que estava
na pequena área, pronto para mudar o desfecho da história trágica
daquela noite no Sarriá na Espanha.

Dos olhos dos amantes do bom futebol, brota um filete lacrimal só
de imaginar que o destino do futebol-arte se deu por um triz,
o mesmo triz que fez o viajante perder o avião da Air France que
sumiu no mar, ou o sonhador endividado marcar os números
10 25 31 32 44 50 na megassena quando de fato, deu
o 10 25 31 32 44 49.

E assim caminha a humanidade colecionando por um triz na História.
No plano individual, cada um tem lá sua coleção particular de episódios
exemplares na memória.

Por um triz John Lennon deve ter pensado em ser antipático com aquele
fã maluco que lhe chamou para um autógrafo. Por um triz, a vértebra de
uma pessoa que amo não quebrou para dentro da medula óssea, mas para
fora da coluna. Felizmente.

Escrevo tudo isso ainda embalado pelo triz que recentemente se aboletou
no meu banco de carona. No fim da manhã da última sexta feira, ao sair
do trabalho na Barra em direção da Gávea, pressenti um engarrafamento
tedioso e resolvi ir ao banheiro antes, quando me despedi apressado
de alguns colegas professores, pois tinha hora para chegar. Foram os
cinco minutos que me deixaram a uns oito carros da viga que desabou
sobre um ônibus no fim do túnel. Por um triz, eu poderia não estar
escrevendo sobre por um triz. 

O que seria uma injustiça. Por um triz merece todas as minhas homenagens.
Se por um lado o triz é capaz de evitar ou operar tragédias produzidas
pela estupidez humana ou pela natureza, penso que o triz é o começo da vida.
Aquele espermatozoide esforçado do seu pai ficou em segundo lugar na
determinante corrida. Por um triz, o mais ágil chegou primeiro.





sexta-feira, 17 de maio de 2019

Enterrando gatos - conto de Rafaela Tavares Kawasaki


Enterrando gatos





    Onde quer que Leona pouse a vista há uma criança. Alguns meninos têm a mesma altura de Cadu. Nenhum é ele. O peso dos ossos peitorais de Leona parece ter dobrado. Ela é dominada pelo cansaço de carregá-los. A respiração encontra obstáculos ao percorrer a traqueia.
   Palpitações criam uma atividade sísmica no território que se estende do pescoço ao coração. A umidade deixa as palmas de Leona escorregadias, mas ela não solta as mãos da filha que a encara assustada com o pescoço esticado para enxergar sua expressão.
    Notas de uma mesma música enjoativa escapam do Bicho da Seda e formam um ciclone de sons ao redor da cabeça de Leona. É como se seu corpo esticasse e se comprimisse, tornando variável a distância entre seus olhos e o chão. Leona e Lolô andaram um quilômetro em círculos, sempre sob os gritos que escapavam da montanha-russa.
  A fila em torno do Barco Viking parece ter sempre a mesma extensão, ainda que os rostos despreocupados na espera mudassem cada vez que as duas a examinavam. Cadu nunca estava entre eles.
   Leona se sente um pingo no meio a um horizonte sem fim de brinquedos, barracas e pessoas. Como seria então para o filho de nove anos, sozinho? Os guardas talvez ajudassem se ela pedisse ajuda.
Se as caixas de som anunciassem o desaparecimento de uma criança, os outros visitantes afiariam o olhar. Ela encontraria Cadu mais rápido.
   Mas por que a indecisão paralisa seus músculos quando ela passa pelos funcionários do parque? Seu único desejo não era afundar o rosto nos cabelos do filho até deixar o cheiro de xampu infantil impregnar em suas narinas? Não seria bom sentir a fragilidade dos ossos que ela conhecia tão bem e jurar protegê-lo do mundo? Seria?
   A viagem ao parque foi planejada há dois anos. As crianças o visitavam em fantasias desde que viram as fotos em uma reportagem de revista. Leona, Armando, Cadu e Lolô alimentavam com cédulas de papel gasto o estômago de uma velha lata de biscoitos finos da marca Piraquê, já sardenta com a ferrugem. Era da avó das crianças. Um pé crescia demais, um dente precisava de obturação, uma tosse dava alerta para a necessidade de remédios e eles se viam obrigados a fazer retiradas.
   A lata só engordou mesmo naquele novembro, quando Armando deixou uma soma generosa para o aniversário do filho porque uma viagem a trabalho o impediria estar na festa. O dinheiro, fonte de uma recente promoção, era um pedido disfarçado de desculpas.
   A ideia de ir ao parque já deixava um gosto amargo preso à boca de Leona naquela época. Os filhos comemoravam a perspectiva de ida. Cadu se gabava para conhecidos e desconhecidos sempre que podia, mesmo que a mãe o pedisse para ser discreto.
   – E por quê? - ele sempre questionava, derramando sobre a mãe um olhar de ler mentes.
Armando insistia que ela cumprisse a promessa, quando ela considerava pretexto para adiar a viagem. Mas que graça teria irmos só eu e as crianças, sem o você? E como os filhos confiariam neles novamente, caso se sentissem traídos? Cadu tinha boas notas, não trazia reclamações da escola para casa, até recolhia garrafas de bebidas usadas para deixar no mercadinho do bairro em troca de moedas. O moleque merece, não merece? Fácil para Armando falar, ela pensava, por mais que a decisão de poupar o marido sobre a história dos gatos fosse decisão dela.
   Ao avistar o parque se revelar distante na paisagem da marginal, Cadu demonstrou uma alegria que Leona não via desde que o corpo do filho era uma miniaturiazinha de quatro anos. A culpa dava pontadas no estômago da mãe.
   Ela resgatava lembranças de quando percebeu os músculos faciais do filho caírem em dormência. Nos últimos anos, o rosto havia ganhado uma máscara de um adulto cansado, apático demais para uma criança saudável.
  Era incômodo ser alvo de seu olhar fixo por mais de cinco segundos. Cadu nunca piscava as pálpebras até Leona desviar os olhos. As pupilas dele abriam um caminho até o tálamo da mãe. Porém, quando os três puseram os pés no parque ele se transformou de novo no menino de nove anos que deveria ser, como se tocado por uma Fada Azul das histórias que o filho já rejeitava por estar grande demais para essas coisas. O medo de Leona recuava.
   Cadu procurou o rosto de Leona com um sorriso convidativo quando subiram juntos no teleférico do Castelo dos Horrores. A mãe o respondia com a exposição de uma dentição muito parecida com a do garoto.
 Ele disfarçava mal a curiosidade quando os três caminharam pela mina dos anões. Não dá pra perder tempo aqui. É brinquedo pra criancinha, igual à Lolô. Cadu indicava com a cabeça a irmã de seis anos, que desejava ser a própria Branca de Neve ao espiar o trabalho dos anões. Apesar da diferença de idade, a felicidade no rosto das duas crianças era idêntica.
  Os três se divertiram. Atacaram o carrinho um do outro no tromba-tromba até as barrigas ficarem cansadas com o movimento das risadas, dividiram um Dip n’Link comparando as caretas que faziam ao sentir as explosões na garganta. Leona até permitiu que os filhos tomassem não um, mas dois sacos de tubaína para afastar sede e calor.
   A nuvem de temor de Leona se dissipou. O tempo só voltou a se acinzentar quando os olhos dela esbarraram nas marcas de hematomas no pescoço de Lolô.
   – Foi o Cadu, mamãe. Ele disse que ia me enforcar se eu não ficasse quieta no carro quando você desceu no posto. Eu só queria ir atrás.
   – Quem mente a língua cai, não é não, mãe?
   Lolô lançava um ensaio de choro para a mãe, seu modo de pedir socorro. Leona não a olhava. Ela estava ocupada em vasculhar sinais de culpa em Cadu, mas ele estava isento de remorso, como um inocente.
   – Diga a verdade, Cadu. Você machucou sua irmã? - Leona se segurava para não desviar a face, embora a pupila do filho já perfurasse seu crânio.
    – Eu não tô mentindo.
    – Você sabe que não gosto de falsidade. Pior que fazer é esconder.
   O filho franziu a testa e exprimiu os lábios. Leona assistia a respiração do menino acelerar. Dos lábios de Cadu escapou um som. Era um miado quase imperceptível. Leona estremeceu. As mãos dela engoliam os dedos de Lolô.
   Os três caminharam com as bocas cerradas e assim continuaram por minutos. Uma mistura disforme de vozes e canções das caixas de som os invadia. O ar foi cortado por um grito animal que escapava de uma casa.
    – A mulher que vira macaco! - Cadu exclamou. - Vamos ver, mãe? Você prometeu!
    – Mamãããe, eu não queeeero.
    – Larga de ser manhosa, Lolo. Ninguém engole gente manhosa.
    – Eu não sou manhosa, só tô com medo.
    – Se vocês não pararem de brigar, nós vamos é para casa agora mesmo.
    Cadu procurou as mãos da mãe. Ele que odiava andar de mãos dadas porque já estava crescidinho.
  Talvez sentisse medo da promessa de ir embora ou a multidão que descia de um brinquedo o deixasse com tontura. Talvez ele quisesse sentir nos poros as vibrações da pele de Leona, enquanto a atacava com um olhar de ler mentes.
   – Você teria coragem mesmo de cumprir quando ameaçava ir embora do parque?
  – Está bem. Mas você vai sozinho. Não vou deixar a Lolô aqui. Vá e se comporte, você já é um homenzinho, não é?
   – Homem, mãe, homem. Sem essa de “inho”.
  Um fantasma da mão de Cadu agarrava a palma de Leona enquanto ele se distanciava. Quando a figura do filho atravessou a porta da casa da mulher-macaco, as pernas de Leona começaram a caminhar. O intervalo entre as batidas do scarpin contra o asfalto diminuía a cada passo.
 A gola do vestido a sufocava. Ela puxava uma Lolô cheia de perguntas. Não fale nada, Lolô, por favor! Ao se ver no estacionamento, Leona correu até o Chevette. A chave demorava a encaixar, porque ela tremia. Depois de apertar o cinto da filha, Leona se sentou no banco de motorista. As batidas de seu coração se transportavam para os tímpanos.
   – Mas e o Cadu, mamãe?
   Cada ruído da caminhada até o carro foi uma martelada leve contra um vidro grosso do aquário onde imergia sua decisão. O primeiro golpe só arranhou a superfície. O ritmo das batidas aumentava. Bleng. Bleng Bleng. BLENG. Era difícil ignorar. A pergunta de Lolô foi a última martelada. Perfurou o vidro que protegia a determinação de Leona. O vão é pequeno, o que não impede o desespero de escorrer, vazar como a água de um aquário rachado. O choro escapou até Leona engasgar.
   Cadu era mesmo capaz? Foi o que Leona se perguntou quando encontrou a primeira gata escondida na caixa de brinquedos do filho. A pergunta se instalou como um visitante indesejado que desconhece a hora de ir embora. Era um pensamento obsceno do qual Leona se despedia, mas que não se desprendia do cérebro.
   Era uma persa de pelagem toda cinza, quase azulada. Apesar da cor, seu nome era Mel. Os vizinhos perguntaram se Leona havia visto a gata alguns dias antes. Mel às vezes pulava o muro e fazia companhia para Leona enquanto ela esfregava as roupas no tanque. Seus pelos, antes macios, estavam secos e ásperos. As patas ágeis e o rabo endureceram. Parecia uma estátua com pescoço quebrado.
  Cadu brincava na sala com soldadinhos verdes e minúsculos. Imitava os barulhos de uma guerra com os lábios. Tinha sete anos. Leona reparou nos arranhões nos braços do filho. Ele logo largou os brinquedos para assisti-la. Os dois se encaravam, imóveis. Era possível ouvir mocinho e a mocinha da novela terminarem um relacionamento chorosos no televisor.
A cena da atriz chorando lágrimas cinzas era substituída por um coadjuvante dirigindo um carro que seria azul-marinho fora do mundo monocromático da televisão sem que Leona e Cadu pronunciassem uma palavra. As perguntas da mãe eram engolidas. O filho a cercava com o olhar de ler mentes.
   – Ela já estava assim quando a encontrei no jardim. - ele finalmente rompeu o silêncio, com os olhos grudados nos soldadinhos.
   – E por que a guardou? - Leona perguntou, em vez do “Foi você quem a matou?” em gestação na sua garganta.
   – Não sei. Eu só quis.
   Duas lágrimas gêmeas escorreram nas bochechas da mãe e do filho. Leona não conseguia interrogar Cadu. O que dera nela? Só era capaz de abraçar o filho e desejar que ele diminuísse até voltar a ser o bebê que ela carregava no colo.
   Leona saiu de madrugada com o Chevette. Rezava para que os faróis ou o motor não acordassem ninguém, principalmente Armando. Ela saiu à caça de um terreno baldio pela pequena cidade onde moravam. Cavar exigia mais força do que ela parecia ter. Porém, Leona abriu uma pequena cova e se despediu de Mel.
   O segundo gato era gordo e rajado. Era um animal andarilho que às vezes circulava um boteco da rua de trás. Estavam em uma gaveta, debaixo das roupas do filho, que ainda conservavam o cheiro do amaciante.
   Leona o enterrou torcendo para que fosse o último gato enforcado, mas não foi. Houve um terceiro, um quarto e um quinto. Ela desmontava e remontava a casa todos os dias ao voltar do trabalho no escritório a procura de um novo corpo. Tentava ser rápida para realizar os enterros antes de o marido chegar. Às vezes, perdia o sono e andava pela casa para vigiar as crianças.
  Cadu sempre dizia que os encontrava mortos e os trazia para casa. Leona ameaçava contar para Armando, mas fraquejava. O marido estava sempre tão cansado e passava tão pouco tempo com as crianças. Os momentos em que os pai e filho brincavam com trens em miniatura ou em que Armando ensinava Cadu a imitar jogadores da seleção tricampeã que o menino nem havia assistido, mas idolatrava porque o pai idolatrava, não podiam ser maculados.
   Quando chegaram ao parque, o pensamento de medo pareceu morrer. Ou desmaiar, pelo menos. Os três iriam apenas se divertir. E ficaram alegres, como as famílias das propagandas que viam na televisão. Davam risadas no tromba-tromba como se quisessem afrontar o mundo. Tudo parecia bem e agora ela se vê ligando o motor do Chevette, com o rosto ensopado de lágrimas enquanto se prepara para abandonar filho em um grande parque.
   Leona sente a vergonha incendiar a pele de seu rosto enquanto se olha no retrovisor. As lágrimas caem tingidas pelo preto da maquiagem borrada. Ela limpa o rosto com força. Queria se machucar, queria que doesse. Leona crava as unhas no rosto e se arranha até as marcas ficarem nítidas. Os cabelos cortados no estilo Farrah Fawcett estão um caos.
   Abandonar Cadu era inclusive um plano ridículo. Armando se desesperaria com o sumiço do filho, para começar. A polícia teria de ser avisada e Cadu seria procurado até ser encontrado. Esclareceriam o crime de abandono. Mas a cidade onde eles moravam ficava tão longe do parque e era tão pequena, tão esquecida pelo mundo. Só que Cadu sabia onde morava e pediria ajuda. Não só era idiota demais pensar nisso, era cruel demais.
   Como o mundo trataria Cadu? Ela era a mãe, sempre ouviu que deveria amar e proteger o filho a qualquer custo. Devia? É o que chamavam de papel de mãe, de amor incondicional. Mas era tão difícil enterrar gatos. E se partisse para algo maior? Ela tremia ao observá-lo ao lado da irmã, ao almoçar e jantar na mesma mesa que ele, ao conversar com o menino sem conseguir fazer as perguntas que importavam.
   Lolô sofre com a confusão. Chora baixinho com as pupilas pregadas na mãe.
   – Não, meu anjo, não precisa chorar. Já passou. Vem. Está tudo bem. Nós vamos buscar Cadu e ir embora. Que tal? Podemos tomar sorvete no caminho como você queria. Vem.
  As duas voltam ao local onde o deixaram. Cadu não está na saída da casa da mulher que vira macaco, nem nos brinquedos mais próximos ou nas barracas nos arredores. Onde quer que Leona pouse a vista há meninos. Nenhum deles é o filho. Leona o procura até o sangue se concentrar nos dedos apertados dentro do scarpin velho, comprado em 1979.
   A vontade de fugir para sempre aumentava na mesma proporção do medo de nunca mais ver o filho, nunca mais pentear seus cabelos cacheados, nunca medir seu tamanho até perceber que ele estava um centímetro mais próximo da altura da própria Leona e de Armando. E nunca mais sentir aquele olhar de ler mentes. Nunca mais encontrar gatos. Nunca mais sentir medo por Lolô.
   Porém, se o filho é que se tornasse uma criança morta seria culpa dela. Ela sentia ratos subirem por suas roupas. Ela era um animal sujo, um animal ruim. O filho herdou isso dela.
  Leona volta a chorar sem perceber. Ela aperta forte a mão da filha, até que Lolô começa a choramingar que está com dor. No mesmo segundo, uma mulher com sorriso forçado surge na frente das duas.
  – Você está procurando um menininho com essa altura? Ele estava ali parado, atrás das barracas. Parecia perdido. Disse que a mãe foi embora.
  O dedo da mulher indica o caminho. Até o último instante, Leona sente dúvidas sobre seguir as direções ou não. Ela tenta esgarçar a gola que a esganava. E então corre, arrastando Lolô como se a filha fosse uma mala pesada.
  Estava pronta para abraçar Cadu. A atmosfera fria em volta dele a desmonta. Os dois estão frente a frente e evitam se olhar. Ela não sabe dizer desculpas, como nunca soube perguntar em voz alta quem o filho realmente era.
  Cadu mantém uma espécie de voto de silêncio. A certeza está estampada no rosto do garoto. Ele sabe ler com exatidão os gestos, a respiração da mãe, o cheiro acre de seu medo. Os dois dão as mãos. Ao apertar a palma macia do filho entre seus dedos, Leona sente que aquele dia no parque seria um gato que ela e Cadu enterrariam juntos.





quinta-feira, 16 de maio de 2019

Bípedes



Ilustração : Clara Lieu


A torneira da pia está pingando. Desde. Preciso mandar consertar. Não é pelo desperdício. Quero que se foda o desperdício. Minha cabeça não aguenta mais é o barulhinho das gotas. Minha cabeça que parece um oco de ecos. Desde. Janis e Jimmy estão latindo faz horas. Um inferno. Já devem ter afugentado o carteiro, as crianças na rua, o encanador que jurou que vinha hoje cedo. Preciso prender os dois. Mas não quero. Eles são a minha trincheira. Ninguém passa, ninguém passa. Desde. Gosto dessa sensação de impedimento que eles estabelecem entre mim e os bípedes. Estou inalcançável. Blindada pelos caninos de 3 cm que se arreganham para o mundo do lado de fora de mim. Preciso lembrar é se dei comida a eles. Antes que me ataquem com a fúria justificada dos famintos. Eu não suportaria. As mordidas, sim. Seriam apenas sangue e dor. Mas não quero fabricar para eles um destino cruel. Sacrificados. Incriminados sem tribunal. Acusados de ser as feras que não são. Eles que não sabem nada de culpas. Só de fome. Da fome que cega o instinto. Não, my beloved, eu não entregaria vocês a um destino desses. Não vai acontecer. As vasilhas no quintal ainda têm um dedo de ração. Não serei estraçalhada. Pelo menos no que me externa. De resto já não existe mesmo nada inteiro. Só este gosto de dor amargando que eu não consigo degustar. Desde. Um instante de trégua. Janis se encontra comigo na porta da cozinha. Lambe minhas mãos com uma delicadeza desconcertante para um bicho do seu porte. As fêmeas sempre percebem primeiro que alguma coisa está errada. Bobagem. A mordida leve que ela me dá para me obrigar a fazer um carinho na sua cabeça me lembra do outro lado da nossa equação feminina. Impiedade. Jimmy continua deitado rosnando para o portão. Com breves pausas para lamber o saco e as patas. Adoro esse despudor alienado dos bichos. Adoro tudo que me resgata do correto. Faz tempo que eu não venho aqui fora olhar os cães. Desde. Desculpem se eu estive ausente por um tempo, digo a eles com remorso tardio. Os dois focinhos se voltam para mim. Não entendem o que eu digo, mas farejam meu cheiro de fraqueza. Estão alertas. É assim quando eu choro. Eles se inquietam comigo. Melhor me abaixar e sentar no chão da cozinha antes que um dos dois pule para lamber meu rosto. Eu sempre achei que os cães só queriam o gosto salgado das lágrimas. Até o dia em que você foi embora, G. Foi quando a casa vazia deixou de me caber. Eu desabei. E tampei o rosto encharcado com o travesseiro enorme. Jimmy lutou comigo por uns instantes, tentando passar a língua naquela água toda, cavando o travesseiro para colher os meus soluços. E eu agarrada às bordas da fronha, os dedos vermelhos pela força. Quando eu venci, virei de bruços, exausta, rosto afundado na cama, pernas esticadas, braços suspensos em volta da cabeça. Então, Jimmy subiu nas minhas costas. Tão leve que não parecia um gigante. E foi se ajeitando, deitando sobre mim, me cobrindo com aquele corpo enorme, até que me abraçou por inteiro do seu jeito cão, formando um casulo protetor. Como um bicho faz sobre outro que morreu. E eu relaxei naquela morte de afeto. Quando acordei, ele ainda estava lá. Esquentando as minhas costas. Babando as minhas costas. Tomando conta de mim. Janis dormia ao meu lado, com a cabeça naquele seu travesseiro arrogante de penas,  G., a pata comprida pousada sobre o meu ombro. E eu tive a certeza de que você não ia voltar. Ela nunca tinha subido na nossa cama antes. Os cães não ocupam territórios de outros cães. Só se for por comida. Ou por água. Água. A torneira do inferno continua pingando. Preciso fechar o registro. O encanador agora não atende a droga do celular. Merda. Deve ter vindo e corrido dos cachorros. Não sei. Não sei de mais nada. Desde. Desde que você me sentou na varanda (aquela faixa estreita e acanhada de cerâmica vermelha que alguém construiu na frente da casa e batizou assim, num delírio de grandeza) e segurou as minhas mãos para impedir que elas se mexessem. Elas me distraem; parecem pássaros bêbados, você dizia sempre. E eu ria. Mesmo quando não achava mais graça na sua piada velha. Ria de hábito. Como ria das histórias do trabalho, que você contava quatro, cinco vezes. E ria quando você ficava em cima de mim, tentando me fazer gozar do seu jeito, nunca do meu. Você nunca trepou bem, G. Sempre egoísta. Esfregando o meu clitóris com os seus dedos de bucha. Passando uma ponta de língua incompetente e tímida no meu sexo faminto. Com pressa. Com desinteresse. Com nojo. Enfiando de uma vez o seu pau duro dentro de mim. Sem antes me deixar molhada. Sem antes me sentir entrega. Um pau grande demais. Desses que toda mulher diz que gosta. Mas que só fazem é machucar a gente se não souberem brincar no caminho.  E você não sabia brincar. Mas eu ria. Agora, não rio mais. Desde. Desde que você imobilizou as minhas mãos-pássaros-bêbados e me disse que a gente não tinha mais nada a ver. Que você não gostava mais de mim. Assim, sem rodeios. Que a nossa relação estava desgastada. Que a culpa era sua. Que você queria outra coisa na vida. Que nem na cama a gente se dava mais bem — aquele “a gente” sobrando, como se algum dia o prazer tivesse sido plural. E outra meia dúzia de clichês idiotas que os homens repetem quando as malas já estão do lado de fora. Por que é que vocês mentem? Por que é que vocês acham que nós precisamos de desculpas? Por que é que vocês não vão embora em silêncio? 
A torneira da pia está pingando. E eu nunca me lembro se me lembrei da comida de Janis e Jimmy. Preciso prender os dois. Tenho de ir à rua. Hoje, G., eu começo o passo n° 2 do luto: beber e foder. Com qualquer um. Qualquer bípede que possa consertar o vazamento, alimentar os animais e se enfiar dentro de mim sem pressa, dedos, língua, pica. Até me fazer gozar. Essa coisa que não tenho feito. Desde.