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segunda-feira, 29 de julho de 2013

SAMIZDAT 37 - A Poesia Latino-Americana




Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
Mainak Dhar, o autor indiano que se tornou um dos mais vendidos da Amazon

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Há Sombras no Circo, Edweine Loureiro

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
Poemas de Mário de Sá-Carneiro

CONTO
Cândido ou O Otimismo – A resolução de voltar à América do Sul e o encontro com o astrónomo
turco, Joaquim Bispo
No meio da corrida..., Rafael F. Carvalho
Navegação em Casquinho, Silvana Ramos
Céreo, Eduardo Macedo
Kitsching, Setúbal
A Entrevista, Lohan Lage Pignone
Balanço do Vento, Tatiana Alves
Barbárie, Rodrigo Domit
Segunda Voz, Andréia Pires
Polaroide da Alma, Dayvson Fabiano
O Rato, Cinthia Kriemler
Jane Doe, Adriane Dias Bueno

TRADUÇÃO
Versos Simples, José Martí
Poema 6, Pablo Neruda
O Pássaro, Octavio Paz
Lua Maligna, Leopoldo Lugones
As Ruas, Jorge Luis Borges

TEORIA LITERÁRIA
A Maldição da Língua Portuguesa, Henry Alfred Bugalho

ARTIGO
O Download de Livros, Claudiomiro Machado Ferreira

CRÔNICA
As Boas-Vindas, Antonio Fernando Sodré Júnior
Ao Vivo, Leandro Luiz

POESIA
o cheiro inconfundível da terra do porão, Volmar Camargo Junior
As regras para conservar a saúde, Volmar Camargo Junior
Projeções, Priscila Lopes
Resíduo, Vanessa Regina
A Rosa Glacial, Felipe Garcia de Medeiros
Dum poema escrito num apartamento qualquer, Vander Vieira
Londres, Cristina Garcia Lopes Alves

CONCURSO
Ganhadores do I Concurso de Minicontos Autores S/A
Cinthia Kriemler
Leonardo Siviotti
Ricardo Thadeu
Thomas Rodolfo Brenner

Leia a SAMIZDAT 37
Scribd  -http://www.scribd.com/doc/156794893/Samizdat-37-A-Poesia-Latino-Americana
Calaméo - http://en.calameo.com/read/0000022384a661f33eebd





domingo, 28 de julho de 2013

Cinco contas de um colar


Vivo de juntar contas que vou catando vida afora. E as vou enfileirando feito fossem um colar. Desfio, hoje, cinco dessas contas.

A primeira conta envolve um primo, José Divino, acometido de paralisia logo ao nascer – perdeu os movimentos da cintura para baixo. Para esse primo, que já se encantou, ser bancário era o máximo das conquistas. Quando me disse, em certo encontro, que seu sonho era ser bancário, isso que para mim é uma realidade de trinta anos, fiquei tocado. E doeu-me a certeza de que a realidade dele não abrigaria aquele sonho. Tive sonhos – o de ser diplomata, por exemplo. Ao lado dos sonhos, a certeza de que, se me empenhasse, eles seriam sonhos reais. Para o meu primo, esse modesto sonho parecia um sonho impossível.

Outra conta é a de um marceneiro, Sr. Raul, que foi fazer orçamento para uma nova estante e que acabei não contratando. Quando viu a quantidade de livros na velha estante, tomou-se de certo desconsolo e revelou o quanto tinha vontade de ter estudado mais. E disse a frase que cortou meu coração: “A vida não me deu essa oportunidade”.

Agora uma conta que colhi num hortifrúti perto de casa. Essa conta me toca pela singeleza, pelo que há de extraordinário na ordinariedade das nossas vidas. O que me chamou a atenção foi o zelo com que o moço que lá trabalha cuida das verduras: tudo limpo, tudo harmonioso, tudo simétrico... Põe no que faz todo um sentido de cuidado, de capricho... Ali no hortifrúti está toda a sua vida – assim me parece. Imagino que mora só, que cuida da própria roupa, que dá um jeito na casa – tudo com o mesmo zelo com que se dedica às verduras. Lindo!

Mais uma conta. Indo pra casa apressado, vejo de relance uma moça conversando com uma senhora nas imediações de um shopping. Ao reparar bem, vejo que a senhora (uma moradora de rua, talvez) chora de puro desconsolo. O que me enterneceu foi que, estando a senhora sentada na sarjeta, a moça agachou-se, pôs-se no nível da senhora e a ouvia com tanto acolhimento e atenção que meus olhos ficaram rasos d’água na mesma hora.

Por fim, a conta que faz meus olhos derramarem-se só de pensar nela. Está nos extras do documentário sobre o poeta Manoel de Barros – Só dez por cento é mentira. A cena envolve uma espécie de agregado da família do Manoel cujo nome não me lembro. No rosto dele está impressa a evidência de uma alma boa, nobre... O fato é que ele está conversando com a equipe de filmagens. A certa altura ele menciona alguém, mas diz apenas “Meu padrinho”. Ao perceber que está falando com gente que não sabe de quem ele está falando, ele pronto esclarece: “Meu padrinho, o Dr. Manoel”. O que não dá pra descrever é o tamanho da gratidão que ele põe nessa simples frase. A conversa prossegue e ele vai preparar um café para a equipe. Sendo um homem simples, na casa não tem esse luxo de bandeja e xícaras. Mas ele, pressentindo que a ocasião exigia uma certa delicadeza, ele mesmo a delicadeza em pessoa, serve o café em singelos copos americanos e o oferece às visitas num prato comum que, pela ternura da intenção, vira suntuosa bandeja. A cena fecha aí. E meu coração se abre para a grandeza dos gestos delicados, onde quer que eles aconteçam.






sábado, 27 de julho de 2013

Viajante



Trago nas mãos um mapa
de cento e sete cidades

- fundidas em uma metrópole


Na mochila, coleções
de tantos rostos e nomes

- que nunca, nunca se completam


No bolso de trás, um livro
com todas as histórias

- que ninguém vai escrever


E, por fim, embrulhadas em jornal, conservas
de momentos preciosos

- para saciar a tristeza
nas noites mais longas do inverno












sexta-feira, 26 de julho de 2013

Assalto

Mariana passeava pelas ruelas estreitas do bairro velho, à procura de puxadores antigos.
Adorava o bairro velho! Sentia nas paredes descoradas as histórias de tantas almas que por ali tinham passado. As janelas com cortinas de renda, as portas entreabertas que deixavam ver as íngremes escadas de madeira por ali acima, as velhotas eternamente vestidas de preto, tudo aquilo a encantava.
Atendeu a chamada do telemóvel quando este tocou – o amigo saudou-a, disse uma graça, ela riu-se. Sentia-se bem, como se sentia sempre quando perambulava pelas ruazinhas cheias de História e de histórias. Estava quase a chegar à lojeca simpática e repleta de artigos, velhos uns, antigos outros. Curiosa esta distinção, pensou: é bom ser “antigo”, é mau ser “velho”; velho é imprestável, passado do prazo de validade, inútil, ao passo que “antigo” é precioso, algo que cumpriu o destino dos anos e se mantém útil e bonito.
Entrou e levou imediatamente uma pancada. Soltou um grito abafado, entre assustada e surpreendida: não estava realmente magoada, tinham-lhe batido com um saco de plástico cheio de qualquer coisa. A mulher que lhe batera com tão inusitado objecto fugiu, assim como o acompanhante, um macho jovem e ágil.
Mariana ficou interdita, sem perceber bem o que tinha acontecido – estava encharcada. Cheirou a manga molhada, meio a medo: não cheirava a nada. Passou as mãos pelo cabelo a pingar e cheirou-as: nada. Era água, água limpa.
Relanceou os olhos pela loja e viu o lojista no chão a ser assistido por uma rapariga - “o que foi, o que aconteceu, estão feridos?” e era a história simples de um assalto atabalhoado. O casal tinha entrado, ameaçaram com a faca, queriam dinheiro e valores, o homem tinha respingado e levara uma facada; entretanto ela tinha entrado na loja a falar alto ao telemóvel e eles tinham fugido.
O homem estava ferido mas sem gravidade, a moça já estava a chamar a polícia para pedir ajuda e Mariana pensou para si própria que ninguém ia acreditar nela: tinha interrompido ladrões de naifa em punho em plena função e que é que acontecia? Batiam-lhe com um saco de água limpa. Um saco de água?!?
Quando a mãe entrou em casa, o miúdo tristonho deitado na cama não disse nada. Prostrado, os olhos mortiços eram olhos tristes de quem não tem nem vitalidade nem esperança.
A mãe aproximou-se, sentiu-lhe a testa com a mão, beijou a pequena bochecha e foi á cozinha improvisada no outro lado da divisão molhar o pano em água da torneira para lhe esfriar a temperatura.
Depois foi esvaziar a panela, enchendo meio prato de uma sopa rala e voltou para colocar o pano na testa febril e sentar-se na cadeira ao lado do doente, de colher na mão; mas a criança recusava-se a comer, como já tinha acontecido de manhã.
- Come, filho, senão não ficas bom. Come só um bocadinho, vá lá…
E o miúdo nada, os olhos sofridos e a boca fechada para aquele líquido ralo e de cheiro estranho.
- Tens de comer, filho… Se comeres a sopinha toda, amanhã trago-te um peixinho de aquário, queres? Um peixinho azul. Tentei trazer um hoje mas o saco rebentou e o peixinho fugiu… Amanhã volto lá e trago-te um, vais ver, um peixinho azul com barbatanas compridas, pomos ali naquele frasco grande. Vou trazer com muito cuidado para não rebentar o saco outra vez, está bem? Mas tens de comer a sopa, vá lá…





quinta-feira, 25 de julho de 2013

XXXI – A resolução de voltar à América do Sul e o encontro com o astrónomo turco


Joaquim Bispo

[A deambulação sofrida e desencantada das personagens da obra “Cândido” de Voltaire por várias partes do mundo termina no capítulo XXX em Constantinopla, onde o grupo se resigna a viver da agricultura sob o lema: Devemos cultivar nosso jardim. Trabalhemos sem filosofar – é a única maneira de tornar a vida suportável.
Neste pastiche-sequela introduzi um matemático, como forma de homenagear o amigo escritor e matemático Alian, de Curitiba, a quem o texto foi oferecido no natal de 2008.]



Embora tivessem acreditado, durante algum tempo, que a vida e o trabalho na quinta os libertava de três calamidades – o aborrecimento, o vício e a necessidade –, o certo é que Cândido, Pangloss, Alian, Cunegundes e os outros não aguentaram muito tempo aquela vida demasiado rural e preferiram arriscar sujeitar-se às sevícias da necessidade, a fim de voltarem a saborear os estímulos do vício urbano e, sobretudo, livrarem-se da assoberbante prevalência do aborrecimento. Venderam a quinta a um felá que tinha um negócio de hortaliça porta-a-porta, dirigiram-se ao porto de Constantinopla e compraram passagens no cargueiro Payflower que se dirigia à colónia portuguesa do Sacramento, no estuário do Rio da Prata. Tencionavam, a partir desse destino, viajar para norte e, quiçá, voltar a encontrar o Eldorado, de grata memória, ou mesmo Curitiba, que as lendas diziam ser ainda mais fabulosa.
A viagem foi longa e Pangloss entretinha-se a perorar sobre os efeitos e as causas no melhor dos mundos possíveis. Dizia que Deus escrevia direito por linhas tortas, pois, se quisesse que eles se transformassem em amáveis agricultores, não lhes tinha inculcado enfado na alma e calos nas mãos. Cândido aprovava e apalpava o interior das ditas. Alian dizia que Deus era uma criação humana e que portanto era efeito e não causa. E que o livre arbítrio existia, não por maquinação sub-reptícia de um deus mal assumido, mas pela ausência desse mesmo Deus, fosse bondoso, como o mito cristão gosta de o pintar, ou cruel e vingativo como o do Velho Testamento. Cunegundes, enjoada com os balanços do navio, passava a maior parte do tempo dentro duma nebulosa etílica.
A bordo seguia também um matemático e astrónomo turco que raras vezes se via, porque passava as noites no convés a admirar as estrelas. Certa vez, envolveu-se numa troca de opiniões com Alian e Pangloss.
– A grande demanda da minha vida – dizia ele – é conseguir realizar a quadratura do círculo. Estou convencido que em breve a alcançarei.
– Ah, caro amigo – retrucava Alian – temo desiludi-lo, mas tal é impossível. É que Π (Pi) é um número transcendental e como tal não pode ser construído um segmento de reta equivalente, usando somente régua e compasso.
Esta resposta, avançada para o seu tempo, levou a uma longa discussão que seria ocioso transcrever, mas que, duas horas depois, evoluiu para:
– Também hei de provar que Fermat não tinha razão – arrazoava o turco. – A grande demanda da minha vida é encontrar um expoente diferente de 2 que sirva a equação apresentada por ele.
Pangloss, adiantava-se:
– A harmonia pré-estabelecida não pode ser alterada, sem que o mal apareça. Tudo está bem como está.
E outros cumes de elegante argumentação.

Por fim, aportaram à colónia do Sacramento, às primeiras horas de 26 de Dezembro, onde se viviam dias de grande inquietação, pela iminência de mais uma invasão por tropas espanholas. 





quarta-feira, 24 de julho de 2013

MINICONTOS DE UM CONCURSO – PARTE II

Amigos, dando prosseguimento à edição do mês passado, apresento mais dois minicontos que participaram do I Concurso de Minicontos Autores S/A – um certame que teve mais de 747 participantes inscritos e eliminações semanais, e no qual tive a felicidade de obter a quinta posição. Ao longo do concurso, assinei os minicontos sob o pseudônimo Juliano Monterroso. Espero que gostem da leitura. Saudações literárias. Edweine Loureiro 

*

DESPEDIDA

Sobre o féretro do cunhado, depositou um par de flores e todas as lembranças de um amor clandestino.

*

TORPEDO

Ao celular do homem-bomba chega a mensagem da esposa:
Não se atrase para o jantar.

*****





terça-feira, 23 de julho de 2013

Uma Gestão Hospitalar de Outro Mundo

Em minha última viagem à Sodot ed Lisarb fiquei doente e fui obrigado a buscar auxílio médico em um dos hospitais da rede pública desse mundo.

Graças a essa minha indisposição, pude observar melhor como são organizados os processos, procedimentos e até a estratégia por trás do cotidiano em uma de suas emergências. Resolvi ficar alguns dias a mais para pesquisar e preparar esta matéria especial para vocês.

O ambiente: Design alinhado a estratégia 

Os filmes americanos mostram aqueles corredores da morte pouco antes do condenado sofrer a sua pena. Os corredores são decorados com paredes sem cores; em muitas prisões as portas são trocadas apenas por grades outras apresentam uma porta com uma abertura para espiar os presos. As cores oscilam entre um preto e um cinza, quando se reconhece as cores. Nunca estive no corredor da morte, mas tenho sempre essa sensação quando frequento um hospital.

Aquelas paredes com uma cor sem vida, um cinza gelo, uma amarelo fraco, um verde sem cor, quando há uma cor e não aquele branco opressor. No passado se usava mais branco nos hospitais, o mesmo branco que a policia da ditadura usava para torturar os acusados.

A filosofia de não cores nos hospitais é para que você e seus familiares descubram o quanto antes que não há vida; que ela acaba. Em muitas entradas dos hospitais de Sodot ed Lisarb há uma placa onde se lê 'ao passar por essas portas esqueça a esperança'.

Segundo os especialistas esta frase ajuda os pacientes e familiares a diminuírem a dor, uma vez que as pessoas buscam nos hospitais uma cura para seus males.

Triagem: A métrica do sofrimento 

Em Sodot ed Lisarb, os hospitais foram criados com mecanismos para que você perca sua dignidade. Ao chegar em um atendimento, você espera horas e horas para ser atendido, exceto se você estiver em caso de vida ou morte. E vou lhes dizer, nesses casos você só é salvo para que o hospital tenha mais gente para sofrer em seus leitos. São poucos os casos em que as pessoas morrem nos hospitais, a grande maioria é enviada para casa e morrer junto com os familiares. Não há morte por falta de atendimento, as pessoas que estão com estado crítico, identificados pelo processo de triagem são enviadas para casa. Os boatos de que as pessoas que as pessoas pioram nas filas antes de atendimento é descartada pelos governantes e órgãos fiscalizadores de Sodot ed Lisarb.

O processo de filas dos pronto-socorros é como o vestibular de muitas universidades: por eliminação. Você esta lá e concorre por uma vaga. Aos olhos dos administradores, gerentes não há pessoas nas filas dos hospitais, há números; números que precisam ser administrados.

Um número alto de reclamações era o tempo que alguém chegava no hospital esperava para ser atendido. Vendo aquela quantidade de pessoas, eles tiveram a grande ideia de fazer uma triagem.

O discurso dizia que dessa maneira poderiam separar os casos mais graves, dos casos mais simples. Na prática foi uma forma inteligente de dar uma falsa esperança a todos que esperam. Você chega em um hospital, fica uns 20 a 30 minutos esperando e é chamado. O 'doutor' olha para você por uns dois minutos e pede para você aguardar pelo nome. Em sua ficha ele coloca um número de gravidade, de 1 a 5. Quanto maior o número maior a gravidade e mais 'rápido' é o atendimento. Cerca de 80% dos casos ficariam entre os casos 1 e 2 na classificação.

Na classificação a avaliação é se você sofre risco de vida, se você não sofre, eles não estão interessado em saber há quantos dias você esta sofrendo com a dor ou a intensidade da dor. Alias, dor parece ser algo que eles ignoram em Sodot ed Lisarb.

Uma Estratégias eficaz se faz com processos eficazes 

O processo de gestão por resultados nos hospitais são medidos apenas com números. O número de pessoal que chegou à emergência, o número de pessoal que foi atendido, o tempo de espera, os custos dos atendimentos. Infelizmente eles não conseguem contabilizar a dor dos pacientes e o sofrimento para os seus familiares.

A máquina é tão eficiente que transforma seres humanos em pessoas insensíveis, com toques de crueldade. O lema da emergência é mentalizado com um sorriso no rosto 'a culpa é sua por ter ficado doente, agora aguenta'.

E os processos são padronizados e dinâmicos, fruto de anos de experimentação com diferentes casos. Por exemplo, quando você chega em frente ao médico ou enfermeiro,
- O que houve?
- Ai doutor estou com uma dor no peito há três dias, pensei que não fosse nada, mas a dor continua...
- Você deveria ter vindo no mesmo dia. Como você ficou em casa com essa dor? Dor no peito tem que vir direto. Volta para a sala de espera que vão te chamar pelo nome.

Mas e se for diferente,
- O que houve?
- Ai doutor estou com uma dor no peito e resolvi vir o que pode ser isso...
- Agora é assim, qualquer dor e já vem para o hospital. Imagina quando tiver dor de verdade. De qualquer maneira, vamos dar uma olhada. Volta para a sala de espera que vão te chamar pelo nome.

O processo é simples. Fazer de conta que há uma triagem para fazer você ficar esperando, mas com um toque de deixar você sentindo culpado por ter ido buscar ajuda.

Os indicadores de desempenho

É evidente que houve um trabalho forte por parte do governo Sodot ed Lisarb para gerar esses resultados. Uma estratégia eficaz onde se aplicam conceitos de marketing de serviços e gestão hospitalar para atingir os resultados. Hoje Sodot ed Lisarb tem 100% de atendimento nos casos de emergência o atendimento inicial que antes era de quatro a seis horas, hoje, com o processo de triagem, caiu para uma hora.

Após o processo de triagem 70% dos casos são resolvidos ali mesmo enquanto que os demais ou são encaminhados para especialistas (20%) ou o paciente é hospitalizado (10%). 'Poderíamos tratar mais pessoas, mas o problema é que muita gente não tem paciência para esperar após o processo de triagem' diz o doutor Nicolau.

Estima-se que cerca que mais da metade das pessoas que passam pelo processo de triagem voltam para as suas casas após duas horas de espera. Segundo o especialista Jim Carrey, isso mostra que a triagem é mais eficaz do que se supunha inicialmente. `As pessoas não tem problema, senão esperariam com isso. Com a triagem foi possível economizar mais de 900 milhões de Fantasias (a moeda de Sodot ed Lisarb) por ano com atendimento desnecessários'.

Os números são provas concretas de que Sodot ed Lisarb vem realizando uma gestão singular no campo da saúde que agrada médicos, pacientes, especialistas, a comunidade e o povo de Sodot ed Lisarb que estava cansado de sofrer nos ambulatórios.





segunda-feira, 22 de julho de 2013

Sulfite e Cartolina

Era uma vez um castelo de papelão, habitado por uma corte de lego, rei vermelho, rainha azul, súditos de peças de três pinos e seis encaixes, cercado por um povoado de tampinhas de garrafa, pobres moradores de plástico e metal. Na torre mais alta do castelo vivia confinada uma princesa de papel sulfite, que olhava a vastidão do reino através de uma pequena janela recortada com tesoura sem ponta e envidraçada com celofane amarelo. De vez em quando uma ama de plástico-bolha aparecia e trocava, junto com os lençóis de papel de seda, o celofane desbotado por um novo de outra cor.

Haviam dito muitas vezes a essa princesa que vida de nobreza é uma barbada, que a de princesa na torre, então, é chuva de purpurina, que depois de alguns anos, de tranças feitas e desfeitas, de lágrimas que adormecem e despertam, de rosas que perdem as pétalas e de feras que se transformam nas almas mais puras do universo lilás, sempre aparece um cavalheiro disposto a levar a moça da torre para outro castelo fincado num reino tão-tão-distante, onde ela poderá engravidar muitas vezes, e tricotar até acabarem-se os fios de lã.

No fundo, mas bem no fundinho, brotava na princesa de papel sulfite uma dúvida pequenina e insistente, um buraquinho de traça no meio do livro velho, ela não sabia se gostava da ideia de esperar, engravidar, envelhecer e tricotar, ou se preferia saltar pela janela e sair sem rumo reino adiante, a descobrir o que havia do lado de lá do riacho que a janela enquadrava.

O tempo passava e passava e a dúvida crescia e crescia e a princesa de papel sulfite percebia que estava perdendo o controle de si, que sua ansiedade e impaciência estavam causando rasgos e fissuras na própria pele de papel, o que naturalmente doía. Da dor sabia que não gostava. A dor insistente indicava que seria preciso fazer alguma coisa, tomar providências, decidir. Mas como? Como resolver ir ou permanecer, aceitar ou recusar, abrir a porta ou trancar, se havia passado a vida aprendendo a andar no meio-fio, entre o dentro e o fora, entre ser e não ser?

Ao reconhecer um momento definitivo, desses que não se pode voltar atrás (e não seriam assim todos os instantes?), a princesa de papel sulfite experimentou profundo desalento: por dentro havia algo tão dolorido crescendo e pedindo passagem, vazão, que a moça desistiu de suportar e chorou. Chorar quase sempre é uma coisa boa, limpa os olhos e afrouxa o que tem dentro do nariz e do peito, o alívio sai no papel higiênico. Mas no caso da princesa era grave. Era praticamente suicídio.

Pela fresta da janela espiava uma luzinha laranja, que passou ao lado de dentro da torre quando a princesa de papel sulfite começava a se amolecer em lágrimas. Diante da moça surgiu uma mulher de cartolina ruiva, segura e sorridente. Vestia um sobretudo laranja de papel crepom, jeans claro justíssimo e calçava botas de massa de modelar, que a princesa de sulfite jamais havia visto. Reconhece o tipo? Fadas madrinhas são sempre providenciais.

Antes que a princesa lançasse qualquer pergunta, a fada foi logo tirando de dentro da bolsa canetinhas, giz de cera, cola bastão e estilete. Disse um "vem cá" enérgico e incontestável e em dois tempos a princesa estava, amarrotada, diante do espelho. A fada dispôs os apetrechos diante da moça e ficou ali, de braços cruzados, "tudo contigo. Não era disso que precisavas, fazer escolhas? Começa escolhendo a ti e as tuas cores. Não parece razoável?"

Parecia. Logo a princesa desvestiu o vestido de sulfite branco, esticou-o no chão da torre e dele recortou uma minissaia rendada, uma bermuda, um colete e um top franzido. Desenhou riscas, bolinhas, pedrarias, zíperes, flores coloridas e botões de madrepérola. Recebeu da fada poucos de massa de modelar e fez as próprias botas e com as sobras um par de scarpins dourados, capazes de devolverem-lhe ao lar. Combinou as botas novas com a minissaia e o colete, guardou o resto na bolsa da amiga e sorriu.

A princesa já havia recobrado bom humor e esperança no futuro quando a fada puxou da bolsa uma chave de plástico. Entregou-a à princesa, que já sabia o que fazer: abriu a porta da torre, por onde saíram as duas de mãos dadas e às gargalhadas. Os empregados tentaram interpelar as moças, queriam saber para onde iam, mas elas deixaram a eles apenas vento.

Fora do castelo, à beira do riacho de lantejoulas, a fada perguntou se a princesa sabia nadar. Não sabia. "Sabes voar?", tentou novamente. Não sabia. A fada, então, recortou um par de asas em papel de chiclete e colou nas costas da companheira. Atravessaram a água aos voos e riram muito deitadas na grama, ao aterrissarem na outra margem.

"Estou feliz, fada. Obrigada. Estou leve", iniciou a princesa, numa conversa necessária. Deitadas lado a lado, as moças ficaram muito tempo olhando fundo uma nos olhos da outra, sem procurar nada, nem respostas, nem pistas, nem explicações. A princesa olhava e admirava a coragem da fada, as linhas no rosto da fada, a pureza e a verdade na fada. A fada, por sua vez, contemplava a resignação e a força da princesa, o conflito da princesa, a intensidade e os olhos castanhos da princesa.

Não saberiam precisar quanto tempo deixaram-se ficar estendidas ali no capim, mas estar lá era libertador. Daqueles risos em diante escolheriam a estrada e os novos planos. Talvez se separassem e viajassem para terras distantes, talvez casassem com camponeses de E.V.A, talvez virassem assalariadas, qualquer rotina seria sempre possível, mas ali naquela grama, eram apenas as duas e isso era muito, era possibilidade, era amor.

O dragão não apareceu, o príncipe de laminado não veio, a princesa nunca foi perfeita e a fada madrinha não foi embora. Não se sabe se viveram juntas para sempre, mas foram felizes como raros sabem ser. Na história daquelas duas não havia espaço para Era uma vez. Todos os inícios começavam diferente, Eram muitas vezes.





domingo, 21 de julho de 2013

1970 - A Copa que eu não vi.

Será possível alguém sentir saudades daquilo que não vivenciou? Por mais estranho que pareça, eu sinto, pois sempre me lembro com nostalgia da Copa do Mundo que, com meros quatro anos de idade,  eu não vi.  Ele foi disputada  no México, 1970, quando onze homens vestiram a camisa amarela da seleção brasileira e juntos elevaram o futebol à categoria de obra de arte.

Esqueçam tudo o que ouviram falar do governo Médici, seus porões sangrentos e a utilização do futebol como massa de manobra para manter o povo alienado e em seu lugar. Ignorem milagres econômicos, Guerra do Vietnã ou o movimento hippie. Ponha um DVD da Copa de 70 em seu aparelho e foque apenas as quatro linhas que demarcaram o campo de batalha do Estádio Jalisco, na cidade de Guadalajara. Naquele longínquo mês de junho, o “scratch canarinho” como era carinhosamente chamada a seleção, apresentou um espetáculo futebolístico nunca visto antes e quiçá impossível de ser reapresentado pois, a despeito do futebol haver mudando tanto em disciplina tática quanto nos aprimoramentos físico e técnico, as peças do xadrez eram outras, e de qualidade infinitamente superior ao que vemos hoje.

Para começar, havia um deus de ébano no esplendor de sua forma física, tecnicamente perfeito e amadurecido nos seus trinta anos de idade. Pelé, simplesmente o Rei, que conseguiu a façanha de ficar eternizado na Copa em que foi magistral não pelos gols assinalados, mas pelos perdidos. Veja, reveja e deslumbre-se com o seu chute do próprio campo contra a meta  adversária e o desespero do goleiro theco, ou a clássica cabeçada defendia pelo inglês Gordon Banks, jogada responsável pela fama do arqueiro da seleção inglesa por muitos anos, ou ainda a incrível, fantástica, esteticamente maravilhosa meia-lua sem tocar na bola contra um goleiro uruguaio de prosaico nome polonês. No México Pelé foi perfeito, um maestro acompanhado pelo spalla Tostão, talentoso meia do Cruzeiro que meses antes sofrera um grave descolamento de retina e, do inferno a redenção, brilhou em terras aztecas. Justamente no confronto mais difícil, contra o “English Team”, consagrado campeão do mundo quatro anos antes, Tostão deixou sua marca em uma jogada individual pelo lado esquerdo onde, após provocar um salseiro, passou a bola para Pelé que, com um simples toque para lado, deixou Jairzinho livre para decretar a magra, contudo heroica vitória por um a zero.

Como esquecer de Jairzinho, o Furação da Copa? Seis jogos, seis gols, façanha nunca antes alcançada, nosso camisa sete levou pânico as defesas adversárias com suas arrancadas mortíferas. Tivemos ainda Rivelino e sua patada atômica; Brito zagueiro raçudo, considerado o pulmão da copa; Carlos Alberto, nosso eterno capitão que perpetuou o gesto de beijar a taça Jules Rimet (que como dizia o samba-enredo “derreteram na maior cara-de-pau”); a juventude veterana de Clodoaldo, a organização tática e os lançamentos milimétricos de Gerson, o canhotinha de ouro; a classe de Piazza, a discrição de Félix e Everaldo.

Campanha sem igual, coroada com a brilhante exibição na final disputada na Cidade do México. Um 4 x 1 convincente contra a seleção italiana, tão diferente destas finais insossas que nos acostumamos a presenciar nas últimas Copas.

Parafraseio Pablo Neruda e confesso que não vivi o momento, não vi a maior seleção de futebol de todos os tempos mas, graças ao milagre tecnológico, este espetáculo está ao alcance de qualquer mortal ao custo de uma locação de um DVD. Aprecie sem moderação.






sábado, 20 de julho de 2013

UM TAPA NO TAPETE

                                                             José Guilherme Vereza e Antonio Engelke

Primeiro foram as luzes. Depois as mãos e os pés, simultaneamente. Marita gostava de ser rainha.
Súditos acariciando seus dedos longos e bem feitos, seus calcanhares macios, sua cútis bem tratada,
seus ombros e escápulas receptivas a cremes reconfortantes. Gostava de relaxar. Não de trabalho em si,
mas do stress invisível, ocioso e cotidiano. Mas o ritual mais importante da tarde regada a prosecco
e petit fours estava para acontecer.

- Posso entrar?

A atendente de costas responde no piloto automático.

- Faz favor. Pode pendurar as roupas ali no cabide. Só deitar de barriga pra cima, faz favor.

Marita tira a saia e a calcinha, deixa a taça de prosecco quase vazia numa mesinha e deita-se
na maca. Quando acaba de preparar a cera, a atendente vira-se. Momento susto. Momento constrangimento.
Marita instintivamente cobre o sexo com as duas mãos ainda umedecidas de creme e esmalte carmim.

- Néti!!!???
- Dona Marita!!!???
- O que você tá fazendo aqui, Néti?
- Buço, axila, perna, virilha, púbis, grandes lábios e ânus. A senhora escolhe.

Momento constrangimento mais intenso.

- Não, Néti... É que você era, quer dizer, eu estava acostumada a te ver como doméstica... . 
- Pois é, desde que a senhora me mandou embora, eu vim trabalhar aqui. E então, 
a senhora vai querer o quê?
- Néti, desculpa, não sei se eu me sinto à vontade, acho que não vou...
- Ocasião especial? Aniversário de casamento com o Seu Sergio?
- Não, não...
- Arrumou amante, então?
- Que isso! Não, pelo amor de Deus, eu ...
- Ahhhh! Veio só dar uma aparada na Claudia Ohana.
- Hã? 
-  É, um capricho no gramado, um tapa no tapete. 
-  Sei lá... sei lá... tirei a tarde para cuidar de mim.
- Só na frente? Ou vai querer atrás também?
- Como?
- Só do ladinho, na virilha, ou vai querer fazer o cu também?
- Que horror!Vou me embora! Vou falar com a gerente!
- Vai não senhora. Sua saia está aqui presa no cabide. Dei um nó, viu? E não foge do assunto. 
A senhora nunca fez o cu, Dona Marita?

Marita trêmula sobre a maca. Suores caem pela testa. Lá se vai a massagem facial.

- Não, nunca.
- Tem que fazer o cu. Homem não gosta de cu peludo não.

Marita se rende. Finge que vai relaxar.

- Mas... e os gays?
- Tudo de cu lisinho. Faço um monte aqui todo dia. Alguns fazem até um tal de “britin”.
- Bri... o quê?
- Um tipo de clareamento. Pra rosquinha ficar rosinha de novo. A senhora sabe, quanto mais 
o tempo passa, mais a rodela  vai escurecendo. Vai ficando com cor de brigadeiro. 
Mas vamo lá. Vou tirar dos ladinhos, aqui e aqui, vai ficar ótimo... 
Certeza que não quer que faça um desenho, um coraçãozinho, um S, de Seu Sergio?
- Néti, eu ainda não sei se me sinto muito confor...

Neste momento, Néti levanta sem cerimônia as duas mãos protetoras de Marita,
até então tropa de choque do pudor e do recato.

- Benza Deus! Dona Marita! Parece uma ostra atropelada, um mexilhão fazendo careta. 
Ta precisando mesmo de uma geral, hein? Xácumigo. Vai ficar, estilosa, vai ficar linda..

Neti puxa bruscamente o primeiro papel de cera.

- ..aaaaaaiiii!
- Tudo bem, Dona Marita? Agora aqui ó, do outro lado... suave... suave. 
Mas me conta. Seu Sergio tá bem? 
- Áaaaaaaiiii ... uuuhh ... tá ótimo.
- Ótimo o quê? O contorno que estou fazendo ou o Seu Sergio?
- Os dois, Néti, os dois. Áaaaai...
- E a Dona Malu? 
- Áaiiiii... ma-mãe-tá-bem-tam-bém, obrigaaaaaaaiiiiii..
- Família toda boa? 

Marita soluça pra dentro. Lágrimas borram o rímel..

- To-to do mundo bem, gra-ças a De-deus.
- Agora eu vou pedir que a senhora vire de costas, Dona Marita.
- De costas?
- É, de costas. Pega as mãozinhas, assim, separa as banda.  Isso. Mas abre bem, abre tudo.
- Peraí... Só respirar um pouquinho. Néti, não me leve a mal não, mas... ui... 
você tá feliz trabalhando aqui? 
- Não é o melhor emprego do mundo, né, Dona Marita? A gente vê cada coisa feia... 
mas também a gente não precisa aturar patroa que fica pedindo lanchinho às onze da noite, 
reclamando o tempo todo que a casa tá suja, vigiando o telefone, passando o dedo na poeira 
das molduras, na prataria, gritando que a roupa tá mal passada... aquilo me machucava tanto, 
Dona Marita... 

A partir daí, o silêncio imperou. Terminado o serviço, Marita se vestiu apressada e ofegante,
e as duas se despediram sem olhares. Néti estufou o peito, levantou as narinas:

- Dona Marita, leva sua taça suja de batom pra copa. Pode dar barata no meu cantinho.

*****
Em casa.
Marita sai do banho embrulhada numa fofura de roupão.
Deita na cama com a estranha sensação de que o dia de glamouroso a sofrido prenunciava
uma noite de delícias inéditas. Quando pressente a presença do marido abrindo a porta,
abaixa a luz do abajur, joga o roupão às favas, vira-se de bruços e se abre oferecida.

A penumbra endoida Sergio.
- Néti? 





sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ora, bolinhas...

Vermelha, vermelha, droga, verde. Amarela, azul, azul, azul! Vermelha de novo, já são três, e lá vem mais uma. Rápido, rápido, ali, lá, vermelho, verde, azul claro, azul escuro, verde, verde, vermelho, verde! Ai, ai, naquele canto, vai terminar, ufa, outra azul, essa foi por pouco... Amarela, lá, ai, tá vindo muito rápido... Verde, isso, outra verde, lá... Não, não, não! Isso não vale, agora que eu ia bater meu recorde! Bom, só mais uma, só mais essa...

Ih, já é meia-noite, e eu tinha de terminar aquele conto... Daqui a pouquinho, só mais essa, vermelha, vermelha, vermelha! Isso! Quem disse que eu não conseguia? Dessa vez, eu chego nos duzentos mil pontos... E, depois de escrever, tinha de estudar mais um pouco, parei lá pelas oito da noite para jogar só um pouquinho e fazer o conto e ainda estou aqui... Ai, não! Não posso me distrair! Ah, só mais uma.

Muito sono. Meus olhos estão ardendo. Mas tenho de terminar essa partida, dessa vez vai dar. Vermelha, eu dou sorte nas vermelhas. Azul, azul tem lá naquele canto, vem, azul, azul, azul! Amarela, verde, droga, errei de pontaria... Ai, tenho de acordar daqui umas seis horas, melhor ir dormir de uma vez. Só mais uma, promessa, desta vez é pra valer.

E o conto? E aquelas questões de inglês que eu tinha de resolver? A meta era estudar 20 páginas por dia... Bom, amanhã eu estudo. E escrevo o conto. Sério: amanhã vai ser só um joguinho!





quinta-feira, 18 de julho de 2013

EM BUSCA DA MEMÓRIA PERDIDA


Otávio Martins

     Todos olhavam para ele consternados; abraçavam-no, sem mesmo dizer qualquer palavra, apenas para confortá-lo e para que se sentisse amparado naquele momento tão grave e delicado da sua existência.

   Ele não tinha o olhar triste; perdido, sim, transcendia a figura da mulher que estava sendo velada e que, agora, nos últimos momentos daquele ritual, era chegada a hora de fechar o caixão, o qual, logo a seguir, seria levado para o seu sepultamento.

   Apertando-lhe contra si, ao passar o braço direito pelas suas costas, num gesto claro de proteção, o homem, bem mais jovem que ele, tinha o ar abatido e tristonho. Não obstante, esforçava-se para confortá-lo.

   Certamente que alguma coisa ia mal com a sua memória, isso ele já percebera. Não poderia estar ali, naquela condição, sem mais nem menos. Precisava ir à busca do fio da meada, o qual, possivelmente, o ajudaria a desvendar qual o seu papel naquele triste acontecimento. O féretro, sobre um carrinho, era conduzido, logo à sua frente, por um funcionário do cemitério. O homem que lhe abraçara fortemente lá na capela, antes de fecharem o caixão, permanecia ao seu lado, tendo, agora, os olhos vermelhos, denunciando que havia chorado durante aquele breve intervalo.

   Assim, de repente, viu-se, lá num canto das suas lembranças, sentado, vestindo um longo sobretudo azul-marinho, de fino acabamento e um gorro de tecido de lã, cinza, que também servia para cobrir os primeiros sinais da sua calvície. O banco em que estava sentado ficava localizado bem no meio de uma daquelas veredas da praça. Do outro lado, no banco em diagonal ao seu, reconheceu o sujeito que comia um lanche caseiro, rodeado por uma porção de pombos que esperavam as migalhas que por ventura caíssem ou que fossem atiradas. Lembrou, ainda, que o sujeito havia trabalhado, por muito tempo, no estacionamento, ao lado da alfaiataria do seu pai. A alfaiataria tinha uma ótima freguesia, o que exigiu afinada capacitação profissional de seus cinco ou seis funcionários. A mulher que estava ao seu lado, entretanto, não tinha o rosto nítido ao ponto de que ele pudesse identificá-la. Ainda que muito tivesse se esforçado, não teve jeito; não saberia dizer quem era apesar de estarem ali juntos. O sol amenizava o frio naquele enorme cenário com uma grande quantidade de árvores; talvez fosse o fim de um outono qualquer, ou comecinho do inverno.

   Ao passar por um enorme jazigo – provavelmente de alguma família muito rica – avistou a estátua, em mármore, fixada sobre o teto, a qual dava à construção um aspecto pomposo, até exagerado, mesmo para a representação à qual se destinava. Mas a estátua, ainda que fosse uma réplica, não perdia, por isso, a sua imponência. Impossível passar por ali sem se dar a devida atenção àquela peça que, agora, o reportava à Renascença Italiana, de Michelangelo, com a sua Pietá.  Apesar do grave momento, experimentou uma ponta de satisfação, lembrando, até, que a Pietá fora encomendada por um cardeal francês, para a Capela dos Reis de França, localizada na Basílica de São Pedro, por volta do ano de 1500.

  Como poderia ter esquecido?

   Os trabalhos em escultura eram a sua vida. Depois que o seu pai morreu, ficou com a imensa casa, uma construção antiga, de um amplo jardim, pelo qual costumava ir espalhando as suas esculturas, lugar onde passava a maior parte do tempo. Logo a seguir, já estava iniciando uma peça de grandes dimensões; lá do alpendre, bem distante, a mesma mulher da praça acenava para ele, em trajes de passeio, parecendo que o avisava estar de saída ou, apenas, se despedindo. Aqueles gestos que pareciam de intimidade ou convivência – sentiu essa sensação – lhe davam mais ânimo e inspiração para cada novo trabalho.

    Enquanto se preparava para iniciar o entalhe, o menino corria, junto a um cão labrador, por vários cantos do jardim, demonstrando muita segurança, talvez pelo simples fato da sua proximidade. Ele não poderia “parar” ali, precisava ir em frente nas suas redescobertas. Nem tempo para saber o que estaria reservado àquela enorme peça bruta de mármore.

   Quando o carro que levava o féretro virou à esquerda, numa daquelas avenidas do interior do cemitério, pressentiu que o local do sepultamento estava próximo. Era preciso ser mais rápido na revisitação às suas lembranças, sob pena de não conseguir                                identificar-se direito, tampouco a mulher que iria ser sepultada dentro de alguns instantes.

   Durante o breve percurso permaneceu calado. O gorro de lã, escuro – do mesmo tipo daquele que estava usando naquela tarde fria lá na praça – servia para protegê-lo do frio e de um vento persistente e forte, naquele triste e cinzento final de tarde, acentuando ainda mais os seus cabelos compridos, totalmente brancos e ralos, os quais denunciavam que teria a idade aí por volta dos oitenta e cinco anos, ou até mais. Em questão de alguns passos, a memória, que se ia restabelecendo, continuava levando-o a reviver outros fatos, passados em diferentes épocas.

   A mulher que caminhava de braços dados com o sujeito que tinha o outro braço sobre os seus ombros não tinha um rosto totalmente desconhecido, mas, tampouco, que lhe pudesse parecer familiar. Talvez não fosse de uma estranha, porém, nada que lhe                                 provocasse a sensação ou a impressão de que fosse alguém que gozasse de sua intimidade ou, mesmo, de sua convivência.

   Preferia caminhar olhando para frente. Era assim que a sua memória apresentava várias cenas que se iam revelando no decorrer do trajeto pelo qual o corpo da mulher estava sendo levado. Não havia tempo a perder. Era preciso aproveitar ao máximo todas as informações que pudessem ajudá-lo a identificar a morta e, também, o porquê de estar ali, naquela condição, dando-lhe a impressão de ser um dos principais atingidos por aquele melancólico acontecimento.

   Avistou bem lá na frente, junto à parede da direita, os dois coveiros que, sobre um andaime, faziam os últimos preparativos numa daquelas gavetas, a qual ficava na fileira do meio, não muito alta. Somente naquele local havia algum movimento e a presença daqueles dois trabalhadores; eram sinais de que - quase certeza - ali a mulher seria sepultada. Ficou um pouco aflito ao perceber a distância que, agora, estabelecia, a olhos vistos, o curto prazo que teria para decifrar todo o mistério em que se sentia envolvido.

      O funcionário do cemitério que ia conduzindo o carrinho que carregava o esquife procurava ir numa velocidade bem lenta, dando a impressão que assim o fazia, somente para que ele, com seus passos quase arrastados, pudesse acompanhá-lo de perto. Mesmo assim, sabia que travava uma luta desesperada contra o tempo. Por mais que ele tentasse atrasar o ritmo do acompanhamento, o enterro estava em seus últimos momentos; isso era certo. Outro ponto que o dificultava, era a maneira como as suas lembranças se apresentavam. Não surgiam numa ordem cronológica. Por vezes, voltavam a uma época remota para, a seguir, saltarem a um tempo cá na frente. A essas alturas, ainda que algum fato pudesse despertar a sua curiosidade, procurava não se deter nos detalhes; bastava-lhe entender o significado principal de algum acontecimento, e pronto. Talvez num outro momento viesse a ter a oportunidade de relembrá-lo com mais calma, podendo, assim, dedicar-lhe melhor atenção.  

   Ao chegar a casa com um automóvel que conseguira comprar depois de muito economizar, estavam a lhe esperar, uma mulher e um jovem, debruçados sobre o portão da frente. Época em que o automóvel era uma raridade. Encostou-o em frente à casa, desceu e, logo a seguir, dirigiu-se aos dois; entregou as chaves para o rapaz que, imediatamente, a passos ligeiros, foi em direção ao veículo. Depois, colocou o braço sobre os ombros da mulher e se dirigiram ao interior da casa. Não deu pra ele saber se haviam entrado para comemorar; a porta foi fechada logo em seguida.

   E essa lembrança, agora? Nem mesmo em outros tempos havia recordado daquilo. A mulher aparecia de mãos dadas com ele, naquela mesma praça, trazendo de casa uma sacolinha de tecido, que ele bem a reconheceu, cheia de farelos de pão e sobras de outros alimentos para jogá-los aos pombos, que eram, sempre, em grande quantidade.  Percebeu que assim o faziam, seguidamente, como um bom motivo para mais um passeio pela praça.

   Outra vez a memória com as suas manobras, brincando com o curso do tempo. A mulher que estava do outro lado do homem que o amparava nos últimos instantes                                 daquele cortejo fúnebre, aparecia bem mais jovem, vestida de noiva, numa festa em sua casa, com muitos convidados, cuja maioria passeava pelo jardim admirando as suas                              esculturas. Depois, na hora de cortar o bolo, tinha ao seu lado o mesmo homem que ali estava entre os dois. Ele e a mesma mulher daquelas outras aparições - felizes - postados ao lado dos noivos.  Aquela mulher – não precisaria mais de outras revelações – era a sua esposa. Ao seu lado estavam o seu filho e a sua nora. Não poderia haver mais dúvida.  

    Quando, por fim, os coveiros retiraram o caixão de cima do carrinho e o descansaram na extensão do andaime, antes de colocá-lo, cuidadosamente, na gaveta, ele irrompeu num choro baixinho, sem causar qualquer preocupação ou admiração em nenhuma daquelas pessoas, as quais, ele percebera, procuravam ajudá-lo a transpor aquele momento tão difícil e único. Chorou por mais alguns minutos, aliviado por ter conseguido se despedir da sua companheira, de mais de cinquenta anos, com toda a lucidez.





quarta-feira, 17 de julho de 2013

A abelha enjoa







A abelha enjoa
com o próprio mel.
Lanço-me à estrada.







terça-feira, 16 de julho de 2013

Último clarão


Cerro os olhos para enxergar melhor a memória. Talvez por isso este aroma de saudade que minhas narinas engolem e expelem, libertando a cada vez uma brisa diferente de lembranças. Meus ouvidos estão escancarados como portas e neles rodopiam melodias que eu não sabia que ainda estavam lá. As mãos ávidas do pensamento emaranhado encontram, por fim, todas as pontas soltas, e reconstroem o bordado das emoções escondidas pelos anos.
O sol de fim de tarde esbarra no meu rosto... Ou vem de dentro este mormaço carinhoso? Não vou abrir os olhos. Ainda não. Não quero. Preciso antes fazer amor com os acordes que me arrepiam os sentidos.
— Maria?
Então, é isso! A imaginação me faz trapaças. Ninguém, em meu mundo de olhos abertos, me chama por esse nome. Não vou abrir os olhos. Não quero.
— Maria?
Não, não, por favor, fiquem fechados olhos desobedientes! Tão logo vocês se abram, tudo irá embora. Vamos, diga o meu nome só mais uma vez, uma vez apenas!
— Maria Beatriz, onde ponho essas flores? — interrompe-me a empregada.
Minhas lindas flores chegaram e a possibilidade do encontro dos meus olhos com a beleza faz-me, finalmente, entreabri-los. Frescos, todos brancos, lírios, copos de leite, pequenas rosas de perfume acanhado e cútis de marfim. Perfeição.
— Enfeite todo o salão com elas. Abra as janelas, deixe que caiam dos parapeitos como tranças. — peço-lhe, me arrependendo logo em seguida — Não, não! Deixe que eu mesma enfeito.
Retiro-me em paz das memórias. A saudade de Augusto sempre me faz tomá-lo por empréstimo ao céu. Não creio que isso seja bom. Não, não é bom. Que fique em paz e aproveite o descanso eterno. Vou parar de incomodá-lo com essa saudade que não passa.
— Bolinhas de gude, bolinhas de gude! A mamãe fez bolinhas de gude! — distrai-me a euforia de minha filha.
O dedinho de Melissa aponta para o meu rosto e ela se diverte com as lágrimas pingando. Quando me viu chorar pela primeira vez, eu lhe disse que eram bolas de gude nascendo, e sua pequena crença inocente acreditou em mim. Belisco levemente a bochecha rosada da pequena e saio correndo com as pontas dos dedos unidas, gritando para ela, enquanto me afasto:
— Não devolvo a maçãzinha da Mel, não devolvo!
Escuto os passinhos dela atrás de mim e finjo cansar, para deixar que me alcance. Às gargalhadas, ela toma dos meus dedos o pedaço imaginário de sua bochecha e grita, eufórica:
— Peguei de volta, peguei de volta!
Depois, se afasta correndo, procurando uma nova distração.
Já começa a escurecer e paro à porta do salão onde a festa começará às nove da noite em ponto. É mesmo um desafio de encantamento. As janelas grandes e antigas foram escancaradas, abrindo-se a um espelho d’água que refletirá, logo mais, a lua cheia. Os cinco lustres de cristal estão sendo testados, neste momento, para que não se acanhem na frente dos convidados. Entrelaço e penduro nas janelas os terços de flores brancas, deixando que repousem para aguentar a festa.
Tem sido assim desde que eu mesma tinha a idade de Mel. Uma vez por ano, fazemos esta recepção grandiosa para agradecer aos médicos e colaboradores do hospital. É sempre uma noite de sonhos.  E hoje estou mais animada que das últimas vezes, porque será um baile de máscaras. Não sei por que não tive antes esta ideia tão comum e sedutora. A fantasia que escolhi, de cortesã, foi um impulso picante. Encantei-me pelo formato que deu aos meus seios. Fecho os olhos e tento novamente fazer com que voltem as memórias que estavam por aqui faz pouco, mas não consigo. E nem tenho tempo. No quarto de vestir, a enigmática mulher pendurada no cabide espera que eu a penetre com as minhas formas.
Só por hoje, permito que sirvam a minha refeição e a de Melissa em meu quarto, para que ela possa ver-me colocando o vestido e a peruca, já que na hora do baile estará dormindo.
— Mamãe, mamãe, deixa eu ver, deixa!
— Ainda não. Primeiro vamos comer bobagens!
Desfazendo o beicinho que sempre faz quando ouve um não, ela se anima:
— Bobagens? É mesmo? Posso comer bobagens hoje? — repete, agitando as mãozinhas no ar.
— Sanduíche, bolo de chocolate com calda, suco de laranja, sorvete com cobertura. Hum, que delícia! E é tudo meu! — provoco, retirando de perto dela o carrinho com as comidas.
— Não é! Não é não! — protesta, inocente.
— Então... está bem! Acho que vou dividir com você.
Gargarejando um riso, ela se joga em minha cama e espera que eu a sirva. Um sanduíche gigante aparece em seu prato sobre a bandeja de cama, seguido, logo depois, por uma taça de sorvete com cobertura.
— Hum... Está faltando alguma coisa por aqui. Uma cobertura especial.
Ponho nas mãos um pouco de chantilly e o esfrego no nariz e nas bochechas da pequena, antes que ela possa reagir.
— Mamãe, para! Assim não vale, você é mais maior que eu!
— Maior. Maior que você, meu amor! — corrijo, com vontade de rir.
Sem entender, Mel procura no carrinho de comidas alguma coisa para me dar o troco. Finjo que não percebo e me sento bem ao lado das coberturas de sorvete. E aceito o carinho de uma calda de morango que ela esparrama em meu rosto, deixando que pense que me pegou de surpresa. Por fim, exausta da farra e das guloseimas, me faz prometer que eu a acordo para que ela me veja fantasiada. E, sem aviso, dorme.
Aproveito a deixa e corro para o banho. Como não tenho tempo para a banheira, abro o chuveiro e estremeço com o jato revigorante e frio que me estimula os sentidos. Por uns instantes, grudo meu corpo na parede úmida de ladrilhos desenhados, braços abertos, rosto comprimido contra a água que escorre . Um hábito tolo, mas relaxante. Em seguida, toco minha pele, primeiramente com a esponja macia e depois com os dedos, dando-lhe o carinho que há muito tempo não recebe. Enxugo devagar o corpo relaxado, esquecendo-me da pressa, e logo entrego-me à cortesã que me espera pendurada, pacientemente. Onde é que eu estava com a cabeça quando escolhi isto? — penso, lutando para fechar a fantasia apertada. Mas olhando para a imagem no espelho, as recriminações dão lugar à excitação. Para falar a verdade, sinto-me sensual, e isso mexe com os meus pensamentos. Mel acorda pela metade no momento em que acabo de ajeitar a peruca de época. De início, leva um pequeno susto, mas logo sorri, meio debochada, e dorme novamente, vencida pelo dia agitado. Desço para conferir pela última vez a casa e saboreio uma taça de kirr royal antes que o movimento dos convidados me impeça de cuidar de mim mesma.
Os primeiros carros chegam, trazendo a família. Logo após, alguns amigos, o pessoal do hospital, outros amigos e, finalmente, pessoas que não sei quem são. Pronto. Este é o momento em que finalmente posso me afastar da porta principal. Não há mais rostos conhecidos e o cansaço começa a tomar conta das minhas panturrilhas retesadas sobre os saltos altos e finos.
No entanto, no instante em que me viro para me recolher ao salão, uma voz profunda e cheia me alcança.
— Boa noite, Maria.
O ar me falta enquanto me volto lentamente. Caminho, incrédula, até o homem parado na calçada de pedras. Sob a lua cheia, Augusto sorri para mim. Augusto que não podia estar aqui. Porque Augusto é do céu.
                                                     *****
Os braços de Mel estão em volta do meu corpo agitado e eu a escuto pedir ao enfermeiro que me aplique mais uma injeção. Não! Ainda não, filha! Ainda não! Você não entende? Mas minha boca já não fala e o grito dos meus olhos não consegue dizer a ela o quanto eu precisava deste último clarão. Agora, tudo será novamente esquecimento.





segunda-feira, 15 de julho de 2013

Visita da minha avó Violante

Eu que fui gerada depois da rádio, vi a televisão dar os primeiros passos, e uso com relativa desenvoltura este colosso da moderna comunicação que é a internet. Eu recebi a visita da minha avó Violante.
Podia ter sido assim, mas não foi.
Eu apenas imagino.  
Se não fosse minha avó Violante ter morrido nos seus frescos vinte e sete anos, seria hoje uma madura senhora de cento e muitos anos, e eu ponho-me a imaginar como seria se ela me visitasse um destes dias e pedisse, assim como se despercebendo de como o mundo tinha mudado:
– Pões-me água ao lume para um banho, minha filha?
Isto, se ela viesse passar comigo uma tarde, uns poucos de dias.
Imagino e falo-lhe, e imagino de novo como seria.
Para que ela fosse entendendo, ou porque, tanto quanto ela, eu estaria temerosa do que via através de seus olhos, dir-lhe-ia:
– Somos os filhos dos seus filhos e os netos de seus netos. Somos, como a Senhora, minha avó, descendentes daquele que ousou o sonho sentado nas galeras, preso nas grilhetas ou escrevendo com penas de bichos em praias ignotas. O que desvendou esse mistério que é o céu não ter presas em si estrelas como se fora bordado, mas ser afinal um vazio imenso onde as estrelas estão dependuradas a par de planetas e buracos negros e galáxias.
Um imenso campo de forças é onde nos somos uns e outros, havia de afirmar-lhe a provocar-lhe o espanto.
A minha avó Violante como seria outro que viesse com o conhecimento com que um dia se tivesse ido de doença, do coice de um cavalo, de um disparo ou de um mau parto; ou apenas pela degradação que é concomitante com o passar do tempo.
Como a minha avó, cada um deles ficaria pasmado e temeroso de ver gentes falando sem interlocutor, uns fones dependurados no ouvido, ou nem isso, que mesmo eu ainda os cuido de loucos falando sozinhos por todo o lado. E eu dir-lhes-ia, como me imagino a dizer a minha avó Violante:
– Avó, eles falam ao telemóvel.
E ela nem perguntaria: que é isso, filha?! que já minha avó se espantaria que eu tomasse para mim o dinheiro em notas, outras que não aquelas com que tinha comprado aquele tecido, o vestido verde que ela mesma costurou para levar ao baile. A minha avó a olhar as notas a saírem em buracos na parede. Seria legítimo o seu alvoroço e o seu espanto, e seria igual se fosse outro que tivesse vindo dos primórdios da revolução do carvão e dos barcos movidos a vapor, que já era espanto que chegasse esse fazer-se o ar quente em vez de braços de escravo ou alimária.
Tivesse minha avó vindo do tempo de onde veio, ou tivesse ela vindo do fulgor das campanhas de Bonaparte, e eu lhe diria de igual modo:
– Não digais de loucos aos que vieram depois que vós vos fostes, que cada uma dessas incomensuráveis, inimagináveis descobertas que fazeis e que tanto transtornam vosso sentir de outros tempos, estava já inscrita em cada um dos vossos sonhos.
E estou certa que ela me havia de sorrir e aquiescer que sim senhora.
Mas ainda assim lhe seria estranho, e mereceria crítica severa, o ruído e o movimento, e os carros, e as luzes que a deixariam tonta. E seria com mal-estar que veria frutas fora de época. E muito a desgostaria que fosse Verão em meses de ser o pico do Inverno, que se dessem por desapreciadas as estações do ano e desreguladas as colheitas.
Mas creio que, logo que lhe fosse dado esconjurar o medo, ela acometeria na rádio, na televisão e no telefone, seu humor de antanho como o faria na internet. E para isso, a levaria eu, de manso, passo a passo, a ver de cada um o encanto, mais que o susto que sempre se gera no homem face ao desconhecido.
Ela estranharia tanta novidade. É evidente que ficaria em desassossego, mas, sobretudo, lhe seria incongruente a pressa, a correria de vida, de cada ser humano. E sei que a veria a implorar aos céus que acalmasse os seus descendentes acometidos do pecado de querer controlar o tempo.
Sabedora do silêncio e da serenidade, sei que minha avó havia de pedir ao deus a quem tantas vezes implorou uma graça, que a salvasse desta grande provação que era ver o homem alienado numa corrida insana contra o tempo.
Minha avó Violante habituada à calma e ao raciocínio lento, como reagiria ela no mundo do telemóvel e do GPS, ela cujos olhos se teriam habituado à incomensurabilidade do Universo, deixaria que, curiosos, eles se passeassem pelas telas de um monitor ou de um tablet, e perguntaria, incrédula: que é isso? e aquilo para que serve?
A minha avó Violante como se fora criança.
Sentar-nos-íamos numa sombra e, juntas, havíamos de recordar que estrelas e planetas e sóis e estrelas se regem de igual modo que a bola que cada um de nós, criança, atirou ao vidro da janela. E eu falar-lhe-ia de átomos e electrões, e da física quântica, e sei que a faria chorar quando dissesse que o homem que busca o como e onde do início dos mundos, também arrasa cidades com a cisão do átomo.
E, para sossega-la, iria passear com ela na margem de um rio, e falaríamos com gentes da poesia e da arte. E havíamos de escutar canções que ela acharia em tudo semelhantes às que um dia terá cantado. E, depois que tivéssemos percorrido a cidade grande, depois de cada novidade lhe ser apresentada, ou nem todas, mas as suficientes para que sentisse o temor e a grandeza, e a pequenez do homem a querer ser deus. Depois que ela me dissesse, e eu me espantasse disso, que tudo é relativo, tudo depende do ponto de vista. Depois que ela se apercebesse o que foi o futuro, com o cuidado que lhe viria de ter vivido cada um dos minutos de cozer o pão ou esperar um filho. Depois, ela havia de dizer-me do cuidado para que do sonho não resulte pesadelo. E eu havia de escutá-la.
A minha avó habituada a que lhe preparassem um banho morno numa banheira com pés em forma das patas de um bicho grande. Ou numa celha de madeira e lata situada, uma ou outra, mesmo no meio de uma sala.
Ela beberricando um chá de menta ficaria espantada que eu lhe tivesse o banho pronto no justo momento em que mo pedia, ou quase. E os olhos que, sei, seriam de um azul violeta quando os abria de espanto, ela os volveria para mim perguntando:
– Filha, a menina acha que vou meter-me aí dentro sujeitando-me a que reverbere mais água da parede e eu me afogue e queime?!
A minha avó Violante com o corpo ossudo coberto com uma capa de burel bordado com um largo capuz, havia de obrigar-me:
– Ora acabe com isso e vá buscar água ao poço e depois aqueça-a no lume. Faça como lhe peço, minha filha.
E eu havia de rir-me e ficaria agradecida que alguém me obrigasse a rolar o tempo a um ritmo tão lasso.
Se a minha avó Violante me visitasse.
imagem : o banho de Alfred Stevens