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domingo, 28 de setembro de 2014

De como cheguei à Filosofia – para não ficar

Uma circunstância acadêmica deu-me a oportunidade de voltar o olhar para os caminhos que me levaram até à Filosofia. A oportunidade veio acompanhada da sugestão de refazer esse percurso tendo o Discurso do Método, de Descartes, como interlocutor de fundo, sugestão bem-vinda pela certeza de que a interlocução – mais pelo distanciamento e menos pela aderência que apresenta em relação à trajetória de Descartes – me permitiria estabelecer contrapontos esclarecedores sobre os rumos que venho seguindo.

Descartes exalta o método como sumamente necessário para se aplicar bem o espírito, para bem conduzir a razão, construindo para si um método. E, tendo-o construído, é com certa presunção que diz ter empreendido o caminho certo na busca da verdade, declarando-se disposto a procurar apenas pela ciência que pudesse achar em si próprio.

Os registros biográficos dão conta de que Descartes estudou numa das escolas mais célebres da Europa e percorreu todos os livros que tratavam das ciências de então. Resolveu, contudo, abandonar todos os saberes acumulados – só acolhendo aqueles que sobrevivessem ao martelo da dúvida –, passando a dedicar-se às viagens, ciente de que era preciso testar os saberes em contato com o mundo, era preciso colar-se à vida para colher dela a verdade, era preciso desenvolver a capacidade de ouvir a razão. Assim, ao mesmo tempo em que se dispõe às viagens, Descartes decide estudar a si próprio para melhor escolher os caminhos a seguir.

A essa altura já tenho elementos para assinalar as diferenças (radicais?) de um percurso que teve um ponto de partida inteiramente outro.

Nasci e vivo num país que, apesar de “gigante pela própria natureza”, tem se mantido na periferia do mundo. Não vai nessa constatação nenhum laivo de contrariedade diante do que não passa de um acaso geográfico. Tal constatação serve apenas para dizer que, tendo nascido nos confins deste país imenso e periférico, vivi todas as conseqüências desse pormenor biográfico. Para começar, o ensino a que tive acesso – hoje o posso constatar – trazia a marca da precariedade; longe, todo ele, de qualquer indicador de excelência. Além disso, a necessidade de garantir o próprio sustento confrontou-me desde cedo. Obrigado a cumprir fielmente “o estatuto civil da pobreza”(1), espaço nenhum havia para vagares, reflexões, viagens, nada, embora andasse sempre “à procura de espaço para o desenho da vida”(2). O certo é que as urgências primárias do estar no mundo roubavam qualquer possibilidade de colocar a vida em perspectiva.

Dito isto, cá estou, “preso à minha classe e a algumas roupas”(3), a bordo da máquina do mundo munido apenas dos sensores da razão. É com esse aparato que sigo em busca de uma “total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular”(4), ainda que, por vezes, seja difícil prosseguir na “inspeção contínua e dolorosa do deserto”(4), a mente já “exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos”(4). Mas, diferentemente do poeta, e se tanto me fosse oferecido, certamente não baixaria “os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abrisse gratuita a meu engenho”(4).

Descartes declara ter percorrido todos os livros disponíveis, fato que, à parte alguma possível presunção, era perfeitamente factível no seu tempo, sobretudo levando-se em consideração que ele dispunha de tempo e fortuna para se dedicar a esse mister. Quanto a mim, “estou atrasadíssimo nos gregos, não conheço os Anais de Assurbanipal, como é que vou (...) chegar à filosofia contemporânea e às glórias do 2015 que telefonam?”(5).

De sua parte, Descartes apanhou do mundo tudo quanto havia – e tudo ele submeteu ao aluvião da dúvida para ver que sedimentos de verdade era possível colher ali. De minha parte, sigo na obstinação da colheita com a nítida sensação de que ela jamais chegará a termo. O mundo transbordou de si, tornou-se uma imensa caverna permeada por múltiplos labirintos e espelhos, neles se podendo colher, se tanto, apenas estilhaços de verdade. A razão, sob a avalanche de signos que lhe incumbe decifrar, parece incapaz de extrair do mundo verdades seguras. O sentimento é o de se estar diante de um palimpsesto impenetrável, fechado a qualquer leitura segura, e que fornece de si versões que não se conciliam com quaisquer princípios de razão. Resta sempre a impressão de que “tudo é muito mais”(6). 

A disposição da procura – fruto de uma natureza curiosa, desconfiada, nesse que talvez seja o único elo entre mim e Descartes – serviu para revelar o tamanho da minha ignorância, tais são os “buracos negros” que venho descobrindo em mim. O resultado disso tudo é ter-me lançado ao mar das indagações. A sensação do quanto me faltava (trata-se de pretérito imperfeito mais-que-presente) e o desejo de preencher lacunas, primeiro me levaram à literatura. Ler virou uma paixão. E o ato da leitura é por si indômito, o apetite nunca cessa. De leitura em leitura, e confrontado sempre com a incompletude, cheguei à Filosofia. Meus únicos recursos eram vinte e poucos anos e uma vastíssima ignorância (desses recursos o único que se alterou foi, obviamente, a idade). Desembarquei na Filosofia tímido e totalmente virgem de um passado que se conta em milênios. Mesmo com o certo desapreço de Descartes pela Filosofia especulativa [(“Da Filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute, e por conseguinte que não seja duvidoso, eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que os outros”)(7)], percebi que o exercício investigativo a que a Filosofia se propõe poderia me ajudar não a obter respostas, mas a melhor encaminhar minhas perguntas. O desassossego vem de que “perguntar é ter sempre como resposta outra pergunta” (8).

Descartes não primava pela modéstia ao se referir à obra já feita. Eu, ungido pela humildade, sinto que “o silêncio serão minhas obras completas”(9). Descartes pretendia unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade. Já eu, avaliando o que não posso alcançar, sigo vagaroso, “de mãos pensas”(4). 

O namoro com a Filosofia, embora breve, foi ótimo, sobretudo por confirmar: não nascemos um para o outro. Não, pelo menos, para casamento. Um flerte vez em quando é quanto basta. É que a Filosofia ergue em triunfo o primado da razão e sabemos todos que a razão não está com essa bola toda. O que ficou desse breve namoro foi: "Nessas altas idéias navego mal" (Guimarães Rosa). Sigo diletante, um pensageiro serelépido, um mero colecionador de pensatempos.  

            

___________________
Notas:
(1)   Citação de memória – sujeita à infidelidade – de trecho de poema de Carlos Drummond de Andrade dedicado a Manuel Bandeira;

(2)   Trecho do poema Canção Excêntrica, de Cecília Meireles, em Flor de Poemas, Ed. Nova Fronteira, 9ª edição, pág. 80;

(3)   Trechos do poema A Flor e a Náusea, de Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 24;

(4)   Trechos do poema A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 206; (Obs.: o sublinhado na quarta citação indica alteração necessária do original para manter o sentido do texto)

(5)   Trecho do poema Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz, em Antologia Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 269; (Obs.: os sublinhados, com o perdão de Drummond, foram uma licença poética pedida pelo texto);

(6)   Caetano Veloso, em letra da canção Podres Poderes;

(7)   Trecho do Discurso do Método, coleção Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, pág. 32;

(8)   Citação de memória que atribuo – sem certeza – a Clarice Lispector;

(9)   Trecho do poema Lápide 1, de Paulo Leminski, colhido em http://www.insite.com.br/rodrigo/poet/leminski/lapide1.html, transcrito com ajustes. 





sábado, 27 de setembro de 2014

Colcha de Retalhos #1

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


MATEMATICAMENTE

Sempre se deu bem com números: somando investimentos, fez os números se multiplicarem
Em relação aos outros, subtraia; Nunca aprendeu a dividir




LEGÍTIMA DEFESA

O advogado alegou legítima defesa; E o juiz absolveu o comandante e mais 11 réus de todas as acusações: homicídio, agressão e uso abusivo de força.
Mais um caso de legítima defesa, em defesa da ordem social.




VAGAMUNDO

Vaga vagarosamente divagando, revirando o vácuo, vivendo o vazio, envelhecendo devagar e levando a vida em vão




DECEPÇÃO

- E a borboleta?
- Fez um casulo e virou lagarta...
- Ah! Que pena.
- É... Acontece.
- Mas não se preocupe, tem muita borboleta no ar.






quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Dorme bem, amor!





Joaquim Bispo

Leio a notícia e espanto-me: um homem que praticou sexo com uma mulher adormecida foi absolvido, porque alegou que estava em estado de sonambulismo. No fim de uma festa em casa de amigos, a vítima adormeceu num sofá e acordou com um tipo em cima, festejando sozinho à conta dela. Além de ficar espantada também chamou a polícia. A absolvição assentou na opinião de um especialista que asseverou que o acusado sofre de sexsónia, um distúrbio do sono que leva o doente a ter comportamentos sexuais enquanto dorme.
A situação pareceu-me um álibi extraordinário para os maníacos sexuais:
— Nada disso, senhor polícia, eu estava a apalpar aquela menina no metro porque a viagem é longa e adormeci e, como prova este relatório médico, quando adormeço faço tudo como quando estou com a minha namorada na cama;
— Sr. Dr. Juiz, eu fazia emboscadas noturnas a jovens isoladas nas ruas do meu bairro e violava-as, porque me deito cedo e sofro de sexsónia crónica. Como testemunharam os senhores doutores médicos, aqui presentes, eu, quando adormeço, tenho tendência a praticar sexo, dominador, como sempre.
Parece que há outros distúrbios do sono muito bizarros: conduzir a dormir e comer a dormir.
— Carlos, que é feito dos pratos de salgadinhos, para a festa de anos, que deixei aqui no frigorífico ontem à noite?
— Ah, então é por isso que me sabia a bacalhau. Sabes, tenho aquele distúrbio de comer a dormir…
Que fazer? Desde que esteja reconhecido pela medicina, pode sempre dar uma bela absolvição?:
— Meritíssimo Juiz, eu parti a cara àquele condutor, mas não sou culpado. É que eu sofro de uma condição clínica muito rara que se chama «condução adormecida». Aquele palhaço ia tão devagar que devo ter adormecido quando tentava ultrapassá-lo.
Para um observador comum, estes distúrbios — as chamadas parassonias — podem facilmente ser entendidas como farsas, mas são possíveis. A medicina diz que, nestes casos, «as regiões do cérebro devotadas ao pensamento elevado, julgamento e razão ficam desativadas, enquanto se mantêm ativas as áreas dedicadas às funções mais “primitivas” — locomoção, alimentação e sexo.» O indivíduo parece acordado em quase todas as suas manifestações e só alguns indícios fortuitos fazem perceber a situação adormecida do sujeito.
Na sexsónia (parece o nickname da Sónia, uma anunciante escaldante na página dos classificados eróticos), há relatos de parceiros casados que só se aperceberam de que algo não devia estar certo quando o parceiro começou a ressonar ou teve outro comportamento bizarro, em relação ao ato sexual em estado de vigília. Depois de o saberem, há quem aproveite, quem se conforme, e quem deteste, porque os doentes têm tendência a ser um pouco mais brutos que em vigília, inclusive consigo próprios. Nos trinta e um relatos da literatura médica, há o registo de um homem que, adormecido, se masturbava todas as noites violentamente, pelo que o seu pénis se apresentava num estado deplorável. A situação pode ser muito embaraçosa, como a do homem que adormeceu na cadeira do barbeiro e começou a masturbar-se. Curiosamente, os doentes, às vezes, negam a atividade que desenvolveram, porque não têm consciência do que fizeram e não se recordam de nada quando acordam. O homem absolvido no julgamento disse que só acreditou que estivera a fazer sexo porque foi à casa de banho e viu que tinha um preservativo posto…
Custa a engolir, mas a sexsónia é uma situação médica aceite na lei canadiana desde 1995. A ela já se recorreu sete vezes, duas das quais com sucesso. Segundo a lei, se não houve intenção de cometer um crime, não houve crime. Argumenta-se que se um réu cometeu um crime quando pensava que estava a participar num sonho, não deve ser punido, porque, basicamente, tudo não passou de um pensamento e «se a lei punisse as pessoas pelos pensamentos criminosos, muitos de nós estaríamos atrás das grades há muitos anos».
A ofendida naquele caso é que não se conforma e recorreu, convencida, como está, de que foi vítima de um caso inequívoco de violação. Também as associações femininas se mostraram preocupadas com o precedente que representa esta absolvição, em que, mais uma vez, houve vítima mas não houve culpado. Vieram a terreiro lembrar que a situação é facilmente tratável com ansiolíticos como o Clonazepam, e que, devido ao problema que representam para a sociedade (o homem em questão, foi dito em tribunal, já tinha feito sexo a dormir com quatro namoradas), os sexsones deveriam ser colocados sob a vigilância de uma entidade de saúde mental, o que, em certos casos pode significar institucionalização dos doentes. Um site na Internet, dedicado ao assunto, veio mostrar que não são tão poucos como se possa pensar: registou comentários de cerca de mil declarados padecentes.

Bem, enquanto se mantiverem na Internet e acordados…





quarta-feira, 24 de setembro de 2014

HORÁRIO ELEITORAL GRATUITO



― Meu nome é Enéas!

A juventude talvez desconheça por completo a existência dessa figura folclórica da política brasileira: o médico Enéas Carneiro, que, em virtude do pouco tempo na tevê disponível a seu partido, disparava uma metralhadora verbal (mais de protestos que de propostas), encerrando sempre com a frase supracitada.

E foi assim que, nas eleições presidenciais de 1989 (a primeira após a redemocratização), doutor Enéas conquistou o voto do eleitor mais irreverente – uma minoria, claro, que buscava uma alternativa mais bem-humorada que sindicalistas raivosos ou caçadores de marajás.

O doutor Enéas pode não haver saído vitorioso nas urnas, mas indubitavelmente fez história. Não que ele tenha sido o pioneiro em trazer sorrisos aos rostos dos eleitores cansados da mesmice. Muitos já o haviam feito antes ― Jânio Quadros com as vassourinhas, por exemplo. 

Aliás, no quesito “boas risadas”, o horário eleitoral tem sido, ao longo da história, bem melhor que a maioria dos programas humorísticos, com aquele apresentando um hilário desfile de “chicas chicletes”, “pés de cana”, etc; que, pasmem, às vezes acabam conquistando, mais que os sorrisos, também os votos do cidadão brasileiro.

Morando há treze anos no Japão ― um país sem voto obrigatório nem campanhas partidárias na tevê ―; confesso estar com saudades do horário eleitoral gratuito (e alguns dirão: “é porque você não tem que aguentar isso todos os dias”). Saudades, sim, mais das figuras folclóricas que do processo eleitoral em si. Este, sabemos, é um show de ilusões, que sempre resulta em decepções quando as cortinas se fecham em outubro.

Então que até lá, pelo menos, nós, os palhaços, possamos rir todos juntos.







segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Espera

Já faz um punhado de dias que ele entrou no mar e não voltou mais. Faz esse mesmo punhado que eu me paro aqui na beira da água pra esperar que ele saia. Nem tinha amanhecido direito e o homem já tava na rua, as rede nas costa, o lampião e a marmita na mão, pronto pra subir no caíco. Naquela madrugada eu tinha sonhado coisa ruim, avisei pra ele não ir, mas o desinfeliz não me escutou e ainda saiu a passo, que tava atrasado, então eu não tava vendo os outros cinco lá na frente, já embarcado? É claro que eu tava vendo. E isso era o pior. Sonho ruim parece que fica acontecendo e acontecendo e acontecendo nas vista depois que a gente se acorda.

Ele foi o último a embarcar. Tava com as bermuda marrom de pescar e a camisa branca que a minha sogra deu. Era pra ter levado o casaco, que de noite esfria, mas nem isso ele atinou. E eu voltei pra casa dar jeito na vida, plantar umas muda de tomate gaúcho e limpar as tainha pra janta. Gosto mais frita, mas ele queria ensopada, não custou fazer. E arroz. Passou e muito da hora de dormir, as panela esfriaram em cima do fogão de lenha, brasa apagada, a mesa posta – pras mosca – e ele nada de passar pela porta, assobiando daquele jeito embalado, raspando os calçado na grama pra tirar o barro. Não preguei o olho sentada na cadeira de pelego, uma agonia medonha.

Terminou a madrugada e do meu homem nem sinal. Aí foi a primeira vez que eu me fui pra beira da praia esperar. Com a camisola que a mãe me deu de casamento. Meus cabelo tavam solto e como tinha vento – aqui sempre tem – eles voavam na cara. De vez em quando eu amarrava os cabelo com cabelo mesmo e ficava reparando na bainha de croché na altura do meus joelho. Na minha cabeça eu achava que uma hora eu ia olhar pra frente de novo e ele ia tá ali, parado, de braço aberto, pedindo desculpa. Perdi as conta de quantas vez repeti essa esperança, molhando os pé na água e rezando, misericórdia, pra virgemaria me devolver o marido logo. O tempo foi muito, tanto que a minha barriga cresceu, nasceu a criança e ele inda não veio.

Ele não veio. Não veio. Não veio, não. Teve um dia que saiu um homem do mar, mas não era o meu. Molhado, esfarrapado, fedendo a podre, a camisa aberta na volta do bucho inchado, os olho arregalado tudo branco, as perna riscada de variz e ferida. A criatura veio na minha direção chamando o meu nome e chorando. O susto foi tamanho que gritei praquela assombração subir ou descer, me deixar em paz, e disparei até a vila. O nenê depois reboleava na minha barriga, eu tava quase ganhando. Fiquei duas noite de cama, adoecida pra parir, quase que morri tendo as dor, eu. Minha nossa. A mãe não saiu da cabeceira e a tia Eva me botava compressa na testa. A coisa foi assim até que o guri nasceu. E me tiraram. A mãe tremia que nem sei, mas não impediu. Levaram meu pequeno embora e eu berrava que era meu, era meu, e eles diziam que louca não tem condição de criar filho. Quando consegui me aprumar e andar sozinha, comecei tudo de novo. Que quando meu homem voltar do mar vai me encontrar esperando por ele, vai saber do que me fizeram, onde já se viu. E vai se arrepender de ter demorado.





domingo, 21 de setembro de 2014

Pentecostes

Balruje ebis az actis,
Lareamta um ducaco avias ibo.
Gavani atu om lactis,
Muto bonati avarac pulibo.

Xataomi! Mulariar ov bononi abari,
Mist avarac olovanimat Isdinote.
Acatomi! Lactvaris av mumpi podari,
Mist olariv amraviri lameque mustanote.

Kataroc ombi alavava noteratu lala,
Karatoc ambi camatico estes libro.
Karatoc ombi putis que paritis lala
Karatoc ambi venenus ov av matribro.

Balruje ebis az actis,
Balruje ebis az pulibo.
Balruje ebis az mustanote,
Balruje ebis az matribro. 





sábado, 20 de setembro de 2014

ATENÇÃO, ESCRITORES!


Dois assaltantes invadem uma casa de altos e baixos. Surpreenderam um pai, uma mãe e um filho de 21 anos. Gritam por um cofre. E como não há cofre, atiram no pai. Depois, é a vez do filho de 21 anos. O pai morre na hora. O filho cai ensanguentado com um tiro na cabeça.
Diante da cena, a mãe não resiste a uma fulminante parada cardíaca. Ela tem câncer na mama, estado terminal, mais fragilidade impossível.

A história não para por aí. Da família desgraçada por um fragmento de instante, sobra uma filha, a primogênita. Não se sabe de onde, ela tira forças para limpar a sangueira, enterrar pai, mãe e irmão, e ainda ter a grandeza de doar os órgãos do menino a quem há anos enfrenta fila de transplantes.
Com este gesto de bravo amor, um homem desenganado ganha um sopro de vida com um novo rim. Ou fígado, ou baço, sei lá.

Gostou da história?
Pois ela fica pior: não se trata de uma tragédia grega ou de uma ficção rascante.
É mais um episódio contemporâneo absurdo que somos obrigados a engolir.

A cada dia, perdemos para nós mesmos, anestesiados, contemplativos, rendidos ao horror ordinário.
Parece que de nada mais adianta levar a mão na consciência e refletir o quanto estamos produzindo barbárie e desprezo pela vida, através do desleixo histórico que se tem com os excluídos, os invisíveis, os mal nascidos, os miserentos, os desvalidos, os sem valores, os sem nada.

Psiu! Poupem proselitismos típicos de períodos eleitorais, quando a miséria é prometida ao extermínio, a luta de classes é lembrada e as soluções sociais surgem em varinhas de condão.

No imediato das tragédias vulgares, segue a guerra de sentimentos e bravatas.
Evocam-se os Direitos Humanos, questiona-se a justiça que protege o assassino rico,
tenta se teorizar sobre a origem da violência, desperta-se a ira dos que defendem
a pena de morte, e blá e blá e blá.

Fé e ateísmo se confrontam:
“Se foi a vontade de Deus, por que Deus fez isso com a filha sobrevivente?”
E o estado de torpor nos martela: “Conformem-se, humanos: esta é a vossa sina. Fazer o quê?”.

É incrível como a vida tem o talento de exibir histórias macabras e perversas, tramas que beiram o inverossímil, vilões monstruosos de carne e osso, vítimas de inocências banais.

E como é vasta a obra que a vida expõe.
Uma motorista é assaltada, não consegue desvencilhar o cinto de segurança da cadeirinha do filho, que sai pendurado e arrastado pelo asfalto. Outra mãe vê seu filho estraçalhado por policiais, que o confundiram com um bandido dentro de um carro. Outra tem sua filha espancada até a morte pela madrasta e ainda jogada do alto de um prédio pelo próprio pai como uma boneca de pano.
Outra madrasta, em conluio com uma amiga e o pai - eu disse o pai! - elimina o enteado com injeções letais. Pronto, acabou o problema do casal. Aquele menino "chato" não chateia mais.
Enquanto isso, policiais matam em confronto entre aspas, executam sob câmeras abelhudas e morrem em emboscadas, por incompetência, instrução, vingança ou gozo, tanto faz.
Uma namorada estuprada vê o namorado agonizar dentro de uma gruta numa praia selvagem.
Uma mulher sai para fazer um aborto e desaparece.
Reféns são degolados num espetáculo de requinte globalizado.
Um jornalista é queimado vivo, seus ossos são encontrados como se fossem de um frango assado chupados num piquenique. De picuinha com a ex-mulher, um pai seqüestra o filho, dá um tiro na nuca do menino e se mata ao lado numa cama de hotel.

Sobe a trilha, entram os letreiros. Mas não tem "The end".
Parecem ideias de filmes, romances, novelas. Darão boa audiência, bilheteria e fama, mesmo que fugaz. Só que já fizeram.
Se voce é dado à imaginação fértil, liberta e tem habilidade com as letras,
cuidado com sua próxima história. Cuidado para não ser acusado de plágio pela vida real.
Talvez dê em processo. Ou tiro ali na esquina.

Basta fechar os olhos, que a lembrança de tais tragédias se projetam no nosso cineminha interno.
Só que minha memória seletiva e medrosa está bloqueando outros tantos enredos hediondos, piores que os piores roteiros criados por escritores de talento, personalidade, valor e estilo.

Pois então, caros criadores de ficção extrema: a realidade está superando vocês.
Seus empregos estão por um fio.





quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Um dia fechado
 
O gato espreguiça-se sobejamente entre o vaso azul e o aquário que decora a sala. A sua vagarosa saída do seu descanso relaciona-se com o ânimo, de quem sente as frações de sol, que esquentam o tapete da sala.
Aproveita o momento, e delicadamente, salto sobre o sofá, que recolhe umas toalhas bordadas, sobras de estações passadas.
A cidade caminha urbanamente e violentamente, buzinas de carros apressados, gritos de pessoas no desespero do trabalho informal, o vendedor de dvd pirata, o pedinte, a cidade mistura todos, ninguém se salva, todos caminham para um sugestivo caos vespertino.
O barulho de vaso arrastado no apartamento ao lado, corteja o olhar do bichano, que não tem tempo de despedir-se, da mais nua realidade. Aquele som ensurdecedor não se prolonga mais do que três minutos suficientes, para fazer o pardo gato não voltar-se mais para saltar o sofá. Duas passadas expressivas e lá chegava o bichano à lavanderia. Varais entrelaçados com roupas coloridas penduradas confundiam os inertes olhos negros. Girava-se em torno do centro de gravidade daquele pequeno e úmido espaço. O tanque de roupas tinha um vazamento, que atirava gotas de água, que explodiam no piso, e, molhavam a sua pata.
A situação não o permitia continuar por ali, precisava alcançar algum outro meio, para conseguir uma iguaria apetitosa. Em sentido contrário ao tanque, contornou as peças de roupas, umas caixas de sapato e uma pilha de jornais passados. Seu estado lorde, não considerava que aquela cena estivesse realmente acontecendo, mas, na situação de buscar mastigar a fome, usou seus gracejos de gato do mato. Uma lambida, duas lambidas, um balbucio no prato de comida, e, pronto, o gato estava pronto para mais algumas horas de estulto.
Voltou-se em sentido de guarda imperial, estufou os pêlos do peito, parou no meio da sala e passou a observar o rasante dos peixes. Poucos minutos de olhares incestuosos, já sentirá suas pálpebras colidirem uma na outra.
Uma infinitude de vozes passeavam por sua memória, discursos infectados de moscas gratuitas. O pavor de perceber e não poder corrigir o lamento das discussões anteriores, de não impedir o abismo de sentimentalismo, executado, dia a dia, com a inauguração repetida de sentimento.
A volúpia de reencontrar a sala vazia, o livre desfile dos peixes, o vaso azul intacto, o deixam tranqüilo para continuar a cortejar o tempo isolado naquele ambiente.
Hoje as desventuras são figurações da memória, e agora pode voltar para seu canto e, apenas esticar as pernas quando a fome apertar, ou a sede exigir, elegantemente, o bichano se espreguiçara e prosseguira com a peleja de uma tarde sozinho.





quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Três poemas de Amanda Bruno





noite no trânsito

branco branco
risca 
vermelho
pisca
acende
amarelo

nem assim 
apaga
a lua


***


os poetas do passado
pesam meu pensamento
não há tormento
que eles não tenham curado

não há poema meu
que não pareça errado
para quem leu
os poetas do passado


***


          pro Teus

não tenho ponto de vista
que ponto não tem tamanho

nem linha de raciocínio
que linha é só num plano

tenho é plano pro mundo
e nem é cartesiano

levo tudo na flauta
que toco no último volume




do livro Por Aqui (Edith)





terça-feira, 16 de setembro de 2014

Penitência

Quando os meus olhos se perderem em voos sem pouso, será hora de não ficar. Mas, antes, o deteriorar-se lento.
Primeiro, os fracassos, se instalando gradualmente. As mãos se tornando inúteis, sem saber para que sirvam. A boca esquecendo o mastigar. O corpo se repuxando em reflexos descoordenados. As fraldas colhendo um descontrole indigno. Os cabelos ralos enfeando o rosto inexpressivo. As pernas paralisadas. O banho dado por mãos alheias. Os nomes dos filhos e dos amigos embaralhando-se em idas e vindas cada vez mais idas. As histórias inventadas, as assombrações à luz do dia, os afetos irreconhecíveis. Longas horas de sono ruim. Outras tantas de olhos no teto. As mesmas frases, repetindo-se várias vezes. Um feto encolhendo-se em involução. 
Assim será. Quando tudo em mim for cansaço e desespero, e eu me desintegrar como um corpo estraçalhado por feras. A cada pedaço arrancado, existirei menos pessoa, desfigurada, agonizante. A cada nesga mirrada de lucidez, invocarei um choro. Por mim. Por vocês. Para os deuses. Mas eles não ouvirão. 
Antes, as tentativas. Comprimidos, lâminas, janelas abertas. Opções à inexistência vegetativa. Impedidas por vocês. Como se fosse melhor gastar o dinheiro que não têm, o tempo que não têm, o amor que não têm numa agonia que transforma em raiva e frustração as sobras de sentimento. 
Depois, o afastamento. No quarto, nenhum de vocês culpando-se ou desculpando-se. Apenas uma mulher estranha, sentada a um canto, cuidando de mim. Fim dos hiatos cruéis. Da realidade escassa que aparecia para brincar de adeus. Nevoeiro. Eu já não estarei morando em mim.
Mas até que a impotência aconteça, há coisas bobas a cometer. Como a vida.
Escrever no vidro embaçado das janelas de chuva. Mudar a cor do cabelo. Tomar sorvete de pistache com castanhas. Tropeçar os olhos na lua, contar os paralelepípedos, tomar banho gelado no verão, balançar na rede.
Como mais tarde não haverá lembranças, quero sentir agora tudo o que ainda está em mim. Os abraços que me devo, as madrugadas de conversas estúpidas, as viagens desastradas com amigos imperfeitos. A melancolia dos natais e das páscoas e dos aniversários barulhentos. As bochechas dos bebês, o rabo dos cachorros. As comidas calóricas, a água com bolhas de gás. O chope com dois dedos de colarinho. O uísque com quatro pedras de gelo. Quero falar sobre sexo às gargalhadas. Fazer sexo às gargalhadas. Rezar. Pedir mais tempo para pecar desejos inconfessáveis.
Só então a penitência. Que será longa e minha. Incerta como os olhos perdidos em voos sem pouso. 







domingo, 14 de setembro de 2014

oremos

Não há palavras para dizer de tristeza
e dizer de dor. 
Nem para dizer de medo.
Mais ainda, ficamos analfabetos,

mudos,
se é o Mal que referimos.
Esse, que a gente cuida que já mostrou demais e se supera,

nos traz, vazio, inumano, igual, mas mais horrendo,
o que julgamos não tivesse retorno.
Falta-nos o dizer e quase desacreditamos.                             
Ou a humanidade caminha aos solavancos
ou o Mal tem seus domínios.

Não há palavras para dizer de tristeza e dor,

nem para expressar esta profunda mágoa de não termos modo...














A mãe do filho


Chegou o filho. E com ele a mãe e a mulher que até então ela desconhecia. Sabia que não experimentaria a maternidade da mesma forma que as amigas ou que as mulheres sorridentes das revistas. As coisas com ela eram diferentes.
Não se sentira angelical durante a gravidez e observara com certa repulsa as expressões beatificadas das grávidas que acariciavam a barriga inchada com o olhar distante, com a sensação de que, finalmente, floresceriam junto com a cria.
Não se sentira confortável com aquela simbiose. Na verdade, achava estranho gerar alguém. Melhor se pusesse ovos. Teria deixado a chocadeira elétrica ligada e tocado a vida para frente, como sempre fizera.
Nunca fora esposa dedicada ou filha carinhosa. Era simplesmente alguém que cuidava de si, que convivia com os outros, se divertia e se aborrecia com eles.
Desejara o filho. Conscientemente. Num dado momento da vida, teve medo de não ter raízes, medo de não experimentar o que todos diziam ser o amor verdadeiro, o amor incondicional. Precisava disso: amar incondicionalmente.
Chegou em casa com o filho nos braços e esperou que o botão do tal amor fosse acionado. Nada aconteceu. Algo havia de errado. Deixara-se iludir. Pôs a criança no berço e recostou-se no sofá. Ficou alguns momentos parada, a mente vazia, sem saber o que fazer. Nada para pensar. Nada para planejar. Esperaria o filho chorar e o alimentaria. Isso... Seria uma embalagem ambulante de leite.
Seguiram-se os dias, seguiram-se as noites. Nada do tal amor. Sua vida estava virada de ponta- cabeça. Não dormia, não parava, não pensava. Era o alimento, o colo, o conforto do outro. Não havia troca, apenas doação.
Arrependeu-se. Não queria mais brincar de casinha. Deu o filho para a mãe, ela não aceitou. Olhou para o marido, deixaria os dois, iria embora. Não foi.
Os meses foram passando. Voltou a trabalhar, pôs o filho na creche. Afastou-se.
E no afastamento, foi voltando, se resgatando. E no afastamento, viu o amor surgindo, lento e sorrateiro como se com medo de grande exposição.









Amores Vários





TANTO E TÃO POUCO!

Cecília Maria De Luca                                   
Preciso lhe falar, meu amor. Estou pensando que daqui a poucos dias completo sessenta e nove giros em torno do sol. Tanto e tão pouco! Olho-me ao espelho tentando encontrar a leveza, o viço, a beleza, e tudo o que vejo são marcas e vincos.  Tão pouco tempo para a vida ir se desfazendo assim e, no entanto, quanto tempo! Tempo suficiente para aprender, conhecer, saber. E o que aprendi, o que conheci, o que sei? Girei tão depressa que sinto vertigem diante da constatação de que quase nada conheço, quase nada aprendi, quase nada sei. Quase nada tenho para lhe oferecer, meu amor. Olho meio que desanimada para minha imagem embaçada e... Opa, há alguma coisa ali que resplandece. Vê? Se não são lágrimas e se não é o reflexo da luz, tenho um novo brilho no olhar. Que bom isso! Sim, porque se os olhos são o espelho da alma, significa que a possuo ainda pulsante. Certo que devo isso a você que, nessas voltas finais, resolveu dar-me mais uma lição. Uma lição de amor. E é sobre o amor que quero e preciso lhe falar.  

O amor sempre foi meu combustível, em consequência, amores tive e muitos nessa vida. Pensava que amava, mas não. O que eu amava era ser amada. Amava ser servida. Amava manipular e fazer joguinhos de sedução. Mas diante da proposta de conviver, pulava fora. Os amores impossíveis para mim eram os melhores. Na minha santa ignorância, achava que o grande amor era aquele que nunca acontecia. Se acontecesse, deixava de ser amor. Insana que era! Precisei de todo esse tempo para finalmente aprender o que é amar de verdade. E tão pouco tempo me resta para por esse aprendizado em prática.

Descobri, pela primeira vez, que tenho vontade de oferecer mais do que receber e me pego com uma vontade imensa de servi-lo. De me fazer bonita e sempre disponível para você. De levar-lhe o café na cama, de preparar-lhe o banho, de massagear seus pés e ombros quando chegar cansado. De silenciar quando é o momento e respeitar seu silêncio se não quiser falar. Nos momentos de crise, ajudá-lo a resolver seus problemas. De não altear a voz quando sei que estou certa. Tenho vontade de enfeitar a casa, espalhando flores e velas perfumadas, de reservar para você o melhor pedaço da torta. De opinar, se precisar, na escolha da camisa que deve usar.  Quero aprender seu esporte favorito para, se quiser, praticá-lo comigo. Não quero medir forças com você, mas caminhar ao seu lado, sempre companheira e cúmplice. Fazê-lo pensar que me protege, ainda que não precise de proteção. Quero você, igualmente, protegido e amparado. Não interrompê-lo mesmo que fale o que considero bobagens. Sorrir de sua falta de jeito ao tentar fechar meu vestido. Tenho vontade de obedecer, mesmo que seu desejo seja fútil. Meu amor, você deve estar pensando que isso é muito natural. Pode ser, mas não para mim. Nunca quis isso na minha vida. Tanto que fiz questão de não aprender a cozinhar, lavar, passar. Servir a um homem? Eu? Eu que, nos anos sessenta, levantei bandeiras feministas, eu que sempre fui dominadora, intolerante e impaciente, que sempre pus meus interesses em primeiro lugar? Eu que costumava dizer: “gosto de você, mas gosto muito mais de mim”? Eu, independente, emocionalmente equilibrada, inteligente, convicta da minha competência, quero agora submeter-me? Pois quero sim, e assim mesmo, numa entrega total e abandonada a esse amor. E para ser honesta, um resquício do antigo egoísmo persiste quando sei que só serei feliz se puder ver a felicidade estampada em sua face. Parece loucura, bem sei, mas não é loucura, é amor. Um amor incondicional, tão verdadeiro e real que me acompanhará até o último giro, que sobreviverá ainda que você deixe de me amar, o que não acredito. Não acredito porque você sabe amar como poucos e me ama de tal maneira que me fez descobrir o significado desse sentimento que aviltei tanto. Você conseguiu despertar em mim a mulher que nem sabia existir. Só agora, depois de tantos giros, descubro minha feminilidade e doçura. Duas qualidades que fazem minha alma pulsar, meu corpo arder e meu olhar brilhar. Duas qualidades que ofereço a você, meu amor, numa bandeja de prata para servi-lo como a um rei que é.

Daqui a alguns dias completo sessenta e nove giros em torno do sol. Tanto e tão pouco! Tanto porque me levaram a juventude. Tão pouco porque parece que foi ontem que eu debutei. Vejo-me agora naquele mesmo salão, naquele mesmo vestido vaporoso, com o mesmo brilho no olhar e a mesma ansiedade na alma, esperando a orquestra tocar. E é com você, meu amor, que quero dançar a primeira valsa.      





sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Soneto do digno fim

(Por Lohan Lage)

D’ uma tão medíocre história
Outro fim não haveria
Sequer restou nostalgia
No cárcere da memória...

Perambulou pela escória
Como gado à revelia
Aprisionado à teimosia
De tua palavra irrisória.

Ser de puro anonimato
Cujo roteiro existente
Figura em seu óbito: infarto

Dado como um indigente
Foi, do coveiro novato,
Primeiro corpo presente.






quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Cabides vazios e a menina foi embora



Vestida de mulher
com o rosto de menina
brejeira, manhosa

Um dia essa menina desapareceu...

Ficaram suas fitas
sua coragem
sua ternura faceira

um dia reapareceu

sua face rasgada
seus olhos de vidro
sua máscara borrada
de batom,
olhos marejados
alegria perturbada
e o seu fim aconteceu...



Para minha querida mãe, in memorian, falecida em 25 de junho de 2014.





quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Livro "Margot Adormecida" grátis até 12 de setembro


O meu livro "Margot Adormecida" estará disponível para download gratuito na Amazon até dia 12 de setembro de 2014.

“Margot Adormecida” aborda o complicado processo de passagem da juventude à idade adulta.
David, um rapaz com uma vida regrada e com o futuro traçado, conhece e se apaixona por Margot, uma mulher muitos anos mais velha do que ele e, como ela mesmo se denomina, “um espírito livre”. Com Margot, David descobre o amor, o sexo e expande seus horizontes, mas também descobre o que é sofrer por uma grande paixão.

Inspirado na canção "Maggie May" de Rod Stewart, este é um retrato da juventude que nasceu e cresceu nos anos 80, uma geração sem heróis, sem mitos e sem limites, mas também é um espelho das incertezas e medos da maioria dos adolescentes, angustiada sobre o futuro e oprimida pela cobrança dos pais.

Baixe, leia e deixe o seu comentário.


Link para o livro

http://www.amazon.com.br/Margot-Adormecida-Henry-Alfred-Bugalho-ebook/dp/B00HOI58C6





O Fantasma da Promessa

Henry Alfred Bugalho

Foi uma reportagem do El País que me apresentou a Marina Keegan, uma escritora americana que morreu aos 23 anos. Era considerada uma promessa, "brilhante" segundo seus professores de Escrita Criativa em Yale.

Procurei o livro dela e dei uma folheada. Há um frescor inusitado para alguém que estuda para ser escritora. Tenho lido uma infinidade de contos produzidos nestes cursos, que são quase um pré-requisito para qualquer americano com pretensão a literato; todos se parecem, o mesmo tom, os mesmos temas, a aversão extrema à voz passiva, o uso formulaico de advérbios e adjetivos para evocar "todos os cinco sentidos". Contos longos e tediosos que se prolongam por uma vintena de páginas. Contos para tentarem publicar em The New Yorker ou na Paris Review.

É certo que se pode ensinar a escrever, mas pode-se ensinar alguém a ser escritor?
Tenho as minhas dúvidas.

Corri os olhos pelos contos e crônicas de Keegan, mas não li nenhum integralmente. Interessava-me mais a promessa da escritora que ela não se tornou do que a escritora que de fato ela era. Interessava-me mais a sua breve carreira literária interrompida pela tragédia. Interessava-me o aristotelismo do que poderia ter sido ao invés do que foi.
Pois eu também já fui uma promessa aos vinte e um anos quando escrevi meu primeiro romance e passei a frequentar os círculos literários curitibanos.
Era um rapazola quase concluindo a faculdade embrenhando-me entre os ilustres nomes desconhecidos da Academia Paranaense de Letras, ou com as elegantes senhoras do Centro Paranense Feminino de Cultura. Eu estava lá para ver e ser visto, para ser descoberto, para constatar positiva ou negativamente se havia algum espaço para mim.
No prólogo do meu primeiro livro, a atual presidente da Academia escreveu "o autor, que se prenuncia como uma promessa, trabalha com desenvoltura os múltiplos acontecimentos que afligem homens e mulhres o transcorrer de suas existências", o que me envaidecia e me assustava. Promessa de quê? E como se cumpre uma promessa?

Tive medo. Principalmente, medo de fracassar, de ser uma das várias promessas feitas apenas da boca para fora.
Eu tinha quase a mesma idade de Keegan ao morrer e estava longe de ser um escritor competente. Talvez fosse somente isto, "uma promessa", ou melhor, "o prenúncio de uma promessa", que nem promessa ainda era.
Treze anos se passaram desde então e várias vezes me perguntei: se eu morresse hoje, o que seria da minha obra literária?
É uma indagação tola, reconheço, pois após morrermos não há nada, somente o fim.
O fim das promessas e das realizações, dos sonhos sonhados e dos realizados, do que é e também do que seria.
É triste ser uma promessa, mas é mais triste ser uma eterna promessa.

Até onde ela iria? Quão boa poderia ter se tornado? Qual seria sua obra-prima?
Estas dolorosas perguntas permanecerão para sempre sem resposta.

Publicado originalmente no Blog do Escritor





segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Uma cuia pro compadre Saint-Hilaire



Isso de atribuir nomes às coisas, e a cientificidade que a botânica e a biologia assumiram para si desde o século XVIII de nomear cientificamente tudo o que é vivo, isso teve (tem) um impacto profundo nas demais ciências, em especial nas que pouco tinham de biológicas, que ainda viriam a nascer, as Sociais e as Humanas, mas que adotaram seus métodos. Hoje, a custo e aos poucos, se está livrando dessa herança. 

Pensando assim, meio a esmo nas palavras e nas coisas, (e em As palavras e as coisas, do Foucault) e em como a história dos nomes é relevante para a cultura e a identidade de uma forma que a gente tem pouco conhecimento (e ainda menos controle), acabei chegando, no meu devaneio, ao chimarrão: coisa mais identitária da gauchidade não há.

Que a nossa famosa erva-mate tem o nome científico de Ilex Paraguariensis, isso se aprende desde cedo (e desde que o indivíduo sinta curiosidade de ler o pacote de erva, esse que já está custando quase dez pila). O que até hoje eu não sabia (e acho que pouca gente sabe - isso não está no pacote da erva) é que quem atribuiu essa palavra à coisa erva-mate (que, bem, já tinha nome entre os índios... mas a ciência tem suas regras) foi o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire. 

Saint-Hilaire, em uma de suas incursões para o interior do Brasil (Viagem à comarca de Curitiba, 1820) conheceu a erva, e descreveu todo o processo do cultivo, a origem - que supunha paraguaia, daí o nome - e até algumas questões administrativas e de faturamento das fazendas em que se plantava a erva.

Mas é na viagem ao sul do país (Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821) que Saint-Hilaire descreve, numa postura entre observador naturalista e orgulhoso mateador, o hábito de tomar chimarrão, e como se tornou, ele próprio, apreciador do amargo.
Estância de José Correia [próximo a Rio Grande], 22 de setembro de 1820. – Ainda tomei dois mates antes de partir. O uso dessa bebida é geral aqui: toma-se mate no instante em que se acorda e, depois, várias vezes durante o dia. A chaleira cheia de água quente está sempre ao fogo e, logo que um estranho entre na casa, oferecem-lhe mate imediatamente. O nome de mate é propriamente o da pequena cuia onde ele é servido, mas dá-se também à bebida ou à quantidade de líguido contido na cabaça; assim diz-se que se tomaram dois ou três mates, quando se tem esvaziado a cuia duas ou três vezes. Quanto à planta que fornece essa bebida, chamam-na erva-mate ou simplesmente erva. A cuia pode conter cerca de um copo d'água; enche-se de erva até a metade e, por cima, põe-se a água quente. Quando a erva é de boa qualidade, pode-se escaldá-la até dez ou doze vezes, sem renovar a erva. Conhece-se que esta perdeu sua força e que é necessário mudá-la quando, derramando-se-lhe água fervente, não se forma espuma à superfície. Os verdadeiros apreciadores do mate tomam-no sem açúcar, e então se obtém o chamado mate-chimarrão. A primeira vez que provei tal bebida, achei-a muito sem graça, mas cedo me acostumei a ela e, atualmente, tomo vários mates seguidamente com prazer, até mesmo sem açúcar. Acho no mate um ligeiro perfume misturado de amargor, que não é desagradável. Muito se tem elogiado esta bebida; dizem que é diurética, combate dores de cabeça, descansa o viajor de suas fadigas; e, na realidade, é provável que seu sabor amargo a torne estomacal e, por isso, seja talvez necessária numa região onde se come enorme quantidade de carne sem mastigá-la convenientemente. Aqueles que estão acostumados ao mate não podem privar-se dele, sem sofrerem incômodos.(1)



(1) Auguste de Saint-Hilaire
Viagem ao Rio Grande do Sul - 1820-1821 (2002)
trad. Adroaldo Mesquita da Costa
Brasília: Senado Federal, 2002 
Coleção "O Brasil visto por estrangeiros"
p. 131

imagem: 
"Ilex paraguaiensis A. St.-Hil."
Gilg, Ernst; Schumann, Karl 
Das Pflanzenreich Hausschatz des Wissens (1900)


Texto publicado originalmente no blog do V. em 7 set. 2014.





a comunicação das árvores




nada mais parecido com um pinheiro
que um pinheiro

verde busca dourado
raíz procura água
oxigênio de dia
gás carbônico à noite

macho
fêmea

porém não diz pinheiro 










imagem: Gemeine Kiefer; Föhre
Pinus sylvestris

www.BioLib.de

Publicado originalmente em Pragas urbanas renitentes, em 21 ago. 2014





domingo, 7 de setembro de 2014

um poema para uma poeta morta

Reprodução
Conheci uma mulher 
nova
também 
poeta
cronista, escritora
também mulher 
que vivia 
onde eu vivo hoje
mas acabo de conhecê-la
e ela está morta

embora seu perfil, sua coluna
seus sites e os insights neles
não: 
a morte virtual deveria fazer 
parte dos ritos funerários.

tive com a morte
uma intimidade 
semelhante àquela
que ela expressava 
quando viva
e ninguém lia 
ninguém 
lia...
ou parecia se importar
com isso
prefiro acreditar que 
ninguém lia

nem mesmo sua biografia
tão cheia de prêmios e 
os planos esquecidos
no canto de um lugar comum
de escritos que eu ainda frequento
e me assombro
com um fantasma dela 

preso eternamente ali.

e eu li 
eu poderia ter lido antes, confesso 
mão não teria feito 
qualquer diferença.
pois eu li e
não não gostei 
simplesmente
não gostei da poesia dela
e não vou dizer que gosto 
pelo 'simples fato' dela estar morta.
ainda
que pudesse 
ser eu ali.
mas não sou.

há algumas desvantagens em estar morto
uma delas é perder 
[além da vida]
o direito a opinião
e em alguns casos 
opinar parece mais importante
que estar 
vivo.

pelo pouco que li
imagino que ela fosse 
entender tamanha grosseria minha 
disfarçada de sinceridade
patética 
de [falta de] afinidade poética

a verdade 
do que se pensa sobre
a obra 
da vida de um poeta
jamais deveria ser dita
a menos que ela fosse boa 
mesmo
se ele já estiver morto
- ou especialmente 
nessas condições
por respeito

e o respeito muitas vezes
parece ser mais importante que
uma opinião sincera.
e é.

descubro com isso
que não posso partir tão cedo 
pelo simples fato de não ter
ainda escrito 
poemas premiados
poemas aclamados 
poemas muito melhores 
que esse
poema simplesmente 
melhores

que os meus.