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sexta-feira, 28 de junho de 2013

A vida como ela não deveria ser


Estou quase sempre ocupado em observar e absorver flagrantes da vida banal, essa vida de todos nós. Uns me divertem, outros me entristecem, todos me interessam. Nos textos que seguem, flagrantes da vida como ela não deveria ser.

No meio dos nossos caminhos tem sempre uma vida severina expondo-nos seu desamparo. Acontece a toda hora: nos restaurantes, nos supermercados, nos sinais, nas ruas, nos ônibus etc. É tanta gente errando desamparada que acabamos meio anestesiados diante da dor alheia. Há uns dias, no ônibus, fui atingido pelo soco de uma dor dessas irremediáveis. Um homem expunha seu drama, tão igual ao drama de outras tantas vidas ao deus-dará. O drama era compreensível pelo que se via, não pelo que se ouvia. O homem parecia já sem forças para, mais uma vez, falar da sua dor a ouvidos desatentos. Eu não conseguia entender nada do que ele dizia – e não era preciso. Tava na cara. E nas lágrimas. Porque, já sem forças para falar, o homem chorava muito, um choro tão sentido quanto desesperançado. Fiz o que faria qualquer um diante de um homem com sua dor: dei-lhe algum dinheiro. O que lhe dei terá bastado para, no máximo, aliviar-lhe a dor da fome. E a dor da alma, aquela que só se alivia com afeto, acolhimento, esperança? Essa dor continuou intocada. E eu, tocado com tamanha dor, me perguntava: o que eu dei de mim mesmo àquele homem? Também não sei o que mais eu poderia fazer por ele. Mas sei que fiz quase nada. Em mim, a dor do homem doeu como dor intuída. Nele, o homem, a dor doía real, funda, concreta, sentida, visível, vivida até o último esgar. Ai!!

***
Em certo domingo, eu voltava pra casa logo depois do café, da leitura e das compras da semana. Mal havia chegado na parada, eis que “meu” ônibus também chegava. Domingo é dia tranqüilo, ônibus vazios, trânsito levíssimo. Entrei e ouvi um senhor, que carregava sacolas e mochilas bem cheias, pedir ao motorista para abrir a porta de trás. Usuários com gratuidade entram pela porta da frente. Não entendi bem o pedido do senhor. O motorista abre a porta de trás esbravejando. Também não entendi a reclamação do motorista. Creio que o senhor nem ouviu nada, mas eu ouvi e me entristeci. Depois entendi que o senhor talvez tivesse feito o pedido apenas para não ocupar muito espaço na frente (carregava, como disse, sacolas e mochilas bem cheias). Ah, aquele senhor tão sozinho ficou gravado na minha retina! Bastou vê-lo e me lembrei de imediato de uma frase da jornalista Eliane Brum sobre a velhice que se vê errando desamparada: “A vida inteira espremida numa mala de mão”. A vida inteira daquele senhor estava agasalhada naquelas sacolas e mochilas. O senhor aparentava uns 70 anos, ar meio sujo, cabelos brancos e um pouco longos saindo de debaixo de um boné (com a logomarca do Banco do Brasil) bem puído e desbotado. Vestia camiseta listrada de azul e branco. Por baixo, uma camisa branca (bem encardida) e de manga comprida. Calça cinza e tênis completavam o vestuário. Na boca sobravam poucos dentes. Durante todo o trajeto eu o vi falando sozinho. Tudo tão triste de ver! Será que da árvore desse senhor brotaram frutos? E será que os frutos desgarraram-se da árvore de que vieram? Minha vida esteve paralela à daquele senhor por alguns minutos. Ao nos separarmos, fui para o meu destino certo. Ele, para seu destino à margem da linha, o destino de quem “zanza daqui, zanza pra acolá, (...) periferia afora” (Chico Buarque). Aquele senhor era a representação daquelas “sementes (...) que já nascem com cara de abortadas” (Cazuza).

* * *

No caminho para o restaurante Green’s, local de almoço quase todos os dias, há sempre alguns pedintes, uns já conhecidos. Não era o caso do senhor que nos abordou, a mim e a uma amiga, na chegada ao restaurante em certo dia. Por mim teria ido em frente, mas a amiga resolveu parar – e que bom que ela resolveu parar. O senhor era, na verdade, um velhinho bem velhinho, bem franzino, bem baixinho – e bem triste. Contou para a amiga que tinha trazido a esposa para um hospital e foi preciso amputar uma perna. O médico pediu uns documentos, umas cópias, ele teve de providenciar e o resultado foi ficar sem dinheiro para a volta à cidade de onde tinha vindo. Nessa altura ele já chorava muito de puro desamparo, imagino que por ver-se na condição humilhante de ter de pedir ajuda. Falava tão baixinho, o senhor! Ao vê-lo chorando, não me segurei, claro. Disse-nos que já tinha conseguido R$ 23,00. A amiga deu de início R$ 10,00 e eu R$ 10,00. Eu não tinha mais nada – sempre ando com quase nada de dinheiro. Condoída com a história, a amiga deu mais R$ 50,00. Ele agradeceu muito, ainda chorando muito. Foi uma boa ajuda, mas penso que fizemos pouco. Devíamos ter perguntado se ele queria almoçar. Não nos custava nada levá-lo até o restaurante conosco. Tão desamparado ele parecia que eu tive dúvidas se ele conseguiria ir até à rodoviária. Quando lhe dei os R$ 10,00, ele chorava tanto que nem enxergou, a princípio, a nota que eu lhe estendia. Aliás, ele parecia não enxergar bem. E eu fiquei preocupado. Podiam facilmente roubá-lo. Enquanto entrávamos no restaurante, eu olhei para trás algumas vezes. Ainda o vi sentando-se num tamborete de uma barraca de conserto de calçados. Depois o vi indo embora não sei para onde, com o andar penso, os passos vagarosos – e decerto uma dor imensa no coração. Quando voltamos do almoço, não o vimos mais. E eu queria tanto tê-lo ajudado mais! E penso que a amiga também. Podíamos tanto ter saído um pouquinho mais de nós mesmos! Ainda assim penso que ele terá levado de nós uma boa memória. Assim seja!  





quinta-feira, 27 de junho de 2013

Sitiada



As primeiras folhas secas
crepitavam no fogo baixo

A fumaça, escura e densa
tomava forma de presságios

- o inverno encerrou a trégua -

E as portas tremulam
- reverberam irritadiças
pela iminente violência

Em breve marchará
- o exército do desespero
sobre as ruínas da consciência









terça-feira, 25 de junho de 2013

Pigmalião


Joaquim Bispo

Com um pedaço de barro se fez o Homem – diz o texto antigo.
Com um pedaço de pasta de moldar encho as mãos. Amasso-a, aqueço-a como massa de pão. Sinto que não há nada mais sensual. Sem que as procure, surgem-me formas orgânicas. Afinal, vivemos rodeados de seres, de pessoas. Crio espessuras, rotundidades. Faço estiramentos. A pasta é infinitamente moldável, maleável, modelável. Obedece submissamente aos movimentos não pensados das minhas mãos. Surgem cabeça, tronco, ancas, primeiro como meros esboços de volumes, depois em refinamentos de formas femininas. Crescem membros delicados. A textura do material, acetinada, torna-se cúmplice. Irrompem seios, dedos, faces.
Perfeita, a figura feminina reclina-se na minha mão, mansamente. A ilusão de vida é total. Uma emoção perturbadora apodera-se de mim. O quê? Como?


Uma sombra de tristeza primordial instala-se nos meus olhos.

* * *
[Miniconto integrante da antologia do I Concurso de Minicontos Autores S/A – 2013]





segunda-feira, 24 de junho de 2013

MINICONTOS DE UM CONCURSO – PARTE I

Amigos, apresento abaixo dois minicontos que participaram do I Concurso de Minicontos Autores S/A – um certame que teve mais de 747 participantes inscritos e eliminações semanais, e no qual tive a felicidade de obter a quinta posição (entre os oito candidatos considerados a princípio, pelo regulamento, os finalistas da competição). Ao longo do concurso, assinei os minicontos sob o pseudônimo Juliano Monterroso. Espero que gostem da leitura. Saudações literárias. Edweine Loureiro

*

SONHOS PÉTREOS

Os pais diziam que ela seria uma das maiores bailarinas da história – com direito, acrescentavam, a ser eternizada em monumentos. Na primeira grande audição, porém, teve um surto catatônico no palco. E, com apenas quatorze anos de idade, transformava-se para a família numa indesejável peça de museu.

*

TRAGOS DE UM AGOSTO

Bebeu num só gole o restante do saquê e olhou pela janela, aflito. Lá fora, em doses lentas, uma chuva negra caía sobre Hiroshima.

***





domingo, 23 de junho de 2013

Amanda

Abro os olhos e penso que queria ficar assim, deitado, aquecido e protegido. Sinto algo diferente. Já não acordo como nos dias em que tinha vontade de acordar e ir para o trabalho. Acordo com vontade de ficar na cama, dormir mais e mais. Ou, apenas ficar deitado, aquecido e protegido. Como se todo dia, fosse um dia de inverno, até que é normal ficar com essa vontade de não fazer nada; querendo apenas aninhar-me em casa, mas ainda não é inverno. Será cansaço? Cansaço? Apenas preguiça?

Acordo com a sensação de que algo esta pesado no ar. Talvez, seja o ar cinzento que vejo através da janela. Acordo, mas uma parte minha ainda dorme; ainda são nítidas as lembranças do sonho. Na verdade, fragmentos de um sonho, mas fragmentos nítidos. Aos poucos as lembranças vão embora, mas ainda lembro do rosto do sonho, ainda me lembro dela. Vejo seu rosto. Talvez por isso queira continuar na cama. Lembrar do seu rosto, aquele rosto de menina, cheio de inocência.

Esses dias são estranhos; é como se algo estivesse para acontecer. Algo diante de mim; tão próximo que chego a sentir, quase tocar, mas que não vejo. Talvez, seja apenas uma vontade que algo aconteça. Como se algo tivesse a obrigação de acontecer. Acho que estou perdido novamente; não é novidade que eu me veja sem rumo, sempre foi assim; ou pelo menos desde que ela foi embora.

***

Houve época em que frequentava as aulas de teatro. Comecei o teatro para poder ter mais contato com ela. Ainda alimentava o sonho de ser alguém na vida, alguém com do qual ela se orgulhasse. O sonho durou pouco. Com a pensão e contas para pagar, desisti das aulas de teatro. Voltei a trabalhar no escritório de contabilidade. Mas ainda podia desfrutar de alguns momentos com ela. Nossos encontros tiveram a duração de uma temporada curta. Porém tão vivos que ainda os lembro, como se fossem uma memória recente. Minha vontade era continuar vendo-a, mas ela tinha outros planos. Ela queria ser atriz e ir em busca de seu sonho. Ela se mudou para o Rio de Janeiro. Não pude acompanhá-la.

Não tivemos mais encontros, não mais nos falamos. Eu não queria atrapalhar, então escolhi permanecer distante. Mas ainda sinto sua falta. Para diminuir essa saudade eu a acompanho nas redes sociais. Ela era tão linda, morava no Rio, trabalhava bastante. Sempre via suas fotos com seus amigos, de suas sessões para comerciais de TV, dos anúncios para revistas, das apresentações com artistas famosos. Achava que ela estava feliz, que conseguira o que queria na vida. E mesmo distante tinha orgulho dela. Talvez isso seja amor, sermos felizes apenas ao saber que o outro é feliz. E como não dia ficar feliz? Percebia que a vida dela era cheia de alegrias com trabalhos e amigos. Ela certamente não tinha o problema de acordar pela manhã e ficar com a vontade de ficar na cama, desejando voltar ao mundo dos sonhos. Às vezes sentia um pouco de tristeza. Pensar que ela era tão feliz era pensar também que ela não pensasse mais em mim; mas quando percebia eu deixava de ser tão egoísta. No fundo eu sempre quis que ela fosse feliz.

***

Naquele dia cheguei o ao escritório atrasado. Disse que foi culpa do trânsito. Nesses dias, todo mundo acredita que é verdade, afinal o trânsito esta uma loucura. E não podia ser diferente? Quase todos que eu conheço compraram carro para chegar mais rápido. É tudo uma ilusão, a realidade é diferente. Com tantos carros na rua, com tanto conforto próprio, dentro dos veículos, perdemos mais tempo do que se tivéssemos que andar de transporte público. Não sei porque adotamos o carro como o principal meio de transporte; não conhecemos ninguém no carro; dirigimos sozinhos a maior parte do tempo. Dizemos que é para chegar em casa mais rápido, para ficar mais tempo com a família e com os amigos, mas o que acontece é que ficamos cada vez mais sozinhos dentro daquela caixa de metal. Todos juntos no tráfego, em nossos quadrados e com vidros escuros para que ninguém nos veja, embora no fundo almejamos atenção e carinho. `- Quer um café?` era a voz doce e gentil de Amanda. Sorrira. Um café é bom para começar a trabalhar.

Amanda era também nome dela. Então na minha cabeça eu tinha a Amanda do escritório e a minha Amanda. A Amanda do escritório sempre perguntava-me como eu estava. E sempre respondia evasivamente que estava bem e que andava um pouco cansado. Às vezes porém eu prolongava a nossa conversa. Contava, inocentemente, dos sonhos que tinha com a minha Amanda. E de como eu a via feliz nas fotos. Ela parecia mais feliz agora. Eu não percebia, mas eram um dos momentos mais felizes do meu dia. Eu podia me libertar um pouco e contar para alguém sobre ela. Quase sempre a Amanda do escritório insistia que eu deveria procurar minha Amanda, que deveria falar com ela, saber por ela como estavam as coisas. Nunca lhe dei atenção. Dizia que não havia necessidade, que sabia que ela estava bem. Então falava das fotos e das declarações nas redes sociais. Além do mais, não queria atrapalhar. E nunca me parecera tão feliz como naquelas fotos.

E tinha mais uma coisa. Eu tinha prometido a mãe dela procuraria mais sua filha. A mãe tinha suas razões para exigir-me isso. Dizia que Amanda era uma menina nova, que tinha uma vida pela frente, que não podia perder tempo ouvindo os problemas de um homem com quase 40, que ainda agia como criança e não sabia o que queria da vida; que tinha medo de seguir seus sonhos. A verdade era que eu era um covarde e sabia disso. Porém ao ouvi-la falando assim foi mais doloroso. Eu sentia muito mal, com vergonha de mim e o pior é que sabia que era verdade. Eu era um covarde. E todos achavam isso também. Eu não tinha fotos onde eu estava feliz em meu trabalho ou fotos de amigos, apenas umas fotos de umas férias que havia feito há mais de 20 anos quando eu ainda era feliz. A única pessoa que me via diferente era a minha Amanda, mas como podia encara-la se eu mesmo não acreditava em mim?

Interrompemos a nossa conversa naquela manhã por que tinha uma reunião e já estava quase atrasado. Gosto de reuniões. No escritório ninguém gosta. É o que mais gosto de fazer no escritório. É que é o momento quando posso conversar com as pessoas sem medo; e então planejar as ações. É meu jeito de sonhar. Sempre soube que que algumas coisas que planejamentos nunca aconteceram, mas os momentos pensando neles, os momentos dentro daquelas salas sonhando são reais. Sinto por um instante que há vida no escritório que muitos são como eu e que não estou sozinho. Gosto de ver os olhos negros de Amanda enquanto falo. Ela me dá força. Lembra da minha Amada. Deveria ter convidado essa Amanda que estava perto de mim para sair, mas isso era antes. Ouvi dizer que agora ela tem namorado. E além disso é muito mais nova do que eu.

Depois da reunião fomos almoçar. Eu não saia, geralmente pedia algo para comer no escritório mesmo. Naquele dia não foi diferente. Almoçara e a tardia travava de responder as mensagens do correio eletrônico e da análise de alguns relatórios. Os números me deixam longe das pessoas, mas também dão descanso a minha alma aflita, não penso nas Amandas. Era quase final do expediente quando a Amanda viera até minha mesa, convidar-me para um Happy Hour. Inventara uma desculpa e logo me arrependera. No fundo eu desejava que ela insistisse. Ela não insistiu e tive medo de dizer que mudara de ideia. Fiquei mais tempo no escritório aquela tarde. Via todos saírem, inclusive Amanda. É então que o milagre acontece, Amanda volta e pergunta-me novamente, se não queria mesmo ir. Com um pouco de coragem e sem pensar, eu lhe pedia mais cinco minutos para arrumar as minhas coisas. Os outros vão na frente. Ela me esperou.

Enquanto arrumava minhas coisas conversamos sobre a vida, continuamos conversando até o bar. Decidimos ir a pé para podermos conversar mais e porque não queríamos dirigir com todo aquele trânsito. Eu me sinto feliz ao lado dessa Amanda também. Tenho vontade de ser uma pessoa melhor, uma coragem de viver como há anos não sentia. Ela não me fala nada do seu namorado, talvez tenham terminado. Diz apenas que eu deveria sair mais, que sou divertido, que preciso viver mais. Combinamos de passar o próximo final de semana na casa de praia dela. Vão outros amigos. Ela dizia que podia convidar quem eu quisesse. Meio constrangido, meio com raiva digo que não tenho quem convidar. Sorrira para disfarçar a vergonha e a raiva que sentia de mim.

Chegamos antes do que os outros. Eles provavelmente virão de carro. Descubro que Amanda gosta de caminhar, tem um sonho de viajar pelo mundo e de escrever um livro. Tantos sonhos que logo fazem-me lembrar a minha Amanda. Talvez, percebendo isso pergunta-me mais sobre a minha viagem aos Estados Unidos. Fazia muito tempo, mas sentia um orgulho real de poder dividir isso com ela. Ainda trago algumas fotos na carteira. Mostrei-lhe uma, em que estamos Amanda, o Pateta e eu. Quase choro com a lembrança, umas lágrimas surgem. A Amanda de hoje limpa minhas lágrimas.

`Ah! vocês já estão ai? O trânsito esta caótico como sempre. E não achávamos lugar para estacionar`. Nos olhamos e rimos. Os outros colegas também chegam. Continuamos uma conversa agradável com os outros, comentando as coisas sobre o trânsito, a loucura das redes sociais, a política no país. Eu começava a ficar distante quando percebo que o clima entre alguns colegas vão além do simples coleguismo e amizade. Amada olha-me e ri. Explica que eles já estão ficando há alguns meses. Eu acho engraçado.

Parecia um sonho, estar rindo como se tivesse feito as pazes comigo mesmo. Estava feliz, contente por estar ali e certo que de agora em diante a minha vida seria diferente. Prometera escrever a minha Amanda, queria saber tudo sobre ela, não importa mais a promessa, não me importa que estejamos longe um do outro, mas queria novamente aquele sentimento dela estar perto de mim novamente. Confessei essas coisas para a Amanda que estava em minha frente e com os seus olhos brilhantes, ela ri e naqueles olhos é como se me pedisse um beijo e eu avanço, mas alguém chama a atenção sobre o noticiário. Amanda envergonhada pede licença e vai ao banheiro. Enquanto ela caminhava, eu assistia ao noticiário `Foi encontrada morta em seu apartamento a atriz Amanda Baptista. Acredita-se que a morte tenha sido causada por overdose`. Escutava meus colegas comentando a notícia: `- Essas atrizes são mesmo assim, elas se drogam sempre`, `- Eu ouvi dizer que essa ai estava se prostituindo. Tem um amigo meu que conhece um cara que fez programa com ela no Rio', `- Não acredito', `- É sério,se quiser consigo o nome da agência com ele pra você ver'.

Eu interrompi a conversa, pedira desculpas a todos e disse que precisava ir. Deixo o dinheiro para pagar as minhas despesas e sai. Em direção a saída, vi Amanda e lhe disse que precisava ir, resolver algumas coisas urgentes. Percebi, que ela não estava entendendo através da preocupação em seus olhos. Digo-lhe que tudo ia ficar bem, tentando segurar o choro e a dor. Ela me abraçou e nos despedimos.

- O que houve com o Irineu, Amanda? Ele é meio estranho né? Acho que só fala com você. Estávamos aqui conversando e de uma hora para outra ele resolveu sair. Mal se despediu de nós.
- Ele disse que precisava resolver umas coisas.
- Talvez ele tenha ficado chocado sobre os papos de prostitutas do Pedro. Todos riem
- É que falávamos que muitas atrizes se prostituem. E a atriz que foi encontrada morta agora achamos que ela era prostituta. A Amanda Baptista, você sabe, né?
- A Amanda Baptista foi encontrada morta?
- Sim, deu no noticiário há pouco.
- Ai meu deus
- O que houve Amanda?

- O Irineu é pai dela. 





sábado, 22 de junho de 2013

Contra a estatística

- Alô, mãe? Que bom que tu atendeu esse telefone, criatura! Já liguei umas quantas vezes e só me dava caixa de mensagem. Escuta, eu preciso de ajuda.
- Oooooi, filhota! O celular tava na bolsa, não ouvi. Mas não me preocupa, o que foi que aconteceu, querida?
- Não te assusta, é assim: meu carro pifou. Tava andando bem, aí um barulho de batida, um toc-toc seco, depois trancou todo e veio um cheiro bem forte de queimado. Estacionei, esperei uns dois minutos e tentei ligar de novo. Nada. O carro tá mortinho.
- Aciona o seguro agora, enquanto eu localizo teu pai. Se for o caso vou de táxi até aí, ou chamo o Maurinho aqui de baixo para nos ajudar. Ele deve entender alguma coisa disso, sei lá. Já são quase dez da noite. Aonde é que tu tá?
- Calma, mãe, escuta: não dá. O seguro venceu faz duas semanas. Esqueci de renovar. Baita bobeira. Presta atenção, eu não sei direito que lugar é esse e eu meio que tô em pânico. É na zona oeste, a ruazinha fica perto de um beco, logo que sai da estrada. Tem uma valeta grande e um mercado azul chamado Estrela Dalva. Tô com medo.
- Que tu tá fazendo aííí?! Barra pesada, pesadíssima. Sobe no primeiro ônibus que vier e te toca pra casa. Fecha esse carro, amanhã a gente vê. Tem alarme, não? E se levarem, azar. Saí já daí. Tô ligando pro teu pai agora, beijo, tchau.
- Mããããe, não desliga!
Nem sinal de ônibus, um risquinho de bateria do celular. O corpo inteiro gelado. Crise de asma começando. Que zica. Vem um rapaz ali da esquina na minha direção. Abro o vidro? Não tem jeito de bandido, aliás tem pinta de mecânico, aliás tem cara de prestativo, aliás é franzino e se precisar dou conta de fugir, mesmo com essas botinas.
- Oi, moço, tu é mecânico?
- Sou. Ouvi um barulhão antes de tu parar. É motor, quer que eu dê uma olhada?
- Não sei o que houve com o carro. Por favor, me faz essa gentileza?
- Sem problemas, dona. Só preciso das ferramenta. A minha casa é ali, ó. Vem comigo para não ficar no sereno. Essa hora é perigoso. Me espera aqui no pátio.
O telefone de Renata se desliga com oito chamadas não atendidas. O cara volta de casa com uma barra de ferro na mão. Parte para cima dela e diz me dá, ô, vagabunda. Cala a boca e deita que é melhor. Vai correr e sente a pancada nos ombros. Cai de bruços. Peso morto por cima. Não entende como, mas já está de costas na grama molhada, braços imobilizados, o ar curto no peito, a barra perto do muro que os separa da rua deserta. Um tapa, outro, sangue pelo nariz. A saia erguida de qualquer maneira. Algo morno entre as pernas. Ódio quente na garganta. Sufoca o grito, mas deixa a boca agir, mordendo a bochecha com barba até tirar pedaço. Libera o braço e crava as unhas no rosto vermelho diante do dela. Caça a barra de ferro. Bate com força. De novo. De novo. Chora e cospe e cospe. Cretino. Por sorte, vem vindo o primeiro ônibus e ela se toca para casa.





sexta-feira, 21 de junho de 2013

Concerto Para Fezes e Vermes em três Movimentos

Em virtude dos acontecimentos recentes, decidi postar o lado mais sombrio da minha escrita, aquele do qual eventualmente me envergonho.



Concerto para Fezes e Vermes  em Três Movimentos.

Abertura

Chegou à casa cabisbaixo pela notícia.
    Vou ter que fazer exame de fezes. Ordens da empresa.
    Mas por quê? – perguntou a mulher.
    Disseram que a partir de agora é assim. Exames periódicos para todo mundo – sarcasmo na voz – estão zelando pela saúde dos funcionários.
E sacou de dentro da pasta um frasco descartável para o exame. A esposa acariciou-lhe a face esquerda demonstrando apoio.
    Ligue não, querido, amanhã você tira de letra.
Mal o dia clareou, o homem sentiu o alerta  dos intestinos e  cambaleante foi ao banheiro, mas esqueceu-se que deveria coletar uma amostra de suas fezes. Já ia acionar a descarga pondo tudo a perder quando lembrou-se a tempo e, vendo sua merda boiando dentro do vaso sanitário, achou conveniente aproveitá-la para o exame. Munido de um garfo que fora procurar na cozinha, pescou o seu cocô de dentro da privada, depositando-o carinhosamente no jornal de véspera que ficara largado no banheiro e o inspirara na defecação matinal. A imagem do cilindro de excremento misturando-se as manchetes onde se dizia que o País estava indo para frente e retrato do Presidente que ele ainda confiava borrado por sua bosta causaram-lhe incomensurável náusea e ele acabou por vomitar em cima do jornal. Merda, vômito e seu amado Chefe de Estado mesclaram-se diante de seus olhos provocando-lhe enorme mal-estar.
A mulher, ao deparar com a escatologia ensaiada em seu banheiro, deu um grito de horror. Assustado, o homem deixou a mistura cair no chão, causando um fétido acidente doméstico. Expressão de desespero moldou seu olhar. Refeita, a mulher aproximou-se, acariciou-lhe a face direita  procurando tranquilizá-lo.
    Calma meu amor, para tudo há uma solução. Vamos limpar esta bagunça e depois eu coleto uma amostra das minhas fezes para você levar como se fosse a sua e tudo se resolve.
Lágrimas brotaram-lhe dos olhos ao perceber a grande companheira que possuía.

Adágio

No interior do vagão do metrô a atmosfera era respirável, a despeito do ambiente recluso a alguns metros sob a terra. Nada se comparava a sala fechada do laboratório de análises clínicas onde o homem trabalhava. Oito horas por dia em contato com merda desconhecida, analisando, analisando... O cheiro era insuportável, nem mesmo a máscara continha o fétido exalar daquela merda acumulada. De segunda a sexta, merda, merda e mais merda. Naquele dia inclusive, diagnosticara algo em uma amostra, a de número 57981-8, que lhe embrulhara de vez o estômago. Tinha que largar aquele emprego. Ia falar com um amigo para lhe arranjar uma vaga no IML, ao menos lá, os defuntos cheiravam ao formol.
Estava de pé dentro de um vagão lotado. Hora do Rush. Alguém peidou. Narinas apuradas, o técnico em análises identificou a origem: um velhinho, sentado à sua frente, rosto duende, ares amigáveis. “Puta que Pariu”, pensou o homem. Um segundo peido. Na certa  o velhinho sofria de flatulência. Aquilo foi irritando o homem. “Se ao menos ele se prendesse”, resmungava intimamente. “O dia inteiro respirando bosta e dou de cara com um peidão”. Uma terceira bufa, esta acompanhada por trilha sonora. Algumas pessoas riram, ainda que timidamente. Só o homem não tinha motivos para achar graça. Só ele ali naquele vagão mexia com merda cinco dias por semana, quatro semanas por mês, 52 semanas por ano, férias excluídas. Se aquele velho peidasse mais uma vez, ele seria capaz de cometer um desatino.

Andante

Chegou à casa cabisbaixo pela notícia. Em mãos, um envelope aberto com o número do exame. 57981-8.
    Querido! Graças a Deus você chegou. Eu vi na televisão. Aonde vamos parar?
    Eu estava no vagão...
    Meu Deus!
    O velho nem teve como reagir. O louco o espancou até a morte, só porque ele peidava.
    È a barbárie...
    Mas tem algo pior...
    O que pode ser pior que um idoso espancado até a morte querido?
    O seu exame. Ou melhor, o meu, feito na sua amostra de fezes. Como estava em meu nome, tomei a liberdade de abrir. Leia você mesma.
    Teníase?
    Hum... Hum... Também conhecida como Solitária. Você é a hospedeira de um verme que pode atingir até dez metros de comprimento.
    Meu Deus!
    Deixe Deus fora disso. Já marquei consulta com uma médica, Doutora Livingstone, eu presumo. Ela tem um método pouco ortodoxo, porém eficiente para expelir esta bicha. Iremos lá amanhã...
    Meu Deus!
    Meu amor...
    O que foi?
    Desculpe a franqueza, mas estou sentindo um tremendo nojo de você.






quinta-feira, 20 de junho de 2013

Por um instante

Marlene entrou pela porta dos fundos do apartamento carregada de sacolas de supermercado.
Ligada no piloto automático, perguntou a Nilcimar, sem olhar para a empregada.
- Alguém ligou, Nil?
- Ligou, sim senhora. Adriane da Sex Shop.

Por um instante, Marlene não entendeu. Olhou fixo para Nilcimar.
- É isso mesmo, Dona Marlene. Adriane da Sex Shop ligou para o Dr. Ricardo.

Por um instante, Marlene desconversou.
- Me ajuda arrumar as compras, Nil. Estou muito cansada. Essa lombar está me matando.

Marlene entrou no quarto e se jogou na cama. Sandálias foram arremessadas à distância.
Pernas sobre o travesseiro latejavam. Por um instante, quis matar Ricardo. Como pode?
Ele estaria aprontando com uma vendedora de Sex Shop. Patife. É por isso que não procurava
mais a mulher. É por isso que andava caladão, pelos cantos. Casamento ramerrame, marido que
vira irmão. Tudo muito companheiro, tudo muito previsível, tudo muito sem graça.

Por um instante, Marlene teve um raio de imaginação. Amanhã seria seu aniversário de casamento.
Claro. Ricardo estaria inventando uma surpresa. Por um instante, Marlene se viu dentro de uma
lingerie de enfermeira. Calcinha cavada, triângulo minimalista na frente, fio imperceptível atrás,
seios exibidos por uma transparência branca, uma cinta liga sobre os joelhos com uma rosa vermelha costurada em cetim, um termômetro preso entre os dentes de uma boca semiaberta pelos lábios
carnudos e carmins.

Por um instante, Marlene vislumbrou Ricardo vestido de bombeiro. Quase nu. Mangueira pulsante
na mão, machadinha entre os dentes. Cueca viril, de volumoso conteúdo. Cáqui e vermelha.
No ponto mais proeminente da sunga libidinosa, um brasão de tochas cruzadas alimentando uma
chama única, ereta em direção aos céus.

Por um instante, Marlene sentiu a chama percorrendo as pernas desejosas até o encontro
das coxas, a esta altura, já com a ponta da calcinha à mostra, saia levantada, pensamento às alturas.

Por um instante, Marlene imaginou vibradores anatômicos visitando sua geografia recôndita,
vagando pela relva bem cuidada, passeando por todas as bordas e profundezas.

Por um instante, lembrou das amigas dizendo maravilhas do admirável mundo das sex shops,
com seus rabbits autossuficientes, brinquedinhos amorosos, chicotes, gargantilhas tacheadas
e algemas de falsas peles de onça, morangos de mentirinha para serem chupados a dois,
colares de pompoarismo, anéis para potências eternas, géis de menta, fluidos lubrificantes de hortelã.

Por um instante, fez de suas mãos o fetiche imaginário. Fiel e comportada, viajou com o
próprio marido engalanado de soldado do fogo, carrasco dentro de si, arfando e sugando
seus lóbulos e mamilos, sussurrando promessas indizíveis, elogios impublicáveis, excitações vulgares.

Por um instante, amou Ricardo como há muito não amava. Sentiu um homem inteiro e amoroso,
criativo e surpreendente, meigo e feroz. E ainda por cima, romântico como nunca foi,
capaz de celebrar em grande estilo a esquecida data do aniversário de casamento.

Por um instante, Marlene quase chegou lá.
- Dona Marlene!

Interrompida pela falta de traquejo de Nil, deu um pulo da cama, recompôs-se de imediato
e viu-se de pé, ofegante, com as mãos úmidas enfregando dedos viscosos na barra da saia,
que indisfarçava a calcinha enrolada nas coxas bambas. Tudo ainda latejava gostoso no momento
da aparição súbita e indiscreta da empregada na porta entreaberta.
- Dona Marlene, é a moça da Sex Shop no telefone. Dessa vez quer falar com a senhora.

Por um instante, Marlene pensou em não atender. Fosse o que fosse, não queria estragar a surpresa
de Ricardo. Muito menos saber que não era nada do que imaginava e que ele estaria de fato comprando produtos bizarros para relacionamentos além lar.

Por um instante, Marlene tomou coragem. E atendeu ao telefone.
- Dona Marlene, aqui é da Flex Shop.
- Flex Shop?
- É sim. Flex Shop Eletrodomésticos. Seu marido, Dr. Ricardo, comprou uma máquina de lavar roupa
e mandou perguntar à senhora a que horas nosso técnico pode fazer a instalação.

Por um instante, Marlene quis bater em Nil.
E no instante seguinte, Marlene voltou a ser Marlene.





quarta-feira, 19 de junho de 2013

Resenha: ‘A Chave de Sarah’

(Maristela Scheuer Deves)

Que a primeira metade dos anos 1940 deixou uma mancha negra na história da humanidade, ninguém duvida. O extermínio de milhões de judeus em campos de concentração nazistas é uma ferida que, passados cerca de 70 anos, até cicatrizou, mas nunca será totalmente curada. E a literatura tem um papel fundamental para não deixar que o tempo apague o que aconteceu, tanto em memória dos que morreram quanto como um lembrete do ponto em que a humanidade pode chegar quando cede ao fanatismo.

Pois um belo exemplo de literatura que toca nessa chaga, sem cair em lugares-comuns, é o romance A Chave de Sarah, da escritora francesa Tatiana de Rosnay. Encontrei esse livro por acaso, olhando as prateleiras de ofertas de livro de bolso em um supermercado - como estava barato e parecia interessante, resolvi comprar. E valeu a pena.

Antes de entrar na história propriamente dita, é preciso ressaltar, como a própria autora o faz, que essa é uma história de ficção, embora baseada em tristes acontecimentos reais, como a concentração do Vel' d'Hiv, ocorrida em 16 de julho de 1942, em Paris, quando milhares de judeus, a maioria crianças, foram presos e levados ao Vélodrome d'Hiver. A trama do livro se passa em dois tempos, com duas narrativas intercaladas - recurso que, quando bem usado, contribui em muito com a força de uma história.

Nesse caso, em 1942, acompanhamos a pequena Sarah, que é presa com seus pais e levada ao Vel' d'Hiv para depois ser mandada a um campo de concentração. No bolso, ela leva um segredo: a chave de um armário na qual ela escondeu o irmãozinho menor, Michel, acreditando que em poucas horas estará de volta e poderá libertá-lo.

Num salto de 60 anos, estamos em 2002 e acompanhamos a jornalista Julia Jarmond, americana radicada em Paris, que está escrevendo uma matéria sobre o aniversário dessa concentração, uma mancha que os franceses - entre eles a família de seu marido - prefere esquecer. Durante as pesquisas, ela acaba deparando com o nome de Sarah, e com uma coincidência que ajuda a colocar em risco o seu casamento, que já passa por percalços.

Mesmo enfrentando a oposição do marido e as dificuldades naturais decorrentes da passagem do tempo, ao mesmo tempo em que tem uma gravidez de risco, Julia decide seguir adiante com a matéria, vivendo uma experiência que irá transformá-la, e ao leitor. Pois é impossível sair dessa história sem sofrer abalos, tanto quanto é impossível largar o livro pela metade.

Um romance que machuca, mas que, talvez por isso mesmo, merece ser lido.

***

Ah: a edição que tenho é da Ponto de Leitura, com 400 páginas. Essa história também virou filme.





terça-feira, 18 de junho de 2013

RUA DOS RETRATOS


Otávio Martins

   Dona Ernestina, que morava do outro lado da rua, em frente ao atelier do seu Carlos, já havia encomendado, desta última vez, mais de um trabalho sobre a mesma foto. O retratista entendeu logo no começo, que deveria arranjar uma maneira para continuar atendendo aos seus pedidos e às suas encomendas. Era um jeito de ir levando. E, também, para não desagradar a freguesa e amiga de tantos anos.

   Seu Carlos havia se instalado na Rua dos Retratos há mais de quarenta anos, ao tempo que ainda era chamada de Rua dos Becos. Dona Ernestina, quando ele chegou ali, deveria ter quase a mesma idade que a sua. Lembra ainda que, ao descarregar as tralhas todas, ela foi a primeira pessoa a se aproximar e perguntar o que ele iria montar naquela lojinha, ao lado da Casa das Noivas. Foi, para ele, como espécie de boas vindas; assim ele lembrava. No bairro onde seu Carlos morava - não muito distante dali - era conhecido, apenas, como Carlos retratista. Mas, ninguém sabia exatamente o tipo de trabalho que ele executava lá em sua oficina, perto da estação de trens. Era, também, um ótimo restaurador e colorista de fotos; aos poucos, foi adaptando o seu atelier para a execução de muitos serviços que tivessem alguma relação com a fotografia, conseguindo, assim, ir ampliando a sua clientela.

   O homem que agora estava morando na mesma calçada de dona Ernestina, um pouco mais para frente, em diagonal com o atelier do seu Carlos e que escrevia pequenos contos para o jornal do bairro, era bem mais jovem; percebia, nitidamente, que o retratista gostava de romancear as suas histórias surgidas do contato do dia-a-dia com os seus clientes. Ao escrever uma série de matérias sobre a história da Rua dos Retratos,                                                  precisaria contar com os relatos de algumas pessoas antigas do bairro, os quais, acreditava, dariam mais credibilidade aos seus escritos, agora em forma de crônicas.                                            

    O marido de dona Ernestina, do seu segundo casamento – do primeiro enviuvara ainda cedo – mantinha, desde muitos anos, a floricultura, que ficava logo ali, na altura do larguinho, em frente ao abrigo dos ônibus. Assim, que ela já havia experimentado dois casamentos e seu Carlos jamais ouvira qualquer comentário ou queixa sua a respeito desses seus particulares.            

   Na primeira encomenda da série desse último trabalho, o retratista fez vários retoques na sua foto – devia ter sido tirada há uns dez anos, ou pouco mais – deixando-a mais jovem, porém, mantendo-a com as mesmas roupas e modelos da foto original. Dava a impressão de que ela estaria, àquela altura, com uns vinte anos a menos; depois, foi imprimindo algumas pequenas modificações que a iam deixando mais jovial. Dona Ernestina começou a tomar gosto pelas habilidades do seu Carlos desde há muito tempo. Trabalho minucioso partia das mãos de um verdadeiro artista em matéria de restauração e pintura de fotos. Criara lá as suas técnicas no decorrer da profissão, para garantir que não causaria qualquer dano no material recebido pelos seus clientes: antes de começar os trabalhos de recuperação, tinha o cuidado de fazer uma reprodução do original – “para trabalhar em cima”, como ele dizia. Dessa forma, ensaiava o trabalho de restauro, conseguindo, assim, melhor resultado. Qualidade que o diferenciava dos outros.

  O contista começou a elaborar a sua série de matérias para o jornal A Gazeta a partir dos depoimentos daquelas pessoas que, possivelmente conheciam, com mais detalhes, ao transcorrer daqueles anos mais distantes, quando a rua, pelos vários retratistas e restauradores que ali se instalaram, ganhou o nome de Rua dos Retratos. As cores, em fotografia, ainda era uma coisa nova, daí o aparecimento dessa técnica de “pintar” as                                                     fotos, originalmente feitas em branco e preto, para dar a impressão de terem sido tiradas com filmes mais modernos, coloridos. Pode-se dizer que era um efeito ingênuo, porém, sem demérito; quem conhecesse um pouquinho de fotografia, saberia que aquilo era conseguido com alguma técnica de coloração, aplicada posteriormente à tomada de tais imagens. Tinha, mesmo assim, o seu valor.

   O que valia para o contista era que de todo esse processo de desenvolvimento da profissão dos fotógrafos surgia, ainda, muitos casos interessantes a serem contados sobre a Rua dos Retratos e, também, do bairro onde estava situada.

   Seu Carlos também havia criado os seus mecanismos dos quais se valia para “dar mais vida” – como costumava dizer - a algumas fotos que lhes eram entregues lá no atelier. Procurava saber algo mais sobre os retratados do que, apenas, as imagens fixadas no papel.    

    Para a última encomenda de dona Ernestina seu Carlos chegou ao máximo do que                                          poderia conseguir a partir daquele retrato que lhe fora entregue, sobre o qual já vinha trabalhando há algum tempo. Sua vizinha estava com a aparência quase idêntica de quando partiu para o seu segundo casamento, com o Alberto da floricultura. O próprio Alberto – que costumava freqüentar o atelier à noitinha – comentou com o amigo, ao ver a “nova” foto: “Foi assim que eu a conheci; lembro como se fosse hoje...”.

   Seu Carlos e o Alberto ficavam, por vezes, horas a relembrarem de casos ocorridos em outros tempos ali e pelos arredores. O retratista sabia de cor e salteado as circunstâncias em que o Alberto e a dona Ernestina se conheceram e começaram o namoro. Dona Ernestina já era uma mulher madura e o Alberto era um pouco mais moço do que ela.

    O contista do jornal ia juntando cada pedaço de história, principalmente quando conversava com o retratista ou com o floricultor. Estes lidavam, pelo menos nas suas profissões, quase que todo o tempo, com o público. Não somente gente do bairro, mas, também, muitas pessoas de fora que aportavam por ali atrás dos serviços do Seu Carlos e também – já eram pontos tradicionais – os belos arranjos e flores da floricultura do Largo dos Ônibus.

   Alguns clientes eram comuns, tanto da floricultura quanto do atelier. Era possível, até, cruzar as informações e histórias contatadas a respeito de alguns personagens, a partir das diferentes narrativas, ou versões, de seus contadores. Ainda, o olhar do contista d’A Gazeta, o qual daria às histórias uma linguagem jornalística. Por vezes, as apresentava sob a forma de crônicas.

   Numa dessas “entrevistas” – Alberto foi quem contou ao cronista – surgiu a revelação de mais uma habilidade de seu Carlos. Num tempo atrás, ele mesmo criava as molduras para os trabalhos mais sofisticados; era um ótimo entalhador. Era quase uma marca sua. As molduras, em madeira maciça, eram criadas com exclusividade para cada encomenda de algum cliente que se dispusesse a pagar um pouco mais pelo trabalho. Ele afirmara várias vezes ao Alberto que, se não fosse tão trabalhoso e não necessitasse de tanto tempo, somente entregaria os seus trabalhos de restauração ou de pintura, devidamente emoldurados com a sua arte de entalhador. O cronista chegou a ver algumas dessas molduras que, agora, estavam ali, mais como decoração e parte viva da história do atelier.  

    Soube muita coisa sobre a festa do centenário da igreja, próxima ao Largo dos Ônibus, onde toda a decoração, inclusive a do altar, havia ficado a cargo do Alberto, dona Ernestina e mais duas funcionárias da floricultura; na mesma Gazeta onde agora trabalhava o contista, mereceu uma reportagem de página inteira, onde mostrava em detalhes, os arranjos primorosos executados pelo casal e seus auxiliares.  

  Na casa onde agora estava morando o cronista da Gazeta, há muitos anos, morou um casal – os dois eram professores e lecionavam no mesmo colégio público – que, parece, se mudou para uma avenida mais lá para o lado do centro da cidade. Tinham um filho pequeno, seis ou sete anos, quando saíram do bairro. Carlinhos costumava passear com o seu pai, que gostava de levá-lo por outros cantos do bairro, principalmente, nos fins de semana. Carlos Roman de Freitas tinha muitas lembranças daquele tempo, porém, um pouco desordenadas. Lembra-se que, depois, o pai falava muito do seu Alberto, da floricultura e, também, do seu Carlos.  Repetia, sempre, que as duas figuras “eram a cara do bairro”. Estranhou que o pai nunca fizera comentários sobre a dona Ernestina. Não se lembra dele ter falado da mulher do seu Alberto. Porém, tinha, vagamente, nas suas lembranças, o senhor da floricultura do Largo dos Ônibus, lá no fundo da loja, onde ficava o caixa, e de uma senhora, simpática, que atendia os fregueses na parte da frente, onde estavam algumas flores acomodadas em balaios, projetando-se para a calçada.

   Apesar das muitas conversas com os três – dona Ernestina, seu Carlos e o Alberto – o cronista, ou contista, não soube de muito mais coisas sobre os pais de Carlos Roman e suas histórias. Talvez eles não tivessem o hábito de visitar os seus vizinhos. Seu Carlos lembra que eles saiam pela manhã e só voltavam no fim do dia. Somente quando o pai de Carlinhos tirava para dar umas voltas nos fins de semana é que, talvez, tomassem contato com o resto do bairro.

   O novo dono de A Gazeta, Carlinhos Roman, também proprietário da casa onde agora morava o cronista do jornal, após contratá-lo para aquela série de artigos sobre o bairro, não conseguiu saber muito mais coisas do que aquelas guardadas na sua memória, ao tempo em que costumava passear nos fins de semana ali pelas redondezas, pela mão de seu pai. Algumas histórias poderiam até ser reveladoras – como saber? – talvez.    Corria o risco de terem sido elaboradas pelas mentes criativas de seu Carlos e seu Alberto, os quais, mais do que antigos moradores, eram “especialistas” em contar histórias.





segunda-feira, 17 de junho de 2013

Para Fabia


Eu sempre quis ser como minha irmã. Mas depois de anos de convivência e amor recíproco, percebi que somos ricos assim, mundos diferentes que se complementam entre si.


***
 
Para Raul


No meio daquele Grande Prêmio de Fórmula 1, apareceu uma bandeira amarela, listrada de vermelho. Perguntei ao meu irmão, que estava comigo, o que significava. Eu não sabia, e pedi a ele que consultasse em seu celular o significado de tal bandeira. “Não posso, aqui não há sinal”, disse ele. Finda a prova, horas mais tarde, ele me mandou o significado do tal pavilhão: “bandeira amarela e vermelha listrada significa pista escorregadia”. Nunca ele havia respondido uma pergunta minha. Era meu irmão que falava comigo.





domingo, 16 de junho de 2013

Fundo de quintal


Ana refez as contas no caderno à sua frente. Definitivamente, devia um dinheiro que não tinha, como todo mês. Não, como todo mês, não. Desta vez, devia uma soma maior ainda e, para piorar, já tinha pedido todos os empréstimos que podia a bancos e financeiras. Jogou o corpo sobre a única poltrona confortável que ainda restava na sala. Ali, ficaria por horas encarando o asfalto iluminado apenas pelo poste de luz enevoada. De vez em quando, um farol mostraria seus olhos marejados, mas logo a escuridão voltaria a engolir aquele rosto em desespero. Com os pensamentos consumidos pelo medo, ela pensava dia e noite no que seria dos dois filhos pequenos. Já no último mês, tinha cortado da lista os remédios que usava. Passara a ir ao posto de saúde para receber uma tira contada de comprimidos que lhe permitiam passar o mês. O remédio do posto não adiantava muito, mas era o único jeito de controlar o diabetes sem onerar o orçamento.
Ela sentia fome. Havia tanto tempo que não consumia leite e carne que nem se lembrava a última vez. Quando fazia um bife para os meninos, aproveitava a frigideira suja com o gosto da carne de segunda e esquentava naquela gosma cheirosa um pouco de arroz. Comia o prato acanhado junto com um ovo frito ou uma banana prata. Ah, as bananas! Baratas e matam a fome.
Durante a semana, levava os dois filhos para uma escola pública do bairro de manhã bem cedo e seguia a pé para o trabalho. Morava razoavelmente perto, mas chegava cansada. No escritório, entre uma atividade e outra, tomava um grande número de cafés cheios de açúcar que a mantinham desperta e com menos fome até o final da tarde.
No trabalho, tinha um truque.
— Aceita um biscoitinho de polvilho, Ana? — oferecia uma colega.
— Obrigada! Você sabe que eu não resisto a esse seu biscoito! — respondia, esforçando-se para não pegar o saco todo.
— Eu trouxe um bolo de laranja que está uma delícia! Come um pedacinho... — oferecia outra.
— Meu Deus, eu preciso fazer uma dieta! Mas, antes, vou provar esse seu bolo que está cheirando tanto. — disfarçava.
E assim seguia enganando o estômago até a hora do encontro marcado com o arroz, a banana e o ovo.
Naquela noite, sentada na sala, olhando o asfalto negro rajado pela luz do poste, ela se lembrava da mãe e dos tempos em que se permitia comer bem, viajar, comprar coisas.
— A pior pobreza é a pobreza envergonhada — disse-lhe a mãe, uma vez.
— Como é isso?
— Tem gente que perde tudo, menos a dignidade. Preferem morrer a pedir um centavo, um pedaço de pão.
— Isso é orgulho — ela replicara.
— Não, não é. Aprenderam que quem pede é miserável, e não é fácil para ninguém se admitir miserável.
— Orgulho. E do pior tipo. — insistira.
— Ana, para quem já nasce pobre talvez seja mais fácil pedir ou aceitar. Mas você consegue imaginar o que significa para uma pessoa que já teve de tudo ter que pedir um pouco a cada um?
Nunca havia imaginado. Até agora. Ninguém sabia da sua situação. O marido tinha morrido três anos atrás, deixando para ela os filhos, a vida complicada e uma casa velha. Quando quis vender a casa, esbarrou na realidade: não valia nada. Ia tirar o teto dos filhos a troco de uns três ou quatro meses de aparente tranquilidade. Foi quando tomou o primeiro empréstimo. Lembrou dos cartões sem crédito, jogados no fundo de uma gaveta da cozinha. Lembrou também que, na véspera, havia usado a última folha do talão de cheques. O banco lhe negara outro talão.
Sem sono, saiu para o terreno atrás da casa, onde brinquedos sujos de terra faziam companhia a uma pequena horta. Pelo menos ali havia terra para plantar um ou outro vegetal que servia de alimento para os filhos. Junto a um muro alto, bem no fundo do terreno, um quartinho fechado, onde ela guardava coisas antigas em um guarda-roupa pequeno. Sobre uma cama de solteiro, ainda em bom estado, quadros antigos, duas malas escuras — onde eram guardadas as lembranças do marido e dos pais —, e algumas poucas caixas cheias de papéis de carta estampados, que ela havia colecionado enquanto havia sido possível. Sempre achou lindas as texturas, as cores e os desenhos de flores, pássaros, crianças e balões colocados nos cabeçalhos ou nos rodapés das folhas, como se fossem guardiães das histórias que alguém viria a escrever.
Preciso limpar isto aqui. Se eu conseguir jogar fora as coisas sem utilidade, acho que consigo alugar este quarto para alguém, pensou, olhando ao redor. Animada pela ideia de fazer algum dinheiro, passou a noite pensando nos detalhes. Pela manhã, antes de ir para o trabalho, desinteirou sem titubear o dinheiro da luz e pagou um classificado barato, espremido:    

Alugo quartinho dos fundos com cama de solteiro/guarda-roupa. Banheiro compartilhado com a casa. APENAS MOÇAS OU SENHORAS. 
 
          De madrugada, pela primeira vez, em meses, ocupou-se de outra coisa que não o asfalto. Com as mãos rápidas, esvaziou o quartinho, limpou paredes, chão e teto. No dia seguinte, na volta do trabalho, conseguiu fiado um galão de tinta branca, verniz, um rolo de cabo, um alicate e pincéis de vários tamanhos. Dedicou-se à pintura e à arrumação até que amanheceu o sábado, dia em que esperava candidatas. Na cama de solteiro, colocou um jogo de lençóis que estava guardando para os filhos usarem no Natal, rezando para que ninguém prestasse a atenção ao desenho de renas. Antes de sair, jogou no chão, ao lado da cama, o tapetinho persa falso que havia tirado do seu quarto e o travesseiro macio que também lhe pertencera até a véspera. A título de requinte, pendurou a chave do quartinho num chaveiro bonito que a empresa dera de presente aos funcionários no início do ano. Queria impressionar as moças e senhoras.
Às quatro e vinte da tarde, nenhuma candidata havia aparecido. Os meninos brincavam na vizinha, como todos os sábados, e de lá só voltariam depois de compartilhar um lanche farto com a filha do casal. Com a desculpa de que a garotinha precisava companhia, os dois compreendiam a miséria de Ana e ajudavam sem fazer alarde. O que será que eu fiz de errado? — pensou, retorcendo as mãos e pensando nas moças e senhoras que não tinham aparecido. Desesperada pelo dinheiro investido, sentou-se na cama de lençóis de rena com o jornal do dia entre as mãos e chorou sem freios toda a sua desgraça. Quando terminou, soluços suspirados e uma dor de cabeça terrível lhe faziam companhia. Mecanicamente, pousou os olhos sobre o jornal molhado de lágrimas e avaliou o seu anúncio. Nenhum defeito. Preço justo. Bairro tranquilo. Não sabia mesmo o que tinha dado errado. Foi quando seus olhos desviaram-se para a direita, um pouco mais para o alto da página. Leu, curiosa, o anúncio que se destacava dentro de um retângulo grande, em negrito. Naquela noite, e na noite seguinte, ao invés da poltrona da sala, do mesmo asfalto negro, do mesmo poste e dos faróis ocasionais, Ana ocupou-se mais uma vez em fazer mudanças no quartinho dos fundos.
Segunda-feira, na hora do almoço, levou a um ourives no centro da cidade a correntinha de ouro com a medalha da Virgem que nunca saía do seu pescoço, as pulseirinhas de ouro das crianças, de quando eram pequenas, e quatro alianças grossas de casamento, também de ouro: a dela, a do marido e as de seus pais. Saiu apressada da loja para o banco, onde pagou as três contas vencidas do telefone que, por sorte, não eram assim tão altas. Depois, com o pouco que restou do já tão desfalcado dinheiro da luz, voltou ao jornal e colocou outro classificado.
Na sexta-feira à noite, após mentir à vizinha que precisava fazer hora extra e pedir-lhe que deixasse as crianças dormir em sua casa, sentou-se na cama do quartinho dos fundos, cheirando a sabonete e bala de hortelã. Ao seu lado, o rolo de pintar de cabo, os pincéis, o alicate e um martelo que usara para consertar e acrescentar algumas coisas ao aposento. Tudo brilhava imponente, com um novo polimento.
Por volta das 22 horas, o telefone sem fio, recém-adquirido, tocou pela primeira vez, produzindo um som engraçado, abafado pelas paredes agora revestidas com placas grossas de cortiça:
— É a Viuvinha? — perguntou uma voz ansiosa.
Enquanto respondia, sorriu e alisou sobre a cama os objetos reluzentes. Em seguida, voltou os olhos para as letras em negrito no jornal do dia:
 


Viuvinha fogosa!
Venha me conhecer!
 
Prazer com muita dor!
 
Recebo em casa, depois das 22h, em ambiente de total discrição. Apenas rapazes e senhores. Fone: 3232-3232