Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Herança Maldita


Dona Amélia estava nas últimas. Suspirava e torcia o rosário nas mãos ossudas e deformadas.
Há oito semanas repousava na cama cheirando a lavanda. As empregadas lavavam várias mudas de roupa por dia, lençóis brancos, camisolas de cambraia de linho bordada em ponto cruz, enxoval vindo de Lisboa nos tempos áureos da fazenda Oliveira.

A pretinha espiava da porta, queria ser a primeira a dar a notícia. A velha não morria e a menina voltava triste para a cozinha.

A cozinheira mexia a canja no caldeirão:-Dona Isaurinha, sua madrinha de hoje não passa, está por um fio, melhor chamar o padre.

- Tanto sofrimento, coitada da dinda, tão boa e caridosa, mal cheguei ela caiu doente.

-Uma pena a senhora ter vindo de tão longe, mal colocou os pés na fazenda e sinhá ficou deste jeito.

- Ela mandou me buscar só para me dar esta herança. Vês este anel? É uma jóia de família, minha boa madrinha quis me entregar em vida, estava tão feliz e animada.

- Já te disse para ir procurar o velho Bento, ele cura toda gente, quem sabe cura sua madrinha?

-Não gosto destas mandingas, sou muito católica, prefiro meus jejuns e novenas.

-Então não venha se queixar que não fez tudo que podia para salvar a pobre sinhá.


Isaura queria ter coragem para ajudar a pobre moribunda. Sentia-se culpada por não fazer esta última tentativa.
Angustiada, decidiu ia ver o tal preto velho que sabia todo tipo reza e garrafada.

Andou ligeiro no passinho apertado, meio corrido, o sol a pino queimando sem dó. Na pressa havia esquecido a sombrinha.

Bateu palmas na frente do barraco e ouviu a voz do velho mandando entrar: - Entre Dona Isaurinha, estava a sua espera.

Isaura sentia-se enojada .Um cômodo acanhado e humilde, o chão de terra batida limpo e o velho muito idoso sentado em um banco baixo.

A imagem de São Benedito e Santo Antônio na mesa tosca cercada de velas conferiam um aspecto mais fúnebre ao lugar: - Vim saber se o senhor pode ajudar a madrinha que está nas últimas

-Posso sim senhora...

-E ela vai ficar boa?

-Vai sim senhora.

-Estás a brincar ? Não vês que estou desesperada? Ai que má idéia. Mando te surrar até arrancar teu couro.

-Bem vejo que puxou sua madrinha.

-És muito atrevido velho vou me queixar da tua audácia.

-Não carece, vou ensinar o que a senhora precisa. Mas vai depender da sinhazinha ter coragem de fazer o que deve ser feito.

- E o que é? Diga que eu faço, anda logo que não tenho o dia inteiro.

O velho Bento ensinou um feitiço muito simples. Colocar uma raiz forte em uma gamela virgem, cobrir com leite quente e um pouco do sangue da donzela e a doente será curada:

-Que beleza de anel a senhorinha está usando!

- Esta jóia? Tire este olho grande que vale uma fortuna.

-Estou só admirando a beleza da pedra, muito bonita, vá depressa sinhorinha.

A mocinha nem se deu ao trabalho de agradecer o velho. Não notou que ele tinha uma expressão maliciosa e os olhos brilhantes.
Voltou para a casa grande gritando com a cozinheira e providenciando todo o material.

Sabia que quando a velha senhora ficasse sabendo quem a havia curado cairia de amores pela afilhada e a cobriria de ouro e prendas.

Meia noite em ponto foi para o quarto da madrinha.
A raiz de gengibre tinha as formas quase humanas, exatamente como havia sido instruído pelo velho.

No último momento obrigou a cozinheira a servir de companhia:- Dona Isaurinha, a senhorinha tem certeza? Não se deve mexer com estas coisas, eu tenho medo...

-Larga de ser besta que é para a saúde da madrinha. Vamos começar rápido, abra a janela para a lua clarear bem o quarto.

A moribunda gemia baixinho Isaura ajoelhada ao lado da cama, fez um talho fundo na palma da mão esquerda deixando o sangue escorrer na cabaça.

Sentiu uma dor aguda no peito e imaginou que fosse nervoso. Na alcova a velha se mexeu e resmungou o nome da afilhada. Foi a última coisa que Isaura ouviu antes de cair morta aos pés da madrinha.

Dona Amélia deu um longo suspiro e ajeitou o corpo cansado.
A cozinheira correu para amparar a patroa:- Esta deu trabalho sinhá, custou convencer a danada a procurar o velho Bento

- Deixe a defunta aí e vá enterrar o feitiço antes que o leite esfrie, você já sabe o que fazer.


A cozinheira correu para o antigo cemitério de escravos. No canto afastado o preto velho havia cavado um buraco fundo e esperava a gamela:- Desta vez quase não deu tempo. Tive dó da menina.

-Enquanto a malvada tiver parenta para vir fazer troca ela não morre tão cedo.

-Com esta são quatro inocentes, dizem que ela tem mais de cem anos.

-Quatro vezes ela barganhou com a morte. Pensar que até as filhas ela enterrou para ficar aqui tomando conta destas terras. Cruz credo.

A casa grande já estava toda iluminada, as mulheres afobadas tratando da arrumação do velório no salão principal.
Dona Amélia escolheu o melhor vestido para a afilhada. Tirou o anel da mocinha e colocou no próprio dedo, admirando o enorme rubi vermelho sangue.

Tocou com doçura o rosto da morta. Isaura aos trinta e cinco anos, virgem e pobre não tinha família para reclamar a ausência.

Ajeitou os cabelos e pensou nos cinco anos que ainda tinha pela frente.
O dia estava clareando quando o padre chegou do vilarejo acompanhado por várias famílias para rezar as novenas e velar a defunta.


Mais uma desgraça na Fazenda Oliveira.
No povoado diziam que era uma Maldição de Sinhá Amélia.

Ainda que não acreditasse em tais boatos,o bom cristão benzeu-se e rezou uma Salve Rainha antes de apear da carroça.
Isaurinha parecia uma noiva, toda de branco, um buquê de rosas brancas entre as mãos entrelaçadas.
A madrinha em luto pesado ocultava com o véu o frescor e as faces coradas.
Completamente refeita e bem disposta.





quarta-feira, 21 de maio de 2008





Anjos
Marcia Szajnbok









Sussurra o anjo:
- Olha! Ouve!
E o olhar pousa obediente e a escuta de uma voz se faz...

A vida passa, estranha e imprevista
Destino e desejo se compõem
Tecem juntos ímpares figuras
Tingem os dias, fabricam o tempo...
O encontro mais improvável
Na mais banal das esquinas do espaço
O instante fortuito que produz revolução
E no mesmo gesto instaura a paz...

Sussurra o anjo:
- Ama!
E o coração bate tão forte que acorda o mundo...

A realidade é conforme os olhos
Corpo e alma, sensação e pensamento
Vagando, qual fantasmas, existentes e etéreos...
Um sorriso, um beijo, o gesto simples
Que faz receber a mão, outra mão...
Numa faísca se produz um ser:
O que era puro ideal, suposição
Faz-se matéria num segundo.

Sussurra o anjo:
- Vem comigo!
E o coração pára, o olhar se apaga, cessa todo o movimento...

No instante último há de aparecer o sentido
O divisor de águas entre o mero passar e o real existir...
Recebe a morte em paz
Aquele que soube viver e dar-se...
Desfaz-se o corpo, viaja a alma
Mantêm-se eternas as sementes
De amor salpicadas no infinito.

fonte da imagem: http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.sobrenatural.org/upload/Site/Subliminar/Materias/Surrealismo/Pic16423.jpg&imgrefurl=http://www.sobrenatural.org/materia/detalhar/3956/quadros_surrealistas/&h=500&w=362&sz=46&hl=pt-BR&start=109&tbnid=KWRoxm1fOBUV6M:&tbnh=130&tbnw=94&prev=/images%3Fq%3Dsurrealismo%26start%3D108%26gbv%3D2%26ndsp%3D18%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN







terça-feira, 20 de maio de 2008

Entrevista com o coveiro

Alian Moroz

Entrei silenciosamente pelo portão principal do cemitério da Água Verde sem ser notado por ninguém; vivo ou morto! Estava ali para fazer mais uma reportagem para o jornal do bairro. Durante esse tempo, eu usei o codinome Sombra. Dava um charme, sei lá. Bem, ao entrar, percebi várias flores e vasos espalhados pelos túmulos e capelas de famílias abastadas; visto ser o tal cemitério lugar para mortos ilustres da cidade de Curitiba. As flores eram agonizantes em sua morte prematura, pois foram cultivadas para esse tento.
Vi uma aglomeração logo abaixo na quadra 45 e percebi que estavam retirando um caixão de seu “lugar”. Aproximei-me.

Sombra: Bom dia!

Coveiro: Bom dia!
.
Sombra: O que estão fazendo?

Coveiro: Exumação!

Olhei para dentro da cova, foi quando recebi um ar quente com um cheiro ao qual jamais pude presenciar. Notei o esquife praticamente podre e dentro do que restava dele jazia um corpo vestido com o que parecia um terno. Os olhos do morto estavam arregalados e carcomidos por baratas saindo às pressas ante à luz que penetrava na tumba.

Sombra :É comum isso?

Coveiro: Nada. Mas pra mim é bom... Tem uns trocados a mais.

Sombra : O senhor não fica impressionado?

Coveiro: Impressionado como? Ah com medo? Não (risos) já cansei de trabalhar à noite, sozinho.

Sombra: O Senhor não tem receio dos fantasmas (risos)?

Coveiro: ( risos) que nada... Tudo besteira do povo; é o melhor lugar para se trabalhar..calmo e tranqüilo (pleonasmo?).

Sombra: Mas já aconteceu de o senhor se assustar?

Coveiro: (risos novamente) Ah, teve uma vez que um cachorro vira-latas entrou aqui e de noite ele pulou de cima de uma das capelas... Ele era branco... (risos) fiquei esperto “né”!

Sombra: Ok...posso levar alguns desses vasos de plástico aí? Minha esposa está com mania de plantação agora...

Coveiro: Ah pode levar sim... tem problema não...vai tudo para o lixo mesmo...

Sombra: Ok Obrigado então pela conversa... Qual sua graça?

Coveiro: Como?

Sombra : Seu nome!

Coveiro: Natal...

Sombra: (risos) Natal? Bem apropriado não?

Temam pobres mortais, pois “Natal” está chegando...





segunda-feira, 19 de maio de 2008

Caminhada

por Pedro Faria


A Avenida se estendia à minha frente. Eu não tinha opção a não ser caminhar.
Comecei a andar, e logo na esquina à minha esquerda, vi um garoto. Deveria ter uns dez anos. Estava sentado no chão, encostado num poste, e observava duas formigas caminhando por seu braço.
- Não são bonitas? -, ele perguntou.
Eu não disse nada. Não podia dizer nada. Apenas o olhei, melancólico.
- Não são bonitas? -, perguntou ele de novo. Mais formigas subiram em seu braço.
Continuei olhando. Queria ir embora, continuar andando e acabar logo com aquilo. Mas não podia.
As formigas continuaram escalando o braço do garoto. “Não são bonitas?”, ele continuava repetindo enquanto seu corpo era invadido por milhares de formigas, até que ele se tornou apenas uma silhueta negra, e sua voz ficou abafada pelos insetos.
Passaram alguns segundos, e o corpo dele explodiu, as formigas haviam entrado por seus orifícios e o entupido. Os insetos se dispersaram rapidamente, e apenas uma mancha vermelha ficou na calçada próxima do poste. Continuei caminhando.
Andei, e logo vi a mulher. Ela estava nua, acorrentada a um carro. Estava encolhida, e gesticulava como se alguém a ferisse.
- Não, por favor, pare. Eu não agüento mais.
Suas costas estavam marcadas por arranhões. Cada vez que ela gritava de dor, novos ferimentos apareciam.
Ela me viu.
- Por favor, senhor, faça-o parar, por favor.
Balancei a cabeça.
- Pelo amor de Deus! -, ela gritou.
Então o golpe final veio, e seu crânio abriu-se em dois. Seus olhos estavam fixos em mim quando aconteceu. Queria desviar o olhar, mas novamente não pude.
Apenas continuei andando.
Não queria mais andar, queria parar, sentar no chão e ficar ali mesmo. Mas não podia, tinha que acabar aquela Avenida e chegar à próxima.
Andei até chegar à uma vitrine, do meu lado direito. Nela, estavam pintadas barras negras. Lá dentro, um homem estava sendo espancado por homens invisíveis, como a mulher acorrentada.
O homem não dizia nada, apenas aceitava a surra. Cortes apareciam em seu rosto, assim como hematomas. Num certo momento, sua cabeça foi lançada repetidamente contra a vitrine, até que seu pescoço quebrou. Eu vi então, num relance, alguns dos homens invisíveis, mas não reconheci nenhum deles. Não me importei muito com essa cena.
Finalmente avistei o cruzamento, e fui em direção à ele.
Na esquina eu vi a mim mesmo, sentado encostado em um poste, com uma seringa enfiada no braço.
Não pude dizer nada. A seringa estava cheia de insetos.
- É assim que você acaba. É assim que você acaba. É assim que você acaba.
Tentei tapar os ouvidos, mas não pude. Vi o meu fim e então lembrei de minha vida. Lembrei de meu irmão, morto ao cair em um poço ao seguir uma trilha de formigas. Lembrei de minha mãe, morta por meu pai bêbado. Lembrei de meu pai também, morto numa briga na prisão.
Principalmente, lembrei de mim, de minha última dose, que me trouxe para cá.
- É assim que você acaba.
Sim, é assim que eu acabei.
Passei pelo meu corpo, a agulha ainda enfiada no braço, e virei à esquerda, sabendo o que me esperava.
A Avenida se estendia à minha frente. Eu não tinha opção a não ser caminhar.





domingo, 18 de maio de 2008

Fábulas Brasileiras

por Carlos Alberto Barros

Quebra-barraco, Lacraia, Bola-de-fogo, Tigrão, Moleque-piranha, Créu, Mulher-melancia, Éguinha Pocotó... O que seria isso? Elementos de uma clássica fábula infantil? Personagens de algum romance de realismo fantástico? Seres mitológicos de uma civilização perdida? Creio que a última opção parece a mais próxima da verdade.
Todas essas alcunhas, por sinal, de uma criatividade exuberante, são apenas parte da cultura funk brasileira. Mas, que dariam ótimos personagens, dariam! Não se pode negar. Imagine:

Papai Bola-de-fogo sempre amou Mamãe-melancia, desde quando ela era só uma sementinha.
O amor do Papai Bola-de-fogo era uma chama linda e eterna, Mamãe-melancia era muito feliz ao seu lado.
Dessa bela união, nasceram o Moleque-piranha, que adorava brincar na água da fonte e comer minhoquinhas, e a Menina Quebra-barraco, que era a mais bagunceira e deixava a casa de pernas para o ar.
Lacraia, Tigrão e Éguinha Pocotó eram os bichinhos de estimação. Sempre muito alegres e saltitantes.
O Bebê Créu foi encontrado perdido na floresta. Ele era bem espertinho: para comer, velocidade cinco; no dever de casa, velocidade um.
O amor e a paz reinavam na bela família.Viviam felizes e em harmonia, até ninguém mais lembrar que existiam.

Apesar da engenhosidade dessas personagens, acredito que não chegarão ao imaginário popular tal como Chapeuzinho Vermelho ou Os Três Porquinhos. Porém, não se pode ter certeza.
Pergunto-me: Quantas mais personagens fantásticas surgirão nas fábulas brasileiras? Quais “estórias” esta e as próximas gerações ouvirão?
Penso nas respostas e chego a me arrepiar. Lembro do Lobo Mau... Que medo!





Paradise, my ass!


Henry Alfred Bugalho

O brasileiro parece possuir uma atração mórbida pela violência, ou melhor, esta é uma peculiaridade do ser humano — este fascínio pela desgraça —, mas em rodinhas de brasileiros isto se torna ainda mais manifesto. É quase impossível o assunto não surgir quando um ou mais brasileiros se reúnem.
Não podemos negar que isto se deve ao estado calamitoso de segurança pública do país. Qualquer pessoa que habite grandes centros urbanos, seja São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, e em até cidades que já foram consideradas como exemplos — Curitiba é uma delas —, a violência faz suas vítimas.
Quem ainda não foi assaltado, ou foi pego em meio a tiroteios, ou conheceu alguém que foi baleado, ou vítima de seqüestro-relâmpago, ou de qualquer outro tipo de ato criminoso, atire a primeira pedra.
E isto se projeta na mídia, no cinema, na literatura, na música.
A violência se tornou parte da vida cotidiana do brasileiro, assim como o desemprego, ou a dividazinha teimosa que consome as economias no fim do mês, ou como as epidemias de dengue no verão, ou a corrupção dos políticos. Talvez, para muitos, um Brasil sem violência é quase inconcebível, inimaginável.
Por ser um brasileiro no exterior, comumente acabo me deparando com perguntas curiosas sobre o Brasil. Sem dúvida, a grande imagem que estrangeiros possuem do país é a do carnaval, das praias, do futebol e da bossa-nova, esta última ignorada pela maioria dos brasileiros, mas idolatrada pelos gringos.
Não há como escapar destas perguntas, deste mito carnavalesco criado em torno do Brasil e, como brasileiro que se preza, minha resposta acaba sendo:
“É, o Brasil é bonito mesmo, mas muito violento”.
E esta é uma constatação assombrosa para os estrangeiros, pois violência para eles é algo comparável à guerra de Iraque. Quando eles descobrem que, no Brasil, morrem mais pessoas ao ano do que em guerras, ninguém acredita. Pensam que é alguma ojeriza pessoal minha, que eu é que sou um indivíduo antipatriota.
Há algumas semanas, numa conversa com um dramaturgo americano, surgiu esta discussão e ele retrucou, espantado:
— Nossa, sempre imaginei que o Brasil fosse um paraíso! Você não está exagerando?
Isto me fez ponderar. Estaria eu exagerando?
Fiz uma busca na internet, e a minha conclusão foi assustadora. Para não ficar enchendo-o com índices de mortes violentas e números de assassinatos, basta saber que, ao compararmos a maior cidade dos EUA — Nova York —, com a maior cidade brasileira — São Paulo —, o número de assassinatos chega a ser 20 vezes maior na “Terra da Garoa” do que na “Big Apple”, ou seja, estamos falando duma proporção de oitocentos para dezesseis mil assassinatos ao ano. Se extrapolarmos estes índices nacionalmente, podemos, com tranqüilidade, considerar o caso brasileiro como de calamidade pública.
Foram justamente estes dados que apresentei ao tal dramaturgo numa conversa posterior.
— Engraçado, uma amiga minha ficou uma semana no Rio de Janeiro e me disse que não é nada disto! — foi a resposta dele.
De fato, acho que ele tinha razão, uma semana é bastante tempo para se conhecer todas as mazelas e problemas dum país com vários milhões de habitantes, com a maior extensão territorial da América Latina.
Se o meu interlocutor não fosse um senhor de quase oitenta anos, acho que eu incorporaria o bordão da juventude americana e encerraria o diálogo com:
— Paradise, my ass!
Que, em bom e politicamente correto português, seria: “paraíso, uma ova!”
Pelo menos, esta afirmação minha se fundaria numa experiência um pouco mais longa de que uma semana...





sábado, 17 de maio de 2008

Unicórnio Perdido em Janeiro


Slavko Zupcic
Tradução: Henry Alfred Bugalho


Para Ana Bella Guillén

Nunca pude observar como havia chegadoseu estojo envolto em papel de presente ou num pano de fina seda. Certamente, sempre esteve ali, sua caixa negra revestida internamente de seda vermelha, perto da biblioteca de casa, na mesa posta ali apenas para sustentá-lo. Algo natural e certo como as poltronas da sala de estar, ou como o retábulo russo da Virgem no quarto de minha irmã, mas maravilhoso e imponente ao mesmo tempo.

Deve ter sido depois, após três ou quatro ano de estadia vigiada por mim na biblioteca de casa, que me foi concedido o privilégio de desvelar o conteúdo do misterioso estojo e segurar em minhas mãos o violino Antonius Stradivarius, Cremona, feccit anno 1731. Se alguma vez havia sido apenas um móvel de respeito, dez vezes maior do que um livro, mas muito menor que um piano, agora de tratava dum Stradivarius guardado religiosamente no estojo de couro negro que eu limpava todas as tardes com pano azeitado, não importando que eu não soubesse, na verdade, o significado de seu nome. Logo, uma enciclopédia esclareceria tudo para mim repentinamente: “Antonius Stradivarius, incomparável fabricante de violinos, n. em Cremona (1644?—1737)”.

Dois ou três anos mais tarde, começaram os estudos de violino no Conservatório. Recebia aulas dum ancião polaco de sobrenome Sienkewicks com outro violino, bonito também, mas nunca como o magnífico Stradivarius de casa. Era uma pena não poder levar nosso tesouro ao Conservatório e ter de fazer os exercícios de precisão com o pequeno Guarneri de minha tia. De qualquer modo, o professor Sienkewicks pôde conhecê-lo assim que concluídas as aulas do curso primeiro.

Ainda me lembro seus braços erguendo-o, segurando-o. Sua barbicha afixada na madeira de cedro. E me lembro de sua voz.

— É tão suave. Não faz falta uma espaleira para tocá-lo.

Entretanto, suas mãos acariciavam as cordas lentamente, um pouco antes de procurar o arco na parte superior do estojo e começar a tocar, repentinamente, os mais belos compassos de Mendelssohn de seu Concerto em Mi menor.

Sua visita marcou o início de minhas apresentações. Cada vez que, depois desta noite, chegava alguma visita em casa, minha irmã me convidava a tocar violino no meio da sala. Eu caminhava lentamente pelo corredor rumo à biblioteca, abria a porta do cômodo, acendia a luz sempre à esquerda, alcançava a mesa de mogno e me detinha por cinco ou dez segundos contemplando o estojo. Retirava cuidadosamente o pano que o cobria, dobrava-o com calma, abria a fechadura com a chave que me havia sido entregue previamente e alçava o violino. Uma voz soava no cômodo ao lado, eu saía cerimoniosamente da sala e a visita respondia, surpreendida:

— Um Stradivarius, um Stradivarius.

Era como se nenhuma outra coisa no mundo importasse além do maravilhoso troço de madeira que minhas mãos carregavam.

Logo se aproximavam lentamente, sem se atreverem a tocá-lo.

Para mim, bastava tocar duas ou três peças e pronunciar logo algumas palavras.

— Antonius Stradivarius nasceu em Cremona...

Foi num momento como este, cinco anos depois da primeira apresentação, que um dos visitantes, por acaso engenheiro musical, levantou-se de seu assento e se atreveu a tocar com suas mãos o violino, antes de pronunciar a terrível sentença.

— Não é um Stradivarius. É uma imitação.

Isto antes de explicar que a madeira do tampo não era de faia, nem de bordo, e outras coisas que preferi me esquecer, simplesmente porque a partir deste dia, apesar de o violino, seu estojo e a delicada chave dourada me terem sido entregues definitivamente, nunca voltei a ser chamado para tocá-lo na sala, nas horas de visita.

Fonte: Ficción Breve Venezolana

Sobre o Autor
Slavko Zupcic (Valencia, 1970) é um psiquiatra e escritor venezuelano. Praticou vários gêneros literários. Entre suas obras, destacam-se a dramática evocação da figura paterna em Dragi Sol, o tom escatológico da noveleta Barbie e as peripécias duma peculiar detetive em Giuliana Labolita: El caso de Pepe Toledo. Seus contos constam em diversas antologias de contos venezuelanos e latino-americanos.
Fonte: Wikipédia





Pecado e tentação

(fonte: http://farm2.static.flickr.com/1368/1460911385_2b4efa748a.jpg?v=0)

Florencia Abbate
Tradução: Henry Alfred Bugalho

Quando tocar-se está proibido

A vulnerabilidade da pele gerou, ao longo da história, um volumoso caudal de conselhos para se evitar problemas. Assim, por exemplo, o bispo Francisco de Sales – tencionando resguardar os divinos preceitos do dogma de excessos epidérmicos - sustentou que os corpos humanos se parecem com cristais: “Não podem ser transportados juntos porque, ao se tocarem um com o outro, correm o perigo de se quebrarem". Durante a Antigüidade, Aristóteles havia se ocupado de recomendar temperança e respeito: “O exato ponto médio em relação a todos os prazeres do corpo". No entanto, esclarecia que, dos cinco sentidos, o único realmente preocupante é o tato. Não acreditou exagerado afirmar que o homem se rebaixa a animal se se abandona sem reflexão aos gozos da pele. O cauteloso Sócrates falava do risco de se fazer acompanhar por um belo jovem, “aranha venenosa, cujos beijos reduzem a escravo quem os recebe”; o poder da pele é tal, ele acreditava, que pode chegar a nos transformar em seres “sem vontade, nem senso crítico". Piscadelas sobre a bochecha, um roçar de lábios gelados, mordiscadas ou a inquietante sutileza de dois esquimós que friccionam, rapidamente, os narizes; como controlar todos estes atos, gestos, contatos que integram o infindo catálogo de experiências táteis? Opulento cenário, a pele se apresenta como uma incontestável evidência da força e da fragilidade de milhões de corpos lançados ao caos: Chocar-se, afetar-se...

Marcas sagradas

Agora, imaginemos um lugar rigorosamente projetado para que a pele não experimente intensidade alguma. Estamos no século XVII, e o convento de São Gerônimo ocupa uma mansão inteira. Trata-se duma imponente fortaleza murada, no meio da cidade. Fora, respira-se o ar; dentro, estrita clausura. Nenhum homem tem acesso ao interior — nem bispos, nem jardineiros, nem nobres, nem inquisidores. O acesso havia sido vedado até aos costureiros das monjas, que se vêem obrigados a lhes tomar as medidas para os hábitos olhando-as desde a portaria. O sacerdote lhes dá a comunhão através duma pequena janela, donde só aparecem suas bocas abertas. Quando uma delas pergunta se é pecado subir ao telhado e vislumbrar a rua – deixando assim parte do corpo dentro e outra parte fora – lhes responde que não, a não ser que incorra no erro de falar com um vizinho.

Afastadas da agitação urbana, cercadas por véus e vestidos ásperos, as esposas de Cristo eram condenadas a aplacar a sensibilidade da pele como se se tratasse dum estigma. Em 1670, havia 87 monjas gerônimas com um exército de mais de 200 serviçais e escravas. Não por acaso, as lacaias, índias ou mulatas, se chamavam “mães de amor”. Entre outras coisas, essas mulheres – que entravam e saiam do convento e para quem pele com pele não era acompanhada por remorsos lutuosos – costumavam ser as encarregadas de dar banho nas irmãs. Suavemente, elas as introduziam na mornidão da água perfumada com ervas e ensaboavam seus corpos, não sem se deterem a acariciar com pérfida ternura zonas muito suscetíveis. Durante estes banhos, as monjas deixavam de ser monjas e se metamorfoseavam em damas de belos seios, desejáveis coxas e guaridas cheias de surpresas. Fontes da época relatam que, numa ocasião, a madre superiora, para fechar o rito com chave de ouro, ousou solicitar a uma criada que a golpeasse até que um líquido opaco escorresse por entre suas pernas.

De todo modo, o caso de maior repercussão não foi este, e sim o da irmã Tomasina, que, desde menina, havia sofrido todo tipo de padecimentos devido a sua incrível beleza. Sua mãe sentiu inveja ao descobrir, precocemente, os sedutores dotes de sua filha e optou por encerrá-la num obscuro monastério. Ela conseguiu fugir e se casou com um senhor cuja riqueza merecia ser equiparada, em magnitude, a seu ciúmes: ao morrer, dom Franciso Pimentel deixou à viúva uma grande herança, mas estipulou que ela só poderia recebê-la com a condição de se tornar monja. Quando a abastada Tomasina chegou ao convento, soube que, desde algum tempo, as esposas de Cristo se diziam consternadas com a visita do fantasma dum clérigo ao lugar: Parece que ele surgia diante das mais bonitas e lhes pedia que orassem para que ele pudesse escapar do purgatório. Certa noite, Tomasina dormia em sua cela e, subitamente, o cavaleiro espectral se materializou diante de seus olhos. Sussurrou-lhe ao ouvido seu pedido e, por ela ter se recusado, impelido pelo desespero, ele a tomou bruscamente nos braços. Tomasina lançou um agudo grito de dor e êxtase, uma obscura e imediata resposta de exasperada violência, o som duma ensurdecedora defloração erótica, ou da queda num profundo abismo místico.

Ocupemo-nos, por um momento, em apresentar o que as demais monjas, que vieram apressadas e, sem dúvida, aterrorizadas, descobriram ao ver a até então imaculada pele do braço de sua companheira: a impressão dos dedos do clérigo havia ficado marcada a fogo em sua epiderme. E por esta inapelável prova de gozo absoluto e abjeto, Tomasina considerou que devia pagar com sofrimento: seus autoflagelos foram desde deitar-se vestida sobre tábuas até cobrir seu corpo com cilício, ou pôr nos sapatos pedras e cravos.

Como desconheciam a sensação duma pele masculina fundida na própria, suas companheiras nunca conseguiram explicar o porquê de, a partir daquele dia, o braço de Tomasina ficou paralisado. Mesmo que concordemos que isto não foi um milagre, e sim o resultado duma vívida fantasia onírica, podemos comprender que, impactada, ela não tenha desejado contar o segredo em confessionário algum. Há um ponto no orgasmo que seguramente pertence à dor e à morte que engendra a vida. Quem tem o contato proibido adentra o prazer por caminhos alternativos. E isto porque o desejo da pele, impetuoso, astuto, sábio, aprende, se preciso for, a escrever certo por linhas tortas.

Publicado originalmente em Latido

Sobre a autora
Florencia Abbate nasceu em Buenos Aires em 1976. Licenciada em Letras pela Universidad de Buenos Aires - UBA, periodista cultural e autora dos romances "El Grito" e "Magic Resort".





quarta-feira, 14 de maio de 2008

Microconto

Engano

Os bandidos ligavam desde o presídio.

- Estamos com sua mãe!

- Meus Deus! Vocês profanaram o túmulo dela?





Submissão

Volmar Camargo Junior


— Depois de ti, quero tua mulher e tuas filhas. – disse, ofegante.





Há vagas

Volmar Pereira Camargo Junior


Leu nos classificados “Precisa-se de homem disposto a matar um desafeto. Paga-se bem. Ligar para.......”

— Agência de empregos, bom dia.
— Estou ligando pela vaga.
— Certo, senhor. Qual é o seu nome?
— Fulano da Silva.
— Temos um problema, senhor.
— Qual?
— A vaga é para matar o senhor.





Microcontos

Telegrama

Pequim, 2008. Equipa chinesa campeã. Modalidade de tiro. Impossível reutilizar alvos femininos em muito mau estado.

Pontuação

Entre as palavras de um texto corrido, perfilavam-se vírgulas sós e nuas esperando pelos derradeiros três pontos...





Viagem



Pedro nao gostava de viajar, pois achava que o banheiro de sua casa ficava muito longe.





MICROCONTOS

por Carlos Alberto Barros


O Saci

Um pesadelo terrível: sonhou que tinha duas pernas.


Reis Magos

Os quatro reis magos seguiam jornada pelo deserto em busca do messias. Exaustos, próximos a morrerem de sede, tiraram a sorte. Gaspar, Baltazar e Melquior beberam, comeram e seguiram caminho. Para trás, apenas os restos sem nome do primeiro mártir.


O Moribundo

Quando a morte recostou-se no leito, encontrou o homem de braços abertos. A receptividade foi uma surpresa, não esperava tamanha acolhida.
O moribundo não a queria, fingiu-se conformado. Quando teve a oportunidade, apunhalou-a pelas costas.
Dia seguinte, notícia aos parentes: saíra da UTI, estava fora de perigo.





terça-feira, 13 de maio de 2008

Terra estranha


"Se não te vi e não reparei, foi apenas por
não permaneceres comigo o tempo suficiente."
I

A nave prosseguia veloz, rodopiando sobre o eixo, cortando espaços, preenchendo com o corpo metálico em forma de disco um trajecto previamente programado. Na altura certa, sem mais nem menos um milésimo de tempo, chegaria ao solo e estabeleceriam contacto com toda a suavidade que a (alta) tecnologia tornava possível.

Chegaram sem grande surpresa. A convocatória chamou toda a equipa para a reunião na sala oval. Dispensados grandes formalismos, reuniram-se os escolhidos e, em silêncio, juntaram-se corpos, colocando-se as mentes em sintonia. Um único objectivo, que era claro: efectuar as derradeiras verificações de modo a prevenir falhas. A incumbência do pequeno grupo era vital, da maior importância para a comunidade.

“Ide em paz, que o Deus Bola vos proteja” Disse a voz do velho, erguendo bem alto o apêndice - espécie de mão - direito.

O tempo observou-os com dolência enquanto seis corpos verdes saíam, protegidos por fatos especiais, iniciando incursão num meio desconhecido e potencialmente adverso. A equipa, sendo pequena mas bem qualificada, possuía tudo o que era necessário: Dois soldados, quatro chefes, um navegador, um médico, um cientista e um linguista.

O silêncio era interrompido apenas pelo diálogo mental contínuo, interior e omnipresente “Que iriam encontrar? Seriam os indígenas hostis ou amigáveis? Poderiam fixar ali nova colónia?”. De repente vieram à memória do primeiro chefe algumas experiências passadas, falhanços passados. Destes, o pior fora o desembarque na segunda lua de Tritan. Se nada permitiria prever os problemas também é certo que não tinham tomado todas as precauções. Resultado: um terço dos efectivos mortos, milhares com invalidez permanente. Após o descalabro das batalhas tiveram de assumir a derrota e bater rapidamente em retirada.

Decorridas quinze mil unidades de tempo, após muito calcorrear chão igual, sempre branco e duro e liso, encontraram o primeiro obstáculo. Era um objecto grande e alto, de cor castanha e com um formato rectangular. “Um momento. Como deparamos com um artefacto alienígena e potencialmente perigoso, vamos parar e conferenciar. Comunicarei com a base e então decidirei o que fazer em seguida” Disse o primeiro chefe ao segundo, o qual disse “Alto. Devido a um perigo potencial, vamos parar aqui” ao terceiro, que por sua vez disse “Atenção. Ninguém avance, pois parece haver perigo eminente” ao quarto, o qual se limitou a dizer “Atenção soldados. Vamos parar um pouco. Depois, quando retomarmos a marcha, serão pedidos dois voluntários.”
Era necessário tomar uma decisão. As escolhas não eram muitas. Poderiam ignorar a coisa, limitando-se a contornar o enorme artefacto ou, em alternativa, optar por escalar, subir ao cimo e obter mais informações. Como quase sempre acontece, o dilema que se colocava era entre arriscar ou ficar…

Arriscaram arriscar para, ao subir, deparar com um cenário ainda mais estranho: a superfície lisa e transparente. Ao fundo, muito ao fundo, imagens enormes alternavam e espalhavam recortes de cor. Lentamente, muito lentamente - permanecendo cada por umas boas cem unidades de tempo.
II
Tinham passado três gerações naquela terra que era estranha, sem dúvida, mas farta e generosa, por certo. O novo lar fornecia sem qualquer renitência ou hesitação o ar, a água e os alimentos. Sem encontrar quaisquer outros viventes e não conhecendo diferente vida animal (hostil ou amigável), a fixação da colónia fora fácil e bem sucedida.
III
Inês tinha chegado da escola, estava ainda de uniforme e com a sacola no ombro. Afundou-se na superfície do sofá de pele e estendeu as pernas. Á sua frente, a mesa de centro e a televisão. Na mão, o comando comprido e negro, cheio de botões pequenos. Sobre os azulejos brancos, no lugar onde deveria estar o tapete de arraiolos, arfando, o monte de pelo - pequeno Yorkshire. Premiu. “Você e Hiper-Centro, uma vida bem por dentro”. Premiu. “Agora, com Viagens-Fernandes, tudo o que sempre sonhou”. Premiu. Jardim dos amigos. Premiu. Genérico de série. Deixou ali, no canal com a série sobre o pobre diabo Paraguaio.

Deu um salto ao ouvir o barulho da chave na fechadura, sinal de pai que entraria, voltando do trabalho. Derrubou a garrafa de Coca-cola, inundando em fracções de segundo o pequeno cinzeiro de vidro e destruindo toda uma civilização que nunca teria a oportunidade de conhecer. Desde o momento inicial da descida tinham passado exactamente três minutos e vinte segundos.





segunda-feira, 12 de maio de 2008

Luz e Sombras

Texto: Denis da Cruz

- Kir, vá até Mauhaz e pegue a jóia! – grita papai da sala - E não perca tempo no caminho, pois temos poucas horas de Luz.

- Hat, você vem? – pergunto para meu djin.

- Clac, brat. Bram – é a resposta.

Pobre Hat. Ficou sem a Luz e se transformou num espírito inferior. Sua sorte foi que um marquiteto* fez este pequeno construto esferóide para transmutar o que restou de sua essência em um djin.

Coloco-o em meu ombro, ao lado dos meus cabelos ruivos. Ele se agarra e corro para fora. De fato, a Luz está indo embora e o céu já é tomado por um azul mais escuro. Em pouco tempo, as Sombras estarão por todos os lugares.

Nas ruas, as pessoas se retiram para seus huszes*. Eu continuo correndo; Hat cada vez mais firme.

Finalmente chego diante do husze de Mauhaz e sinto um arrepio em minha orelha.

- Quieto, Hat! – digo para o djin que solta faíscas e estala suas engrenagens.

- Brat, brack – responde-me.

Ele está certo em ter medo, pois a moradia de Mauhaz é realmente de dar calafrios. Giro a maçaneta que tem a forma da cabeça de um corvo.

- Missur* Mauhaz!? – chamo colocando a cabeça para dentro.

- Entre, menina Kir – diz o homem ao fundo da sala.

Ouço o “clac, brak” de vários djins espalhados pelo chão. Há de todas as formas, quadrados, esferóides, cônicos e alguns lembram insetos.

Ando de forma desajeitada entre os pequenos construtos, tentando não demonstrar meu medo. A verdade é que a Luz esverdeada deste husze me incomoda.

- Seu pai mandou o pagamento pela jóia? – pergunta o marquiteto com um sorriso desenhado por seu farto bigode. O cabelo espetado parece ter sido sugado pela tromba de um Julufan*.

- Sim – coloco um frasco de luz prateada na mesa.

Ele o puxa para si, com um pequeno riso mórbido. Avalia-me com seus olhos fundos e nariz pontudo, balançando quase até o queixo.

- Poderia ser você aqui, menina Kir. Poderia ser a sua essência aqui dentro.

- Mas não é! – digo de forma enfática, mas o medo escorre na forma de uma gota de suor em minha têmpora. – Esta essência paga a jóia?

- Ah, claro que paga, menina Kir. Sim, paga sim – ele sorri como um Iadbo* da Sombra – Vocês terão Luz por mais alguns meses. Nada mais justo; sacrificar uma essência para que vocês tenham a proteção contra a Noite.

Mauhaz alisa o frasco com suas mãos de dedos ossudos e olha dentro dele. Então, me diz em quase um sussurro:

- Quer saber se você teria um irmão ou uma irmãzinha?

- Não, eu só quero a jóia! – não consigo conter o grito.

Maldito seja este mundo atacado pelas Sombras. Dependemos da Luz para viver, ou a Escuridão nos leva. E esta Luz só os marquitetos nos fornecem, mediante a paga de essências vitais. Pais e mães, às vezes, se sacrificam para que a família possa continuar tendo as Jóias de Proteção.

Hoje eu entreguei nas mãos de Mauhaz a Essência do que seria um dos meus irmãos, gerado apenas para que pudéssemos comprar uma Jóia e termos mais alguns meses de Luz em nosso husze. Muitos usam esta estratégia para comprarem a proteção e, por isto, crianças como eu são muito raras em nosso mundo.

Mauhaz me entrega a jóia. Agradeço com uma rápida mesura e corro para a porta, tropeçando em dois ou mais djins.

Ao girar a maçaneta do corvo viro-me para traz e cuspo a Profecia para o maldito marquiteto:

- Um dia a Grande Jóia virá e entregará sua Essência por todos nós. Teremos Luz para sempre e não mais precisaremos de suas jóias.

- Sim, um dia Ela virá – diz o mago lá do fundo, com uma voz sarcástica. – Mas ainda não veio e você terá que correr bastante, menina Kir, pois as Sombras já estão caindo.

Olho assustada para fora. O céu está em um roxo quase negro. A Escuridão está descendo.

Corro pelas ruas vazias. Hat se segura o mais firme que pode.

Um grito agudo rasga os céus. As Sombras estão caindo. Fortes, densas. Tomam conta de tudo.

Aperto a jóia contra meu peito e ela emite uma tímida Luz azulada. Não será suficiente para me proteger até meu husze.

A Escuridão está por todos os lados e os Iadbos das Sombras chiam e gritam. Continuo correndo; Hat mantém um silêncio tumular em meus ombros.

Sem aviso, uma Sombra cai à minha frente. Salto para lado, mas outra criatura me cerca. Mais um e outros vários o seguem. São escuros, parecendo mantos mais negros que a própria Noite.

Estou cercada. Hat solta pequenas faíscas e a Luz da Jóia começa a ser ofuscada. Um dos iadbos me puxa pelas pernas e caio. Aponto-lhe a pedra, mas sem muita utilidade, pois ela precisa estar no Altar ou em um Cetro para emitir sua Luz.

Vou sendo sufocada pelas Sombras que me cobrem. Vejo a energia prateada saindo de meu corpo, sendo engolida pelo iadbo.

Não sei se quero ser um djin. E também não sei se quero ter minha essência totalmente absorvida pela Escuridão.

Mas algo surpreendente acontece. O iadbo que sugou minha essência solta um chiado ainda mais terrível que os anteriores. As outras criaturas se afastam dele, quando feixes de Luz saem de sua boca, irrompendo numa claridade prateada, cada vez mais forte.

Olho para minhas mãos e corpo. Estou irradiando.

- Sou Luz!?

As Sombras fogem de mim, chiando, gritando. Meu brilho estilhaça a escuridão. Reabsorvo minha essência e corro abrindo caminho na Noite; os iadbos se afastam e não ousam se aproximar.

Quando finalmente chego a meu husze e fecho a porta atrás de mim, meu pai e mãe olham atônitos. Minha Luz invade o pequeno brilho da morada.

Ofuscados, meus pais caem de joelhos:

- Kir! – diz papai com a voz trêmula – Você é a Grande Jóia da profecia.

Depois disto, ele me contaria sobre como lhes fui entregue pelos Gons*, a fim de cuidassem de mim até revelar minha Luz.

Agora, uma única parte da Profecia me inundava a mente e eu me perguntava se estaria pronta para entregar minha Essência Vital para libertar nosso mundo das Sombras. Isto, só o futuro poderá dizer.

..............................

*Marquiteto = mago arquiteto e necromancer
*Huszes = casas
*Missur = forma de tratamento para os marquitetos
*Julufan = espécie que lembra um elefante ou mastodonte
*Iadbo = Criatura de sombra.
*Gons = Antigos seres da Luz





Três Incisões no meu dia


Ele veio até mim, e disse: "Amigo, você não tem cabelos"; eu respondi, "Como você sabe, você é cego". E ele, colocando a mão na minha cabeça, "Sim, mas eu estou com a mão na sua cabeça". E eu, "Isso não é uma mão de verdade, é uma prótese". Ele foi embora resmungando, "Perdão, perdão, eu só quis iniciar uma conversa".

***

Eu disse à ela, "Se você fosse noventa anos mais nova, não precisasse de um enfermeiro carregando um tanque de oxigênio ao seu lado, não andasse nessa cadeira de rodas motorizada, acho que teríamos sido um bom casal". E também, "Ah, e claro, se sua irmã siamesa não fosse canibal. Claro". Ela riu enquanto a irmã mordiscava uma de suas orelhas.

***

Peguei o controle remoto e mudei de canal, erroneamente: nada aconteceu. Verifiquei as pilhas, mas elas estavam funcionando. Apertei os botões mais algumas vezes e nada. Fui até meu carro e peguei outro controle e tentei abrir a porta da garagem, mas ela também não abriu. Entrei em depressão e fui até meu quarto. Duas horas depois ouvi a notícia, que um ônibus espacial da NASA estava sendo afetado por ondas de rádios vindas de meu bairro. Ri muito, até saber que a trajetória tinha sido deslocada e que a espaçonave agora se dirigia ao sol.

Peguei os dois controles, na esperança de reverter isso. Apertei os botões e nada. Entrei em depressão e fui dormir. Na manhã seguinte ouvi no rádio a notícia que duas bombas nucleares haviam devastado um país de terceiro mundo.





sábado, 10 de maio de 2008

Obra do Diabo


Henry Alfred Bugalho

As manchas de sangue na cueca de Marquinhos causaram estranhamento. A mãe, ingênua, primeiro pensou que pudesse ser alguma infecção. Há anos que Joana não dava banho do filho, mas insistiu; porém, constrangido, Marquinhos, com treze anos, discordou.

— Que isto, mãe! Já sou quase um homem. Que negócio é este de querer dar banho em mim.
Joana conversou com amigas e nenhum delas sabia o que dizer, até que Flávia comentou, embaraçada:
— Uma vez, eu e meu marido fizemos por trás... Depois, por alguns dias, saiu sangue de lá.
As mulheres riram, descartaram esta hipótese, pois Marquinhos era homem e homem não dá o rabo. E, além disto, quem estaria enrabando Marquinhos?
No entanto, tal conjetura não abandonou Joana. Passou a bisbilhotar Marquinhos, quando ele estava com amigos, com quem andava no colégio. Nada que pudesse indicar um comportamento estranho. Foi por isto que Joana me procurou, para descobri quem estava comendo Marquinhos.
Obtive as mesmas conclusões dela, não eram os amigos, nem colegas de escola, Marquinhos tinha, inclusive, uma namoradinha no colégio, e dava belos amassos na garota durante o intervalo do recreio, mãos no peitinho e dentro da calcinha.
Santo o rapaz não era, e isto já era um bom começo.

Marquinhos tinha a rotina comum dum menino da idade dele: ia à escola durante o dia, jogava futebol no cair da tarde, flertava com a namoradinha à noite, jantava com a família, era coroinha nas missas de domingo.
“Tente enxergar o óbvio, Vico!”, eu dizia a mim mesmo.
Depois da missa, Marquinhos acompanhava o padre até a sacristia e desaparecia por quase duas horas.
Estaria acontecendo algo inusitado neste tempo? Além disto, caso minhas suspeitas se confirmassem, não seria nada fácil incriminar um bispo influente como Dom Francesco.
Fui à missa no domingo, e, se minha carreira de detetive não houvesse me preparado para a espera e a monotonia, certamente teria dormido com a ladainha em latim de Dom Francesco.
O culto foi encerrado e bispo e coroinha se retiraram para a sacristia. Os fiéis deixavam a igreja, enquanto eu me esgueirava por entre eles para alcançar o altar e descobrir o que se sucederia.
Na sacristia, havia uma porta que conduzia a um prédio anexo, onde se localizava a residência do bispo. Cheguei a tempo para vê-los entrar por esta porta e trancá-la.
Na semana seguinte, fui mais esperto. Dom Francesco rezava a missa, aproveitei para me infiltrar na sacristia e ingressar no alojamento do bispo, uma cela decorada com suntuosidade, ao invés do esperado ascetismo. Escondi-me no guarda-roupa, cuidando para deixar aberta uma fresta por onde assistir ao que estava por vir.
Após um quarto de hora, Dom Francesco e Marquinhos entraram na cela. Este ajudou o bispo a retirar a batina, logo percebi que o santo homem estava com o pau ereto. Fez um sinal para Marquinhos, que se ajoelhou e passou a chupar o padre.
Aquilo me fez ter engulhos, se eu não estivesse escondido, teria vomitado ali mesmo. Mas esta cena seria apenas a primeira dos absurdos que presenciei. Depois, dum baú, o bispo retirou um açoite e o entregou a Marquinhos:
— Você sabe o que fazer — Dom Francesco disse, então, virou-se para o rapaz e se preparou para ser flagelado. Marquinhos fazia o chicote estalar nas costas e nádegas do padre, que gritava, descontrolado — Mais, mais, mais!
Em seguida, Marquinhos enfiou o cabo do chicote do cu do padre, para grande deleite deste (e desespero meu). Por fim, o bispo se voltou e foi a vez dele sodomizar o garoto. As manchas de sangue na cueca estavam explicadas.
Marquinhos recebeu uma bela quantia de dinheiro do bispo e partiu. Dom Francesco adormeceu, em êxtase. Pude, enfim, deixar aquele antro.

— Dom Francesco? Não é possível! — Joana se descabelava, roendo as unhas — Você tem de estar errado... Por favor.
— Entendo que você não queira acreditar. Por isto, eu lhe direi como proceder. Somente assim você livrará seu filho deste pervertido.

No domingo, na hora do almoço, a polícia e jornalistas cercaram a residência do bispo. A polícia invadiu a cela e apanhou Dom Francesco e Marquinhos em flagrante.
Sob o flash das câmeras da imprensa, o bispo berrava, justificando-se:
— Isto foi obra do diabo! Obra do diabo!

Recordei-me de meu avô, com sua simplória sabedoria, que sempre repetia: “O diabo está em nós”.

Publicado originalmente em Covil dos Inocentes





Literatura: Arte ou Comércio?


Henry Alfred Bugalho

Esta questão, nem de longe incomum nos meios literários, é por si só enganosa, uma pergunta viciada, isto por duas razões principais: a) não devemos, necessariamente, considerar Arte e Comércio como pólos excludentes; b) não possuímos definições apodícticas sobre o que é Arte, por isto, é complicado saber se determinada produção é ou não Arte se nem ao menos sabemos o que isto significa.

Fomos condicionados a dividirmos e organizarmos o mundo em categorias e sob determinados rótulos. Como se fosse simples realizar esta tarefa, como se não existissem, geralmente, limites não muito definidos, zonas acinzentadas entre o preto e o branco, territórios difusos.

A pergunta proposta exemplifica a complicação que é patinar entre dois conceitos que, por vezes, se mesclam.

O que é Arte?
O que entendemos por Arte já passou por tantas transformações e renovações — conjunto de técnicas, entre os gregos; o que expressa o Belo, para Hegel; um juízo sem conceito, para Kant; o que causa determinadas sensações estéticas nos receptores, e assim por diante — que mal teríamos condições para definir quais delas melhor se aplica ao objeto dito artístico. Podemos dizer que esta incapacidade é o legado, e a maldição, das vanguardas modernistas do século XX. Ao tentar ampliar os limites da Arte, os modernistas eliminaram qualquer possibilidade de se falar sobre Arte.
Por isto, tentaram transferir do observado, i.e. obra de Arte, para o observador a responsabilidade sobre a existência da Arte. Obviamente que isto cria uma série de outros problemas, pois, supondo que jamais existe unanimidade de juízos estéticos, uma obra seria Arte para uns, mas não para outros, ou seja, não resolvemos nada.

O que é Comércio?
Enquanto precisamos recuar diante do conceito de Arte, ou fingirmos que o entendemos sem a necessidade de explicações, definir comércio já é bem mais fácil e inquestionável: o ato de troca de determinado produto, mercadoria, serviço ou valor por outro produto, mercadoria, serviço ou valor, com a finalidade de obter lucro.
O comércio não surge com o capitalismo, mas é radicalizado por ele e pela sociedade industrial. Seria muita ingenuidade nossa pressupor que todos os artistas da Antigüidade criavam altruisticamente, sem a necessidade de sustentar suas famílias, seus lares, pagar suas contas ou dívidas. Aliás, esta é uma tendência generalizada, de idealizar o artista como uma criatura supraterrena, que não come pão, não dorme, e que convive com os demais seres humanos apenas incidentalmente. Este mito foi criado, em parte, pelos próprios artistas, e perpetuado como uma verdade.
O que ocorreu de fato foi apenas uma mudança na conjuntura história. Anteriormente, o artista não precisava vender o resultado de seu trabalho, pelo menos não como o artista de hoje, mas atuava como um vassalo da Igreja ou da aristocracia. Eram remunerados e sustentados por seu senhor e, deste modo, terminavam por vender, mesmo que dissimuladamente, seus serviços a certa classe social.

O Advento do Romance Moderno
No entanto, se acompanharmos o percurso da Literatura Ocidental, constataremos que o surgimento do romance (novel) na Inglaterra anda de braços dados com a dominação mercantilista e com o comércio. Por exemplo, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe: o protagonista é um rapaz que abomina o simples pensamento de se tornar um indivíduo de classe média, por isto, decide viajar o mundo como mercador, acumular riquezas, e voltar para sua terra numa nova posição social. O naufrágio e os anos de isolamento numa ilha são apenas um revés para o Robinson Crusoé. Ele é resgatado, mas nem assim desiste de seu intento, retorna ao mar para cumprir sua meta.
O romance é a própria expressão da nova relação entre o homem e o capital, a busca frenética pela aquisição de bens. E Robinson Crusoé foi, por sua vez, um livro boas vendas em seu tempo.
Este novo tipo de romance, que se afastou dos princípios e da temática do romance de cavalaria, era uma literatura voltada para a classe burguesa ascendente. É a este leitor ávido por capital, mas também sequioso por adquirir bens culturais, de modo a se assemelhar à decadente aristocracia, que obras como as de autores ingleses — Defoe, Henry Fielding, Walter Scott, Dickens — , ou na França, de Alexandre Dumas, Balzac, Flaubert, Vitor Hugo, se destinam.
Não nos iludamos, tais autores, não mais sob proteção dum senhor feudal, ou de algum outro tipo de soberano aristocrata, tinham de ganhar seu sustento à base da venda de seu trabalho, literário ou não. A proliferação dos folhetins foi a oportunidade, para muitos, de adquirir fama e fortuna, ou seja, na gênese do romance moderno está vinculada a capitalização e a compreensão do livro enquanto produto.

A Intersecção
Agora, suponhamos que entendamos o que seja Arte e tentemos relacioná-la com o comércio.
Muitos escritores tendem a pensar estes dois conceitos em oposição, ou melhor dizendo, qualitativamente.
O que vende é popular; o popular é simplório; portanto, o que vende é simplório.
Temos um juízo de valor que atribuir qualidade ao produto (cultural) destinado às elites, aos poucos capazes de compreendê-lo. A questão nem chega a ser se um é mercadoria e outro não; ambos, tanto a obra de arte do populacho, quando a da elite são, sem dúvida, mercadorias, posto que são produzidas por instâncias que visam lucro e que possuem um valor de mercado.
Para ser mais claro, o livro possui um preço e uma valoração qualitativa. O preço é constante, mas a qualidade varia de acordo com os exemplares vendidos, quanto maior a vendagem, mais simplória, mais adequada à mente do leitor do populacho é a obra, isto se radicalizássemos esta perspectiva.
Mas logo surgem as inúmeras, incontáveis, exceções, de autores canônicos que, mesmo após séculos, continuam vendendo bem — o Google realizou uma pesquisa recentemente sobre quais eram as obras mais procuradas na internet, a listagem obtida nem de longe coincidia com as listagens de best-sellers veiculadas pela mídia, porém este resultado foi abafado pelas grandes editoras; outro caso é das editoras especializadas em publicação de obras canônicas, como a Penguin Books, que em suas estatísticas apresentam dados assombrosos de autores clássicos que possuem vendagem constante na casa das centenas de milhares de exemplares, muito mais, às vezes, do que autores da moda —, ou de autores contemporâneos reconhecidos pela crítica, como ganhadores de Nobel, ou outros prêmios importantes.
Quer dizer então que as obras de tais autores teriam seu valor qualitativo diminuído por causa das estatísticas de vendas?


Talvez fosse muito mais fácil pensarmos numa dualidade, em dois conjuntos — Literatura e Comércio.
No conjunto Literatura incluiríamos tudo aquilo que pertence ao domínio das Letras, obras canônicas e atuais, boas ou ruins, ficção e não-ficção; no conjunto Comércio teríamos tudo aquilo que pode ser comercializado, desde TVs, geladeiras, canetas e passando por livros.
Nem tudo o que há no conjunto Literatura é comercializável, nem tudo que há no conjunto Comércio é Literatura, porém há uma intersecção nestes conjuntos, uma área onde encontramos obras literárias que possuem potencial mercadológico — canônicas ou não, ficcionais ou não, bem escritas ou não.

Considerações Finais

Parece ser da natureza humana mistificar a realidade, querer pintá-la com cores que não lhe dizem respeito. É esta a impressão que tenho quando se fala em Arte, na sublimidade de Belo, na intocabilidade do artista.
Escrever é um ofício como outro qualquer e o escritor é um profissional como outro qualquer. É óbvio que, como em toda atividade criativa, paira um aura de fascínio sobre a gênese da criação, a inspiração inicial, mas, no fim das contas, o resultado esta em igual relação com o resultado de várias outras ocupações.
Então, tentando responder à mal concebida pergunta inicial: “Literatura: Arte ou Comércio?”
Os dois, ou nenhum, ou apenas um dos dois; no fundo, isto nem faz muita diferença mesmo.





quarta-feira, 7 de maio de 2008

Laboratório Poético II

Preciosa prece

Se todo meu pesar pelo passado
Passasse para sempre para longe
Parasse para ser o que foi hoje
No ontem que ficou desmantelado.

Desvios no caminho são sinceros
Cincerros que secretam confidências.
Confesso que carregam minhas ânsias
Anseiam meus encargos mais secretos.

Seria mais um dia sem surpresas
Surpresos estariam os meus dias
Se fossem pois passados sem sossego.

Cansaço que se cesse esse serviço
Fracasso esse só me esvazia
O apreço dessa preciosa prece.






Conseqüências

O homem, frustrado,
Bateu na mulher, nas crianças e no cachorro.
A mulher, revoltada,
Bateu nas crianças e no cachorro.
As crianças, impotentes,
Bateram no cachorro.

O carteiro, com a calça rasgada,
Teve de ser vacinado contra a raiva.





O ser

Ser não é mais o que era.
É parecer o que não será.
Ser é mais que ser.
Ser é mais que o ser.
É sempre um não a si,
E sempre um sim ao não.
É um eu que não sabe ser-se.

Tudo o que se pode ser,
Talvez, de uma só vez.
É o ser que é.

Esse eu não quero ser.
Quero, não sendo, ser.
Enternecer-me pelos seres.
Ser eu, não eles.





O Caso Jersey

Volmar Camargo Junior




Meu nome é Rafaela M. Sou médica veterinária, sócia-proprietária de uma petshop e clínica de pequenos animais, junto com meu marido Breno S, jornalista e fotógrafo. A história de como nasceu essa empresa é bastante curiosa, e pode parecer até um pouco absurda. Para quem quiser conferir, temos ainda todas as provas de que tudo o que vou contar é a mais absoluta verdade.

Foi em 1995, no mês de outubro. Lembro que o assunto do dia era aquele pastor que chutou uma imagem de Nossa Senhora em um programa de TV. Eu estava no terceiro semestre da faculdade. Breno, a esta época, estava quase no final do curso de Jornalismo. Fazia um estágio no Diário Pereiropolitano para o qual escrevia como “freela” desde o segundo grau – essas coisas de padrinhos. Em todo caso, ele já era bastante conhecido por parecer mais um detetive que um repórter. Nós ainda não namorávamos; eu, tremenda CDF, bolsista, certinha. Ele, popular na universidade, na redação, na rua, no diretório acadêmico. Mas morávamos no mesmo prédio, e éramos muito amigos.

Aconteceu por aqueles dias um evento curioso, um crime insolúvel para o qual a polícia não apresentava conclusões – o tipo de caso preferido do Breno. O agricultor Ari F. era um funcionário público aposentado (ou um político, não lembro bem) que tinha uma propriedade na zona rural de Pereirópolis. Era uma fazendinha tão bonita e bem cuidada que parecia de brinquedo. Sua generosa aposentadoria era toda investida naquele lugar. O que mais lhe dava prazer adquirir eram os animais. Não eram bichos quaisquer, mas verdadeiros campeões de suas raças. Eram ovelhas, galinhas, cavalos, canários, cães e gatos, uma verdadeira Arca de Noé. De todos estes, seu xodó era Princesa, uma vaquinha Jersey que – segundo os relatos dos concursos que ela venceu – chegou a dar cinqüenta litros de leite em um único dia. Um luxo de vaca.

Naquela sexta-feira treze, o seu Ari registrou a ocorrência logo de manhã na D.P. de Pereirópolis: Princesa fora encontrada morta com um tiro na cabeça. O Inspetor Silva acompanharia o inconsolável proprietário da vítima até sua idílica fazenda. O fotógrafo que prestava serviço para a Delegacia – para o total desgosto do policial – era o Breno.

Foi difícil chegar até a fazenda por causa da estrada, que virou um barro só com a chuva da véspera. A cena do crime era a seguinte: a vaquinha estava caída de lado dentro do curral, com as pernas estendidas. Havia um buraco escuro na testa e uma poça de sangue no chão, ao seu redor. Fora isso, não havia nenhum outro indício da autoria, nenhuma marca de pneu, nenhuma pegada. Nada. Breno começou a reportagem ali mesmo. Seu Ari não se importou, mostrando-se muito solícito às suas perguntas – diferente de Inspetor Silva, que o achava um estorvo.

Segundo o dono da propriedade, não aconteceu nada extraordinário, além da forte chuva de granizo e a tempestade de raios, entre as onze a meia-noite. O disparo só pode ter acontecido nesse horário, porque o barulho das trovoadas certamente abafaram o estouro da arma.

A primeira coisa que o jovem jornalista lembrou foi o fato de, na área rural, os moradores terem armas de fogo e cães de guarda. As armas de seu Ari, um revólver .38 e uma espingarda calibre .12, não eram usadas havia muito tempo. Mostrou-as: estavam empoeiradas, guardadas na parte mais alta de um armário. Quanto aos cachorros, estes deviam ter contraído alguma virose, pois desde o começo da semana passavam a maior parte do tempo dormindo. Seria tristeza demais para ele se seus cães também morressem.

Inspetor Silva pediu para falar com as outras pessoas da casa, em caráter informal, uma vez que aquilo não constituía um depoimento. Na Granja Itália viviam Seu Ari, sua esposa Teresinha, o filho mais velho Tomás, e a caçula Tatiana.

A esposa não pareceu nada abalada com a morte da vaca Princesa. Respondeu às perguntas sem titubear, mas acrescentou pouco ao que já havia sido dito pelo marido. Disse apenas que só conseguiu dormir depois que a chuva terminou. Era uma mulher bonitona, muito bem tratada, com as unhas e os cabelos arrumados. Pelo que aparentava, Dona Teresinha não passava nem perto de uma estrebaria. E, provavelmente, seria ainda menos provável que empunhasse uma arma para matar uma vaca a sangue frio.

O rapaz, por outro lado, era bem mais rude. Suas respostas eram monossilábicas e algumas questões sequer dignou-se a responder. Por fim, já irritado, saiu da sala batendo a porta, falando em alto e em bom som “Quem se importa com essa vaca de merda?”.

A moça estava em estado de choque. A despeito dos cuidados que a mãe teve para tentar acalma-la, e talvez silenciá-la, Tatiana tinha certeza de que o assassinato de Princesa só poderia ser um aviso de seu ex-namorado. O tal era o estereótipo do rapaz rico e mimado, herdeiro de uma fazenda gigantesca (que, muito apropriadamente, os jovens menos abastados chamam agro-boy). Aquilo seria um aviso, ou uma ameaça a ela e à família. Esta foi a declaração que pareceu a mais plausível ao policial. Breno preferiu não apressar seu julgamento.

Seu Ari estava bastante emocionado. Já se aproximava do meio-dia, quando recebeu uma ligação que estava esperando: um comerciante local aceitou pagar pela carne da premiada vaca uma cifra nada desanimadora. Seu Ari queria mesmo era enterrar a pobrezinha à beira do açude de que ela tanto gostava.

Por fim, Silva questionou se a família tinha algum outro suspeito além do ex-namorado da caçula. O homem afirmou que não cultivava inimizade com ninguém. Todos na cidade sabiam disso: Seu Ari era (e ainda é) uma doce criatura. Breno, enquanto o policial fazia as últimas perguntas, observou discretamente os outros familiares. Quando o dono da casa asseverou não possuir nenhum inimigo, notou que sua esposa ficou com o olhar distante, voltado para o chão, dando um longo suspiro.

Assim que chegaram de volta na cidade, Breno correu para seu laboratório fotográfico. Silva dispensou-o (proibiu-o) de averiguar o suspeito. Na verdade, Breno estava com uma outra idéia, que não o abandonou desde a hora que tirou as fotografias. Seu laboratório era o mais artesanal possível – que ainda hoje ele conserva com muito carinho, apesar de já ter equipamento bem mais sofisticado. O fato é que as fotos só estariam prontas em algumas horas. Neste intervalo, o fotógrafo deu lugar ao detetive-amador.

É nesse ponto que eu entro na história. Eu costumava ser, de certa forma, a mãe dele. Ou, no mínimo, a pessoa que o alimentava. Breno é o tipo de pessoa totalmente inepta na cozinha, capaz de cortar a própria jugular com uma faca sem ponta tentando fazer um sanduíche. Sendo sua vizinha de porta, seu apartamento era, o mais das vezes, um dormitório. Isso quando ele não se passava na hora – ou no álcool – e dormia no meu sofá. Estava “vesgo” de fome, e só então deu-se conta que eram quase cinco da tarde e ele não havia comido nada. No tempo em que preparei o lanche e enquanto o mesmo era devorado, Breno contou-me tudo o que já contei a vocês. E, em seguida, quis saber algumas coisas sobre minha área.

“Dá para matar uma vaca de quase uma tonelada só com um tiro”, ele perguntou.
“Sim. Há alguns abatedouros que preferem dar um tiro com uma arma de alta-pressão para que o animal não fique estressado”, respondi, quase entendendo onde ele queria chegar.
“Pois, eu tenho uma suspeita de quem seja o autor”
“Quem?”
Breno me olhou bem nos olhos, e assim ficou por alguns segundos intermináveis, com uma expressão enigmática, indecifrável. Ele riu com o canto da boca. Da cadeira onde estava, pulou na direção do telefone. Discou consultando uma agendinha minúscula.

“Alô, Seu Ari. Ah... Tomas. Desculpe, as vozes são parecidas. Aqui é o Breno, o fotógrafo da pol... sim, isso. Era eu mesmo. Não... não..., não é isso. Olhe, eu tenho uma amiga que é veterinária. Ela disse que não se importaria de dar uma olhada nos cachorros de vocês. Quando? Domingo, pela manhã? Claro, sem problemas. Ah... não, não. Ela não vai cobrar nada, não. Até domingo, então. Um abraço.”

Era óbvio que eu já havia sido envolvida nos planos dele. Isso não era raro. Teve uma vez que ele pediu para eu fazer um corte com um bisturi em sua perna só para ele ser atendido no pronto-socorro, e fotografar os pacientes sendo atendidos no corredor. O sábado passou muito rapidamente, e eu não o vi o dia inteiro. No domingo, saímos cedo de casa. Fomos no seu Fusca 76 até a sede da Granja Itália. Dentro do porta-luvas encontrei um pacotinho da farmácia, contendo seringas, luvas descartáveis, tubos plásticos para coleta de sangue, daqueles de laboratório de análises clínicas. Ele me olhou e riu

“Ué, temos que prestar um serviço de qualidade, doutora Rafa!”

Fomos conversando amenidades. O pastor que chutava santas fora totalmente esquecido; pelas esquinas, só se falava na morte da Princesa.

“Você lembra de uma notícia, há uns cinco anos atrás, mais ou menos depois do impeachment do Collor, que o governador do estado viria para um almoço com os criadores daqui da cidade?” ele perguntou enquanto sintonizava uma estação de rádio.
“Não muito bem. Por quê?”
“Lembra onde foi que ele se hospedou?”
“Ah, sim. Lembro sim. Ele ficou justamente na Granja Itália, porque o Seu Ari era seu amigo.”
“Exato. E lembra também o que aconteceu depois dessa visita?”
“Cara, não recordo. Eu sempre fui desligada das notícias...”
“Pois começaram a construir o Frigorífico Pereirópolis S.A. pouco tempo depois. Um monte de gente conseguiu emprego, e os granjeiros da região só tiveram lucro com isso. Muitos pequenos empresários e comerciantes começaram a depender do Frigorífico.”
“Sim, e daí? Não to conseguindo entender.”
“Calma... já chego lá. Teve bastante gente que prosperou com a vinda dessa empresa. Mas teve gente que não gostou nem um pouco disso.”
“Quem?”

Não deu tempo de ele terminar. Havíamos chegado à entrada da granja.

Nosso anfitrião foi Tomas, que ficou em casa. Os pais e a irmã foram à missa. Diferente dos modos que teve quando recebeu Breno e o Inspetor Silva na sexta, o rapaz tratou-me com muita distinção e cordialidade. Muito educado, conduziu-nos até o canil.

O canil era espetacular, um primor de organização do espaço e limpeza. Nem parecia que cães moravam ali – talvez uma limpeza recente feita por Tomas, mas, mesmo assim, o espaço era um luxo. Coisa de revista. Havia ali sete cães, enormes. Seu ari, pelo visto, apreciava os molossos: um casal de Rottweillers, um Dogue Alemão, um Mastiff e uma cadela Boxer com dois filhotes. Fiquei consternada com aqueles cachorrões, dormindo pelos cantos. Bem, eu sabia que sonolência nos cães é, de fato, sintoma de uma virose até bem comum, a parvovirose – um tipo de gastro-enterite. Comecei a especular

“O que eles costumam comer, Tomas?”
“Ah, essa ração aqui”, respondeu ele, pegando o saco quase vazio em uma guarita de tijolos, onde ficavam os apetrechos do canil (que capricho!). Era uma ração tradicional, até um pouco cara por causa da marca. Olhei a data de validade, os componentes... tudo normal.
“E é você mesmo que compra a comida deles?”
“Normalmente o pai ou a mãe, não sei. Esse mês foi a mãe, porque o pai estava em Esteio com a Princesa, numa mostra internacional de gado leiteiro.”
“Outro prêmio?” interveio o Breno, que eu já havia até esquecido.
“Ah, sim.” Respondeu o rapaz, sem entusiasmo.
“E quem trata os cachorros?” perguntou outra vez o jornalista-detetive.
“Só eu.” devolveu seco. Deu para perceber que os dois exemplares machos da nossa espécie não se davam bem desde que se conheceram. A minha ficha demorou a cair que, na presença de um exemplar fêmea, eles tendem a competir por atenção. Nesse caso, a fêmea era eu. Que burra! Nem notei.

Fiz a coleta de sangue, de fezes, até da ração dos cães, exatamente como Breno queria. Voltamos para a cidade. No caminho, notei que ele estava mais calado que o costumeiro, com a cara fechada, cenho cerrado. Tentei puxar conversa. Estava emburrado. Deixei-o quieto, porque era provável que ficasse ainda mais aborrecido.

Perto de casa, já estava mais calmo. Acho que ele tinha a cabeça tão ocupada pensando nas mil e uma possibilidades de aplicação de suas teorias que acabou esquecendo que estava bravo comigo. Quando paramos, ele foi diretamente para o orelhão defronte ao edifício. Não pude ouvir a conversa, mas pela expressão que ele fez, parece que sua conversa mole teve efeito. Voltou rapidamente para o carro, perguntando

“Vai fazer o que hoje, doutora?”
“Se você deixar, vou continuar escrevendo meu artigo.”
“Então, você vai fazer uma extra-curricular hoje. Vamos pro laboratório da Élida.”
“O quê? Hoje é domingo, esqueceu?”
“Pois domingo é o dia perfeito para cobrar uns favores”, disse ele, arrancando o Volkswagen rumo ao centro.

Sim, a Élida, dona do laboratório, devia um favor para Breno, sobre o que preferi nem questionar. Entregamos o material, sem dizer que era de cachorro. Ruim foi explicar a ração. A moça deu a previsão de que o resultado só sairia na manhã seguinte. O trabalho de conter a ansiedade evidente de meu amigo, agora, seria meu. Em casa, começamos a divagar sobre os suspeitos. A partir do que ele havia me contado, Breno quis que eu fizesse uma análise de quem eu achava ser o culpado. Enquanto eu falava, fiz algumas anotações em um caderno. Ele não interferiu em nada.


O ex-namorado de Tatiana era minha principal suspeita. Ameaçar a família tirando a vida do bicho mais querido do Seu Ari pode ser uma boa forma de intimidação. Eu concordo com o Silva nesse aspecto: acho que ele, o agro-boy, é o número um.

Tomas tinha ciúme da vaca. Ele teria ciúme dos outros bichos também, e pelo que parece, ele gosta apenas dos cães. Teria sido um crime passional? Será que os outros bichos não estavam sob uma ameaça, com o assassino dentro de casa?

Dona Teresinha pode tê-lo feito – ou mandado fazer, o que é mais provável. Ela parece ser bem materialista. Afinal, uma vaca que devia custar algumas dezenas de milhares de reais – ou dólares, não entendia bem a cotação das vacas – certamente renderia, com sua morte, uma boa grana do seguro.

Seu Ari também teria motivos para atirar em Princesa. Talvez os mesmos de Dona Teresinha. Entretanto, acho que ele era apaixonado pela mimosa. Duvido que ele tenha cometido o bovicídio.

Por último eu coloco a Tatiana. Ela era a que, a meu ver, tinha menos motivos para atirar na Jersey.


Breno ouviu-me pacientemente, silenciosamente. E assim ficou por mais alguns minutos, como se estivesse ruminando o que eu havia dito.
“Bem...” disse ele, me deixando apreensiva. “Há algumas coisas que eu descobri, e outras que eu fiz algumas ligações que você não poderia ter levado em conta porque não tinha conhecimento”.
“É mesmo? E sobre quem recai sua suspeita?” eu perguntei, fingindo estar ofendida por não ter minha excelente capacidade dedutiva valorizada.
“Quer saber mesmo? Acho que nenhuma dessas pessoas que você citou matou a Princesa.”
“Ué? Há mais alguém envolvido?”
“Vamos esperar o resultado dos exames. Amanhã eu conto quem é o culpado.”

Fiquei morrendo de curiosidade. Pra falar a verdade, fiquei até furiosa porque, no fim das contas, Breno conseguiu conquistar meu interesse para esse caso. Já estava ficando tarde, eu tinha sono, os trabalhos da faculdade ainda me esperavam. Mandei-o pra casa. Mesmo que ficasse a uma parede de distância, eu precisava ficar um pouco sozinha. Quando fui fechar a porta, como se fosse a coisa mais natural do mundo, Breno me beijou. Assim, sem mais nem menos. Foi nesse exato instante que começamos a namorar. Acabei não retomando meu artigo, e o Breno também não foi pro apartamento dele.


Era cedinho da manhã de segunda. Nas segundas eu costumava dormir um pouco mais, já que minhas aulas eram somente à tarde. Nem percebi que ele havia saído e já estava de volta. Estava com as mãos para trás.

“Nós temos o nosso culpado”, disse, entregando-me dois envelopes, um branco e um pardo.

No primeiro estava o resultado dos exames de sangue, de fezes, e o da ração (!) do cachorro. Havia uma substância química incomum. Ou melhor, comum apenas em pessoas que estão sob efeito de sedativos.

“Isso quer dizer que...”
“... quer dizer que os cachorros não estão doentes, Rafa. Estão dopados!”
“E então? Alguém misturou anestésico na comida deles. Mas só pode ter sido alguém da família, certo?”
“Não necessariamente. Você se lembra que eu comentei sobre um cara que não gostou nada da vinda do frigorífico aqui pra Pereirópolis? Esse cara é um certo Doutor Orlando.”
“Doutor Orlando... nunca ouvi falar”
“Deve ter ouvido sim. Pois esse Seu Orlando era podre de rico antes do Frigorífico instalar-se aqui. Dizem que ele ganhava rios de dinheiro vendendo uma ração para bovinos que só a empresa dele tinha a fórmula. Quando veio a empresa grande, e que começaram a fazer uma inspeção pra valer no rebanho bovino local, acabou-se descobrindo que a ração que o tal Doutor Orlando produzia tinha uns metais pesados que podiam causar câncer em quem consumia a carne proveniente dos bois que se alimentavam dela. Não precisa nem dizer que a fabriqueta do Doutor faliu. Com isso, ele tinha mais de um motivo para detestar o Seu Ari, já que todo mundo diz que o Frigorífico só veio para cá porque o governador, amigo dele, facilitou as coisas. Hoje em dia, o homem tem um mini-mercado, perto da praça do hospital.”
“Que história mais maluca, Breno. Mas e aí? Você está achando que esse Doutor Orlando foi quem matou a vaquinha.”
“Quer mais algumas evidências? Os cachorros da fazenda não estavam contaminados por virose nenhuma, mas dopados, anestesiados por causa de uma substância tranqüilizante que estava onde? Na ração que eles comiam. E o tal Seu Orlando pode, perfeitamente, ter fabricado a tal ração.”
“Certo, mas... e como é que ela chegou lá?”
“Como? Quem foi que comprou a ração para os cachorros da Granja Itália nesse último mês?”
“Segundo o Tomas, foi a mãe dele, Dona Teresinha. E o que isso tem demais?”
“Aí está o coice da vaca! Você lembra que eu achei muito estranha a reação da Dona Teresinha quando o Seu Ari falou para o Inspetor Silva que não tinha inimigos?”
“Lembro, sim. Você disse que ela estava com o olhar perdido, deu um suspiro profundo e tudo mais.”
“Pois você não sabe o que eu descobri. Sábado eu fui visitar a minha mãe, que tem uma memória de elefante...”
“Foi por isso que eu não te vi o dia inteiro.”
“Pois então. A mãe lembra direitinho de um “bafafá” que aconteceu aqui em Pereirópolis, quando ainda se chamava Vila da Pereira, distrito de Araucária. Pois o Seu Ari veio trabalhar aqui, representando algum órgão do governo – ela acha que ele era militar. E ele já estava ficando rico, e comprou as terras onde hoje é a Granja Itália. E foi nessa época que ele conheceu a Teresinha, que veio a se casar com ele e dar-lhe um casal de filhos.”
“Que bonitinho... ta. E daí?”
“E daí que a Dona Teresinha, na época, era noiva de outro cara. Chuta quem era o cara?”
“Não! O Doutor Orlando?”
“Sim. O Doutor Orlando! A mãe diz que eles nunca deixaram de se ver, e que, volta e meia, quando o Seu Ari viajava pras exposições de sua bicharada, ela ia até o mercadinho do Orlando para vê-lo. É provável que a ração que deixou os cachorros meio grogues foi comprada lá.”
“Mas é claro! Ele tinha todos os motivos pra se vingar do Seu Ari! Foi lá e matou a Princesa, a vaca premiada do Seu Ari! Breno, meu Deus, você é um gênio!”
“Ei. Eu nunca disse que o cara matou a vaca.”
“Hein? Agora é que eu não entendi mais nada!”
“Olha isso”

E deu-me o segundo envelope. Dentro dele, havia as fotos que ele tirou da cena do crime. Princesa, de língua de fora, com a cabeça ensangüentada e um buraco no meio da testa. Uma poça vermelha ao redor da pobre vaquinha Jersey. Outras fotos mostravam o lombo da vaca, o curral e os arredores. E duas ampliações enormes. A primeira era da bunda da vaca. A segunda, do furo feito pela bala.

“Qual é, Breno” eu reclamei “precisava ampliar essa? Que foto mais feia...”
“Rafa. Você conhece isso muito melhor do que eu. É um animal morto”
“Mas isso é o tiro na cabeça da pobrezinha.”
“Olha melhor.” disse, confiante. E eu olhei. Prestando atenção, dava para perceber que aquele buraco de bala era, de fato, muito esquisito. Então eu percebi o quanto aquilo era absurdamente ridículo. E gritei, com o dedo em riste para a foto “Rá! É maquiagem! Isso aqui é maquiagem”
“Agora olha a foto da bunda da Princesa” ele falou, pondo a outra fotografia diante de mim. Perto das ancas, no lugar bem escolhido, havia dois pequenos pontos vermelhos sob o pelo.
“Então isso quer dizer que...”
“Quer dizer que a Princesa não foi morta. Isso foi um golpe. Ela recebeu duas injeções, de algum anestésico muito potente, ou uma dose muito alta. A vaquinha estava tão dopada que pareceu morta. Ela não foi assassinada, Rafa. Foi roubada debaixo dos bigodes do Seu Ari.”

Eu fiquei estática. Abismada. Boquiaberta. Afônica. Tudo fazia sentido. Breno desvendou o quebra-cabeças em três dias, coisa que poderia levar anos sem nunca ter uma solução pela polícia.

Levamos essas conclusões para a polícia, ou melhor, para o Inspetor Silva, além dos resultados dos exames, as fotos – que ele mesmo não havia olhado com a atenção devida. Depois disso, bastou uma das “conversas informais” do Silva para fazer o Seu Orlando cair na armadilha. Quando o processo contra ele foi aberto, e suas contas bancárias investigadas, descobriu-se que Princesa havia sido vendida por ele para um fazendeiro uruguaio, tão dado a falcatruas quanto Doutor Orlando, por aproximadamente quinze mil reais. Seu Ari não teve dúvidas. Mandou buscar sua Jersey campeã de volta. O caso teve alguma notoriedade no estado, e acabou, depois, virando piada em Pereirópolis. Doutor Orlando acabou condenado por quase uma dezena de crimes contra o patrimônio e a saúde pública, sendo obrigado a pagar uma indenização por danos materiais e morais ao proprietário da vaca.

A propósito, foi com essa indenização que o Seu Ari montou a clínica e deu-a de presente para mim e o Breno. O nome, obviamente, foi ele quem escolheu: Clínica Veterinária Princesa.





terça-feira, 6 de maio de 2008

Autor de Língua Portuguesa



Olavo Bilac
por Marcia Szajnbok

Muitos dos que, como eu, cresceram no Brasil durante o período da ditadura militar, associaram Olavo Bilac apenas à autoria da letra do Hino à Bandeira, compulsoriamente cantado repetidas vezes nos páteos escolares. Ou a versos de exaltação nacional, espuriamente declamados em meio ao típico “Brasil: ame-o ou deixe-o”, no pior cenário possível dos ideais ufanistas. Além disso, os parnasianos foram um dos alvos preferidos do movimento modernista no Brasil. E, em tempos de censura radical, tudo o que soa libertário torna-se rapidamente bandeira. Assim, declaramo-nos, muitos da nossa geração, com cinquenta anos de atraso, também anti-parnasianos. Há nisso alguma injustiça: primeiro porque o nacionalismo republicano de Bilac não tinha, de fato, nenhuma relação com os generais da ditadura; segundo, porque há uma vasta parcela de sua obra poética dedicada aos temas líricos, e é uma pena que esse aspecto tenha ficado um tanto eclipsado pelo uso político que se fez, em pleno século XX, de seu patriotismo abolicionista próprio do final do século XIX. Segue aqui uma pequena amostra desse lirismo. Que ele sirva de estímulo para que se busque mais!


Ouvir Estrelas


"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto

E abro as janelas, pálido de espanto...


E conversamos toda a noite, enquanto

A via-láctea, como um pálio aberto,

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,

Inda as procuro pelo céu deserto.


Direis agora: "Tresloucado amigo!

Que conversas com elas? Que sentido

Tem o que dizem, quando estão contigo?"


E eu vos direi: "Amai para entendê-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas."


Delírio


Nua, mas para o amor não cabe o pejo

Na minha a sua boca eu comprimia.

E, em frêmitos carnais, ela dizia:

– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!


Na inconsciência bruta do meu desejo

Fremente, a minha boca obedecia,

E os seus seios, tão rígidos mordia,

Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.


Em suspiros de gozos infinitos

Disse-me ela, ainda quase em grito:

– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.


No seu ventre pousei a minha boca,

– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,

Moralistas, perdoai! Obedeci...



Ciclo


Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,

Promessa ardente, berço e liminar:

A árvore pulsa, no primeiro assomo

Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!


Dia. A flor - o noivado e o beijo, como

Em perfumes um tálamo e um altar:

A árvore abre-se em riso, espera o pomo,

E canta à voz dos pássaros... Amar!


Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;

A árvore maternal levanta o fruto,

A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!



Noite. Oh! Saudade!... A dolorosa rama

Da árvore aflita pelo chão derrama

As folhas, como lágrimas... Lembrar!


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac nasceu no Rio de Janeiro em 16 de dezembro de 1865. Após os estudos primários e secundários, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro e, posterirormente, no curso de Direito em São Paulo, não concluindo nenhum deles. Voltou ao Rio e passou a dedicar-se ao jornalismo e à literatura. Foi um dos mais ardorosos propagandistas da abolição, estreitamente ligado a José do Patrocínio. Escreveu em vários jornais, , substituiu Machado de Assis na seção "Semana" da Gazeta de Notícias, exerceu vários cargos públicos no Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da Liga da Defesa Nacional, tendo lutado pelo serviço militar obrigatório, que considerava uma forma de combate ao analfabetismo. Foi eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros pela revista
Fon-Fon em 1913. Fundindo o Parnasianismo francês e a tradição lusitana, Olavo Bilac deu preferência às formas fixas do lirismo, especialmente ao soneto. Foi um dos mais notáveis poetas brasileiros, prosador exímio e orador primoroso, participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, na cadeira 15, cujo patrono é Gonçalves Dias. Olavo Bilac morreu no Rio de Janeiro em 28 de dezembro de 1918.
Fonte dos dados biográficos:
http://www.academia.org.br/abl