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segunda-feira, 25 de março de 2019

A gruta da moura encantada



No tempo de D. Dinis, todos os mouros ligados ao controlo militar e administrativo do território tinham já sido expulsos das terras do Algarve. Mantinham-se, no entanto, as populações há muito arabizadas e mais ligadas ao solo e ao mar da região do que às elites do califado.
Ali Agat, por esses tempos apanhador de medronho na serra de Estoi, que depois vendia nas povoações ribeirinhas, andava certo dia embrenhado na mata arbustiva, atarefado a apanhar os frutos maduros e a encher com eles uma cesta de vime. Os demasiado maduros e os já bicados pelos pássaros iam-lhe enganando a fome. Quando o calor apertou, recolheu-se a uma sombra cerrada e foi roendo o pão de grão de bico que tinha trazido de casa. Depois, deitou-se a dormir debaixo de uma alfarrobeira de copa densa. Quando acordou, manteve-se ainda um pouco de costas no chão forrado de folhagem, a saborear o fresco, de olhar perdido no interior da copa da árvore, atravessada aqui e ali pelos raios de sol de princípio da tarde.
Viu, então, uma alfarroba de brilhos dourados e maior do que as outras. Apanhou-a e logo suspeitou, pelo peso e pelo brilho, que devia ser de ouro. Foi tomado de enorme orgulho e alegria. Possuir uma alfarroba de ouro era algo que nunca se atrevera a desejar. Sentiu-lhe o peso, admirou-lhe os reflexos, a curvatura elegante. Durante um bocado, brincou com ela como uma criança que encontrou um brinquedo novo. Quando ficou satisfeito, meteu-a no bolso da jelaba e apressou-se a voltar para casa, para a mostrar à mulher. Andou, andou toda a tarde, mas a sua aldeia ficava longe e a alfarroba cada vez lhe pesava mais no bolso. A certa altura, sem poder mais, resolveu arrecadá-la na loca de uma árvore. Viria buscá-la depois. Pôs-se à procura de uma apropriada e foi então que uma cabra que por ali andava a pastar o interpelou:
Dá-me essa alfarroba, Ali Agat! É do meu pai; essa e muitas outras alfarrobas de ouro que deixou à minha guarda, quando teve de fugir para Granada.
Perante a atitude surpreendida dele, a cabra explicou-se:
Eu sou uma princesa moura, filha do emir de Al-Ulya. Como teve de fugir à pressa, quando o rei cristão entrou na nossa cidade, lançou-me um encanto, para eu ficar sempre de guarda aos seus tesouros.
Como sei que não me estás a mentir? — respondeu Ali Agat, desconfiado.
Vem comigo e verás! — disse a cabra, chamando-o para uma vereda estreita.
Ali Agat seguiu a cabra por muito tempo. Depois de serpentearem pela vereda da serra, chegaram à noitinha à entrada de uma gruta, meio escondida por baixo de um grande arbusto.
Baixa a cabeça e entra! — comandou ela, mas Ali Agat não queria entrar na gruta da cabra, sem saber o que viria depois. — Lá dentro vais descobrir tesouros como nunca conheceste — insistiu ela.
Ainda desconfiado, o algarvio acabou por entrar. A gruta era espaçosa e profunda e o chão estava ladrilhado de alfarrobas de ouro.
Uma por cada súbdito do meu pai — esclareceu a cabra —, mas ele fugiu há tanto tempo que já não deve vir buscar-me, nem livrar-me deste encanto. Só tu podes salvar-me. Basta dares-me um beijo. Quando mo deres, quebra-se o encanto e eu volto a ser a jovem princesa que era. Para isso, estou disposta a dar-te todo este ouro. Mas, com uma condição: tens de retirá-lo da gruta antes do nascer da lua.
Ali Agat, muito relutante, mas pensando como ficaria imensamente rico só por beijar uma cabra, acabou por aceitar. Apenas lhe deu um beijo na boca, ela transformou-se numa linda jovem, de belos cabelos negros e vestida com uma longa e leve jelaba verde-água. Ali Agat ficou encantado com a beleza da princesa, mas precisava apressar-se a recolher o ouro. Boa parte da noite entrou e saiu da gruta, carregando pesadas alfarrobas de ouro. Finalmente, quando já cansado arrastava a última alfarroba para fora da gruta e rejubilava com o êxito, aconteceu o que temia: o grande halo prateado da lua já se erguia majestoso no céu escuro. Imediatamente, todo o ouro desapareceu, suspeitando ele que tivesse voltado para a gruta, cuja entrada se fechou com estrondo. E a linda princesa voltou a ser a cabra de antes.
Vê o que fizeste! — ralhou ela. — Com os teus vagares dobraste-me o encanto.
Ali Agat não sabia o que dizer, mas acabou por se desculpar com o cansaço. Disse-lhe que se esforçara tanto que até se esquecera da mulher, que já devia estar preocupada à espera dele. A cabra compreendeu:
Volta lá para a tua mulher, já que, a mim, só me fizeste mais infeliz. Mas sempre pelo mesmo caminho e sem olhar para trás. E leva estes dois saquinhos de figos para a viagem.

Ali Agat voltou pela mesma vereda, recolheu a cesta de medronhos e dirigiu-se para casa. Quando sentiu fome, tentou comer os figos que a cabra lhe dera, mas ainda estavam verdes e leitosos e já lhe tinham posto os bolsos a colar. Chegou finalmente a casa, onde a mulher já estava muito aflita, sem saber onde o procurar. Contou-lhe então tudo o que lhe tinha acontecido e porque se tinha atrasado:
Quando acordei da sesta, apanhei uma alfarroba de ouro mas, quando vinha mostrar-ta, encontrei uma cabra, que, na verdade, é uma princesa moura encantada e que tem uma gruta maravilhosa ladrilhada a ouro. Disse que seria todo meu se eu lhe desse um beijo e o tirasse da gruta antes de a lua nascer. Não consegui tirá-lo a tempo, porque entretanto apareceu a lua. Mas trouxe esta cesta de medronhos e estes dois saquinhos de figos. Só que ainda estão verdes.
Ai, Ali Agat, nem mentir sabes! — queixou-se a mulher. — Apanhaste outra vez uma barrigada de medronhos e ficaste a ver mouras encantadas e alfarrobas de ouro. Porque é que não deixas o medronho e voltas para a amêijoa?

Joaquim Bispo

*

Imagem: Joana Vasconcelos, Lilaea (secção), 2017.

* * *








quarta-feira, 20 de março de 2019

TRALHAS


Meu pai tinha uma fazenda. Eu tive uma fazenda na minha infância. 

Longe de ser um grande latifúndio, mas suficiente para ele criar 
alguns bois e algumas vaquinhas que davam leite. 
Meu pai tinha pavor de tomar leite direto da teta da vaca. 
Medo de brucelose e outras doenças que as vacas podem transmitir. 
Meu pai também tinha horror a salsicha. Conhecia como se 
fabricavam as salsichas.
A fazenda do meu pai ficava a uma hora de carro, uma Rural Willis, 
de onde morávamos, o que me permitia sábado sim, sábado não, me 
vestir de Tom Mix, prender a estrela de xerife na camisa quadriculada, 
calçar botas com esporas de mentirinha e madrugar para montar o Batuta, 
um cavalinho que meu pai comprou na Quinta da Boa Vista e me deu de 
presente de aniversário de cinco anos. 
Um dia, eu vesti na cintura uma cartucheira com um revólver de cano 
comprido e prateado da Manufatura de Brinquedos Estrela. Meu pai 
perguntou se eu ia matar os bois dele. Nunca mais vesti a cartucheira.
Os sábados na fazenda tinham um ritual. A gente chegava na casa principal, 
as montarias estavam prontas e partia a tropa de curral em curral 
para reunir a boiada do pasto, fazer contagem, aplicar remédios nos animais, 
reabastecer os cochos de sal grosso e verificar se tudo estava direitinho. 
Meu pai ia na frente, montando a égua Pratinha, ao lado de Seu Amado, 
o homem que cuidava da fazenda e dizia que eu era um menino muito amisaroso. 
Nunca entendi o adjetivo, mas, pelo jeito sorridente de pouco dente que ele 
dizia, achava que era coisa boa.
Atrás das duas montarias, seguia eu trotando o Batuta. E atrás de mim, 
Aguilar, o filho do seu Amado, tocava a pé um carro de boi carregado 
de tralhas: apetrechos, ferramentas, sal grosso, remédios, galões de leite, 
marmitas embrulhadas em pano de prato. Minha avó era quem preparava a minha 
marmita: arroz, caldo de feijão, carne moída com azeitona, purê de batata e 
um ovo frito em cima de tudo. 
Havia também várias capas de encerado de caminhão, caso chovesse.
A gente esquentava as marmitas no fogão de lenha da casa de sapê de Dona 
Iracema e Ico, o cara que cuidava do curral do Pau D’Alho, cujo nome minha 
mãe não gostava que eu dissesse porque lembrava um nome feio. 
Tempos depois entendi a rima.
Puxando o carro de boi, Pelé e Coutinho. Dois parelhos muito fortes e bonitos. 
Caminhavam na velocidade da placidez bovina e tinham um jeito que me encantava. 
Os passos eram simultâneos, os movimentos iguais. Quando um virava a cabeça 
para esquerda ou para direita o outro também virava para o mesmo lado, 
e vice e versa, numa harmonia que parecia que tinham ensaiado. Os dois se 
entendiam de olhos fechados e me hipnotizavam como mágicos.
Uma tarde, num sábado sem fazenda, meu pai me levou ao Maracanã, para assistir 
ao meu Botafogo jogar contra um time sensação vindo de uma cidade de praia 
em São Paulo. Era uma cidade que tinha praia de areia dura, onde carros trafegavam 
até a beirinha das ondas mansas, meu avô me mostrou na televisão.
O jogo no Maracanã foi um baile do time branco da praia paulista em cima do meu 
Botafogo, comandado por uma dupla de homens fortes, bonitos e harmônicos chamados 
Pelé e Coutinho. 
Aí, eu entendi o nome dos bois. 
Não eram plácidos e vagarosos como os da fazenda, mas ágeis e velozes como Corisco, 
o cavalo que Seu Amado montava. 
E também se entendiam de olhos fechados. E se movimentavam como ensaiados. 
E me hipnotizavam como mágicos.
Outro dia, soube que Coutinho havia morrido. Não o boi, mas o parelho de Pelé, 
do baile espetacular que vi no Maracanã.
Na mesma hora, um carro de boi encantado passou lentamente pela estrada da 
minha memória,  carregado de uma tralha imensa de lembranças felizes.








domingo, 17 de março de 2019

Dezoito horas abaixo





Para nós, a terra é nua e plana.
Não há sombras. A poesia
Mais do que a música há de ocupar
O vazio de um céu sem hinos...

Wallace Stevens – O Homem do Violão Azul





          Tenho uma história sobre aquele-eu que foi para Porto Alegre, dezoito horas abaixo, por uma pessoa. Foram alguns meses juntos para terminar sozinho. Quatro anos passados, em nova tentativa, para terminar sozinho. Percebi que eu queria, sim, a cidade. Voltar para os lugares que conheci, voltar para os lugares conhecidos. Quando não tive mais motivos para dirigir-me rumo ao sul, pensei em fotos esquecidas em um álbum esquecido. Tentei ignorar, mas algo não foi embora. A cidade revelou-se maior, do tamanho sincero de lembranças que não voltaram desapercebidas. Se eu soubesse que essa pessoa tornaria-se uma história que não traz saudade, faria tudo novamente. Pela cidade, esta pátria, Porto Alegre. Foram poucos dias que bastaram para a cidade permanecer memória. Eu quero andar por Menino Deus e pela Redenção, como quem toma chimarrão. Riscar o chão, ver o pôr-do-sol no Guaíba até marcar aquelas águas. Águas que já foram e voltaram, novas, como da primeira vez que lá estive. O rio não se lembrará de mim. Vou me apresentar, apertar as mãos e seremos velhos amigos. Antes eu era um estranho, sem chance da conversa ao pé das águas.











sábado, 16 de março de 2019

Na escuridão não existe cor-de-rosa

Ilustração: Leonardo Mathias (Todos os direitos reservados)


Quando eu era pequena, eu queria ser bruxa. Bruxas não usam cor-de-rosa. Nem são loiras. Eu não conheço bruxas loiras. Só conheço fadas. Castelos. Sonhos. Varinha de condão. Sapatos número 35 — vá lá, 36 nos dias de calor —; manequim 34. Gestos delicados. Passos de gata no cio. Ou de gazela. Ou de garça. Esses bichos dissimulados. Cabelos loiros. Loiro Ultraclaro 90. Koleston. Nem cachos, nem ondas. Liso europeu. Fadas são europeias. Olhos azuis bem claros. Da cor do mar de Aruba. Que não é na Europa. O mar das bruxas não é azul. É escuro. De tempestades e naufrágios. Mar Negro. Afunda cinco navios de uma vez. Carrega tudo para as águas de baixo. Embaixo d'água não tem fada. Fadas não podem molhar o cabelo. As bruxas podem. Bruxas têm cabelos de anêmona. E se grudam nas rochas do fundo do mar. E afundam navios. Cinco de uma vez. Para brincar de contar os corpos inchados dos afogados e os pedaços de barcos e lemes e adriças e quilhas e estais e gaiutas e birutas. Birutas são as fadas. Mornas como as correntes do Golfo. Bruxas são geladas. Como as correntes de Humboldt. Cheias de plânctons, de peixes. Ou quentes pela chegada afrodisíaca de El Niño. Eu queria ser bruxa. Quando era pequena. Vassoura, caldeirão, poções de magia, chapéu de ponta. A carruagem das fadas não é segura. Ela rola no precipício. No precipício das bruxas. Onde moram as cobras, os lagartos, os sapos que nunca viram príncipes. E os corvos, essas criaturas dadas às carnes mortas. Que só comem quando sentem fome. Que limpam a sujeira que não fazem. Limpam, limpam, limpam. Para que as fadas pisem terra sem
restos. Para que as fadas não cheirem a podridão da morte. Mas as fadas insistem em preferir os passarinhos. E os dias de sol. E os meninos e meninas com juízo. E os homens bonitos. E o pagamento em euros. Ou libras. Cotação em alta. E tudo cor-de-rosa. As unhas, as bochechas, o pôr do sol, a vulva, a moldura do espelho. Bruxas não gostam de luz. Nem de reflexos. Por causa das verrugas que têm no nariz. Que afastam os meninos e meninas cheios de juízo. E os homens bonitos. Bruxas só gostam da noite. Entranhada dos sons das criaturas invisíveis. E da igualdade mais estranha. Na escuridão não existe cor-de-rosa. Nem fadas. Porque as fadas dormem com as galinhas para ter a pele mais bonita. Eu queria ser bruxa. Desde pequena. E de tanto gritar para a boca da noite, ela me respondeu: Your wish is my command