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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Onde a lentidão tem vez

Com a memória cada vez mais lenta, vamos ver se consigo relembrar uma historinha que li em algum lugar. Uns pesquisadores precisavam chegar a determinado lugar da floresta. O caminho só os índios conheciam. Lá foram os índios guiar os pesquisadores. Mas os pesquisadores tinham pressa e os índios tiveram de se apressar para poder acompanhá-los. Até que, chegados a certo ponto da caminhada, os índios se recusaram a seguir caminho. Indagados do motivo, responderam que suas almas tinham ficado para trás. Só quando suas almas os alcançassem de novo é que continuariam a jornada.

Talvez essa historinha explique por que andamos tão desarvorados, desorientados: tangidos pela pressa, deixamos nossa alma errando pelo caminho.

Apesar da velocidade da máquina do mundo, há espaços em que a lentidão tem vez. Desconfio que a arte, qualquer arte, é o lugar por excelência da lentidão. Para além do domínio da arte, penso, por exemplo, na gestação. A lentidão que é própria do ato de gestar dá origem à maravilha que é uma vida. Penso, também, na meditação, que é a lentidão que se cava em meio à pressa do mundo. E o que parece um voltar-se para dentro resulta na maravilha da expansão da consciência de si e do mundo. Penso, por fim, no tempo da infância que, embora passe tão depressa, é vivido com a lentidão própria das descobertas. Ninguém é capaz de imaginar os mundos que habitam uma criança entregue à quietude, à lentidão. Para designar esse mundo em construção, nada melhor do que relembrar esta frase do Rosa: “Quando nada está acontecendo, há um milagre que não estamos vendo”. Tudo porque a criança ainda está a salvo da máquina do mundo – que tem na pressa um de seus motores.

Falei na arte como espaço da lentidão. Não sendo possível falar de todas as artes, gostaria de relacionar duas artes importantíssimas: uma responde pelo nosso sustento físico; a outra, pelo nosso sustento metafísico. Trata-se da arte culinária e da arte literária. Claro que se pode cozinhar depressa e escrever text-foods. Mas aí não se está sob o domínio da arte e o resultado é uma comida e um texto pouco saborosos, pouco nutritivos.

A arte de cozinhar começa muito antes de se ir para o fogão. Primeiro se aciona a memória gustativa: o que eu gostaria de comer hoje? Depois se vai em busca dos ingredientes. No universo da cozinha tudo tem seu tempo. Não se apressa o ponto de cozimento de um legume sem se alterar, para pior, seu sabor. Na cozinha, o melhor vem sempre de obedecer aos compassos da lentidão.

O mesmo acontece na arte de escrever – que começa muito antes de se ir para o papel. Primeiro se aciona a memória afetiva: sobre quê eu gostaria de escrever hoje? Depois se vai anotando palavras e frases – os fios com que vamos bordar o texto. No universo da escrita reina o imperativo da lentidão. Não se apressa a feitura de um texto sem se comprometer sua textura. Na escrita, a lentidão é que dá o compasso: ora mais lento, ora menos lento – mas sempre lento.

Viver também devia seguir o mesmo compasso – e seguiu por muito tempo. Desde que a espécie humana evoluiu de homo sapiens para homo zappiens, a pressa dá o tom do viver: vive-se tudo ao mesmo tempo agora. Vestidos de homo zappiens, acreditamos que viver sob o compasso da pressa é viver mais. Esquecemo-nos de que a vida que mais vale é a que se vive no colo da lentidão. É a lentidão que faz o vivido melhor se sedimentar em nós. Não é à toa que o tempo da infância floresce no chão da memória com tanta força. É um tempo inteiramente vivido (não sei se isso vale para as crianças de hoje) de mãos dadas com a lentidão. E não à toa se diz que a criança é o pai do homem. Se assim é, e eu acredito nisso, somos todos filhos da lentidão. E andamos meio órfãos dela.  





terça-feira, 27 de maio de 2014

Tão perto, tão longe


- Aquele copo estava meio suspeito. Eu tive um mau pressentimento, mas estávamos em uma festa, entre amigos, o que podia dar errado?

Aqueles olhos ariscos fitaram-me pela primeira vez após meses

- Tudo... deu tudo errado. Aquele nojento! Desgraçado...


As lágrimas começaram a jorrar em abundância. Levantei-me para abraçá-la e, de imediato, fui repelido por um gesto brusco. Ela recolheu-se a um canto do sofá. O silêncio da sala tornou-se denso. O espaço entre nós, um deserto.







segunda-feira, 26 de maio de 2014

Palavra placenta


Encantadas

Palavras
não se tolhem
não se castram
não desgraçam

Saem até mais prenhes
dos terremotos
dos latrocínios
dos tsunamis
do meu silêncio



Fórceps

Nem que de cesárea
pré-eclampse
à força bruta
meu poema tem de nascer

Naturalmente
só o canto do pássaro
e o choro da árvore
carpinejar

Naturalmente
só o cheiro do sol
e os férteis barros
do manoel



Lamento

Nem a estéril inveja tanto a parideira
Nem o cunhado deseja tanto a irmã mais bela
Nem o mel açucara tanto no auge inverno
Nem a mãe se esgota tanto ao sugar-lhe o filho
Nem o sol castiga tanto o boia-fria
Nem a virgem despeita tanto a noiva

Quanto eu lamento
não ter gestado o mais anônimo
verso de Drummond


Intransitiva

Tomei cisma dos transitivos
sanguessugas
preguiçosos

Vivam apenas os verbos grávidos
que carregam em si
a completude
ou o desejo dela

A vida assim está
plena, fértil:

O independente
nasceu
caminhou
pariu
desmaiou
morreu

Simples assim,
como a ressurreição
acontece



Dúvida

Luto no leito
O parceiro ao lado me rejeita

O livro fechado na estante
sente o mesmo?




Recursos humanos

Leite potável não tenho
pra abastecer o mundo
Aceita-me as palavras?

Prometo tratá-las
em pó de arco-íris

Prometo gravá-las
em potes de seda

Prometo não serem
Nem arma nem voto

Talvez salto de criança
nos braços do pai
Talvez beijo da máquina
na palma da floresta

Aceita-me as palavras?

Prometo
manter-lhes levíssimas asas
manter-nos irmãos
pela mesma sede



Bula

Poesia à base de glúteo e glúten
Degluti-la pode causar alergia
(digo, alegria)


Maria Amélia Elói





domingo, 25 de maio de 2014

Os benefícios do futebol




Joaquim Bispo

O futebol tem-se revelado, para mim, muito importante, culturalmente, por mais estranho que pareça.

Há dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber que amplitude vão ter os novos cortes que o governo vai aplicar às pensões dos reformados. Em vão: estava a transmitir imagens de uma partida de futebol.



Tinha havido uma final importante, a da Taça de Portugal, de que eu vira a 2ª parte. Não ligo muito ao futebol, devido aos aspetos arruaceiros que ele transmite demasiadas vezes. Gosto de ver as partidas relevantes, desde que o desempenho seja leal, pujante e criativo, mas dispenso imagens requentadas…

Mudei para a SIC, com vontade de me esclarecer se eram credíveis as sondagens que davam vantagem, nas eleições de hoje, aos partidos responsáveis pelas governações que nos trouxeram ao pântano e pelas que nos afogaram nele. Em vão: estava a falar o treinador do Benfica, a equipa vitoriosa.



O futebol é um espetáculo visual, cujos bons lances são, para alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é para praticar ou ver, mas não para ouvir declarações dos intervenientes.

Mudei para a TVI, resignado a ouvir de algum governante mais despudorado que o país está prestes a atingir o alto objetivo para sair da crise que é poder voltar a pedir dinheiro emprestado aos “mercados”. Em vão: estava a transmitir a receção/homenagem que a Câmara de Lisboa dispensava à equipa vencedora e seus dirigentes.



Espero que não estivesse lá nenhum daqueles intervenientes que às vezes se envolvem em pancadaria. O futebol é uma força relevante em que parte da sociedade se revê, cujos exemplos interioriza e copia e portanto modeladora de comportamentos e atitudes perante o “outro”. As agressões e os tumultos são altamente antipedagógicos e sendo desculpados e, por isso, premiados, consolidam a mensagem de que é aceitável agredir para evitar um golo ou para reclamar de uma decisão do árbitro.

Mudei para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me, como habitualmente, com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das subversões que os intervenientes do sistema terão usado para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez indemnizar o corrupto do dia. Em vão: tratava dum assunto de que já não me lembro, mas logo de seguida passou para a divulgação da lista dos jogadores da equipa portuguesa ao mundial do Brasil. A coisa demorou uns três minutos, mas depois voltou ao Benfica.



Não sem que eu vislumbrasse, de memória, umas cotoveladas no rosto do adversário, um pé em riste à canela ou um bando vociferante à volta de um árbitro. Espero não vir a ficar envergonhado com tal representação.

Mudei para a RTP-Informação, apreensivo com a possibilidade de as potências em conflito já terem feito alastrar a guerra civil a toda a Ucrânia. Em vão: estava a transmitir a festa dos adeptos do Benfica no largo do município.



Acho divertido, mas dramático, que os desgraçados que ganham o salário mínimo ou menos vão a todo o lado vitoriar os seus milionários ídolos, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira que tem aspetos obscenos de desigualdade social.

Mudei para a TVI-24, tentando adivinhar quantos mortos provocara nesse dia a democracia implantada pelos americanos no Iraque. Em vão: estava a decorrer uma mesa-redonda em que um painel de comentadores perorava sobre as escolhas do selecionador nacional.



É inacreditável a quantidade de horas que variados painéis de comentadores conseguem estar a falar de futebol, às vezes de um jogo apenas. Com certeza que têm espetadores, mas tenho dificuldade em imaginar milhares de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que apenas falam de um espetáculo  que é eminentemente visual.

Já sem grandes esperanças de escapar ao futebol, mudei para a RTP-2. Mas não: foi assim que tive oportunidade de assistir a um programa sobre endocrinologia e ambiente e os efeitos nefastos que um ambiente cada vez mais poluído tem tido para a saúde. Muito interessante e pedagógico. Se não fosse o futebol, tê-lo-ia perdido. Só lhe posso estar agradecido!



  





sábado, 24 de maio de 2014

PRIMAVERA

Terminada a Primavera no Japão, deixo aqui minha singela homenagem poética a essa belíssima estação do ano, que sempre nos traz a mensagem da esperança e do renascimento.


PRIMAVERA (I)

Março sem flor.
Março sem cor...

E a menina japonesa
olha, com tristeza,
a única cerejeira
que o mar não tragou.

*


PRIMAVERA (II)

Na flor que se abre
para receber o Sol,
ressurge a Esperança
de um mundo melhor.

*

Autor: Edweine Loureiro
Saitama – Japão





sexta-feira, 23 de maio de 2014

O amanhecer em quarto estranho

Acordei e logo, percebi que meu corpo estava dolorido. Pensei que tinha apanhado. Então abri os olhos. Olhei ao redor e tentei reconhecer onde eu estava. Aquele quarto não me era familiar. Com certeza não era o meu. As estantes brancas, organizadas com livrões e enfeites e alguns bichinhos. Não era de alguém muito próximo. Eu conhecia o quarto das pessoas próximas a mim.




Não caí em desespero. Permaneci calmo. Afinal, não era a primeira vez que acordava em lugar estranho, e tampouco seria a última. Além disso o quarto era limpo e eu estava bem confortável. Uma cama excelente.  Diferente de acordar na rua, com o corpo gelado e sujo.

Fechei os olhos novamente. Esforçava-me para tentar lembrar o que tinha acontecido na noite anterior. Aos poucos algumas imagens surgiam.

Lembro-me que saímos para comer alguma coisa, mas era apenas uma desculpa para bebermos. Assim que chegamos no restaurante, pedimos algumas cervejas. Jantamos e continuamos bebendo. Acho que era próximo da  meia-noite, quando uma das meninas, que nos acompanhava, a mais bonitinha, disse que queria dançar. Eu não queria dançar. Não gosto de dançar. Mas ela era bem bonitinha e eu já tinha bebido algumas, achei que fosse uma boa ideia.

Cara, como ela era bem bonitinha. Bonita mesmo. Seu nome era Amanda. No fundo, eu sabia que não tinha nenhuma chance com ela, mas diabos um trago faz a gente pensar que pode tudo; faz acreditar que sonhos impossíveis são possíveis. Era certo, que em estado sóbrio ela nunca ficaria com um cara tímido e gordo, com uma barba de meses no rosto. Não sou muito propenso a fazer barba. Acho que os pelos em nossos corpos são naturais. Não gosto dessa estética plástica que nos impõem uma limpeza total dos pelos no corpo, com um esforço em tentar esconder a sujeira da humanidade. Às vezes, me pergunto, onde esta a sujeira da humanidade? Também não gosto de textos limpos demais, não me refiro só a linguagem, me refiro àqueles com um mundo cor de rosa, onde tudo se encaixa, tudo é perfeitinho. Menininho se apaixona pela menininha, se casam tem filhos e nunca falta dinheiro ou comida. Sempre estão felizes. Fico pensando que porra é isso!!?? Fico indignado. Talvez, por isso que eu gosto mesmo, é de acordar com do velho Johnnie e um texto do Bukowski.

Eu sei, podia simplesmente ler a sessão policial dos jornais para ver sangre e a podridão humano, mais fácil ainda, seria ler a parte sobre política. Mas não me apetece. Eu fico irritado com tanto absurdo, tanta mentira impressa nos jornais. Uma manipulação filha da puta mesmo. Os jornalistas mentem para si mesmos, em uma loucura, tentando agradar os editores, anunciantes, políticos e ao público. Pra mim são todos parte de um sistema falido. Por isso gosto de escritores sujos, daqueles que não tentam agradar os leitores, daqueles que se ralam por causa de uma literatura de qualidade, ou não. Não faz diferença. Eles também escrevem umas mentiras sem nexo, mas não estão nem aí pra porra da verdade, parece até que tem alguma sabedoria melancólica nisso tudo. Dessas que você encontra nos fracassados, perdidos e bêbados que se encontram nos botecos sujos no final da noite. Eu sei. Estou sempre com eles. Sou um deles. E digam, qual menina bonitinha ficaria com uma cara desses? Pensando bem, qual menina bonitinha em seu juízo perfeito ficaria com uma cara desses. Aí reside o sucesso e o poder da bebida. Ela faz coisas inacreditáveis acontecer. Faz a gente pensar e agir de um jeito completamente diferente.

Percebi, deitado naquela cama, que ainda estava bêbado e pior: eu ansiava por uma dose para aliviar aquela tensão. Me veio mais uns flashbacks. 

Eu já tava mais pra lá do que pra cá, quando decidi que queria dançar também. Nos separamos em dois grupos e fomos de táxi até uma espelunca, que sabíamos que podíamos dançar mais um pouco. Eu fui no mesmo táxi da gatinha. Eu estava otimista. Tinha boas chances aquela noite. Estávamos em um grupo que era composto dois casais e quatro solteiros: duas meninas, eu e mais um amigo. Sabia que as meninas curtiam caras e o meu amigo também. Então tirando o Jorge, namorado da Paula, eu era o que se costuma dizer por aí de macho dominante do pedaço. Pensei é hoje. Essa seria uma daquelas noites inesquecíveis.

Irônico né? agora estou deitado com os olhos fechados e tentando me lembrar do que aconteceu na noite inesquecível. Que porra de noite inesquecível que eu esqueci. Porra! por mais que eu me esforce não consigo entender como vim parar aqui. Lembro que entramos na festa. Reclamamos um pouco do valor da entrada, mas não dava nada, todo mundo queria se divertir. Chegamos e pedimos mais uma rodada de cerveja. Não levou 15 minutos para terminarmos com a ceva O Jorge se virou pra mim ‘precisamos algo mais forte’. Pegamos o cardápio e fomos em busca dos combos. Achamos uma boa combinação de vodca e preço baixo. Um ótimo custo x benefício. Aquilo deveria dar conta do recado. Pedimos e começamos a beber. Talvez a minha última lembro de termos pedido mais uma vodca, daí eu comecei ter os brancos. Lembro vagamente de ter conversado com uma loira de parar o trânsito. Talvez nem fosse tudo isso, apenas efeitos colaterais do álcool. Depois lembro de ir para a rua e fumar. Essa memória não consigo entender. Eu não fumo há mais de oito meses, mas fazia sentido. Sei por experiência que se a loirona estivesse fumando eu ia querer fumar um pouco. Tipo uma não ia fazer diferença, depois vem um espaço em branco ou preto, vazio, não consigo lembrar de nada. Só de ser carregado para fora por alguém e então estou aqui nesse quarto. Será que o quarto é da loirona ou será que é o quarto daquela menina bonitinha?

Putz! Abri os olhos quando lembrei de algo. Não lembro que havia me falado que a loira era um homem. Um travesti. Um travesti bonito, mas porra será que era ele ou ela que tinha me carregado. Será que a dor no corpo significava outra coisa? Caralho, o que foi que eu fiz? Fechei os olhos novamente. Nunca mais vou beber porra nenhuma. Puta que pariu!

Respirei fundo e abri os olhos novamente. Levantei a cabeça para tentar reconhecer um pouco mais do ambiente. Torcendo para que a loira ou loiro não estivessem ali. Olhei para o chão e vi minhas roupas espalhadas. Foi então que percebi que só estava de cueca e estava só na cama. Fudeu, espera que a qualquer momento o cara entrasse no quarto, com um baby-doll rosa e me disse bom dia com a voz grossa. Olhei para o outro lado da cama e havia duas pessoas dormindo. Ah devo ter vindo para a casa da namorada do Jorge, não pode ser o Jorge tinha saído mais cedo, lembro que ele me perguntou se estava bem? Porra claro que estava bem, tava podre de louco.

Então uma das pessoas se mexeu.. Reconheci logo, era o Cláudio. Ufa! Ele levantou a cabeça e se virou 'Tá vivo?’, 'to sim, mas com uma tremenda dor de cabeça. achou que dormir mais um pouco'.

Virei para o lado satisfeito de estar em boas mãos. Não estava na casa da namorada do Jorge, estava na casa do Pedro, o namorado do Cláudio. Fiquei sabendo depois que os dois me colocaram na cama deles para eu ficar mais à vontade. Nossa cara, como é bom ter amigos.





quinta-feira, 22 de maio de 2014

Angelinas




Para o Bruno Mariano

Desde a unificação da antiga Terra, com a reorganização do território global em três faixas de dimensões milimetricamente equivalentes e configuradas como países, que questões de continuidade e ampliação populacional têm sido debatidas à exaustão nos fóruns da Organização das Nações Reunidas (ONR). Nos últimos três séculos, a população do planeta caiu drasticamente de 8 bilhões para 1,5 milhões de habitantes, em razão de baixa fertilidade. Pesquisas recentes garantem que as modificações naturais da anatomia humana devem eliminar rapidamente as características definidoras de gênero, convertendo os corpos em um tipo híbrido incapaz de se reproduzir. Segundo a comunidade científica, este sujeito estéril de um futuro próximo ainda não tem nome, ou categoria de investigação. Os estudiosos acreditam que a única saída para a sobrevivência da espécie seja desativar o gatilho que aciona a hibridização genérica, atacar a causa fundante.

*

2413. Continente Una. 28ª Convenção Planetária da ONR. Conferência de Validação do Programa Angelina Mater. Junta científica multidisciplinar composta por renomados profissionais dos três países do mundo, especializados em procedimentos que combinam técnicas provenientes de áreas como biologia, genética, física quântica, psicologia, neurociência, história, matemática, sociologia, estética, política, filosofia, economia e comunicação detalha aos três presidentes o plano estratégico que promete reverter o processo de involução da raça humana. A equipe convence os chefes de estado de que a única chance de sobrevivência dos unocontinentinos é cortar pela raiz um hábito iniciado e intensificado entre os terráqueos no começo do milênio, uma prática comum especificamente entre as mulheres, em uma época marcada pela chamada cancerofobia, histeria coletiva impensável nos dias atuais.

Com carta branca para agir, cinco membros são designados a desenvolver a segunda fase do programa: atravessar o tempo em dimensão reversa e impedir a constituição do costume. A partida acontece poucas semanas após a validação oficial. O grupo participou da construção da Uterocápsula – um artefato tecnológico que ultrapassa pelo menos três tantos a velocidade da luz, projetado para atuar em condições complexas de mobilidade – e tem completo domínio da máquina.

*

2013. Primeiro mês. Esperava pelo pior, mas não imaginava que as notícias médicas pudessem ser tão ruins. O oncologista aguarda que ela tire os olhos do exame e questione o laudo. Angelina perde as palavras e o alento, pisca com vontade de nunca mais abrir os olhos, queria que fosse diferente, malditas heranças.

- O que quer dizer a sigla BRCA1, John?

- Você sabe o que significa, Angie. É como sua mãe, mas com anos de vantagem em relação a ela. A decisão é sua.

*

2013. Mês quatro. A decisão de retirar e de reconstituir os seios para prevenir a ocorrência de câncer de mama motiva outra decisão de Angelina: contar da própria escolha médica. Pessoa pública, envolvida ativamente em causas humanitárias, poderia estimular uma quantidade imensurável de mulheres a se precaverem efetivamente contra a doença se compartilhasse sua experiência e anunciasse o procedimento seguinte, a extração dos ovários. Estava segura de que poderia ser exemplo em saúde feminina. Estava pontuando o terceiro parágrafo quando eles aportaram em seu escritório.

Não teve tempo para estranhamento. Cinco pessoas descidas de um veículo minúsculo cresciam diante dela, com bocas enormes e familiares. Antes que perguntasse quem eram e o que queriam, os visitantes apresentaram-se. Eram Angelinas. Todos. Pareciam gente muito limpa, mas vagamente lembravam homens ou mulheres, de forma que Angelina não sabia como referir-se a eles individualmente. Repitam: quem são vocês e o que querem aqui, antes que eu chame os seguranças.

O Angelina mais alto passou a falar:

- Angelina, somos indiretamente seus descendentes. Viemos do futuro para demovê-la. Suas decisões até aqui foram acertadas, mas essa que você está prestes a tomar põe em risco a humanidade. Por favor, não conclua o artigo.

- Como sabem de mim? E do artigo?

- Sabemos por que a história está registrada na RedeUna. Pesquisamos o assunto há anos até chegarmos à fonte de nossa derrocada: sua decisão. Avance quatro séculos e compreenderá.

Os demais Angelinas posicionaram-se à frente da escrivaninha e com os dedos indicadores ergueram a tela holográfica onde o futuro passou feito cavalo a trote. Viu: enormes regiões do planeta com fauna e flora abundantes e concentrações de povoados em territórios delimitados, o trânsito ordenado por estradas, céu e mar, uma fartura de alimentação, trabalho, cultura e lazer. Chamou atenção a presença raríssima de crianças nas imagens e o aspecto diferente dos corpos das pessoas. Não conseguiu distinguir mulheres de homens.

- Você tocou o ponto, Angelina. Os poucos que somos estão envelhecendo e perdendo a capacidade de gerar vida nova, apesar de as condições de desenvolvimento serem ideais para a sociedade. Começamos a morrer aqui, com o efeito do seu artigo. Pedimos novamente, esqueça-o. Fale de suas escolhas médicas apenas aos amigos próximos. Não divulgue, não permita que a mídia especule, que sensacionalize, que faça da sua superação um espetáculo, um monumento à profilaxia.

- Porque não? O que acontece adiante? Como posso prejudicar a humanidade se minha intenção é justamente o contrário?

*

Um Angelina recua a projeção holográfica até o momento presente e pede atenção de todos. A sequência dispara e é clara. A atriz Angelina Jolie escreve ao jornal norte-americano New York Times declarando ter passado por uma dupla mastectomia preventiva, o que reduziu de 87% para 5% a chance de desenvolver câncer, e afirmando que em breve será submetida novamente a procedimento cirúrgico para retirada dos ovários pelas mesmas razões das primeiras intervenções. O relato repercute mundialmente, gerando uma procura jamais vista por exames de análise sanguínea e uma onda de operações de retirada e reconstituição de seios em hospitais públicos, privados e em clínicas estéticas pelo mundo.

Nas primeiras décadas, observa-se redução nos índices de câncer de mama na mesma proporção em que se registram queixas femininas de perda da sensibilidade dos seios e de insatisfação sexual. Sucedem-se gerações privadas do aleitamento materno e da aprendizagem de vínculos emocionais iniciais, a taxa de natalidade cai pela metade nos países ricos e tem significativa diminuição nos subdesenvolvidos. A puberdade das meninas tem o tempo devido, mas os seios não têm plena desenvoltura: crescem pouco, atrofiados, incapazes de produzir leite, até que, centenas de anos depois param de nascer. A ciência erradica o câncer de mama e de ovário. O desejo sexual de homens e mulheres pela figura feminina perde força. Os órgãos genitais masculinos sofrem processo semelhante às mamas femininas e, geração após geração, mínguam por falta de uso, pois a ciência cria maneiras eficazes de expelir resíduos dos rins sem que seja necessária a formação da urina. Nessa época, a bexiga é o novo seio.

Em velocidade, as imagens se formam e se desfazem na tela, mas Angelina Jolie acompanha tudo, sem interromper, sem dizer palavra. Outro Angelina congela a transmissão de dados tridimensionais logo após o estabelecimento da última ordem mundial. Olha Angelina nos olhos por pura tradição de manter contato visual, pois não expressa sensação alguma. O Angelina mais experiente, o mestre da operação, resume o final do episódio:

- Querida, nossa raça prosperou em conhecimento, descobriu caminhos para alongar o tempo de vida e aprendeu a conviver pacificamente, mas não soube preservar o elo fundamental: a maternidade. Somos um povo de afetos verdes. Nossas emoções estão latentes, mas não chegam a eclodir, não amadurecem, não se expressam. E por isso, nossas possibilidades de gerar vida, genuinamente humana, estão por um fio. Compreende agora porque precisamos que mude de ideia?

- Sim, balbuciou uma Angelina Jolie atônita, que respirou fundo, muito fundo, bem fundo, antes de fechar o arquivo no computador em que estava trabalhando quando eles chegaram. E deletar.

Os Angelinas acenaram com a cabeça em agradecimento, diminuíram de tamanho e voltaram para aquilo que parecia uma nave saída de filmes hollywoodianos de ficção científica, julgou Angelina Jolie. Ao desembarcar no meio de maio de 2413, a comitiva de cientistas deparou-se com uma recepção inusitada. Nada de balões de gás hélio soltos no ar e fogos de artifício, ou banquete presidencial, como se confabulou na viagem. Quando os estudiosos saíram do laboratório para pisar a rua, viram mulheres e homens e bebês e sorrisos, e ouviram buzinas e resmungos e xingamentos em filas, e pássaros em gaiolas e cães em coleiras, e fumaça densa e árvores escassas. E repararam nas formas arredondadas e protuberantes das barrigas de dois Angelinas, que de repente definiram-se duas. E sentiram um arrepio nas costas. Sentiram





terça-feira, 20 de maio de 2014

A Copa do Mundo do Zé

O magrinho Zé Tomé, pacato funcionário público federal, morava com a família numa vila do Catumbi,
onde mal falava com os vizinhos de tão tímido e recatado. O comando da casa ficava por conta de sua mulher Edite, vigorosa mãe de três filhos, terror da vizinhança pela sua rabugice e rigor disciplinar, braços fortes de tanto esfregar roupa no tanque e lavar panela. Diziam que batia no marido.
Os jogos da Seleção Brasileira na Copa que o Brasil sediava vinham mobilizando todos os corações.
Quem não ia ao estádio, ficava em casa ou nos botequins, em estado de oração, quase de joelhos em volta
de caixas geralmente de madeira escura com frisos e botões dourados, chamados rádios.
A paixão era contagiante. Cada exibição do Brasil nas vozes dos locutores soava como resgate da auto estima de um povo, até então incorporado pelos espíritos dos viralatas, dos chinfrins, dos mequetrefes.
Mais eis que chega a final contra o mediano time do Uruguai, a grande final, a redenção nacional,
que colocaria o orgulho de ser brasileiro nos peitos estufados e soberbos do país, do Presidente da República ao soldado raso, do médico renomado ao catador de papel.
Naquele domingo, Zé Tomé acordou com uma surpreendente determinação.
- Hoje vou ao estádio!
A família estranhou o rompante, mas nem a mulher mandona teve coragem de demovê-lo da ideia.
O dia prometia festa e não seria a ausência de um pai banana em torno do rádio que mudaria um destino tão certo e glorioso. De paletó e chapéu, Zé Tomé sai para as ruas, vê o bonde para o Maracanã apinhado de gente se aproximando como um corso de carnaval. E pega o do destino oposto: Cinelândia. Bonde vazio de dar dó, como as ruas do centro da cidade, por onde correu apressado até uma leiteria na Avenida Central, igualmente vazia de dar dó, mas com uma mesa especialmente preenchida.
Era Dircinha, sua colega de repartição, com seu vestido justo e lábios carnudos de batom carmim,
que sorvia um frappé de coco a espera do amante.
- Dircinha, meu bem, nunca vi esta cidade assim.
- Um dia perfeito para nós, Tomèzinho. Foi Deus que colocou essa final de Copa do Mundo no nosso caminho.
E da lá partiram para um hotel na Mem de Sá, onde trancaram portas e janelas, isolando seus mundos de
excitações românticas transgressoras, do mundo lá de fora, dos foguetes e dos gritos antecipados de Brasil Campeão.
Entraram pela tarde, comemorando o álibi. Aproveitaram ao máximo o tempo concedido pelo destino.
De suspiro em suspiro, chegaram ao momento de vestir suas roupas.
- Estranho, Dircinha. A cidade está silenciosa.
- Será que o jogo não acabou?
Zé Tomé consultou o relógio de bolso:
- Acabou sim, meu bem. E eu não estou acreditando no que realmente possa ter acontecido 
Despediram-se ali mesmo, em plena Mem de Sá, já apressados e aflitos para chegarem em suas casas.
Pelos trilhos de seus bondes, foram respirando os ares do desastre: ruas silenciosas, alguns mais exaltados
chutando latas, algumas explosões de choros incontidos. A tristeza em cada esquina falava por si só: Uruguai 2, Brasil 1.
Assim como a cidade inteira, a vila do Catumbi era um velório. Zé Tomé entrou em casa de chapéu na mão, sorrateiro e amedrontado, tremendo da cabeça aos pés. Encontrou Edite aos prantos, jogada no sofá, rodeada pelos três filhos chorosos, a mesa posta com um bolo intacto em forma da Maracanã,
e uma bandeira do Brasil amarrotada pelo chão.
Edite olha furibunda para o marido:
- O que você tem a me dizer, seu traste? 
Zé Tomé baixa a cabeça, aperta o chapéu. Fica mudo, resignado, com medo de dizer o que não deveria dizer.
- Você é um pé-frio, desgraçado! A única vez que vai ao estádio dá nisso!
Edite, fora de si, esquece que tem filhos e vizinhos. Puxa Zé Tomé pelo paletó aos trancos e safanões
até o quarto do casal, bate a porta ensandecida e aplica no marido uma memorável surra de chinelo e cabide.

(Este conto faz parte do livro do autor "A Primeira Noite de Melissa", Litteris, 2013)





segunda-feira, 19 de maio de 2014

A tripla tentativa da formiga

Era domingo ensolarado. Enquanto o mofo aflorava na parede branca, a mulher varria. Varria sem se dar por conta de suas ações, imersa no pó e cheiro sufocante que a umidade proporcionava.
Carregava os cadernos, livros e folhas de cá para lá, lá para cá. Numa dessas “viagens”, encontrou uma formiga, daquelas maiores e bem escuras. Forma ovalada e patas fortes. Não pensou duas vezes, esmagou o quanto pode o pobre bicho e o soltou no chão.

Continuou na sua tarefa, abrindo e fechando folhas, selecionando o que era importante, tirando o pó da estante, organizando os livros na ordem que considerava melhor. Assim seguiu por mais um tempo. Mas o chão ainda estava todo sujo, lá foi ela buscar a vassoura e dar um jeito nisso tudo.

Limpando com uma delicadeza firme, a mulher viu que a formiga tentava, bravamente, recostar-se nas arestas da parede e se reerguer. Quase sem pensar (segunda vez, que se pudesse contar, em menos de meia hora) esmagou o bicho novamente. Que criatura mais insistente!

Ainda quando depositava o pobre resto de bolotas que um dia foi corpo, as poucas patas que formavam algo como fios de arame, era possível perceber que ainda se movimentava. Com muita, muita, dificuldade. Mas se mexia. Era um ser que vivia, não atrapalhava, não oferecia risco. Não era uma criatura repugnante. Era um inseto comum, digno de respeito como qualquer outro ser respirante no universo.

A mulher deu de ombros e varreu o lixo para a rua. Nisso, pensou na crueldade que cometera. No meio do pó estava envolto o corpo daquele ser cuja vontade de permanecer naquela vida de andar no meio de móveis e pedras superava seu tamanho tão pequeno.


Pensou em dar moral para essa história, mas essa história não tem moral. A verdade é que a gente mata o tempo inteiro, quando precisa e quando nem sabe bem o motivo. 





sábado, 17 de maio de 2014

Não quero mais a poesia





                    Não quero mais a poesia, não quero mais. Eu a nego sem medo de excomunhão, sem o mínimo remorso. Mando às favas os poetas, tolos, as poetisas, vazias. Quero a prosa, a prosa responde e indica o caminho. O sol de todo dia aparece e se põe em uma linha horizontal.





















sexta-feira, 16 de maio de 2014

A lenda do demônio-fêmea


Conta a lenda que, em épocas que repousam na neblina do passado, uma pequena comuna da região da Lombardia viu-se assolada por um mal tão voraz que homens e mulheres morriam sem tempo sequer para pedir ajuda. Um súbito revirar de olhos, um grito que ecoava nos campos e um estertor prolongado por convulsões de arrepiar os pelos. Pronto! Ia-se mais um vivente. Os sinais eram sempre os mesmos, como sacramentos macabros. E não havia beberagem ou bênção que impedisse a trajetória funesta, salvando aqueles homens de um destino tão horrendo. Tombavam em casa, nos parreirais, nas ruas, ou desabavam sobre os lombos dos cavalos que, instigados pelo grito, se empinavam, derrubando-os ou arrastando-lhes os corpos. Olhos esbugalhados e mãos esticadas como a pedir ajuda, os cadáveres mostravam em suas feições o pânico que carregavam para a eternidade.
Um fato curioso, no entanto, chamou a atenção dos locais: nem crianças, nem animais eram levados pela morte. A notícia cresceu mais do que a fome da praga, estimulando conjecturas e certezas.
— Isso é coisa da justiça divina! — garantiam os mais tementes.
— Ou é arte do Tinhoso... — desafiavam os mais ousados.
Mas nada os convencia de um motivo sem retoques. Enquanto isso, ao fim de cada dia, nunca menos que três ou quatro mortos eram preparados para o solo santo.  
Morava na cidade um certo Padre Baptisto, que aparecera pelas redondezas havia tantos anos que nem mesmo os habitantes mais antigos eram capazes de precisar a data de sua chegada. Viera para ser vigário, mas, homem de muita meditação e pouca pregação, durou pouco tempo à frente da paróquia. Os fiéis, necessitados de palavras que os perdoassem dos pecados revelados em confissão, e de pregações que os orientassem na missa de domingo, para que pudessem enfrentar a semana árdua de trabalho, sentiram-se indignados com os modos sóbrios do padre. Apressaram-se a solicitar à Arquidiocese de Milão que outro pároco lhes fosse enviado.
Apesar de substituído, Padre Baptisto já havia criado fama em toda a região pelo dom especial que possuía de conversar não apenas com Deus e com os anjos, mas também com os espíritos imundos. Pessoas vinham de muito longe pedir-lhe ajuda e livramento para dores e males, retornando às suas casas com o fardo da vida mais leve. E ele foi se deixando ficar na comuna, com as bênçãos do arcebispo, que não desejava ver aquele dom alardeado.
Para seu lugar à frente da paróquia foi trazido Padre Luiggi, homem de conversas cheias e muitos afagos, amigo do Arcebispo de Milão. Com o tempo, começou a perseguir Baptisto, porque o queria longe dos paroquianos. Condenava-o pelo que chamava de “delírios e curandeirismo”. Baptisto passou a ignorá-lo e ambos seguiram adiante evitando confrontos. 
Entretanto, em face dos acontecimentos presentes, Baptisto precisava intrometer-se nas coisas da comuna. Convencido de que as mortes estranhas assemelhavam-se mais aos malfeitos do diabo que aos desígnios de Deus, decidiu meditar e render-se ao mundo espiritual para conhecer um pouco mais do mistério daquelas mortes. Pensou, inicialmente, em recolher-se à pequena capela que construíra nos fundos da propriedade que ocupava em companhia de cães e porcos. Mas depois pensou que lá o Maligno e seus asseclas não se apresentariam a ele. Optou, então, por se sentar num banco de madeira na varanda da casa simples, iniciando um pedido de proteção ao Arcanjo Miguel: São Miguel Arcanjo, protegei-nos no combate, cobri-nos com vosso escudo contra os embustes e ciladas do demônio. Subjugue-o, Deus, instantemente o pedimos...
Encerradas as rezas, convocou as trevas:
— Apresenta-te criatura imunda. É o Senhor teu Pai e Deus quem ordena.
E assim prosseguiu, repetindo o comando, até que uma voz de mulher lhe respondeu:
— Controla a soberba, Baptisto. O teu Pai não ia gostar de saber que andas usando o nome dele em vão.
Assustado com a presença de um demônio feminino, Baptisto interpelou-o severamente:
— Quem és tu? Declara o teu nome agora!
— Lilith.
Confuso, Baptisto pensou que o Maligno tentava pregar-lhe uma peça.
— Não tente enganar-me, filho da escuridão! Diz-me teu nome, agora!
— Abyzou, Nahemah, Tunrida, Äiatar... Qual tu preferes, homem? Estamos todas aqui para te carregar conosco para o leito. Qual de nós irá satisfazer a tua carne, padre?
Recuperando-se do assombro, Baptisto perguntou:
— És tu que dizimas homens e mulheres em nome das podridões de Lúcifer?
Uma gargalhada chegou até ele, misturada a um hálito nauseante.
— Sim, sou eu quem os devora por dentro. Mas Aquele a quem tu chamas Pai permitiu-me a missão.
— Mentira! Cala-te! Tu és mesmo um insidioso cheio de intrigas fétidas!
— Sou? — desafiou-o a voz onde o escárnio brotava a cada frase. — Pergunta ao teu Senhor se falo ou não a verdade. Parece-me que teu Deus está mais a ter conversas comigo do que contigo, padre!
Mas eis que, subitamente, ouviu-se um grande barulho e a voz de Deus se fez ouvir, furiosa.
— Lilith, ordeno-te que pares de confundir esse homem! Diz-lhe de uma vez dos acontecimentos!
Sibilando, a mãe dos súcubos revelou a Baptisto o mistério das mortes:
— Padre, eu fiz um trato com o teu patrão. Que levaria por dia quantos lascivos encontrasse em meu caminho. Um acerto para livrar esta terra do pecado da carne. Nosso trato deu-se apenas para esta comuna, porque creio que o teu Pai não acreditou que fossem tantos. Mas a coisa vai a perder de vista! E olha que tenho livrado da foice os casados e as virgens que se entregaram por amor ou por promessas de bodas.
Vendo que o padre estava estarrecido, o demônio-fêmea provocou-o ainda mais:
— Queres que teu Deus volte atrás na palavra empenhada? É assim que o respeitas?
— Não tentarás o Senhor teu Deus! Não tentarás o...
— Sem lenga-lengas, homem! O tempo urge e a colheita é fértil! Se me deixo ficar de palração aqui contigo cai-me o número da coleta de hoje.
Baptisto considerou que Deus agira, como sempre, com justeza e princípios. E que Lúcifer, como era de sua natureza, mais uma vez tentava enganar o Criador.
— Senhor, para que tudo se dê como deve, pela justiça e pela caridade, eu gostaria de falar-te sobre algumas condições que deveriam recair sobre tal acordo, posto que nele não parece ter sido levada em consideração a imperfeição humana — disse o padre com cautela.
— Cala-te, subalterno! Não és tu que vives a repetir que tens obediência cega ao teu Senhor? — Lilith gritou.
— Cala-te tu, criatura pequena, de cuja boca só jorram sapos e escorpiões! — replicou ele.
Sem tirar os olhos do diabo, Baptisto dirigiu-se novamente a Deus:
— Falava-te, Senhor, das condições que foram esquecidas no acerto que fizeste com essa criatura maligna. A primeira delas é que é preciso que se dê aos homens a oportunidade de arrependimento; que possam ser avisados para desistir da luxúria e da devassidão. Pois que se não reconhecem que haja gravidade e perigo em tais pecados, não hão de saber que precisam e podem afastar-se deles.
Enquanto Lilith praguejava, o Senhor aprovou e acatou a primeira condição de Baptisto.
— Que mais queres impor a Deus, seu trapaceiro bajulador? — gritou o demônio-fêmea.
— A segunda condição é que a tua fome seja regrada, mulher-besta, e que a velocidade da tua colheita seja reduzida a uma alma por dia!
Desesperada, Lilith berrou:
— Então, Deus, tu não vês que teu padrezinho está querendo ensinar aos homens a falsidade? Eles pecarão muito mais, agora que podem arrepender-se!
— És tu a dissimulada, criatura do mundo inferior!  — repeliu-a o Criador — És tu que tentas mais uma vez o Senhor teu Deus! Puno-te, agora, com as consequências! Permito-te, sim, que colhas os lascivos. Não porque te faça favores, mas porque é de tua obrigação carregá-los contigo para as profundezas de Satanás! Mas permito igualmente a Baptisto que alerte os homens sobre a ceifa. E ordeno-te, por fim, que não te atrevas a arrancar da vida mais de uma alma por dia.
Os protestos irados de Lilith se fizeram ouvir. Baptisto sabia que Deus encurralara a criatura e cutucou a fêmea de Lúcifer:
— Desistes de tudo? Este é um bom momento para recuares.
— Nunca! Aceito os termos desta vergonhosa barganha, mas peço ao Senhor teu Deus que me conceda algumas contrapartidas — disse a demônio-fêmea em dissimulada humildade.
— A que mais achas que tens direito? — irritou-se Deus.
— Peço-te, Senhor, uma pequena mudança. Insisto em que me permitas tombar dois homens por dia. Um mau, que será meu eternamente. Um bom, que irá contigo para o céu. Duas almas apenas. Colhidas a cada nascer ou pôr do sol. E não se fala mais nisso. A mim caberá executar as mortes. Porque eu creio que o Criador tem mais com o que se ocupar. E digo mais, mato os dois discretamente, sem revirar-lhes os olhos, sem provocar-lhes gritos de dor ou fazê-los passar por estertor prolongado. Silêncio e rapidez.
— Não vejo problema no pedido. É justo. Concedido. Duas almas, uma para cada lado. Agora, posso voltar despreocupado ao Paraíso — retrucou o Senhor.
— Espera, Deus! Só mais um minutinho, mais um minutinho! Quero pedir um último favor. Coisa à toa. Que imputes a Baptisto a obrigação de rezar pela salvação da alma de um dos mortos, e apenas de um, visto que seria trapaça rezar pelos dois. Mas que o proíbas de tentar saber antecipadamente qual das duas almas merece mais que a outra, para que não haja nenhum ludíbrio.
Vendo que ainda havia astúcia em Lilith, mas compreendendo que não podia furtar-se a mais esse pedido, sob pena de ser acusado de desonesto e ser desmoralizado pelo Maligno, Deus conclamou novamente Baptisto a cumprir o trato com o demônio-fêmea. Em seguida, retirou-se. 
Naquela noite, o padre foi dormir angustiado, convencido de que havia se deixado envolver em mais um embuste de Lúcifer. No dia seguinte, e nos outros que vieram, as mortes passaram a acontecer aos pares, conforme o acerto entre a Luz e as Trevas. Baptisto usava das manhãs e das tardes para pregar a homens e mulheres sobre os perigos da lascívia e sobre as almas que eram entregues à escuridão eterna. Ao anoitecer, dirigia-se à capela em sua propriedade, escolhia a alma de um dos mortos daquele dia e rezava por seu descanso eterno. Em seguida, pedia a Deus que lhe permitisse sempre enxergar a alma mais virtuosa de cada dia, reconhecendo-a sem titubear no momento da escolha.
Por essa ocasião, e a convite do Padre Luiggi, o Arcebispo de Milão veio ter à comuna para abençoar os fiéis e regozijar-se com eles pelo fim de tantas e tão dolorosas mortes, embora ambos não entendessem como se dera o fim daquele mal. Mas, tão logo a autoridade eclesial pôs os pés na cidade, o céu fechou-se subitamente em tempestade. E sem que ninguém soubesse como, dois raios iguais caíram no mesmo exato instante, lançando ao solo da Lombardia os cadáveres de Padre Luiggi e do arcebispo. De uma só vez, estava feita a coleta do dia. 
A voz e as gargalhadas de Lilith ecoaram por toda a comuna: “Escolhe agora, Baptisto, escolhe!” É assim que conta a lenda.