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segunda-feira, 29 de abril de 2013

SAMIZDAT 36


Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Terra das Casas Vazias, de André de Leones, Volmar Camargo Junior
O Tradutor, Fabio Bensoussan

OBRA EM LÍNGUA PORTUGUESA
Naufrágio de Sepúlveda
História Trágico-Marítima, Joaquim Bispo

ENSAIO
Anti-Íon, Joaquim Bispo

CONTO

A Alma da Capital, Henry Alfred Bugalho
Monte do bom engano, Wilson Franco
O Morto, Guilherme Canedo
O vento que faz as dunas mudar de lugar, Rui Sota
Ébano e Marfim, Fernanda Vier
Casquinha de bebê, Andréia Pires
A Camélia, Maria de Fátima Santos
Arremate, Cinthia Kriemler
A Quinta do meu Pai, Japone Arijuane

TRADUÇÃO
Rashōmon, Ryūnosuke Akutagawa
Num Bosque, Ryūnosuke Akutagawa

CRÔNICA
Quotidiano sobre trilhos, Lucas C. Lisboa

POESIA
A Voz do Anjo, Volmar Camargo Junior
História Oral, Volmar Camargo Junior
aquele ser, André Foltran
O Entremezista do Real, Fabio Ramos
Nazca, Bernardo Lins Brandão
reate, Maraíza Labanca
A Boiada, Ju Blasina
Tropecei, eu que dançava, Vander Vieira
Traça, Rodrigo Domit
Vozes, Felipe Cattapan
Filho da Floresta, Edweine Loureiro
Multiplamente, Adriane Dias Bueno

LANÇAMENTO
A Cor do Sal, de Rafael F. Carvalho

Leia a SAMIZDAT 36
Scribd - http://pt.scribd.com/doc/138461149/Samizdat-36
Calaméo - http://en.calameo.com/read/0000022382ca317ae5082





domingo, 28 de abril de 2013

Pasárgada será aqui



Aqui é o meu lugar. Aqui será a cidade que quero.

Quando eu cheguei por aqui eu logo entendi a geometria de teus eixos e asas, a simetria de teus planos e espaços! Vi em tudo a mais completa tradução de um sonho feliz de cidade. Ave, Brasília, cheia de graça, bendito o dia em que pousei numa de tuas asas! Fiz de tuas asas o meu eixo.

Bendito quem te sonhou; bendito quem disse sim ao sonho; benditos os dois gênios que deram traços geniais ao sonho; benditos todos os que te escreveram em concreto. E bendito o teu céu – a maior de tuas catedrais – que te coroa da aurora ao poente.

Brasília pousou num altiplano das terras goianas e nele aeroplana monumental. Brasília nasceu decidida a ficar de frente pro Brasil e de costas para o mar. Brasília conseguiu a façanha de pôr num quadradinho o Brasil inteiro – aqui tem “gente de toda cor, tem raça de toda fé”.

Brasília tem um quê de esfinge, mas é facilmente decifrável. Noutras cidades há esquinas, avenidas, bairros – isso que pronto dá orientação a uma cidade. Aqui temos tesourinhas, (super)quadras, blocos e outras coordenadas geométricas à primeira vista indecifráveis. Basta um breve convívio e a esfinge se mostra nítida e precisa na sua lógica cristalina, sem deixar de guardar em si mistérios outros. Uma cidade feita de sonho, eixo e asas nasceu destinada a voar sem tirar os pés do chão, proeza só possível no âmbito dos sonhos – totalmente possível para ela que nasceu de um sonho.

Então repito: aqui é o meu lugar. Aqui será a cidade que quero.

Na cidade que quero, teremos menos carros e mais bicicletas. Dói na minha pele e na pele do planeta tanto monóxido de carbono. Na cidade que quero, as bicicletas serão as estrelas das ruas e avenidas. E como andarei de bicicleta! E não será preciso preocupar-se com as ciladas do caminho (leia-se: com os carros pelo caminho); afinal, teremos redes de ciclovias serpenteando em todas as direções.

Na cidade que quero, teremos mais verde e menos concreto. Para fazer companhia aos belos palácios de Niemeyer, cultivaremos aqui as mais belas catedrais que arquiteto nenhum jamais conseguirá imitar. São elas a copaíba, o murici, o jequitibá, o buriti, o jatobá, o ipê, o jacarandá etc...

Na cidade que quero, teremos menos pressa. Se houver menos pressa, teremos, por certo, menos filas, menos trânsito, menos estresse...

Na cidade que quero, teremos mais solidariedade. A máxima que valerá é: “Eu preciso de todos e todos precisam de mim”. E como serão bem-vindas as palavras de um sábio solidário: “Não precisamos de muita coisa... Mas precisamos muito uns dos outros!”

Na cidade que quero, teremos mais livros e menos armas. Faremos do livro a mais poderosa das armas. Depois disso, armas para quê?

Na cidade que quero, teremos mais educação. Ensinar será a arte capital. Ensinar, diz a etimologia, é pôr nos homens uma insígnia, dar-lhes um sinal distintivo. E a educação será a mais nobre das insígnias. E comungaremos todos com o que diz Guimarães Rosa: “Mestre no quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

Para a cidade que quero, precisaremos de um batalhão de cidadãos. Então, avante cidadãos! É chegada a hora de, as armas e os barões assinalados, lançarmo-nos em perigos e guerras esforçados na tentativa de edificar um novo mundo. Afinal, depende de nós se este mundo ainda tem jeito, apesar do que temos feito.

Ave, Brasília, cheia de graça!





sexta-feira, 26 de abril de 2013

A contingência da vida

O que eu queria era que não fosse hoje
Podia ser amanhã ou ontem, tanto faz,
Mas que não fosse hoje, nem agora.
Porque hoje está sol
Um dia luminoso e claro
E eu não sei onde estou,
Não sei para onde vou,
Quanto mais por onde vou.
Se não fosse hoje
Eu saberia pela certa;
Teria imensas teorias
Que explicariam muito bem
Estar eu onde estivesse.
Com toda a certeza
Se fosse amanhã eu saberia
Porque é que hoje estou aqui
Sem saber onde é aqui;
E se fosse ontem o hoje não existia
E eu não estaria aqui seguramente.
Era o que eu queria, se pudesse.





quinta-feira, 25 de abril de 2013

Anti-Íon


Joaquim Bispo


Um pastiche  (do italiano pasticcio) é uma imitação do estilo de um autor ou artista,
que não visa o plágio, nem a paródia, nem a caricatura.
Pode-se encontrar em todos os domínios literários e artísticos.
Preenche várias funções: de memória, de humor, de homenagem (mais ou menos respeitosa), ou de puro exercício de estilo.
(Wikipédia)





Timandro: Ora vivam, Íon e Clistes! Há tempos que vos não via. Por onde tendes andado?
Íon: Viva! Estivemos nas festas do Epidauro, onde pusemos à prova os nossos dons.
Clistes: Viva!
Timandro: Ah, sim; ouvi dizer que o concurso de rapsodos é muito apreciado e concorrido. Também há concurso de aedos?
Clistes: Sim; e dos mais importantes. Eu concorro sempre.
Timandro: E que tal vos saístes?
Íon: Eu venci o concurso de rapsodos.
Clistes: E eu só perdi para o aedo de Egina. Em onze concorrentes.
Timandro: Então estais de laurel. Fico muito feliz, por vós. Dizei-me: o que vos fez enveredar por essas tão belas ocupações? Qualquer um consegue ser rapsodo ou aedo?
Íon: Não, de modo algum. É o dom com que se nasce. A excelência que ponho nas minhas atuações e que faz chorar os que me ouvem é um dom com que nasci.
Timandro: Ah, sim? Dize-me: já em criança sabias recitar Homero?
Íon: Sim, mas só pequenos trechos. Aos poucos é que fui dominando a extensa obra do génio.
Timandro: Então o dom com que nasceste era pequenino?
Íon: Sim, posso dizer que sim. Felizmente que o meu tio Perilo era um apaixonado por Homero e não descansou enquanto não me pegou o gosto. Recitava-me frequentemente as mais emocionantes passagens da Odisseia.
Timandro: Queres dizer que se não tivesses um tio que te estimulou o gosto pelas epopeias homéricas talvez esse pequeno dom com que nasceste tivesse murchado?
Íon: Nem mais. Estou muito agradecido ao meu tio.
Timandro: De bem pouca valia é um dom que não se usa. Imagina que nasceste com o dom do auriga e que o deixaste estiolar. Como saberias que tinhas nascido com ele?
Íon: Provavelmente, nunca o saberia.
Timandro: Então, é possível que nasçamos com muitos dons que não desenvolvemos e, portanto, nem deles tomamos consciência.
Íon: Assim deve ser, como dizes.
Timandro: E tu, Clistes, nasceste com o dom de fazer e cantar poesia ao som da lira?
Clistes: Depois do que disseste, creio que não; só comecei a gostar do fino vibrar das cordas da lira quando me apaixonei por Magide, filha de Macário. Nessa altura é que a musa se apoderou de mim.
Timandro: Então, segundo Íon, não devias ter dom, porque não nasceste com ele.
Clistes: Tenho, tenho. Componho com facilidade e toco e canto com gosto.
Timandro: Desculpai, se insisto: esse dom que, de uma maneira ou de outra, tendes é que vos levou à vitória, mas também trabalhais para conseguir tais êxitos, presumo, ou o dom é suficiente?
Íon: Não, eu estudo incessantemente Homero. É preciso conhecer o seu pensamento em profundidade e não só decorar-lhe as palavras. E recito partes da Ilíada todos os dias.
Timandro: Queres dizer que nasceste com um dom que foi sendo aperfeiçoado com trabalho!
Íon: Sim, pode-se dizer isso.
Timandro: Então, o que mais contribuiu para te levar à vitória, o trabalho que puseste no estudo ou o dom?
Íon: Ambos. O dom com que nasci – ou que aprendi com o meu tio – forneceu-me o interesse pela representação das epopeias; o trabalho dá-me a competência no conhecimento de Homero. Mas nada disto seria suficiente para empolgar a assistência se não fosse o que Clistes já referiu. Aliás, ainda ontem tive esta mesma conversa com Sócrates que me provou que eu estou fora de mim quando faço emocionar a audiência.
Timandro: Sócrates é sábio.
Íon: Sócrates estranhou que, falando Homero, Hesíodo e outros poetas dos mesmos assuntos – guerra, relações entre os homens e destes com os deuses, e dos deuses entre si, e da genealogia dos heróis e dos deuses – eu só saiba falar e interpretar bem as palavras de Homero e não saiba nem goste de falar dos outros poetas.
Timandro: Por que achas que isso acontece?
Íon: Eu pensava que era porque Homero fala das mesmas coisas, mas muito melhor que os outros poetas, mas Sócrates convenceu-me de outra coisa.
Timandro: E o que disse ele?
Íon: Que se eu sei reconhecer que Homero fala melhor que os outros, mas das mesmas coisas, eu também deveria saber falar bem dos outros poetas.
Timandro: Aparentemente...
Íon: Acontece que não sei falar dos outros e aborrece-me mesmo ouvir falar deles. Ora, Sócrates diz que isso significa que o que eu digo de Homero não advém de conhecimento, mas de outra causa.
Timandro: Sócrates é sábio. Não ignora, certamente, que é possível falar das mesmas coisas mas de modos totalmente distintos, assim como é possível representar Zeus como Fídias o fez, ou como o fazem outros escultores menores.
Íon: E, na verdade, Homero é inexcedível.
Timandro: Não considerou Sócrates que sempre viveste “rodeado de Homero” e que estudas Homero afincadamente e não os outros poetas, e que, por isso, é lógico que o conheças melhor e o prefiras?
Íon: Não. A interpretação dele é a de que estou possuído por uma força divina, quando o recito.
Timandro: Curioso! O caso é tal que seja necessário recorrer a explicações tão potentes?
Íon: Sócrates diz que a mesma musa que inspirou Homero, quando ele compôs a sua obra, transmite a sua influência para mim e de mim para a audiência.
Timandro: A musa! Sócrates é sábio, mas, como ele próprio está sempre a dizer que nada sabe, é natural que muitas vezes se tenha reconhecido em erro e se precate de equívocos futuros. De cada vez que oiço invocar as musas como explicação de alguma coisa humana, lembro-me sempre do mau teatro.
Íon: Como assim?
Timandro: As ações de uma peça devem estar encadeadas numa relação de causa e efeito, de modo que cada uma seja a resultante lógica e necessária dos acontecimentos anteriores. Uma peça assim encadeada tem verosimilhança – os espectadores reveem-se nela, como na vida. Uma má peça, pelo contrário, quando não consegue criar desenlaces consequentes com o nó que a trama enredou, recorre ao deus ex machina, dando um fim abrupto à história, não congruente com o fio da narrativa, o que desagrada sobremaneira aos espectadores.
Íon: A mim agrada-me que, pelo menos em certos momentos, eu seja instrumento do divino.
Timandro: Isso evita-te, certamente, seres desafiado por aqueles que são da mesma opinião que Sócrates. Os que te consideram instrumento do divino poderão travar a inveja com a desculpa de que não se consegue competir com o divino. Por um momento, vislumbrei a possibilidade de Sócrates te invejar.
Íon: Não creio. Mas os teus remoques a Sócrates é que me parece indiciarem alguma dor de cotovelo…
Timandro: Sem dúvida! Quem me dera que o meu filosofar tivesse a acutilância e a profundidade do jeito de filosofar do feioso. Mas, voltando ao nosso tema: e tu, Clistes, também sentes a possessão da musa?
Clistes: Compor poesia é deveras misterioso. Não sei onde vou buscar as palavras e as personagens que me surgem. Acredito que é a musa que mas insufla, como num sopro.
Timandro: Dize-me!: surgem-te palavras e personagens desconhecidas?
Clistes: Não; todas as palavras são por mim conhecidas, mas aparecem-me organizadas de uma maneira tão sensata e harmoniosa que me surpreendo que tenha sido eu a gerá-las, naquele encadeamento. Já as personagens são mais difíceis de caraterizar. Todas elas me são desconhecidas naquela forma.
Timandro: Naquela forma? Já as conheces sob outra máscara?
Clistes: Cada personagem parece-me uma mistura de outras, que conheço das epopeias; de heróis, de deuses, de homens.
Timandro: Então dirias que elas já existiam em ti, como as palavras que referiste? Isso significaria que não houve qualquer “sopro” exterior e que tudo é criado no teu espírito.
Clistes: Sim, mas, nas formas e atributos com que me surgem, são-me totalmente inesperadas.
Íon: Também me surpreendo com as palavras que saem da minha boca, quando estou no estrado. Sócrates disse que os belos louvores que teço a Homero não são devidos a uma techné que pudesse ser atribuída ao meu mérito, mas ao privilégio exterior concedido pela musa; que eu falo sem nada compreender. Senti-me humilhado.
Timandro: Sócrates é o mais sábio filósofo da Grécia, o que não quer dizer que não possa vir a mudar de opinião em relação a algumas das convicções que agora mantém. Há quem diga que a imaginação é “uma amálgama de perceção e julgamento” e que implica sempre a presença da perceção. Não aceitas que a inspiração seja um estado de exaltação emotiva que atinge a alma do poeta que, qual tecedeira a escolher os fios coloridos de lã para compor tapetes sempre diferentes, usa um caráter deste, uma fisionomia daquele, um atributo de outro, para compor uma personagem inesperada?
Clistes: Assim poderá acontecer.
Timandro: Esclarece-me uma dúvida que me assaltou agora. Se estivermos atentos e formos honestos connosco, reparamos que a genealogia dos deuses varia conforme as regiões, como Afrodite, que para uns nasceu de Zeus e Díone, e para outros é filha exclusiva de Urano. A questão é a seguinte: nesses teus momentos de criação, já criaste algum deus ou, ao menos, modificaste os atributos de deuses ou heróis?
Clistes: Envergonho-me de o dizer, mas já. Quando não me lembro bem da história de algum, componho-a com o que me parece melhor. Uma peripécia em que Dioniso é raptado por centauros foi criada por mim. E já criei um deus – Metaro – que é filho de Hefesto e que quando quer vigiar os homens incorpora nas estátuas de bronze.
Timandro: Era o que eu pensava. Não me custa admitir que Hesíodo é que criou a maior parte dos nossos deuses. Há um filósofo em Abdera – Demócrito – que diz que não há deuses nenhuns. No fundo, a nossa vida não se alteraria muito sem a sua existência. Não há dúvida, no entanto, que tornam a nossa vida menos monótona e sempre nos sentimos mais acompanhados, que a solidão é funesta.
Íon: Na verdade; mas cá estamos nós, rapsodos, aedos, poetas, dramaturgos e atores para tornar a vida mais empolgante.
Timandro: Por outro lado, há um abismo entre a situação do artista que considera a sua obra manifestação de uma entidade exterior – e, portanto, nenhuma responsabilidade e mérito tem nela –, e a situação de outro artista que, atuando sem o pressuposto de influências metafísicas, considera a obra sua, com tudo o que isso implica: batalhar por ela, pôr nela todo o seu esforço, não se entregar à preguiça, sabendo que só o seu trabalho a fará emergir. Agora, dize-me, Íon: preferes ser o títere manipulado por uma improvável divindade, ou o autor da admirável arte que move a alma das multidões?
Íon: Se pões as coisas nesse pé…

*

Fonte (emulada na forma e contestada nas teses): PLATÃO, Victor Jabouille (tradução), Íon, Lisboa, Editorial Inquérito, Lda., 1988.


* * *

“Íon”, de Platão

“Íon” é um pequeno livro de Platão (427 a.C. – 347 a.C.), sob a forma de diálogo. Os personagens são Íon, um rapsodo, isto é, um artista que vai às festividades de cada cidade, recitando poemas épicos à população, e Sócrates, o celebrado filósofo da Grécia antiga, especialista em diálogos argutos nos quais, através de perguntas bem dirigidas, leva o interlocutor a refletir, a admitir a fragilidade das próprias opiniões, e a chegar a conclusões corretas, supostamente as teses do próprio Sócrates.
«Nos diálogos ditos socráticos ou da juventude, de que “Íon” faz parte, Platão transmite as ideias e os métodos do Sócrates histórico.» «Do ponto de vista literário e filosófico, são discussões filosóficas com estrutura dramática. Com Platão, adquiriram o estatuto de género literário independente.»
O tema da obra “Íon” gira à volta da origem do talento na interpretação, e da inspiração na génese da poesia. Após a habitual barragem de perguntas, o próprio Íon reconhece que a excelência da sua atuação se dá por inspiração sobrenatural e não por qualquer arte ou ciência próprias, aceitando que também a obra do bom poeta tem a mesma origem, o que menoriza o respetivo trabalho.
Rejeitando a tese do gozo que Platão, em muitos diálogos de juventude, parece ter em «contradizer e ridiculizar as opiniões dos seus adversários», que explicação haverá para que defenda uma ideia ultrapassada pela sua época, e que validade terá a questão no nosso tempo?
Segundo Krishnamurti Jareski:
A inspiração do poeta pelas Musas é admitida sem reservas pela conceção grega da poesia, mas, a partir do «século V a.C., podem ser encontradas referências explícitas ao poeta como poietés (fabricante/poeta), ou seja, possuidor de uma téchne.» «No tempo de Sócrates, os poetas eram denominados como sophoí (sábios), assim como os médicos, engenheiros, entre outros, e a habilidade desses poetas era compreendida como resultante de uma téchne (arte/saber fazer).» «A poesia, assemelhada ao artesanato, seria o produto final de uma ação consciente daquele que logra o adequado ajuste de palavras e sons musicais, à maneira de um arquiteto, sendo o poeta digno de honra e respeito, por conferir imortalidade à glória dos mortais.»
«A tendência da crescente identificação do poeta como um technítes não foi capaz de erradicar o antigo retrato da poesia como uma dádiva divina, e o “Íon” de Platão deve ser visto como uma tomada de posição do filósofo perante essas duas conceções da poesia, que aparentam ser antitéticas.» «Platão rompe parcialmente com as tradicionais conceções de poesia da época» «sustentando a possibilidade de uma ligação direta com as Musas, capaz de anular temporariamente as faculdades intelectivas do homem.»
A pretensa sapiência dos poetas fora examinada por Sócrates, confrontando-a com a de políticos e artesãos, que também tinham reputação de sábios. Verificou, dececionado, que «os poetas eram capazes de dizer muitas coisas belas, mas eram incapazes de prestar contas do que diziam, pois nada sabiam a respeito dos assuntos de seus poemas. Falhavam em interpretar o pensamento (diánoia), que forma a essência da mensagem poética, o que indicava não ser oriunda de um pensamento inteligente. Sócrates concluiu que, assemelhados aos adivinhos e aos profetas, os poetas pronunciavam muitas coisas verdadeiras e belas em suas obras, mas não por sabedoria, e sim por uma espécie de disposição natural (phýsei), um estado de inspiração.»
O “Íon”, de Platão, põe em relevo a oposição entre a pretensa sabedoria do poeta e a então nascente sapiência do filósofo.
A sua autenticidade foi posta em dúvida no séc. XIX. Goethe, em particular, repele a incongruência dos traços dos personagens: Íon, por um lado, de uma tacanhez inefável e, por outro, um Sócrates de uma malevolência pouco habitual.
Vincando a atualidade da questão, «a história da literatura ocidental testemunha o abismo que separa os verdadeiros poetas – capazes de, eventualmente, aliarem força de expressão a uma imensa facilidade descritiva –, daqueles cujas criações deixam transparecer o esforço para lograr fins artísticos preconcebidos.»

*
 Principal sítio citado:
http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/20_KrishnamurtiJareski.pdf








quarta-feira, 24 de abril de 2013

RESENHA: TERRA DE CASAS VAZIAS, de André de Leones


André de Leones
Rocco, 2013
318 p.
R$ 34,50



Assim que acabei de ler, pousei o livro nas pernas. Olhei para a capa por um minuto, talvez nem isso. Estava num local público, a trabalho (mas numa situação em que podia pôr minha leitura em dia). Depois desse intervalo de silêncio, senti-me tentado a compartilhar com alguém. Escrevi numa mensagem de celular, para contar a uma pessoa querida, que sabia o que estava lendo.

Terminei de ler Terra de casas vazias. Muito bem escrito. Um rico universo psicológico. Personagens bem construídos – que vivem numa espécie de silêncio social difícil de romper. A narrativa acontece muito no imaginário de cada um deles, atravessada pelo peso da solidão em que se vive, por perdas irrecuperáveis, mas por uns fios de esperança também: a possibilidade de existir, viver e cruzar desertos (físicos, como Brasília, um hospital, Israel; e íntimos, como a separação, a doença, os traumas e a morte). Ótimo romance. Mesmo.

O romance é dividido em cinco partes, com uma brevíssima sinopse abrindo cada uma.

“A primeira parte deste romance é também intitulada Terra de casas vazias e se passa em 2009. Nela, encontramos Arthur e Teresa. Eles vivem em Brasília. Tentam lidar com uma grande perda. No final, decidem fazer uma viagem.

“A segunda parte de Terra de casas vazias é intitulado Miastenia. Continuamos em Brasília, agora na companhia de Aureliano e Camila. A pedido de Camila, Aureliano parou de fumar.

“A terceira parte de Terra de casas vazias é intitulada Presente contínuo. Ela se passa em meados de 1986. A pequena cidade de Silvânia, no Centro-Oeste do Brasil, é o cenário. Arthur vive ali com seus pais, e recebe a visita de Aureliano.

“A quarta parte de Terra de casas vazias chama-se A inutilidade. Nela, somos apresentados à mãe e às irmãs de Aureliano e viajamos por São Paulo e Goiânia. A mãe se chama Isadora e as irmãs, Maria Fernanda e Marcela. Marcela é escritora e, anos atrás, esteve internada numa clínica, onde conheceu Nathalie.

“A quinta é última parte de Terra de casas vazias é intitulada Mar Morto. Acompanhamos Arthur e Teresa em sua viagem a Israel e reencontramos Marcela e Nathalie em Jerusalém. Ao final, lemos um conto de Marcela, passamos rapidamento pelo apartamento de Aureliano e Camila em Brasília e em seguida descemos ao Mar Morto com Arthur e Teresa, e o romance termina.

Em algumas entrevistas sobre este e outros livros, André de Leones diz que esta é uma “narrativa pretensiosa”, diferente de suas outras anteriores, onde apresenta um estilo mais cinematográfico e ágil. Desejoso de que este fosse mesmo de ação mais lenta, mergulhou na pesquisa dos romances psicológicos, nos clássicos do século XIX e XX. Parece-me ter sido feliz nesse ponto.

A leitura desse romance contrariou muito positivamente minhas expectativas (de modo geral, não as crio antes do final da primeira página). Entendi-o, se ainda é possível esse tipo de classificação, como um romance psicológico: o tempo é difuso, a ação em alguns pontos é anulada e a imersão da narrativa se dá para o imaginário dos personagens. Longos trechos passam inteiros, ou quase inteiros, na reflexão dos personagens sobre as coisas, os sentimentos, a auto-imagem, os eventos passados, as instituições, Deus, os lugares e as impressões que eles lhas causam. Esse transbordamento da imagética para o espaço físico cria uma bonita construção do ambiente: todos os lugares são desertos. Bonita, e às vezes asséptica, livre de sentimentalismo. O autor narra a existência desses desertos como uma constatação.

O fio condutor, a história que “acontece” no romance é a viagem do casal Arthur e Teresa, de Brasília para Jerusalém, seu contexto e suas implicações, para ambos os personagens. Como se pode supor, há uma tristeza longe de ser melancólica, que perpassa suas vidas e suas maneiras de ver e perceber o mundo. Tudo motivado pela perda irrecuperável de um filho. Com isso, outras histórias se desdobram para conhecermos esse contexto, e a transversalidade desse sentimento nas vidas de outras pessoas, mais ou menos próximas, desse casal. Assim também sabemos dos seus dramas, as suas perdas, os seus desertos. suas viagens, e suas mudanças geográficas que representam (será? não fiz nenhum esforço exegético nessa leitura) o transcorrer da vida, dos fluxos da vida, e a travessia desses desertos, e o que se encontra depois da travessia.

Terra de casas vazias é uma leitura mais que interessante para quem pretende começar por algum lugar na literatura em prosa brasileira contemporânea. Segue um excerto da primeira parte – não é para exemplo, mas pode-se perceber muito claramente o tom e a forma empregadas por André de Leones.


__________



Garoava quando Teresa deixou o prédio. A visão através das lentes dos óculos escuros impossibilitada em questão de segundos, o mundo mais e mais embaçado e disforme. Esperou até que tudo se transformasse em um borrão para tirar os óculos e encaixá-los na blusa, junto ao pescoço. Não precisava deles, na verdade. O dia tão escuro. Em seguida, cobriu a cabeça com o capuz, colocou as mãos nos bolsos da blusa de moletom e saiu pela calçada. Uma adolescente cabulando aula. Dia útil para os outros, não para mim. Seus passos eram incertos, como se tivesse bebido um pouco, e caminhava olhando para o chão, com medo de tropeçar no pavimento cheio de buracos, rachaduras, poças d'água, entulhos. Estava agora a favor do vento, o que não era ruim. O vento investia contra as suas costas e era como se a empurrasse. (Veja: sem raizes aqui.) À esquerda, do outro lado da rua, as árvores do parque ainda se dobravam. Lembravam pessoas se alongando antes de correr num domingo ensolarado. Evitou olhar para as árvores. A mesma sensação desoladora que tivera ao observá-las pela janela da sala, de que elas migrariam a qualquer momento. Não queria vê-las ir embora. Ou talvez elas apenas se dobrassem até quebrar. (Tudo se dobra e vai ao chão num estrondo, de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais tarde.) Não queria vê-las se dobrando até quebrar. Não queria ver nada, mas um trecho menos acidentado da calçada permitiu que levantasse a cabeça. A cidade ao redor com que interditada, ninguém à vista. O cenário desolado de um filme apocalíptico. O mundo acabou: agora, podemos viver. Mas não havia ruínas. Os prédios, inteiros, se repetindo a distâncias regulares. Brasília, ora essa. Tudo em Brasília se repete a distâncias regulares. Fim do mundo, mas um apocalipse higiênico que extinguisse a vida humana, não as edificações. Todos os apartamentos vazios, como os de um prédio terminado e nunca inaugurado. Silenciosa e tranquila terra de casas vazias. Por alguma razão, isso lhe pareceu justo. Deus estala os dedos e desaparecem os seres, deixando os prédios intactos: concreto deiforme. Justo e agradável, sim. Glória a Deus nas alturas. Ao Senhor, que matou o próprio filho e também o meu. Também o meu. Respirou fundo. Não se sentiu melhor. Qual é a porra do Seu problema? Arrancando os filhos de suas mães. Disseram a ela que não pensasse nisso. Não pensasse nessas coisas. Não pensasse. Todos, sem exceção. Mas como não? Quando a falta é o que há. Quando tudo se reduz à ausência. Creio Em Deus Pai Todo-Poderos Criador Do Céu E Da Terra E Em Jesus Cristo Seu Filho Ungênito Nosso Senhor etc. Seu Filho Ungênito. Tenta não pensar nisso, disseram. É difícil, quase impossível. Mas tenta. Para não enlouquecer. Para se recompor. Para seguir em frente. Você e Arthur. Ele precisa de você. Que infantil, ela penso. Tudo, tudo isso. Do começo ao fim, afora e adentro. Pensar ou não pensar, seguir em frente ou não. Que besteira, que.

Tropeçou.

Uma rachadura na calçada, o tropeço e ela caindo de joelhos, as duas mãos ainda nos bolsos. Soltou um gemido, a boca mal se abriu. Não doeu com a testa no chão por muito pouco. Levantou-se com dificuldade. Dois pequenos rasgos na calça. Os joelhos agora poderiam enxergar o que estivesse à frente. Dois olhos vermelhos bem no meio das pernas. O moletom preto, quase não se percebia. Algumas lágrimas rolaram, poucas. Mais pelo susto. Esperou que o tremor das pernas passasse. Então, seguiu viagem, mais do que nunca concentrada no chão.

(Qual é a porra do Seu problema?)




______________
(Primeira Parte, capítulo 2, 21-23)

Editora Rocco
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MICROCONTOS TEMÁTICOS DE EDWEINE LOUREIRO – PARTE IV


Amigos, retornando à série de microcontos com um tema específico, escrevo, nesta edição, sobre eles... os políticos. Espero que gostem.

Macrossaudações.

Edweine Loureiro

***

OS TEMPOS VERBAIS

Pela manhã:
― É um assalto! – a dona de casa reclama do preço. O verdureiro escuta-a, pacientemente.
Pela tarde:
― Foi um assalto! – o verdureiro reclama do roubo a sua tendinha. O delegado escuta-o, pacientemente.
À noite:
― Será um assalto! – o politico anuncia, pela TV, à dona de casa, ao verdureiro e ao delegado. Todos o escutam, pacientemente.

*


REELEIÇÃO

Em Cadeia Nacional, o Vice-Presidente faz a leitura do Artigo 1º da Constituição vigente:
― Em caso de falecimento do Presidente, será empossado o seu clone...

*


ORDEM E PROGRESSO

Enfileirou os políticos e gritou:
― Pelotão, atirar!

***





terça-feira, 23 de abril de 2013

Um filme à meia-noite (final)

(Maristela Scheuer Deves)

Correr no escuro, num lugar cuja geografia lhe era desconhecida, não era nada fácil. Depois de sair de sua fileira de poltronas, tentou seguir em frente, porém a falta das luzes de localização dificultava a tarefa. Tropeçou mais duas ou três vezes, mas levantou-se e seguiu, impulsionada pelos rosnados que se aproximavam.

Por fim, ao cair novamente, resolveu diminuir o ritmo e usar as mãos para tentar se localizar. Se tateasse nas paredes, talvez conseguisse encontrar mais facilmente a porta. Respirou fundo (o mais silenciosamente possível) e começou a colocar o plano em prática. Foi então que percebeu que algo não estava certo.

É claro que a escuridão total e os barulhos inumanos atrás de si também não eram algo corriqueiro, entretanto o que sentia com suas mãos decididamente era ainda mais estranho. Em vez da parede ou de poltronas, parecia estar tocando em um tronco de árvore. Tateou em outra direção, e sentiu como se estivesse encostando em uma pedra. Mas como poderia ser, pedra e árvores dentro do cinema? Até porque não havia nada disso ali quando a sessão começara...

Nesse instante, sentiu uma brisa fraca balançar-lhe os cabelos. Seria o ar condicionado da sala, que estava voltando a funcionar? Isso significaria que a energia voltara, as luzes se acenderiam, o filme reiniciaria e tudo retornaria ao seu normal? Só que aquilo não era ar condicionado, percebeu logo, com um arrepio. Era vento, um vento gelado... Mas como, se estava em um ambiente fechado?

Alguma coisa passou zunindo pela sua direita, bem próximo dela, e por pouco não gritou. Não era a coisa que a perseguia, tinha certeza, era mais como se ele, ou alguém, tivesse atirado algo. Cuidadosamente, deu dois passos naquela direção, sempre tateando à frente. Tocou em algo que parecia suspenso no ar, mas que na verdade estava cravado no que antes parecera uma árvore. E o que ela tocava agora (como podia ser?) assemelhava-se a uma flecha!

Com um arrepio ainda mais forte que o anterior, lembrou-se da cena do filme, logo antes de as luzes se apagarem: a flecha vindo em sua direção... Não, aquilo era loucura, simplesmente loucura! Levar um susto vendo uma projeção em 3D era uma coisa, mas sentir a flecha ali, ao alcance da mão, era algo impossível. No entanto, era isso que seus dedos tocavam.
Embora soubesse que estava acordada, beliscou-se para ter certeza, mordendo os lábios para não gemer. Respirou fundo outra vez, agora sem se preocupar em fazer barulho - o rosnado, ao menos por enquanto, cessara. Sentiu cheiro de mato, o que não tornou as coisas mais fáceis. Abaixou-se e tocou o chão: terra e folhas secas. Na sua memória, reviu as cenas iniciais do filme: um grupo de jovens caçadores perseguindo monstros em meio a uma floresta. Lobisomens.

Como se evocada pela lembrança, a coisa voltou a rugir atrás dela. Agora, o barulho estava mais reconhecível: já o ouvira em dezenas de filmes semelhantes. Só que, desta vez, ele estava fora da tela. Ou talvez ela é que entrara na história. Não teve tempo para saber qual das alternativas era a correta. Uma mão que mais parecia uma garra agarrou o seu braço, e ela teve a certeza de que aquele era o fim do filme - ao menos, para ela.





Algodão doce

O algodão doce não existe mais,
aquelas nuvens em formato de castelos,
de encantos,
se esvaem...

O vento muda
sopra para lugares diferentes
aonde eu queria ir

O vento destruiu o castelo,
soprou o tesouro,
levou a princesa

O vento soprou tudo para longe,
longe de mim.

Corri atrás do vendo.
Corri atrás daquelas nuvens,
nuvens de algodão doce.

Corri em vão

Não as alcanço mais,
resta-me
a lembrança das imagens
e o cheiro do algodão.





segunda-feira, 22 de abril de 2013

Azaleia para erva de passarinho

Não, ela disse, firme. Ele não entendeu. Ou não ouviu. Ou apenas ignorou. Ele estava lá desde o início, desde os primeiros dias. Dessa vez, assim que ela saiu da barriga da mãe, ele plantou-se ao seu lado, como erva de passarinho. Acompanhou, assombrou, atormentou, odiou, feriu, vociferou, aprendeu, aprisionou, amou, chorou, rezou, doeu, debochou, perdeu os pedaços, sempre ali, colado à sombra dela.

Não, ela suspeitou, quando começou a reparar ao redor e por dentro de si vestígios do improvável. Ele teve as primeiras pistas de que aquela era a pessoa certa, de que havia encontrado quem esteve tanto tempo à procura e exultou. Planejou, calculou, cercou o tempo e insistiu em fazer-se notar. Conseguiu.

Não, ela repetiu, quando passou a sentir a presença dele, primeiro aos domingos à noite, depois com mais frequência entre momentos de ócio, até que em todas as ocasiões, especialmente durante o sono. Ele desenhava labirintos mentais com maestria e, quando sedutor a atraía, quando furioso a forçava a andar por caminhos movediços, cobertos de cinzas de passado.

Não, ela gritou, em cada vez que ele se materializou nos corredores da casa, no canto do quarto, na fresta da porta aberta. Depois de alguns anos, ele entendeu que quanto mais perto chegava, mais fácil era manipular as sensações e os humores, mais matava da própria fome, mais penetrava nas veias, nas entranhas, nas células, nas memórias, nas vontades dela. Sugava a vitalidade e enfraquecia qualquer tentativa de resistência. Era um vício esse do estar junto. Nenhum dos dois sabe exatamente quando o predomínio dele a contaminou, mas aconteceu. É provável que tenha sido assim todas as vezes em que ela perdeu: a honra, o controle, a lucidez, a dignidade, a fé.

Não, ela pensou, com voz atravessada no nó da garganta. Dessa vez, ela estava nessa vida para ficar. Ele sempre ouviu os pensamentos dela. Sacudiu o emaranhado verde de carne decomposta que ocupava o espaço da mão direita, espantando o pensamento como quem enxota moscas inoportunas. As vezes ele chorava arrependido, falava e falava e falava sobre o amor desencontrado e perdido entre nasceres e morreres, encantava com tamanho entusiasmo trechos de história divida que ela acabava assaltada por lembranças. Compadecida e imersa em uma nuvem de quase ternura ela ficava à beira da aceitação.

Não, ela o expulsou tantas vezes para quase morrer de remorso depois. Era praticamente um exorcismo por dia, além de uma série de rituais necessários adotados e abandonados ao longo dos anos. Mas ele permanecia. Houve épocas em que se afastava dois passos, outras em que se camuflava atrás das árvores, as vezes sumia por uma semana ou três. Houve um tempo em que alternava entre meses de silêncio e dias de não arredar o pé. Ele era um susto permanente. E uma companhia para sempre.

Mas, não e não, ela frisava, quando a afeição ameaçava tornar-se mais forte e maior do que o medo, a dúvida, a repulsa. Ele empurrava de um lado, ela respondia empurrando de outro. Cara e coroa, yin e yang, gangorra, vida esvaída no ralo da pia. Ela sempre indagando os porquês, ele sempre dando voltas, mostrando poderes e aparecendo, declarando motivos para todo o resto, menos para o ficar. Os agrônomos explicam que parasitas como a erva de passarinho podem até matar plantas tropicais se retirarem sua seiva por tempo prolongado e que não há remédio para exterminar essa erva daninha senão arrancá-la uma a uma dos galhos. Ela arrancava aqui e ele brotava, novamente, logo adiante.

Não, ela cantarolou ao som de um rock maluco-beleza, que a fazia recordar os espaços de trégua que ele lhe deu na adolescência e na maturidade, quando pôde vibrar e gargalhar e agradecer e amar madrugadas a fio. Quando esteve felizmente só e única. Quando esteve raramente em si. Quando esteve em outra, com outro. Não, aqui não, ela escreveu pelas paredes da casa nova, tentando demarcar fronteiras. Em vão, percebeu em seguida. Não, através de mim, não, rugiu mostrando unhas afiadas quando ele insinuou uma provável continuidade. Ela estava tão ferida e confusa e ferida e confusa, que nem assim seria capaz de amá-lo, de desejar aquela presença sem olhos, de fraldas sujas correndo pela sala. Ela saberia e o recusaria terminantemente. Deixaria de morrer de medo, mas morreria de desgosto. E ela só lhe importava viva. Mesmo que vazia de vida.

Não, ela suplicou, exausta. A pele do corpo inteiro enrugada e frouxa sob um pijama azul. Andava pelas peças da casa, pintava a boca murcha com batom vermelho para sair, mas não cruzava a linha do primeiro degrau, a porta da rua. Enquanto ele esteve ali, e ele esteve sempre, ela andou ao redor de si como os cães fazem atrás do próprio rabo. Não foi longe, não foi a lugar algum. Tomada por medos que ninguém compreendia e forrada de certezas de papel de seda, nem por dentro teve condições de avançar. Ele não tinha olhos e deu-lhe a cegueira de herança. Ela investia, ensaiava corridas para rua, mas paralisava e perdia o rumo. Ela passou a esquecer os desejos que tinha, os telefones dos amigos, os programas de tevê que gostava de assistir, a quantidade de vestidos que havia acumulado, o lugar onde havia guardado as fotos dos seus melhores dias, a cor da tintura dos cabelos, onde teria guardado dinheiro.

Não. Não mesmo, ela sussurrou, sentada na cadeira de balanço deixada por algum parente no alpendre à entrada da casa, distante três passos do primeiro degrau da escada para a rua. Do lado esquerdo, sentado na pedra fria, estava ele bem quieto. Fazia um chuvisco sobre a grama não aparada e ele decidiu tocar no assunto. Porque ela já não tinha mais uma expressão de pavor estampada na testa, porque ela estava sentada ali, serena, embalando a cadeira para frente e para trás, porque ela tinha cabelos grisalhos longos amarrados em trança, porque ela era a mesma, ele resolveu finalmente abrir o jogo. Compreender a razão da presença dele tinha sido a batalha de uma vida inteira para ela, talvez o sentido, mesmo, de manter-se viva apesar dele sobre suas pegadas. Assim como negar foi espada, lança, foice, revólver, cuspe, lágrima, oração, perdão. Estar sempre armada roubou-lhe um punhado de sorrisos e a leveza. Então, ela que sempre foi Azaleia rosada, desistiu.

Não, iniciou aquele ser disforme, translúcido e cansado de insistir, eu não quis te machucar. Eu sempre estive aqui, contigo, porque. Um sorriso de gengivas gastas e o balanço mais forte da cadeira interromperam aquela confissão. Sim, balbuciou ela, eu sei. A cadeira balançou pela última vez. Ele ficou ao lado do corpo frio e inerte até a noite descer. Ele se perdeu.





domingo, 21 de abril de 2013

Entrevista com um papagaio de pirata


- Estamos aqui na Cinelândia com o senhor Jair. Ele é conhecido como o maior papagaio do pirata do Rio de Janeiro, aqueles sujeitos que ficam atrás das equipes de reportagens e dos entrevistados com o único objetivo de aparecerem na televisão. Bom dia seu Jair.
- Bom dia, dona...
- Cláudia Freitas...
-... dona Cláudia Freitas.
- Quando o senhor começou sua carreira de papagaio de pirata?
- Isso foi há muitos anos. Eu estava indo para o escritório onde eu trabalhava depois do almoço quando uma pessoa caiu dentro do buraco da obra do metrô lá na Rua Uruguaiana. Juntou gente para ver o resgate e quando eu fui assistir o jornal à noitinha, vi que eu estava atrás do Bombeiro que fez o regate e estava sendo entrevistado por uma mocinha que agora é apresentadora daquele programa de domingo à noite e que esqueci o nome. Mal acabou a reportagem, meu telefone não parou de tocar. Era um tal de parente, amigo da roda de chopp, colega de trabalho dizendo. “Pô, cara! Te vi na televisão! Aí, eu tomei gosto pela fama e estou aqui até hoje.
- O senhor é muito conhecido por suas aparições. Como o senhor sabe onde as equipes de televisão estarão?
 - Ah, minha fílha... feeling... Tem uns lugares básicos onde sempre tem jornalista de TV. Aqui, na Cinelândia é um deles. O Largo da Carioca é outro lugar fácil de achar repórter. A Praça Nossa Senhora da Paz em Ipanema também é outro ponto bom. Tenho que ficar atento aos horários também. Os jornais de manhã e da hora do almoço sempre entram ao vivo. Aí eu dou um uma arriscada por estes lugares e, de cada cinco, seis tentativas, uma eu acerto.
- O senhor não se incomoda de ser chamado de papagaio de pirata?
- Que nada, minha filha. Essa gente é invejosa. Já fiquei atrás do ombro de ministro, jogador de futebol, cantor de dupla sertaneja e até de um governador de estado. Tudo inveja.
- E a concorrência?
- Pois é. Apareceram uns caras agora que querem competir comigo, mas eu sou mais eu. Se for necessário, eu dou um chega pra lá e me posiciono melhor. Essa garotada tem que comer muito arroz com feijão para aparecer na televisão. Mas tem uns meninos que me respeitam, pedem até umas dicas. Pra estes eu até dou uma mãozinha, mas não ensino o meu pulo do gato.
- E quais são as dificuldades que o senhor encontra nesta sua atividade, seu Jair?
- Os cinegrafistas! São piores que os repórteres. Tem uns que já chegam dando esporro, mandando a gente ficar de longe. Outros desfocam a nossa cara, movem a câmera para deixar a gente fora de cena mas, eu já sou macaco velho e quando percebo o  movimento da câmera, dou um passo de leve para a direção que o cinegrafista aponta e fico em cena. Tem uns entrevistados que também ficam fulos da vida. Quando acaba a entrevista saem logo para a ignorância, dizendo que eu atrapalhei o desempenho deles e o diabo a quatro. Mas eu fico na minha, mantenho minha postura. Sou um gentleman. Não vou ficar dando cartaz a qualquer um.
- Afinal de contas, por que o senhor faz isto?
- Por quê? Para ser famoso, minha filha. Todo mundo quer ser famoso, aparecer na televisão. Você mesma não ta aí na batalha para ficar famosa? Aliás, de que canal você é?
- De canal algum. Isto aqui é uma reportagem para o jornal de faculdade de jornalismo onde eu e o Bruno, que está operando a câmera, estudamos. Vai passar só lá.
- Caramba, minha filha! E eu perdendo o meu tempo com você? Faça-me o favor! Jornalzinho de faculdade! Era só o que me faltava! Tá me achando com cara de palhaço? Que não tem o que fazer? Ora essa!





sábado, 20 de abril de 2013

Contos preguiçosos


Rui, metido a escritor. Preguiça de palavrear.
A história que fique por conta do leitor.

O PM Sá comia palavras, descomia regras. 
Abordava só com vil olhar. Levou  tapa do cego.

Bia pagou o chaveiro com cheque sem fundos. 
Belo dia:  não encontrou as joias na gaveta.

Ari entrou para o quartel dos paraquedistas. 
Era gago até para rezar.  Não viveu para o segundo salto.

Lis e o marido viviam grudados, uma coisa só.
Ela sentiu forte dor no peito e enviuvou na hora.  

Brás pegou a mãe transando com o padeiro anão. 
Até hoje vive com o pai. Na mesma cela.

O sol raiou nos olhos embotados de Zé. 
A insônia foi dormir e ele saiu atrasado para o serviço. 

Teo foi para cama com Ruth. Bateu soberba.
Gostou do tigrão, hein, gata? Asma, disse ela.

E  Rui teclou: "Fim".  Escrever dá trabalho.
Quem quiser que se lixe, que se inspire, que se divirta. 





quinta-feira, 18 de abril de 2013

O PULO DO GATO


Otávio Martins

   Já se viu de tudo neste mundo. Mas, essa do Tininho, é de tirar o chapéu. Tratando-se do Tininho, nada demais. Porém, do jeito que aconteceu, como lhes vou contar, pode-se considerar uma inovação na atividade da gatunagem. Gatunagem, não só pela característica do silêncio do gato, mas, também, que sempre dará a impressão do seu último pulo. Nada disso. Sempre terá o próximo e, será, sempre, o pulo do gato; para ser claro, o penúltimo.
   Tininho estava desesperado, o prazo. O último, sem mais delongas, ás oito horas da noite. Sabia que, se não comparecesse, conforme o combinado, a barra iria pesar para o seu lado. Sem grandes perspectivas, comentou com os seus dois amigos – na verdade, comparsas – “... é... desta vez eu não escapo...”. E seguiram rua acima.
   Dona Carmelita, mulher de fé, amiga de anos do Tininho, nem deveria andar com aquele dinheiro todo na carteira. Dia do seu pagamento. Se bem que saiu do banco e veio direto pra casa. Nunca comentou em que dia recebia a sua aposentadoria.
   A alguns metros antes, Tininho percebeu, não só pelo traje, mas, também – objeto que fazia parte do seu universo – o esforço da Dona Carmelita para assegurar-se que, daquela maneira, estaria protegendo a pequena carteira, na qual havia acomodado todo o seu benefício, um salário mínimo. Nunca fizera empréstimos ou coisa parecida. Costumava pegar todo por inteiro. Nada de descontos consignados. Mantinha os seus gastos, pequenos fiados, algum biquinho aqui e ali. Irrelevantes, comparados com o valor total da sua aposentadoria. Enfim, uma pessoa, financeiramente, equilibrada.
   O plano surgiu assim como aquela inesperada circunstância. Nem tempo para cálculos. Foi coisa quase natural, espontânea:
   - Quando eu trombar na velha, vocês saiam correndo, à toda.
   Dito e feito.
   Dona Carmelita, sentindo certo alívio e a sensação de estar protegida, ao perceber a presença do Tininho - como quem estivesse chegando - logo a seguir, descontando os gestos lentos, por causa da idade, talvez, comunicou:
   - Tininho, aqueles dois levaram a minha carteira.
   - Deixe que eu pego eles... Não vou deixar barato. E saiu no encalço dos dois.
   Logo ao virar a esquina, deixou passar alguns minutinhos, voltou com a carteira à vista.
   - Nem precisou, acho que perceberam que eu estava no encalço e jogaram pra trás.
   Entregou a pequena carteira à Dona Carmelita – que manifestou a sua gratidão – e saiu rapidamente para o encontro das oito. Antes, passou num daqueles bares do caminho, tomou uma cerveja acompanhada de um tira-gosto. Parecia ter-se safado, mais uma vez.
    No dia seguinte, à tardinha, quando Tininho ia passando pela casa de sua amiga, a Dona Carmelita, como era de costume, convidou-o para tomar o café preto com pipocas, recém feitas, quentinhas, ainda. Dona Carmelita, quase num lamento, contou pro Tininho que ficara mais sentida, era pelo fato de que o dinheiro que aqueles dois ainda tiveram tempo de tirar de um dos compartimentos de sua carteira – 150 reais – era, justamente, o que ela havia separado e reservado para lhe dar de presente pelo seu aniversário. Prometeu que logo, logo, assim que pudesse, voltaria a separar um troco pra ele.
   Depois dessa, o que terá se passado pela cabeça do Tininho, hein?





quarta-feira, 17 de abril de 2013









 …e no momento em que chegamos em sua casa, uma casa que eu já havia conhecido, lembrei de tudo o que eu havia visto ali. Os quadros de sua família, os rostos de antigamente, os móveis, os quartos, a cama que já havíamos partilhado. Eu estava feliz de estar ali novamente. Andei pela casa toda, revendo tudo o que estava em minha memória. Ela nada disse nem foi comigo. Ao voltar, vi que ela era familiar, seus modos, seu jeito de falar, andar, pegar na minha mão e beijar, não só a sua casa nem os quadros de sua família, os rostos de antigamente, os móveis, os quartos, a cama que já havíamos partilhado. Levei as mãos para o seu rosto e comecei a acariciá-lo, sorrindo por ter novamente familiaridade. Por aqueles segundos, eu senti que fazia parte de sua vida, como os quadros, as pessoas de antes, os móveis, os quartos, a cama. Todas essas coisas disseram-me que faziam parte dela e que estavam felizes por eu tê-las reconhecido. Agradeço por saber que o amor traz consigo tantos detalhes que animam um sentimento, e não lamento se ele acabou ou não...








terça-feira, 16 de abril de 2013

Vem também

Chamou a atenção do motorista e de alguns passageiros quando subiu, cambaleante, os degraus do ônibus, parecendo embriagada. Algumas mechas caíam-lhe do rabo de cavalo malfeito, grudando-se ao suor do rosto lívido. O corpo encurvado, a mão trêmula sobre o ventre e o rosto que se contorcia em esgares faziam pensar no que estaria acontecendo àquela menina magra de pouco mais de 18 anos. Olhos baixos, como se a claridade a incomodasse, aceitou o lugar que lhe foi oferecido por milagre no veículo lotado. Tão logo se sentou, sentiu as carnes repuxando por dentro e uma dor muito forte no peito, impedindo-a de respirar. Alguma coisa não tinha dado certo. Ela ainda podia sentir os ferros da fazedora de anjos arrancando, indiferente, o seu destino indesejado. Por entre as pernas dormentes, escorreu um sangue escuro, sujando a calça jeans surrada, mas ela manteve as duas mãos pressionando a barriga, mostrando que só ali havia sofrimento. Quase desfalecida, foi deixada por uma alma anônima num hospital público, onde morreu sozinha no chão sujo do banheiro, poucas horas depois, esperando atendimento. Antes de fechar os olhos para sempre, escutou o chorinho fraco de bebê e a voz de criança que lhe pedia: “Vem, mamãe, vem também!”. 
 





segunda-feira, 15 de abril de 2013

maria(s)





Que era uma menina, disse-o a Senhora Benvinda num tom de mágoa:
– Olhe, é uma menina! – e a mulher, a cortar o cordão, quereria avisar da desgraça que sempre se iniciava no nascer de uma filha.
Maria Vasilima.
O pai insisitiu que ela fosse baptizada desse modo desusado.
Um homem de trabalho, Ernesto Demóstenes deixou-lhe esse nome estranho como única herança. Morreu na semana mesma de ela ter nascido. Terá guinado em demasia o eixo da carroça, e foi encontrado falecido debaixo dos legumes e da fruta com que ganhava a vida.
Até ter a idade de levantar-se nas perninhas, Maria Vasilima era apenas uma menina muito morena e muito rechonchuda. Mas a dar os primeiros passinhos, logo mostrou aquele andar muito mais que ser apenas bambado num corpinho sem graça.
Falaria tarde e com defeito no modo de dizer os ésses: cuspia as letras na língua carregada de saliva a espreitar disforme entre os lábios. E pronunciaria mal a maioria das palavras, ou porque as engolia, guturais e roucas, ou porque lhes trocava as consoantes. E, sobretudo, porque nem percebia como havia de empregá-las.
– A Maria é parva!
Diria assim dela o irmão Fernando, filho do Manel Serúdio, que a mãe tinha sido junta com esse homem que morreu tuberculoso. Tinha tido aquele filho, muito antes de Maria Vasilima.
E haviam de dizer que ela era poucochinha. Ou diriam: aquela moça não tem todo o tino.
E haviam de apelidá-la de demente, e ela rindo e babando-se, a segurar uns fios de lã com que gostava de enfeitar-se depois de os aldrabar com as agulhas.
– Estou a fazer malha como as senhoras! – entaramelava a rir um riso de menina tola.
E na idade de ir a uma escola, nunca a aceitariam:
– A menina não tem qualidades – diria a professora.

Maria Vasilima a quem a mãe batia por tudo e por nada, era também sovada pelo irmão.
– Maria, vai buscar vinho! – gritava-lhe ele, e gritava-lhe também a mãe.
E ela demorava-se. Ficava pelas tabernas.
Os homens ofereciam-lhe rebuçados.
– Queres chupar, Vasilima?! – diziam-lhe, e riam-se, alarves.
E ela que já adulta seria sempre uma criança, não entendia.

Se nem tinha entendido quando o irmão se escarranchou em cima dela, ainda mal tinha a idade de ter sido senhora. E nem gritou a dor que sentia, que a não deixavam as manápulas dele a taparem-lhe a boca. E se não morreu dessa vez a desfazer-se em sangue e lágrimas, também não morreria quando o velho Pascoal a recostou nas redes que remendava às tardes. A ela pareceu-lhe até que o homem lhe ia contar um conto, e Maria Vasilima tinha esse gosto de ouvir contos. Mas o velho nem disse uma palavra, e tratou-a como ela via os cães fazerem com as cadelas. E ainda lhe descoseu a saia, o que lhe valeu uma sova com o cajado como a mãe fazia quando o irmão vinha bêbado ou não lhe entregava a féria.

A mãe de Vasilima guerreava muito.
– Andas por aí a beber e a dar-te aos homens – dizia – és a minha vergonha.
Que os homens ofereciam-lhe:
– Queres um rebuçado, Vasilima?!