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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Sevillanas

Carolina Benazzato

Onze e quarenta e cinco, anunciava o relógio. Anoitecera, embora ninguém tenha se preocupado em acender as luzes. Talvez em nome da agradável penumbra avermelhada no quarto, traçada a partir do abajur do contista; talvez pelo destaque que o escuro possibilitava ao som do piano vindo daquele mesmo cômodo. Um dó, um ré, um mi. Um fá. Um sol, ao fim da luz vermelha, e na primeira margem da folha vazia. Sentou-se na cadeira de madeira, recostando-se. Ao seu lado, os dedos prosseguiam a pressionar fortemente as teclas do canto direito do piano -- as agudas, doces, de cor azul-púrpura. Poderia estar enganado, reconhecia, mas tinha a impressão de estar ouvindo, de modo consideravelmente longínquo, o leve som da batida de castanholas. Levantou-se e certificou-se de destoar o trinco enferrujado da janela. Precisava de mais sons além dos provenientes do dó, do ré, do mi, além das vozes caladas, da forte batida de seus dedos nas teclas de sua máquina de escrever Olivetti. Precisava do silêncio que os demais sons traziam. As castanholas pareciam seduzí-lo, e puxavam-no pela gravata -- ato seguido por um olhar proibido. Seduziam-no tanto quanto o roçar da barra do vestido nas pernas. Lábios vermelhos, mãos delicadas.
Pele com pele.
Perdeu-se em sensações, convicto de que são as únicas coisas que carrega consigo...
... e então avistou.
O fez ainda de longe, mas certo de que tratava-se de barras de vestido, de pernas e de lábios -- avistou as castanholas -- e de mãos. Certo de que tratava-se de uma cigana.

Atentou-se aos cabelos longos, bem escuros, enrolados. Aos olhos acizentados, aos lábios, delicados como as maçãs de seu rosto. O vestido vermelho cobria sua cintura fina, roçando nas pernas atraentes. Uma flor escarlate presa em sua cabeça, e brincos de argola. Sua expressão trazia a mesma luz da quinta nota musical, e, então, o barulho -- o som do piano abaixava cada vez mais, até atingir tons inaudíveis. As vozes, antes caladas, passaram a marcar presença em sua mente quando lá acumularam-se. Perdeu-se nelas, certo de que assim somos movidos.
Perdeu-se por um longo tempo.
Apoiando-se na batente da janela, redirecionou sua cabeça em direção à lua e fechou os olhos. Imaginou-se girando a maçaneta dourada da porta de madeira com um breve movimento de suas mãos, e viu-se correndo em direção ao som das castanholas, tão impreciso e sedutor. Desejou suas próprias mãos completando o vazio que havia ao redor daquela cintura -- em seus semotos pensamentos, já há tempos ansiava que não mais estivesse envolta por cetim vermelho algum. Via a mesma penumbra vermelha de seu quarto iluminando-a, refletindo-se naqueles olhos nublados. E o oco som das castanholas prosseguia a soar de suas mãos delicadas. Um passo, seguido por outro. Seus pés tocam o piso de madeira, em uma sequência ritmada às suas mãos. Seus braços se dobram para atrás, e sua cintura move-se para lá e para cá, em movimentos discretos, porém um tanto chamativos aos olhos do rapaz. A atraente cigana move seu braço esquerdo para a direita, e suas pernas realizam movimentos que fixam a atenção. A mão direita é erguida em direção à lua, e lentamente abaixada acompanhada pelo leve soar das velhas castanholas. A barra de seu vestido é erguida por suas mãos, tão finas e belas, e, infelizmente, sentiu o contista, logo abaixada, dando uma volta quase completa ao redor de suas canelas, e então retornando à sua posição inicial.
O homem decidiu aproximar-se, seduzido por seus movimentos. Todo o seu ser desejava intensamente aqueles lábios, aquelas mãos, aqueles olhos nublados, chuvosos. Por toda a sua vida nunca desejara tanto alguma mulher como ansiava por estar o mais próximo possível daquela cigana naquela noite. Ergueu suas mãos, fortes, masculinas, em direção ao rosto da mulher mais bela que já vira em todos os seus anos de vida.
...
Duas e dezessete, anunciava o relógio. Logo após encaixar a folha vazia em sua máquina de escrever, o contista compunha um novo escrito ao som de castanholas. Poderia estar enganado, sempre o reconhecia, mas tinha a impressão de estar ouvindo, de modo consideravelmente longínquo, o açucarado som de uma flauta...

_

Carolina Benazzato
Vive em São Paulo, no compasso dos ponteiros do tempo, com a presença do afeto verdadeiro de quem ama sempre presente em sua órbita — inconstante, por ser sempre crescente. Adora a adocicada voz da esperança, aos sussurros. Sempre enxergou no mundo das palavras um universo paralelo, onde pode agir reconhecendo sempre ser alguém que não sabe ao certo quem é. E ainda assim age como se isso fosse possível.
www.sonhosdescritos.blogspot.com





segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

(Des)encanto 2012

Ricardo Mainieri

Fecha-se o ciclo do ano

em círculos
move-se a vida volátil 

como certas retrospectivas

que a tevê
teima passar em reprise 

o que se projeta
no horizonte do mundo?

a paz ou projéteis
riscando a quietude da tarde

esta dúvida arde
os corpos também 

alheios ao fogo cerrado
no consumo de mimos & modas 

enquanto outros tramam 
uma espécie de morte

dos sem rumo & dos sem sorte.



RICARDO MAINIERI
Poeta contumaz e prosador ocasional. Porto-alegrense, nascido em 1960. Publicitário por escolha, funcionário público por sobrevivência. Autor do livro "A Travessia dos Espelhos" (editora IEL/IGEL) e integrante de várias antologias literárias.
http://www.mainieri.blogspot.com





quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Fim



A rapariga lá estava, desconjuntada no passeio público, nuns preparos que nunca acreditaria em vida: uma perna para um lado, a outra para o outro, a saia sem preceito deixava ver as cuecas molhadas por falta de controlo biológico no momento de tensão extrema, um espectáculo triste que nunca teria permitido se o soubesse.

Á sua volta borbulhavam curiosidades, uma coisa para contar no dia seguinte, quando fossem tomar o café da manhã no emprego. Ninguém estava ali para ajudar - a miúda estava claramente para além de qualquer ajuda neste mundo, imóvel e descomposta na praça pública.

A polícia chegou. Afastaram o público em geral, olharam para cima à procura da janela, mediram e anotaram todos os centímetros. Também eles não estavam ali para ajudar, só para tomar conta da ocorrência e descobrir, se possível, se tinha sido desgosto de amor, assassínio ou uns copos a mais.

A ambulância veio. Conferenciaram com a polícia e um tipo gordo e de cabelo gorduroso tomou notas e assinou a certidão de óbito. Mal olhou para ela, tão obviamente morta da queda. Mas também ele não estava ali para ajudar; precisava de lá estar, o ordenado ao fim do mês punha o pão na mesa da família e pagava a educação dos filhos, um par de gémeos alegres e cheios de vivacidade.

Deixaram inscrita na via pública uma silhueta a giz, retrato obsceno da sua pose involuntária.

Tarde na noite, o cão passou por ali. Cheirou e voltou a cheirar, ganiu sabe-se lá porquê, avançou, voltou para trás e por fim levantou a perna e urinou no giz, apagando a sua figura patética e sem defesa.

O mundo ficou mais pobre, nesse dia. Ninguém notou e o cão não sabia, um cão não percebe nada destas coisas. Porque terá ganido o cão?





quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quotidiano fantástico – Atacama na minha cozinha


Joaquim Bispo



Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos – método brutal que desaprovo, talvez inspirado nas soluções nazi-ianques – mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu completamente.

Uns quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de espesso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre os flocos e banqueteavam-se, suponho; não apurei se transportavam minúsculos pedaços da iguaria para a sua base, que imaginei na parede, por detrás dos azulejos.
Não tenho nojo das formigas nem das abelhas, como tenho das baratas ou das moscas. Não me passou pela cabeça deitar fora os flocos. Mas, como limpá-los? Passá-los por água estava fora de questão. Peneirá-los? As danadas não largariam tão facilmente o seu pedaço. Pô-los no micro-ondas também não era opção, porque além do desagrado de matar as bichas, ainda ficaria com uns flocos com um sabor um pouco picante, acredito. O ideal seria fazer com que abandonassem o pacote e não retornassem. Mas como?

Lembrei-me, então – baseado nos métodos de baixa intensidade dos camponeses para preservar os seus produtos dos roedores, e mais como brincadeira de miúdo a descobrir as maravilhas do mundo animal, que como experiência promissora – de pendurar o pacote por uma longa e fina linha de costura ao teto, sobre a mesa da cozinha. A ideia, sem grande esperança de êxito, era que a necessidade de manter contacto com a base as obrigasse a procurar a saída e que, abandonando o local, tivessem dificuldade em reencontrá-lo. Como efeito inesperado, em resultado do peso estirando uma linha torcida, o pacote começou a rodopiar.
Não creio que esta rotação as incomodasse, e, pouco depois, já algumas tinham encontrado a linha, que iam explorando, avançando um bocado, voltando atrás para transmitir informações, regressando à descoberta. Quando me fui deitar – umas três horas depois – a linha estava carregadinha delas e várias já exploravam a vastidão desértica do teto liso. Na manhã seguinte, o pacote estava livre de formigas. O pacote e a casa. Nem uma. Desapareceram todas. E passaram-se meses sem voltar a vê-las.

Ao imaginar a pequena odisseia das formigas, obrigadas a trepar uma a uma, às escuras, por uma linha rodopiante interminável, para escapar ao isolamento forçado, surgiu-me naturalmente a comparação com a saída dos mineiros chilenos das profundezas da mina de cobre no deserto de Atacama. As situações tinham muitos pontos de contacto. Pus-me mesmo a calcular até onde chegava a similaridade. Na verdade, tendo a linha pouco mais de metro e vinte, e as formigas três milímetros, a relação corpo – distância ao teto era semelhante à do resgate dos mineiros chilenos: 1/400. Bem, se calhar, arredondei um pouco as contas…

Certamente que foi muito mais fácil para as formigas treparem, às escuras, por uma linha rodopiante até escapar do pacote de flocos, do que os mineiros chegarem à superfície. Mas, quando a linha acabou, aquelas não tinham a comunicação social, nem o presidente das formigas à espera, e ainda tiveram de atravessar o “deserto de Atacama” do meu teto e descer pelas paredes até à saída deste mundo inóspito onde os deliciosos flocos de chocolate, de repente e imprevisivelmente, ficaram tão remotamente isolados como o fundo de uma mina de cobre no Chile.

Bem, eu não estava lá para ver…





segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Em dias assim conforta-me ler poesia


Detesto-me em dias assim, assim desse jeito triste. Fico nos cantos, ando nas sombras das pessoas. Peço desculpas pelo que não fiz. Recolho-me em um quanto, apago a luz e espero as lágrimas cairem. Em dias assim eu não choro, não consigo, as lágrimas não caem. E isso, faz com que sinta-me mais triste.

Não gosto de estar em casa nesses dias, não gosto de estar entre as gentes. Parece que eu acinzento a vida alheia. Não gosto de cinza, não gosto de acinzentar a vida de ninguém. Tento recolher-me, mas isso também incomoda. Que fazer, não quero incomodar, mas a minha presença causa isso. Conforta-me em dias assim ler poesia, leio Álvaro de Campos:

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral! 

Não quero nada. Não me falem em moral. Repito esses versos, há algo em Lisbon Revisited que conforta-me há algo, que alivia a dor em mim. O grito que tranca em meu peito, ganha liberdade nos versos do poeta. Penso em ser poeta em dias assim. Gritar a dor que sinto e juntar-me a outros que anseiam gritar com o meu grito. Mas eu não grito, o que sobra em sonhos, falta-me em força. Eu me sinto só, acizento-me.

Em dias assim, gosto de ir ao cinemas. Lá é escuro, a grande tela convida-me a sonhar, a descobrir novos mundos, a gostar de viver; a grande tela protege-me da dor que tenho. No cinema, posso ficar no escuro, quieto, sem acizentar ninguém. No cinema, minha presença não incomoda ninguém. No cinema posso ficar triste, sem perturbar, ficar calado, sem atrapalhar.

Em dias assim eu me sinto confuso, sem voz. Quero falar o que me acinzenta, mas as palavras saem brancas no papel. Grito sem volume. Minha fala não encontram ouvidos, minhas palavras não encontram leitores. Os únicos que param para me escutar em dias assim são aqueles que como eu não tem voz. Mendigos, bebados, loucos, prostitutas e os artistas.

Sinto-me tão ultrapassado em dias assim. Acho estranho o mundo, acho estranho que você seja obrigado a ser feliz e a sorrir sempre para agradar; acho estranho você ter que beijar alguém sempre que sai, mesmo que não queira, mesmo que não goste daquela boca. Acho estranho ter que saber o que acontece no twitter ou facebook, quando quero apenas saber como você está; Acho estranho falarem em liberdade quando para ser livre é preciso pensar como os outros, ouvir as mesmas músicas e assistir os mesmos programas. Eu sinto-me perdido nesses dias porque não quero um música com melodia simples; quero sentir o esforço de quem compõem. Quero saborear algo feito com esforço, algo que faça pensar, algo que não seja comum ou feito para agradar a todos. Sinto-me só e perdido nesses dias porque todos que eu conheço são vencedores, como fotos coloridas e sorrisos brilhantes expostos na tela do computador. Lembro de Álvaro novamente "Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo". Sinto-me ultrapassado, velho e cansado lendo poesia. A literatua é coisa do passado, mas encontro mais da humanidade nela do que nas páginas de jornais e de revistas; mais do que da tela da televisão; encontro mais humanidade nas folhas velhas de um livro velho do que nas conversas com as pessoas. E querem que eu me case, casar para quê? "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?"

Eu tento vestir o terno, usar a gravata, assistir TV e escutar o rádio. Esforço-me por fazer parte dessa vida moderna, mas eu fracasso sempre. Falta-me paciência, falta-me algo. Sinto-me com defeito, estragado, fora do circulo. Não consigo entender e enquadrar-me no tempo, nesse tempo em que estamos. Não consigo entender porque a palavra empenhada não tem valor, porque a amizade se transformou em influência e porque com tanta tecnologia e comunicação esquecemos de olhar no olho e dizer eu te amo. Ao contrário de todos os meus conhecidos eu não sou campeão em nada, "Eu, que venho sido vil, literalmente vil" decidi que vou continuar cansado, ultrapassado e velho. Vou continuar lendo poesia porque ainda encontro nos versos do poeta os resquícios de um mundo que não vejo mais.





sábado, 21 de janeiro de 2012

Purgatório

Está se vendo que você nunca se apaixonou, não é, meu caro? Dizem que paixão é uma coisa avassaladora, uma fábrica de loucuras. O Frejat ilustrou bem isso naquela música, como era mesmo a letra? Deixa pra lá. Isto não deve ser do seu interesse, não é mesmo?
Apesar de estar apaixonado julgo que, o que fiz por Lívia, não foi uma loucura de amor, pensei inclusive estar agido da maneira correta e olha o que me aconteceu? Aonde vim parar? Caso houvesse cometido um desatino amoroso, certamente a história teria sido outra e hoje estaríamos juntos e felizes curtindo o nosso amor.
Confesso que a primeira vez que eu a vi, Lívia não me despertou a mínima atenção. Mal a notei, diluída naquele vai e vem de gente transitando dentro do restaurante de comida a quilo da sua família. Na verdade, eu estava faminto e os predicados do sexo feminino me interessavam menos do que um suculento prato de comida, baratinha, como mostrava o cartaz do lado de fora do estabelecimento.
Ela era a encarregada de servir as bebidas do restaurante. Ficava de um lado para o outro zanzando com uma bandeja apinhada de garrafas e copos, sempre comandada aos berros por aquela senhora de maus modos que tudo fiscalizava por detrás da balança onde os pratos eram pesados. “Lívia, não esqueça o refrigerante do moço lá no fundo! Vamos logo, menina, deixa de preguiça! Você é uma estabanada mesmo, não serve pra nada!” Elogios daquela mulher, eu creio que minha amada nunca tenha ouvido.
Compunha o resto da família um sujeito mal encarado que ficava no caixa, invariavelmente trajando a camisa do Botafogo. Pouco falava, muito grunhia para os clientes ao devolver o troco.
A comida não era grande coisa, mas por aquele ser o restaurante mais próximo do trabalho, tornei-me seu habitué e, pouco a pouco, fui reparando na beleza rústica de Lívia. Tinha o meu amor o rosto redondo, sardentinho, decorados com dois olhos chamativos, nunca soube ao certo serem verdes ou azuis, e um cabelo cacheado, ruivo e há tempos longe de um cabeleireiro. Seu corpo era de uma leve obesidade disfarçada por uma coleção de calças jeans que modelavam sensualmente os quadris. O busto, farto, se escondia atrás das camisetas t-shirt de algodão em cores e estampas berrantes. Aparentava pouco mais de 18 anos e uma enorme vontade em largar a escravidão familiar a que era submetida.
No final de uma semana eu já era um homem apaixonado. Contudo, nossa aproximação foi lenta e gradual. Trocávamos parcas palavras e fartos sorrisos maliciosos sempre que Lívia vinha servi-me o refrigerante. Certa vez, fui até audacioso e toquei de leve sua mão enquanto ela depositava o copo sobre a mesa. Lívia assentiu ao toque, contudo, não deixei de notar que ela procurou com olhos certificar-se de que, nem a mãe e o irmão haviam reparado em minha ousadia.
 No dia seguinte à cena, ela disfarçadamente deixou em minha mesa um pedaço de folha de caderno onde estava escrito “eu te amo” em garranchos quase infantis. A singela frase vinha acompanhada de dois corações entrelaçados mal desenhados. Feliz como um adolescente correspondido, guardei no bolso o recado ao mesmo tempo em que acompanhei com os olhos Lívia sumir em direção à cozinha do restaurante. Decidi que não passaria daquele dia mas, homem feito que era, desejei  que as coisas fossem feitas às claras. Não estava em idade de namoros escondidos.
Resolução tomada, deixei a mesa onde costumeiramente almoçava e fui ao encontro do irmão de Lívia. Ele parecia mais trombudo do que seu estado normal. A mãe encontrava-se seu lado na caixa registradora, certamente conferiam a féria do dia e não gostariam de ser incomodados, porém, eu tinha que falar com os dois acerca dos meus propósitos com a moça, como eu havia dito, desejava agir da maneira correta.
A senhora me recebeu munida de um sorriso amável, pois já se acostumara com a minha presença no restaurante. O botafoguense mal tirou os olhos das contas que fazia numa calculadora. As palavras jorraram da minha boca descontroladas: “Bem, já faz algum tempo que almoço neste estabelecimento e só tenho elogios à comida aqui servida, mas, não é disso que desejo falar com vocês. É sobre Lívia. Sei que pode parecer estranho, mal nos conhecemos, mas, o amor tem dessas coisas. Sou um sujeito decente, respeitador e minhas intenções com a menina são as melhores possíveis. Preferi falar com os dois antes até do que com ela que, desculpem a o modo de me expressar, já tem correspondido a minha paixão. Gostaria de pedir permissão a vocês para..”.
Nunca imaginei que o botafoguense guardasse uma arma atrás do balcão. Aliás, deveria sim ter imaginado, pois a cidade andava muito perigosa naqueles tempos. Só não poderia supor que o sujeito era o marido de Lívia e a aquelas senhora tratava-se na verdade de sogra da moça. Mas como é que eu iria saber? Os três eram tão parecidos. O cara nem me deixou explicar o lamentável engano. Os tiros foram mortais. Nem cheguei a experimentar sofrimento. Descobri que se perde a consciência quase que imediatamente com várias balas alojadas no seu cérebro. Agora estou aqui, neste purgatório, esperando a minha triagem para a morada final. Você ainda vai demorar muito a decidir, meu caro? Veja bem. Fui um sujeito honesto, cumpridor dos meus deveres, bom cidadão. Apenas traído por uma paixão arrebatadora, não sabia que Lívia era casada. Também, ela poderia ter me dito, não é verdade? O senhor é um anjo? É o responsável por este local? Amar a mulher errada não é um pecado que justifique minha passagem para inferno, não é verdade? Poderia, por gentileza, avaliar com simpatia a minha situação?





sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A deusa da chuva

E choveu o ano inteiro em 21 minutos.

Enquanto o ônibus não chega, perambulo os olhos pela rua, cantarolando as águas de Tom Jobim, e encontro Cristina num cantinho de paus, pedras, restos de toco, um toco sozinho. Não uma Cristina gente, morta ou viva, carente ou determinada, enérgica ou entregue à sorte impiedosa do verão, da natureza e do descaso. Mas uma Cristina de papel, plastificada, enlameada, materializada por um CPF sem rosto,
discreto e sujo, que me dá pistas sobre sua pessoa.

De cara, descubro que é uma mulher. Está escrito em letras gagas de uma Remington: Cristina Vidal Sotero, ao lado um número borrado, e no verso uma assinatura legível e inspiradora. Decifra-me, diz o garrancho. Sou traço tosco de vítima do desprezo histórico que se tem pela educação dos pobres. Trata-se, então, de alguém que rala na vida, que não veio ao mundo a passeio. As maiúsculas tentando arabescos eruditos e as minúsculas finais apressadas tentando acabar com a lenga lenga que é para tanta gente assinar um documento.

Cristina não é um nome que defina idade. Mas não me parece uma pós adolescente, considerando que o CPF é daqueles beges e grandões, anteriores aos cartões azuis magnetizados que dormem com cartões de créditos nas carteiras ricas.

Vidal, o nome do meio, insinua que a dona do documento perdido possa trazer raízes ibéricas,remotamente francesas, mas a preguiça mental me leva a encurtar caminho da história e admitir que seja descendente de uma sinhá de além mar, que deu com os navios nas costas da Bahia, tendo envergonhado a família ao se enrabichar por um cafuso típico, indolente por parte de pai e fogoso por parte de mãe. E saíram, colonizado e colonizadora, às cópulas pelas alcovas a povoar a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Na enésima geração nasceu Cristina. Claro que está tudo explicado: seu último sobrenome é Sotero, ó, ó, ó, digo isso meio girando repetidamente a mão direita com o polegar e o indicador em curva
formando uma pinça, o gesto vulgar que denota ligação infame, ó, ó, Sotero de salvador, polis de cidade, sacou? - adoro palavras cruzadas: nascido em Salvador, vertical, 14 letras.

Pronto. Definida a origem da criatura. Resta agora o quesito “o que faz na vida além de explicar que perdeu documentos na chuva”. A caligrafia me cochicha: talvez seja diarista, talvez costureira, talvez balconista, caixa de supermercado. Pode ser faxineira, trocadora, a moça do café,a rainha dos serviços gerais numa empresa próspera e socialmente responsável.

Nada disso. Que seja uma cozinheira, de forno e fogão, de panelas de ferro e de barro, uma Gabriela de cravo e canela, uma Dona Flor sem maridos aparentes.
Decidi. Sua moqueca é de arrasar, seu xinxim é de se lamber os beiços,
seu vatapá é um manjar de deus e do diabo, honra e glória dos Vidal Sotero,
que fizeram história nos sobrados do Pelourinho, manera no dendê, minha filha, minhas entranhas não aguentam mais tamanha perdição,
já basta o acarajé que me ofertaste e a pimenta que me ardeste.

Cristina Vidal Sotero já é íntima. Juro que descubro seu paradeiro.
Vou de rua em rua nas redondezas, de soleira em soleira, curioso tenaz,
encontro enfim a dona de história tão rica, dotes tão saborosos, sorriso generoso e um corpo surpreendente, esculpido por Jorge Amado. E me esvai a fala, aflauto a voz.

Você é Cristina Vidal Sotero?
Sim, senhor.
Estou mais perdido que seu documento.
O senhor achou? O destino achou.
Então entra, tem recompensa, vem provar o gosto que a baiana tem.

E diante de tantos encantos noite adentro, ouso retribuir com um mimo.

Cristina, sou herdeiro único de uma tia abastada,
que me deixou um domaine na Normandia.
Um quê, moço?
Um castelo na França, entendeu agora?
Pois prossiga, senhorinho formoso.
Indo direto ao ponto: quero levar você para morar comigo nas terras dos bons vinhos,
da culinária soberba e das vacas premiadas.
Mas eu não cozinho em francês, seu dotô.
Vai como minha mulher, há quem obedeça a suas ordens naquela vida boa.
E se eu sentir saudade do tempero da Bahia?
Mando trazer de avião.
E se painho der por minha falta?
Vem de avião também.
E como fica o calor da nossa terra?
Te aqueço, minha deusa, nos meus braços, nos meus abraços.
Mas não tenho CPF para tirar passaporte, moço, esse não presta mais.

Danou-se. Olho o documento encardido e inútil. Penso em entregar a um Guarda Municipal - deve haver uma porta escrita Achados e Perdidos em alguma repartição da Prefeitura. Imagino carregá-la no bolso, para sempre comigo, tenho tia abastada nada, sou um impostor, mas ofereço minha gaveta de moradia, meu quarto e sala é a Bahia, minha cama é o Pelourinho, me açoita, morena, vem, morena, vem seguir os desígnios dos santos do acaso, dos anjos dos sonhos, dos deuses da chuva.

Para tudo. Quem vem vindo agora é o ônibus lotado de realidade e juízo.
Escapando entre meus dedos, deixo Cristina carinhosamente no meio fio de onde veio.
No pau, na pedra, no resto de toco, no toco sozinho. E sigo, e subo, e suspiro, e sento no último banco. Estico meus olhos àquele documento, que, acho, me olha também. Fecha o sinal da esquina, providência para um teimoso raio de olhar.
Vejo na rua que ficou para trás um gari de perna fina, moroso e indiferente, passando a chuva a limpo,parando e olhando para um reles CPF jogado no chão.
Antes da vassourada de misericórdia, ele se abaixa, pega e lê: Cristina Vidal Sotero.

Tenho vontade de botar a cabeça pra fora da janela: tira a mão daí, moleque!





terça-feira, 17 de janeiro de 2012

PIANO SÓ(NETO)


sons puros tintos de preto e branco
escancaro diante deles as janelas da alma
deixo que venham, que entrem, que passem
pelos meus mais escuros cantos

notas noturnas, acordes perfeitos
me iluminam na aurora antecipada
aquecem o que em mim já quase morria
de frio, solidão, incerteza ou medo

vibrações leves, trinados, legatos
dedos mágicos sobrevoam o teclado
espuma suave que avança scherzando

melancólico piano que me habita
grita ao mundo minha dissonante melodia
antes que rebentem as cordas do desejo




marcia szajnbok





segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Monólogos em desencontro



Olhou para as unhas esmaltadas mais uma vez. Em seguida, colocou na palma fina da mão um pouco do creme que mantinha sobre a cômoda, concentrando-se na tarefa de esparramá-lo. Enquanto esfregava os dedos longos, tentava se lembrar onde havia deixado o anel.
— Pronta? — perguntou Ernesto.
— Quase. Viu o meu anel?
— Em cima da pia do banheiro.
A joia de rubi, herdada da avó, era a predileta de Clarice. O vermelho escuro da pedra, em contraste com sua pele branca, parecia uma gota de sangue sobre a neve. Tem personalidade, pensou, admirando, mais uma vez, o anel.
— Clarice, você ainda não está pronta? — perguntou-lhe novamente o marido, dessa vez, impaciente.
Sem lhe dar resposta, ela fechou-se no closet, temendo que Ernesto percebesse em seu rosto o desprezo que sentia por ele.
Não, não tinha sido assim desde o começo. Conheceram-se jovens. E aos jovens é permitido sonhar futuros. A vida apostara neles uma pule de dez, mas não lhes dera alertas de que seria na arena do presente que as disputas se dariam. Amavam-se... Amaram-se...Essa dúvida não a deixava apaziguar os sentimentos. Precisava saber, ter certeza de que tudo já se transformara em nada.
Interrompeu os pensamentos, mexeu levemente no cabelo, ajeitou as alças do sapato e pegou a pequena carteira de cetim que estava em uma das prateleiras. Quando tentou fechar o vestido, percebeu que não conseguiria fazer isso sozinha.
— Fecha para mim? — pediu ao marido.
As mãos dele sobre as suas costas provocaram-lhe um pequeno arrepio. Virou-se suavemente, a tempo de perceber que a sensualidade do momento era só um engano seu. Ernesto, cenho franzido pela irritação do atraso, conferia o relógio como se pudesse fazê-lo reter a hora.
Havia uma festa esperando por eles. Ernesto tinha fechado ótimos negócios para a empresa e os sócios estavam lhe prestando uma homenagem. Como a homenagem do ano anterior, por causa dos lucros que depositara em suas contas. Ou a de dois anos antes, quando Ernesto abrira três filiais na Europa. Ernesto, Ernesto, Ernesto!
Havia uma festa esperando por Ernesto. E por ela? Impecável, perfumada, sorridente, invejada, ela era apenas a mulher de Ernesto. Onde está Clarice? — cantarolava uma vozinha zombeteira em seus ouvidos. — Clarice foi embora...
— Esqueci a minha estola — disse, voltando ao closet.
Sempre a mesma coisa. Uma estola, um brinco, um espelhinho de bolsa, uma desculpa qualquer. O suficiente para que engolisse sem água e rapidamente o "comprimido da alegria", como ela se referia ao calmante.
No carro, sem se falarem, como lhes era habitual, Clarice pensava em quando fora, afinal, a última vez que tinham se amado. Faziam sexo regularmente, talvez três ou quatro vezes por semana. Mas ela queria amar.
Em breve, chegariam à casa dos amigos, e aí sim ele conversaria com ela. Falariam de viagens, do carro novo ele lhe dera de presente, da caixa umedecedora repleta de Davidoffs que recebera da filial da República Dominicana, dos planos para as festas de fim de ano. Depois, num instante em que ela estivesse distraída, ele fugiria para uma roda de homens, na biblioteca ou em volta da piscina, onde retiraria a máscara e falaria de negócios.
Onde está Ernesto? — a vozinha voltava, atrevida. — Ernesto foi embora... Segurando mais uma taça de champanha, a quinta desde que tinha chegado, Clarice afastou-se do grupo buliçoso. Do outro lado da sala imensa, subiu disfarçadamente a escada para o andar superior, onde sabia que uma sacada fresca e quieta estaria aberta. De lá, podia ver Ernesto conversando com os sócios no jardim. Ele sorria e contava alguma coisa que prendia a atenção de todos. Como acontecia entre ela e ele quando ainda confiavam um no outro.
Faz quantos anos que Ernesto não conversa comigo? — pensou. — Que não pede a minha opinião sobre nenhum assunto sério?
Um ardor em sua mão obrigou-a a voltar os olhos para o corte provocado pela taça quebrada entre os seus dedos. Que se dane você, Ernesto! — sentenciou, enquanto procurava um banheiro para cuidar do ferimento.
Naquela noite, em casa, Ernesto lhe disse que ainda tinha trabalho a fazer e retirou-se para o escritório instalado no térreo. No quarto, sonolenta, Clarice pensou que talvez já tivesse passado da hora de separar-se dele. Estava farta do provedor que a presenteava com joias cada vez mais caras — dadas somente em ocasiões convencionais —, que a comprava com cartões de crédito ilimitados, que lhe dava sexo sem fantasias, sem amor, sem sentido. Ela o odiava. Tinha nojo dele. Queria ser adulada, queria receber um presente roubado do jardim, queria ganhar um abraço apertado.
Amanhã... Amanhã eu me livro disso tudo — pensou, entregando-se ao sono.
Ernesto desligou o computador, apagou a luz, mas não saiu do escritório. Preparou e acendeu um charuto, deixando que o cheiro forte do tabaco o impregnasse. No minibar, serviu-se de uma dose de uísque sem gelo, sentando-se em seguida na grande cadeira de espaldar alto que ficava próxima à janela.
Clarice já devia estar dormindo. Não era preciso mais que uma dose para garantir que não a encontraria acordada. E ele poderia dormir sem ter vontade de tocá-la.
Toda noite, esperava que ela lhe dissesse alguma coisa. Que lhe perguntasse sobre o seu trabalho, que conversasse sobre política, ecologia, música, qualquer tema! Esperava que ela lhe pedisse um beijo, que se encostasse nele para dormir.
Estava cansado de Clarice. Dos seus silêncios repletos de frases retidas. Estava farto das acusações que lia em seus olhos, do desprezo que ela lhe entregava em cada gesto ou fingimento. Antes, não era assim entre eles.
Os anos consumiram a Clarice que ele amava. Ou tinha amado. A Clarice que ria sem conveniência, que dizia o que pensava, que chorava de alegria. Os cabelos curtos e as roupas recatadas daquela mulher que se deitava agora ao seu lado não pertenciam à jovem decidida que o arrancava dos estudos para fazer amor com ele até a exaustão. Mas teriam sido mesmo os anos? Ele também se sentia diferente. Sem paciência, irritadiço, confuso, entediado. A gente muda mesmo sem vontade — disse a si mesmo.
Tinha se conformado com a distância entre Clarice e ele. Imaginava que, com o tempo, as coisas voltariam a ser como antes. Não voltaram. Nem percebeu quando a distância entre a vontade e a possibilidade ficou maior que o pulo que suas pernas conseguiriam dar para saltar tanto abismo. Havia, nesse abismo, os comprimidos que Clarice escondia dele no closet, as taças de champanha sempre cheias, os arrepios de repulsa que o corpo dela fabricava a um simples toque das mãos dele. E havia uma ausência arrasadora.
O único sinal de que ainda existia uma Clarice real por trás daquela mulher de cera era o anel de rubi que a avó lhe dera ainda mocinha, e que ela nunca deixava de usar. Um lugar para onde ir, para onde voltar.
Ernesto recostou-se na cadeira, como se o abraço do objeto pudesse compensá-lo por tanta solidão. Sentia-se frágil pela falta de Clarice. Sentia-se esvaziado. Não lhe bastava mais o sexo que fazia nela, mas não com ela. Como não lhe bastava separar-se dela para deixar de sofrer. Clarice era o lugar para onde ele queria voltar.
Amanhã... Amanhã eu dou um jeito nisso tudo, decidiu, adormecendo ali mesmo.
 Foto: Cena do interior da Bahia, de Ana_Cotta/Flickr





domingo, 15 de janeiro de 2012

horizontes




Xavier Demóstenes deixa a avenida e percorre uma rua transversal
no passeio podem ver-se meia duzia de mulheres em passos de quem espera cliente: as meretrizes
é assim que Beatriz Cachola, a esposa de Xavier Demóstenes, se lhes refere sempre que o marido sai mais tarde do escritório: já vens das meretrizes, grita-lhe
e nem é verdade
mas Beatriz Cachola arregalando os olhos um nadinha vesgos, diz isso muitas vezes
Xavier Demóstenes está habituado
habituado, e farto
por ironia dos deuses, da janela onde passa horas da sua vida parda, Xavier Demóstenes tem como horizonte, não o cume da serra, mas a janela do quarto que partilha com Beatriz Cachola vai para mais de duas dezenas de anos: muito lá ao fundo, muito longe, mas ainda assim a limitar-lhe o alcance dos olhos, de cada vez que Xavier Demóstenes levanta a vista da secretária, de cada vez que abre ou cerra o cortinado para que a luz, por defeito ou por excesso, não o incomode na escrita das cartas que tem sempre em atraso, é esse o horizonte que lobriga do seu lugar de escrivão de terceira na repartição de finanças da cidadezinha de provincia entalada entre duas serras e um ribeiro parco de águas
um lugar conseguido por concurso público
um olhar em linha recta, e lá está a janela do quarto como que a vigiá-lo
hoje, Xavier Demóstenes prometeu: vou ver como é, e só regresso a casa pela madrugada
a noite está fresca e nem uma nuvem a toldar um céu que se tornou da cor do negrume mal terminou a luz do sol de inverno, inclinada em demasia
Xavier Demóstenes caminha passos miúdos, as mãos nos bolsos do sobretudo coçado na gola e na zona onde as mangas lhe roçam os pulsos
sente o debrúm do casaco que traz por baixo, ele sempre de fato completro e com gravata de nó estreito nos colarinhos engomados
sente o seu próprio calor que será ainda do banho morno de há dois dias – duas panelas de água na banheira que o esquentador se tinha avariado
naquela transversal da avenida, há três candeeeiros e mais as luzes tremeluzentes de outros tantos néons por cima de bares de alterne
bares de meretrizes, como lhe diz Beatriz que nunca sequer passou naquela rua
a mãezinha disse-lhe sempre: por essas ruas, nem espreitando! e a menina cresceu entre missas e bordados e não mudou em nada a educação que trouxe para o casamento
Xavier Demóstenes olha demorado uma das raparigas – a que traça passadas desiguais no cinzento húmido do empedrado: não tem um casaco de abafo, e as meias que lhe vestem as pernas esguias e escanzeladas, são uma simples rede de cor vermelha
olha-a do lado de lá da rua, e pensa que ela terá as extremidades frias, e que até os lábios, cobertos de baton cor de camarão, estarão gelados a tocarem-lhe o sexo: se ela consentir, se não for demasiado caro
Xavier Demóstenes nunca se afoitou naqueles pecados
uma vez ou duas, entrou em bares com amigos: uns copos, e uma apalpadela de raspão numa rapariga
nunca passou disso
a sua vida, tem sido casa escritório, escritório casa
apesar dos gritos e dos impropérios da esposa, ele é um homem sério
mas hoje tinha prometido
e Xavier Demóstenes atravessa a rua, e mais uns instantes está a passar a porta de uma pensão de categoria incerta
há um linólio escorregadio pregado em cada degrau com taxas de latão doiradas: flores e pássaros e o que parece a água de um rio –  desenhos berrantes em que Xavier pisa atrás dos saltos altos execessivos da rapariga com meias de rede cor de sangue
Xavier Demóstenes estará pensando, que nunca a esposa lhe fez um broche, que nunca ele cheirou os interiores de Beatriz Cachola: odores intensos conformes à fauna e flora daquele meio – sabe dos livros, que Xavier Demóstenes tem prazeres inconfessados em leituras que ele procura, por todos os deuses, deixar fora do alcance perscrutador da esposa
nisso de ir subindo, Xavier Demóstenes escorrega, e o joelho esquerdo bate-lhe em cheio num degrau
a rapariga à sua frente, nem dá conta de que ele ficou a meio da escada íngreme
Xavier Demóstenes dobrado em dois sobre o joelho dorido, as abas do sobretdo a roçarem o linólio que, visto assim de perto, está encardido e repleto de falhas: flores sem pedaços de corolas, uma ave sem bico
ameniza com cuspo a dor da pancada, e percorre sózinho o corredor com portas só de um lado: portas muito estreitas para o seu corpo anafado desde que perfez meia centena deles, já lá vão seis anos
..........
vítimas com golpes profundos na zona dos pelos púbicos, dirá o cabeçalho
e em letras mais miudas: dois corpos brutalmente esfaqueados encontrados numa pensão da rua dos quintais
e a notícia, que nem virá na primeira página, dirá num deslize do repórter a dar relevo a pormenores :  a rapariga encontrada morta tinha uma meia de rede vermelha meio calçada no pé direito
e dirá que a esposa de Xavier Demóstenes, o homem brutalmente assassinado naquela pensão barata, declarou à polícia que o esposo costumava dar o seu giro por ali antes de vir para casa, noite após noite
a polícia prossegue investigações, será o modo como há-de terminar a notícia
.....
que Beatriz Cachola se sentou no banco da avenia a ver passar os carros da polícia e as duas ambulâncias, e só depois foi pelo seu pé até casa, isso não virá nunca nos jornais
.....
nem da rapariga se falará mais do que da meia que ela tinha meio descalça 








sábado, 14 de janeiro de 2012

Choro

choro
a lágrima de um chorinho bem executado

as notas, os acordes, a melodia alegre
à festa!
o cavaquinho inzoneiro, choro
o bandolim faceiro, choro
o violão de sete cordas e sete são as notas
o pandeiro modesto, choro
a flauta açucarada, choro

à pândega de hoje à noite!
sob um pedacinho de céu estrelado
um sujeito miúdo, brasileirinho,
ele, que mulato assanhado,
toca seu instrumento com força e delicado
dá-lhe urubu malandro, seu apelido de noites cariocas
sujeito brejeiro, não obstante carinhoso
um tico-tico aqui, um tico-tico lá
entre um solo e outro, às damas
um doce de côco, uma receita de fubá
apanhei-te, cavaquinho!
e vais chorar toda a madrugada





quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sagrado



Às vezes, sinto falta do sagrado,
de sua textura; cânticos religiosos,
missa dominical...

De coros cantantes, Panis Angelicus,
meninas de branco, com laços de fita
pregados em suas cabeças..

E eu, fervorosa,
com os olhos infantis, pedintes, me dirigindo
aos anjos, santos, Deus!

Reverenciando cada lágrima,
advinda do fervor,

hoje, me afasto do dogmatismo fervoroso
que se diluiu e fez desaparecer
antigos clamores...

É o novo se rasgando,
é o batismo se depurando,
é Nossa Senhora chorando...

Lágrimas perdidas nos buracos da fé...

Saudades dos pedaços da vida,
como carnes penduradas em matadouros.

E eu, perdida no inferno sem telhado,
como multidões rastejantes em
seus torpores vazios
despejando seus juízos em taças furadas
deixando escorrer o sangue pisado
em palavras em vão...

Crendices populares,
frestas escondidas
almas escuras
falsas profecias...

Desanuvio mentes, expulso lágrimas endurecidas,
e caio de joelhos, em pé!


Volto para a relva endurecida do concreto
e vejo carros, com seus motores barulhentos

Volto para mim, em prantos...



                                                                   
The End





terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O que ninguém lhe dirá numa oficina literária - parte 1 (A Criação)

Writing
Henry Alfred Bugalho

A escrita não tem nada a ver com talento e inspiração. Uma carreira literária se faz de labor e persistência.

É célebre a frase de Albert Einstein que diz que "O trabalho é 1% inspiração e 99% transpiração", e não poderia ser mais verdadeira.
A inspiração é a origem da trama, quem são os personagens, o tema de um poema ou a ideia para uma crônica. Todo o resto, a materialidade da escrita, é puro trabalho.
É trabalho a leitura de outros escritores. É trabalho o aprendizado da escrita. É trabalho sentar-se diante da página em branco e enchê-la de palavras na esperança que alguém, em algum lugar do mundo em algum tempo, detenha-se para lê-las.
Após o vislumbre inicial, a grande ideia, nada mais resta senão o intenso trabalho de escrita, reescrita, revisão, reescrita, edição, revisão, reescrita... É um labor interminável, que tomará meses ou anos, às vezes para uma única obra.

É neste ponto que entra a persistência, pois os resultados da escrita são lentos e geralmente insatisfatórios.
Levará anos para se obter alguma espécie de reconhecimento, e muitos mais anos para ganhar alguns trocados com o que se escreve. O tempo e esforço investido será muito maior do que qualquer retorno possível. As horas gastas trabalhando sobre o texto se depararão com críticas ácidas e, na maioria das situações, com indiferença.
Muitas vezes, aquele texto brilhante do qual você tanto tem orgulho não será lido por ninguém. Então, você, muito teimoso, continuará escrevendo, pois é o seu trabalho e o que lhe dá felicidade.

Escrever bem é facil. Criar uma boa história é fácil. O difícil é escrever bem uma boa história.

Não existe segredo algum para escrever. Existem normas ortográficas e gramaticais, basta um pouco de estudo para dominá-las quase completamente.
Já as histórias estão por aí, ao nosso redor, ocorrendo no mundo inteiro o tempo todo. Leia os jornais e a quantidade de desgraças e histórias interessantes a cada dia. Veja os grandes livros da História e perceba quantas histórias boas já foram escritas. Relembre sua própria vida, o que você viveu e ouviu, e perceberá que muito já aconteceu.
O problema começa quando se tem de juntar uma boa história com uma boa escrita. Uma narrativa eficiente é um equilíbrio entre o que é contado e como isto é contado. Idealmente, o estilo e as palavras não deveriam ofuscar o que está acontecendo na história.
Uma escrita muito rebuscada pode distrair o leitor. Uma escrita muito simplória pode afastar o leitor.
Uma história desinteressante é do tipo que dá sono. Uma história abarrotada de reviravoltas pode soar inverossímil.
Onde está o equilíbrio entre estilo e enredo?
Isto é o que todos os escritores do mundo estão tentando descobrir.

Ser escritor é tentar convencer os demais que suas obras são originais e criativas, mesmo que não sejam.

Pense numa história... Imagine um personagem... Conceba uma ambientação...

Agora, tenha certeza que alguém, em algum lugar do planeta, em algum momento da história da humanidade, já escreveu esta mesma história, com este mesmo personagem nesta mesma ambientação. E pior! Provavelmente melhor do que você.
Desanimador, não?
Primeiro, porque o repertório de histórias e enredo é limitado. Segundo, porque todo o mundo pensa que existe um escritor dentro de si. Por fim, somos humanos, e as histórias que contamos, via de regra, se espelham no mundo em que vivemos, que é o mesmo de outras bilhões de pessoas.

Então, a sua tarefa de escritor, além de escrever sua obra da melhor maneira possível, é também de convencer os demais de que ninguém mais poderia tê-la escrita. E isto não é fácil!

Romance é romance, conto é conto, poesia é poesia, blog é blog. Se você é bom escrevendo um, não quer dizer que você também será bom escrevendo os outros.

Romance, conto e poesia são gêneros literários. Jornais, livros, revistas, TV, rádio e blogs são meios de comunicação.
Gêneros literários podem estar presentes nos mais diversos meios de comunicação. No entanto, os meios de comunicação também possuem linguagens específicas. Ser um bom jornalista não significa que o sujeito será um bom romancista, do mesmo modo que ser um blogueiro de sucesso não o tornará um bom contista ou poeta. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

E o mesmo vale no interior dos próprios gêneros literários. Ser um contista não o tornará um bom romancista, são estruturas literárias diferentes com exigências distintas. Entre prosa e poesia há um imenso abismo, que a maioria dos escritores não consegue transpor com competência.
Isto não quer dizer que você não deva se arriscar, mas esteja preparado. Ser bom em um gênero, ou em uma mídia, não quer dizer que você terá competência nos demais.

Você aprenderá muito mais com as críticas do que com os elogios.

Todo jovem escritor precisa de elogios como uma flor necessita de sol e água. No começo, qualquer estímulo, por mais parcial e vago que seja, já é um enorme incentivo para escrevermos as próximas linhas.
No entanto, elogios não tornarão sua escrita melhor. Elogios lhe darão a ilusão que tudo está ótimo e que não há mais necessidade de se aperfeiçoar.

A escrita é uma estrada sem fim, você nunca terá descanso e nunca chegará ao destino. E você só saberá se pegou a rota errada quando alguém lhe enfiar o dedo na cara e for sincero com você.

Algumas críticas serão puramente destrutivas, geralmente de pessoas que tem inveja de você. Todavia, haverá aquelas críticas tão pertinentes, que poderão transformar sua carreira. Algumas críticas atingem tanto o nervo que, todas as vezes que você sentar-se para escrever, elas estarão na sua mente, protegendo-o de certos equívocos, de clichês ou de atalhos equivocados.

Ter um bom crítico por perto é a melhor companhia de um escritor.

Escolha entre ser lido ou ser admirado. Obras de vanguarda, densas, inovadoras e rebuscadas até podem chegar a ser admiradas, mas quase ninguém as lerá. O que os leitores gostam são de histórias com começo, meio e fim, personagens planos, nada mais que um entretenimento para ler no avião ou na privada.

Todos nós já quisemos revolucionar a Literatura, ser considerados gênios ou trazer a paz ao mundo através de nossos livros. Você pode tentar, mas é quase certeza que isto não ocorrerá.

E todos nós temos um modernista dentro da gente, aquele escritor que não está nem aí para os leitores, que deseja escrever romances sem parágrafos, sem pontuação, com páginas de cabeça para baixo, narrativas não-lineares, sem personagens, ou com milhares de personagens, com páginas em branco, sem enredo, e assim por diante.
Escreva, se você gosta disto, se lhe dá prazer! É o tipo de livros que você lê, ou só está fazendo isto para impressionar os outros, mostrar como você é brilhante ou genial?
Se for para escrever uma obra que ninguém lerá, que seja, pelo menos, pelos motivos certos...

Mas lembre-se que os leitores são pessoas normais, que assistem novela das oito, gostam dos filmes de Spielberg, ouvem forró universitário e quase nunca vão a museus. Aliás, muitos dos leitores nem gostam muito de ler...
A maioria deles deseja apenas uma história com começo, meio e fim, com personagens simples e com motivações claras. "De que adianta ler um livro se eu não posso contar a história para alguém depois?", muitos devem pensar.
Quanto mais complexa e alternativa for sua escrita, menor será o seu público.

Você terá de escolher: quer ser lido ou admirado?
São raríssimos os casos de escritores lidos por públicos imensos e admirados pela crítica. Ou você vende muito, ou é lido nas universidades. Nem sempre se pode ter tudo na vida.

(Publicado originalmente no Blog do Escritor)

Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
http://www.henrybugalho.com/





A Mulher do Alfaiate

Henry Alfred Bugalho

Inspirado na pintura La costurera de Diego Velásquez


Armando se abaixou para pegar as chaves e creeeec, as calças se rasgaram de cima a baixo bem nos fundilhos. Naquela hora, ele amaldiçoou o fato de não ter cumprido a promessa de ir à academia para perder os quilos que ganhou depois de se casar. Algumas pessoas o olhavam, certamente avistavam a cueca azul através do rasgo.
Ele retirou o paletó e, segurando as mãos atrás das costas, tentou disfarçar. Embrenhou-se por algumas ruas menos movimentadas e se perdeu numa parte daquela vizinhança que desconhecia. Muitas casinhas residenciais, com muros baixos e cachorros bravos tentando atacar pelos vãos dos portões. Ele avistou o cartaz dependurado na fachada de uma delas:

Alfaiate
Ternos sob medida
Fazemos pequenos reparos

Como não havia campainha, Armando bateu três palmas:
— Ô, de casa!
Por entre as cortinas na janela, uma mulher fez um sinal para que ele entrasse.
Ele a encontrou costurando um vestido.
— O senhor pode aguardar um pouco? O meu marido já volta — o alfaiate ia pelas manhãs ao Centro para comprar material.
— Desculpa, mas tenho um pouco de pressa, estava a caminho do trabalho quando... — Armando se virou, mostrando o rasgo nas calças.
Ela riu, mas logo tapou a boca com as mãos.
— Vai, pode rir! Eu também estaria rindo se não fosse comigo — e ele tentou dar uma gargalhada, mas soou tão artificial que pensou que até poderia tê-la ofendido.
— Nisto eu posso dar um jeito, é só tirar as calças que resolvo num minuto.
Ele procurou por um provador, ou um banheiro, mas ali só havia cadeiras, uma mesa, a máquina de costura, linhas, alfinetes e outros instrumentos de alfaiataria.
— Não precisa ter vergonha, tire as calças.
Se estivesse diante do marido, o alfaiate, não seria tão embaraçante. Apenas três mulheres haviam visto Armando de cuecas: a mãe, a primeira namorada com quem ele perdeu a virgindade e a esposa. Se você já esteve na mesma situação que ele, tendo de tirar as calças diante de uma mulher totalmente desconhecida, deve entender como ele se sentiu. Armando virou-se de costas para ela, desafivelou o cinto e desceu as calças. Pelo reflexo da janela, percebeu que a costureira examinava-o. Muito constrangedor!
Sem se virar, ele estendeu as calças para ela.
— Agora, sente-se aí enquanto eu faço o reparo — e Armando obedeceu, cruzando as pernas como uma moça, para não exibir suas partes.
Lentamente, a costureira passou a linha na agulha e começou a coser. As mãos eram delicadas e brancas, o olhar sempre fixo no trabalho, a respiração suave. A vergonha de Armando começava a passar e, pela primeira vez, ele reparou como a costureira era bonita. Sua blusa tinha um decote grande e ele podia ver as alças do sutiã e uma medalhinha da Nossa Senhora sobre o seu colo. Uma recordação de infância: de sua mãe sentada na sala, diante da TV, costurando as suas meias; uma memória tão singela que Armando quase se levantou para abraçar a costureira. Dois anos que sua mãe morrera. Mas logo lhe ocorreu uma outra cena: ele enfiando a mão dentro daquela blusa, puxando os seios para fora e beijando-os, chupando-os, podia até escutar os arfar de excitação da costureira enquanto a outra mão buscava espaço por dentro da saia, pelo meio das pernas, puxando a calcinha para o lado e penetrando-a lentamente. Ela gemia, gemia, gemia, e Armando teve uma ereção.
— Pronto! — ela disse, entregando-lhe as calças, mas Armando não queria, não podia se levantar — Aqui está.
Ainda sentado, ele a pegou, e dirigiu-lhe os olhos desesperados.
— Não vai prová-la? Ou vai embora apenas de cuecas? — ela riu.
Sem mais opções, Armando se ergueu e a costureira pode ver o que ele ocultava. Ela recuou, assustada, como se visse uma surucucu ou uma jararaca no mato. Depois se virou, fingindo que arrumava a mesa.
Ele não disse nada, apenas se vestiu, deixou o dinheiro na cadeira e sumiu. Acredito que ele até corria, de tanto constrangimento.
No entanto, mais tarde, na hora de dormir, Armando voltou a pensar na costureira, no colo branco, nos seios dela, em seus dedos penetrando-a, em como ele a segurava nos braços, levava-a para um quartinho nos fundos daquela casa, e transavam como cães, de quatro, ele puxando-lhe os cabelos enquanto ela encarava-o com o canto dos olhos e lambia os lábios. A esposa de Armando dormia ao seu lado, quase uma estranha para ele nestes últimos anos, com quem não conseguia conversar, sem sexo há mais de três meses. Ele até tentou despertá-la, roçando o pau duro contra ela, mas a esposa lhe pediu para deixá-la em paz, até mandou que ele se fodesse por tê-la acordado.
Quando Armando apareceu novamente, na manhã seguinte, a costureira não acreditou. A caminho do trabalho, ele se debateu contra esta ideia, chegou a ensaiar a entrada no elevador da firma umas cinco vezes, mas, por fim, retornou àquela região do bairro, à procura da casa do alfaiate. Ele rasgou uma das mangas de sua camisa, como pretexto.
— Você não vai acreditar, mas tive outro probleminha hoje — ele resmungou, bastante desconcertado. Armando mostrou-lhe a manga de camisa rasgada.
— Não prefere esperar pelo meu marido? — ela disse. A presença de Armando a perturbava.
— Não tenho tempo. Tenho de ir ao trabalho — e ele começou a tirar a camisa. A respiração dela se acelerou. Ela mexeu nos cabelos, e evitava fitá-lo. Armando se aproximou e segurou suas mãos.
— Você é um anjo, sabia? — mas ela não respondeu.
Ele chegou mais perto e sussurrou no ouvido dela.
— Pensei a noite toda em você. Acho que estou enlouquecendo — e ele beijou pescoço dela e mordiscou a orelha. A costureira estremeceu.
— Meu marido... Meu marido... — ela balbuciava, enquanto enlaçava Armando num abraço.
Eles se beijaram e, aquilo que Armando tanto imaginara nas últimas horas, se tornava realidade, no entanto, todo o tempo, mesmo enquanto ele a penetrava de pé num canto da lavanderia, ela gemia.
— Meu marido... Ai, meu Deus, o meu marido!
Assim, todas as manhãs, antes de ir ao escritório, Armando passava na casa do alfaiate para transar com a esposa dele.

— Vamos fugir — um dia a costureira sugeriu — Vou largar meu marido, você deixa sua mulher e vamos ser felizes juntos.
— Jamais daria certo — ele respondeu, contrariado — Somos tão diferentes. E você não é como minha mulher...
— Como assim?
— Não sei explicar... Você é apenas uma costureira — Armando disse e, na mesma hora, se arrependeu.
— Apenas uma costureira? O que você quer insinuar com isto?
— Não foi o que quis dizer...
— Acha que não sou boa o suficiente para ser sua mulher? Sou apenas um objeto no qual você mete este seu pinto mole? — e ela apanhou uma tesoura de costura, daquelas grandes, pretas, de ferro, e apontou para Armando — Não sou mulher pra você?

O alfaiate encontrou a esposa morta num canto do quarto, toda ensanguentada, os pulsos cortados. Nas mãos, apertando com uma força imensa, a tesoura de costura e uma recordação de Armando, que, naquele mesmo instante, chegava mutilado ao Pronto Socorro.
— Foi a costureira! — ele berrava — Queria apenas que ela costurasse as minhas calças... As minhas calças!

Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
http://www.henrybugalho.com/





domingo, 8 de janeiro de 2012

a fila

Foto: Volmar Camargo Junior
Título: O dono da calçada
Licensed under Creative Commons
some rights reserved







em boa hora vens e me tomas em tuas patas
outra hora eras cão
agora és uma gratuidade devota
por ora és dono da calçada
      [e de minhas botas

mas me incomoda estares a muito da altura dos olhos
       e sei o quanto queres isso que cheira quente e suculento
       [também eu quero, cãozinho
       [tenho tanta fome quanto tu tens a mim


onde andei desconheciam-me
aonde vou idem
percorri esses espaços
para ir
para ser
para quê?

se

meus medos minhas manias
ah, sim, os apelos
estes eu tenho
aqueles não mais

não quero compartilhar mais nada
nem posso
nada possuo de meu para ser também de outrem
nenhum vício ou valor só meu
nunca mais talvez

talvez só o que eu tenha sejam esses pés com que brincas
     [isso sim
     [isso eu posso dividir contigo

contudo ainda preocupa-me a distância que estás dos narizes
     [e definitivamente do lugar por onde anda a cabeça dos homens

ali, logo adiante, nietszche de allstars discute com platão de camiseta do manowar
lá, um tanto atrás, uma criança pranteia o papai que foi, ou por um doce, ou por que lhe dói, ou porque
     [há pouco melhor a fazer que chorar
aqui eu com vontade de chorar também, cachorro

contigo nos pés rindo risos de cão
comigo noutro tempo rindo de ti
sozinho na fila (acho que sou o quadragésimo segundo)

lá vai o banco do brasil para cima e para os lados
     [se ele caísse esmagaria-nos a todos
     [eu 
     [o bebê 
     [os filósofos
     [as moças que confabulam 
     [a senhora no fiat apalpando os peitos
     [a senhora à porta do restaurante que nos chama "vamos chegar para o almoço"
     [e a ti, cão

nem eu estaria olhando
nenhuma das caras na fila veria
ninguém veria
nada nada nada faria diferença
nunca mais se ouviria falar de mim ou de ti ou dessa gente toda com os dedos pintados de preto
não, não foi dessa vez que o banco desabou

quem quase caiu foi um senhor de guarda-chuva pisoteando sem ver
por cima de ti
por quê?
porque estás longe demais de para onde ele olha
e a carne morta em bifes no metal quente revolve as entranhas do velho 
assim como revolve as minhas
como revolve as tuas, cão

por isso o homem te pisa
por isso quase cai como cairia o banco do brasil
por isso quase morreste esmagado e tiveste de sair chorando teu choro de dor de cão
porque és cão e ele é homem
e a carne nos move a todos pelas tripas

e a fila andou
é uma e meia
lá vamos nós