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sábado, 28 de agosto de 2021

A Caminhada

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Exausto, foi com grande alívio, que o octogenário se deixou cair no banco de jardim, na entrada do parque. Aquelas caminhadas custavam-lhe cada vez mais e, pelos vistos, demoravam cada vez mais. Estava a começar a anoitecer. Fez um esforço para recordar a que horas saíra de casa, mas não conseguia.

Deixou-se ficar um pouco a restaurar as energias… noutros tempos, achava ele que não há muito, faria todo aquele percurso a correr e quase sem transpirar, mas agora… como se pusera naquele estado?

Olhou com curiosidade os sapatos de quarto, empoeirados, como se os visse pela primeira vez; os seus pés estavam “gordos” e o calçado parecia querer rebentar. "Não admira que me sinta cansado! Tenho de fazer uma dieta!" Pensou de si para si. "Recuperar a forma, esta fadiga só pode ser banhas, olha-me que patas”.

Recostou-se e esticou preguiçosamente os braços pelas costas do banco, enquanto apreciava o trânsito barulhento e apressado.

O seu olhar fixou-se no enorme edifício na esquina: "Que esquisito, não me recordo de ter sido derrubada a padaria e já ali está um prédio de uns sete andares, pronto e habitado! Não há dúvida que tudo agora é construído a uma velocidade estonteante!"

Uma carrinha branca imobilizou-se ao pé do edifício e descarregou dois fardos de jornais, antes de arrancar em grande velocidade. Estranhou a distribuição do jornal tão tardia, normalmente acontecia de madrugada. "Está tudo tão diferente…" Ainda se recordava do sinaleiro, luvas e capacete brancos a gerir o transito naquela esquina, antes da sua substituição pelo semáforo, que empoleiraram muito alto, mesmo no meio do cruzamento. Não foi assim há muito tempo… mas também o semáforo lá não está, foi substituído por um conjunto de colunas, cada esquina sua, com o seu próprio conjunto de luzes… de certeza que fora feito para a autarquia ajudar a enriquecer um qualquer fabricante amigo. Sorriu com a sua própria maledicência.

— Bom dia! — A voz masculina sobressaltou-o, fazendo-o descobrir a seu lado o jovem polícia que o mirava com curiosidade.

— Boa tarde! — Corrigiu-o.

— O senhor está bem? — Perguntou o agente.

— Eu? Sim, estou! E você? — Ele não estava a perceber a razão da abordagem.

— Eu também estou, obrigado! — O polícia endireitou-se com um sorriso e afastou-se num passo curto para a berma da rua, sem o perder de vista. Pegou no telemóvel e fez uma chamada.

Ao fim de um minuto ou dois, fitou com suspeição o agente que regressava, sempre com um sorriso nos lábios.

— Posso perguntar-lhe o seu nome? — O jovem voltava à carga.

— Posso saber porquê? — Respondeu na defensiva. — E o seu, qual é?

— Peço desculpa pela minha falta de maneiras. — A boa educação do polícia começava a ser irritante. — Meu nome é Meireles!

— E eu sou obrigado a dizer-lhe o meu? — Agora estava a ser deliberadamente insolente.

— Não, claro que não. Não está a fazer nada de mal. — O jovem exibiu um rosto triste. — Era simples curiosidade.

— A minha mãe dizia que a curiosidade matou o gato! — Atirou com um ar de triunfo, voltando o rosto para o lado, como que indicando que acabara ali a conversa. — Tenha uma boa tarde! — Rematou.

— Um bom dia, quer o senhor dizer! — O rapaz era insistente. — Ainda é de madrugada, o sol está a nascer agora. — Apontou para as silhuetas dos prédios onde um clarão avermelhado parecia querer sobrepor-se às trevas.

— Madrugada? — O rosto dele tornou-se uma máscara de espanto, enquanto a sua mente trabalhava em alta velocidade: "A que horas saíra de casa? Quanto tempo caminhara?... De onde viera?"

Um pequeno Opel Corsa parou bruscamente ao lado do passeio onde os dois se encontravam. Outro jovem, este à civil, correu para eles e olhou-o nos olhos, preocupado.

Já eram dois de volta dele, que estava naquele estado de confusão… começava a ficar assustado, quando o recém-chegado disse finalmente, numa voz estrangulada:

— Pai! Graças a Deus! Andamos a noite inteira à tua procura!

 

Manuel Amaro Mendonça

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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Coração sem asas

 




Os corações

quase todos

têm o amor inspirado

têm o voo destinado

as aves todas do céu


Voam sem saber

como

vivem sem saber

para quê

traçam um voo perfeito

no seu eleito

viver


Trazem asas ao nascer

abrem-nas à viração

lançam velas

à vastidão

do espaço e voam

Cumprem o destino delas


Uma asa que não voa

asa que não tem sentido

A uma ave

de que serve?


Um coração que não ama

de que serve a quem o tem?


Algum dia se encerrou

de asa ferida

magoado

Nesse momento lançou

um olhar derradeiro

ao firmamento negado

e disse adeus à vida


Coração que não ama:

asa que não voa


Ave que não cante:

coração agonizante


Joaquim Bispo


*

Esta composição, desencadeada numa oficina de escrita de Conceição Garcia, em 2007, foi um dos textos selecionados para integrar a coletânea resultante do XIII Concurso Literário de Presidente Prudente — Brasil, 2020.

*

Imagem: Hugo Simberg, O anjo ferido, 1903.

Ateneu, Helsínquia, Finlândia.

* * *






segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O PECADO DA LÍNGUA COMPRIDA

 





 

A tarde da última sexta-feira do mês era reservada para o benzimento das crianças.

Com chuva ou com sol, nesse dia, todos os deveres da manhã eram acelerados, o almoço saía mais cedo, e logo estávamos a caminho. Sempre acompanhadas de três adultos, invariavelmente mulheres, as crianças desmamadas seguiam em fila indiana para o sítio de Dona Genoveva. Os pequenos, que ainda mamavam no peito, não careciam de passar o ramo. Minha mãe e minha avó eram as acompanhantes titulares: a avó já era velha, não mais teria filhos, e eu, com seis anos, era a caçula da minha mãe. As outras tias ainda estavam no período parideiro. E como pariam! A cada ano, a fila indiana ficava maior.

A benzedura que Dona Genoveva fazia nas crianças era contra verme, feito lombrigueiro. À frente e fechando a fila, a tia e a mãe, e no meio, a avó. Todas no controle zeloso do bando. Usávamos roupas domingueiras e, nos pés, as inseparáveis alpargatas: azuis para os meninos e vermelhas para as meninas.

O percurso era longo. Havia muitas cercas de arame farpado a serem vazadas, e sempre era exigido muito cuidado! Não podia rasgar a roupa!

E durante o trajeto era um converseiro danado! A tia falava lá na frente, a avó não escutava direito, as crianças repetiam até que o recado chegava ao fim da fila. E muita coisa era falada. Eu adorava ouvir tudo, prestava uma atenção danada. Quase sempre era conversa de adulto, e as outras crianças se distraíam e nem escutavam direito, mas eu não perdia uma palavra.

Naquele dia até que a prosa não estava tão boa...  Elas falavam sobre a dose de óleo de rícino que tomaríamos na manhã do sábado. Coisa triste! Existem gostos e cheiros que ficam impregnados na memória de tal maneira que, mesmo que vivêssemos por mais de um século, não arrefeceriam. Entre os maus, estão o gosto do óleo de rícino, e daquele remédio branco, leitoso e grosso, que ficava num vidro marrom com a fotografia do homem com um peixe enorme nas costas. Engolir esses dois remédios era um suplício! E o pior do óleo de rícino era a revolução que provocava na barriga. A gente nem podia andar direito. Tinha de passar o dia inteiro numa distância mínima da privada. Era um corre-corre danado! Um martírio! E não adiantava reclamar, ninguém escapava.

Atravessada a última cerca, já no terreiro da casa de Dona Genoveva, era hora de retirar os carrapichos das roupas e das alpargatas. Hora dura! As pontas dos dedos ficavam doídas com tantas espetadas, e as minhas mais ainda. Castigo por roer as unhas! Terminada a cata dos espinhos, ajudávamos a avó. Ela, seguindo as tradições espanholas, usava saias com saiotes rodados e compridos até a altura dos tornozelos. E ainda usava meias! Virava uma maçaroca de panos com espinhos, tudo tão emaranhado que deixava as saias mais curtas e as meias à vista. Nessa hora, eu sempre pensava que uma boa faca ajudaria no serviço, mas nunca disse nada. Retirava, dolorida e pacientemente, os impiedosos carrapichos.

Refeitos, entrávamos na casa. Casa escura, de janela minúscula, paredes com reboco desalinhado, precariamente disposto sobre trançados de bambu. Chão de terra batida. Tudo marrom. O chão, a parede, o telhado, tudo era marrom, cor do barro. O pior era o cheiro do cachimbo. Dona Genoveva pitava. Ela toda cheirava a fumo. Na sala, onde fazia o benzimento, havia um banco comprido de madeira, ensebado. De frente, ficava a cadeira onde deveria sentar-se aquele que seria benzido, e ao lado ficava a cadeira de Dona Genoveva. Cadeira rústica de pau, com braços, assento desgastado, feito de trançado de palhas. E na parede, próximo a ela, havia um buraco escavado no reboco, onde ela guardava o cachimbo, o fumo de corda, o canivete e os fósforos. Sempre que ia pegar uma coisa, caía tudo. Uma aflição!

Dona Genoveva, com toda a calma do mundo, pegava o fumo, picava e repicava uma porção sobre a mão em concha. Juntava os picados, e, com o dedo, ia compactando tudo no fundo do fornilho. Apertava, apertava, riscava o fósforo e, enquanto pelejava para incendiar o fumo, dava seguidas tragadas e baforadas com a boca murcha, absolutamente carente de dentes. E muitas vezes a saliva escorria e ela a amparava com as costas da mão. Um ritual triste, repetido por inúmeras e inúmeras vezes, sempre assistido pela plateia que diariamente lotava o velho banco de madeira. Dona Genoveva foi a única benzedeira de verme e espinhela caída da região por décadas e décadas. Benzia crianças e adultos.

Naquele dia, depois de várias baforadas, quando o ar já estava empesteado de fumaça, Dona Genoveva apagou o fumo do cachimbo com uma cuspida e o recolocou no mocó escancarado do reboco. Passou as mãos para o lado direito da cadeira, pegou o galho de arruda que descansava num caldeirão com água, arrancou um pequeno ramo, e colocou-se de pé para começar a benzedura. A avó sempre era a primeira, e depois seguia a ordem do banco. E o ramo era passado nas costas, no peito, na barriga, nas pernas, na cabeça... A boca de Dona Genoveva não se aquietava. Rezava, rezava, rezava.

Na minha vez, era um sofrimento! O cheiro do cachimbo, do fumo, das mãos de Dona Genoveva, e mais o odor da arruda, virava tudo um bodum só. Enjoava.

O que mais me impressionava é que, quando o benzimento da família acabava, o ramo de arruda estava completamente murcho, pendido.

Nesse dia, a primeira sessão de benzedura de Dona Genoveva de que tenho lembrança, não sei o que houve. Terminado o ritual, todos ainda sentados no banco, a avó colocou-se de pé para a despedida, e eu, intempestivamente, perguntei:

- E o café?!

Avó, mãe e tia empalideceram.

- Que é isso, menina?! – disse a avó.

- Não! Nós ainda não tomamos café e, em casa, as visitas só vão embora depois que é servido o café! – respondi.

Dona Genoveva também ficou surpresa. Surpresa, não! Ela ficou toda sem jeito, incomodada. Imediatamente, chamou a filha, cochichou alguma coisa no ouvido dela. A rapariga saiu como um corisco pela porta afora.

E a benzedeira, toda encabulada, foi até a cozinha, ajeitou a lenha do fogão, colocou mais alguns gravetos, um pouco de palha seca de milho, remexeu as brasas que estavam sob as cinzas, e o fogo ardeu. Destampou a velha chaleira de ferro que estava sobre a chapa com o intuito de se assegurar de que estava cheia de água.

De volta à sala, desculpou-se pela demora e disse que o café ficaria pronto em pouco tempo. Era só o tempo que a filha levaria para voltar da casa da vizinha mais próxima, aonde fora buscar café torrado, uma vez que a reserva da casa havia acabado. A programação era torrar café na manhã do sábado.

Nem olhei para o lado. Ouvia apenas a respiração ofegante e contida da mãe, perto de mim. Fazia assim quando estava furiosa! Com certeza, os olhos das crianças estavam todos voltados pra mim. Apesar do beliscão doído que recebi do meu irmão, nem pude gemer. Aguentei calada.

E o tempo não passava.

Finalmente, a filha de Dona Genoveva entrou esbaforida pela porta da sala, passou como um raio por nós e seguiu para a cozinha. Num minuto ouvimos o barulho da rotação do moinho, manivelado pelas mãos da moça. E um cheiro forte de café moído encheu o ambiente. Nem achei gostoso... Sabia o que me aguardava! Não seria nada fácil, e muito menos agradável.

Logo o café foi coado e servido. A minha mão tremia quando fui pegar a caneca do café. E demorei a tomar. Não queria que acabasse. A volta pra casa seria medonha, caótica.

E foi...

Feitas as despedidas, repetidos os agradecimentos, por uns minutos de caminhada, o silêncio imperou. Mas, passada a primeira cerca de arame farpado, o caldo entornou. Se pudesse, eu sairia correndo na frente! Mas não podia.

Foram petelecos e palavras da mãe, da tia, da avó. As crianças, silenciosas, só me olhavam com aquele ar de zoeira. Que raiva! Por que não fiquei com a boca fechada?! Meu Deus, o caminho de volta seria comprido...

Cheguei em casa com as orelhas em brasa. Estúpida! Por que não segurei a língua?!

Os dias correram, e tudo caiu no esquecimento.

Até que chegou novamente o dia do benzimento de Dona Genoveva. Tudo igual. A fila indiana, as cercas de arame farpado a serem vazadas, as conversas de gente grande, os carrapichos, o ritual do cachimbo, as benzeduras e a despedida.

Nesse momento, eu virei pro meu irmão e disse:

- Nada de falar em café! Você sabe o que acontece...

Meu irmão chegou a prender a respiração de tanto susto, e Dona Genoveva caiu na risada, dizendo:

- Não, menina! Hoje, tem café.

A filha rapidamente passou o café e serviu.

Nem preciso dizer que na volta tudo aconteceu da mesma maneira. Petelecos pra lá, petelecos pra cá, falação, reprimendas, e as orelhas em brasa.

Durante meses, fui impedida de participar dos benzimentos. Ficava com as outras tias e com os pequenos que ainda mamavam, e a mãe dizia que eu só voltaria lá quando a minha língua encurtasse, quando ela coubesse na minha boca.

Expectativa frustrada.

Nunca encurtou.

 

      

 

               Regina Ruth Rincon Caires





sexta-feira, 20 de agosto de 2021

A FÁBULA DA ESCUTA




Tinha Desirée uma filha, que um bibelô em tudo lembrava, nem tanto pela pele alva 

e delicadeza de traços, mais pela obsessão da mãe extremosa, como se vestisse a 

menina de plástico bolha. 


Havia em Desirée motivos. Marie de Moi, assim chamava seu pertence, foi concebida 

pelo acaso de uma noite com um forasteiro, dito marinheiro, que bem antes do sol nascer, 

zarpou por mares sem fim, deixando Desirée um pote de geleia de tristeza, decepção e raiva, 

por ter guardado suas virtudes para um aventureiro de péssimas intenções. 


Ah, é? Decidiu criar a menina sozinha, como sozinha sempre se viu, destino de uma família 

desfeita pelo ciclo natural da vida, um tanto exagerado, já que a partida trágica dos pais e irmão 

foi  mais precoce do que o roteiro da normalidade pudesse determinar. 


E Desirée zarpou para dentro de si, virando e se virando para honrar a raiva do amante fugaz e 

sumidão. Fez de tudo de trabalho e estudo, sem largar do seu o bibelô pendurado pra lá e pra cá. 

Sensível, esperta, criativa e neurótica pitoresca, foi dar com os talentos numa agência de 

propaganda, onde seu jeito excêntrico e olhos que nunca piscavam cativaram os diretores, pares 

e clientes, a ponto de admití-la mesmo com a filha grudada no colo, dia sim, dia sim. 

Como um apêndice fofinho, atração djugo-djugo do escritório. 


E assim, tanto quanto a profissional redatora Desirée, crescia a menina para vida, sem nunca 

ter desgrudado da pele da mãe, coisa já normalizada pelos generosos diretores, chefes e colegas, 

que as acolheram como se as duas uma só fossem. 


Marie de Moi já avançava nos seus cinco anos, sob a proteção do colo materno. Aqui não vai 

metáfora alguma. Dormia nos braços de Desirée, comia nos braços de Desirée, aprendeu 

o bê-a-bá nos braços de Desirée. A mãe só a largava para que um velho tio distante, o Dr. 

Maubert, de consultório nos arredores igualmente distantes, examinasse a garota, acompanhasse seu 

desenvolvimento e oferecesse à Desirée confiança, compreensão e nenhum aconselhamento sobre 

como a mãe deveria ou não deveria cuidar da criança. Era um guru preguiçoso. Não se coçava 

para alertar sobre a doideira de Desirée. Daria muito trabalho. 


Um dia, Desirée irrompe na sala do supervisor Jean Paul, claro, com Marie de Moi a tiracolo.

- Surto de varicela na cidade! Vou precisar viajar para vacinar Marie de Moi. Só lá tem a vacina.

- Como assim, Desirée?

- A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!

- Mas ela não está imunizada pela vacina tetra viral? Não tomou quando bebezinha?

- Claro! Mas é preciso reforço! A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!

- Calma, Desirée. Para de chorar. A menina está com algum sintoma?

- Não. Mas vai ter. Feridas por todo corpo. A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!

- Olha, Desirée. Eu tenho filhos pequenos. Vou ligar para o meu pediatra e você liga para o seu. 

E a gente faz o que deve ser feito.


Jean Louis ligou para o Dr. Aramis, que o tratou como um chato.

- Tem surto nenhum. Um caso isolado a 500 km daqui. Se tiver, eu vou ser o primeiro avisar. 

Fica na sua. 


Constrangido, Jean Paul mal desligou o telefone.

- A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!

- Calma, Desirée. Falou com o pediatra?

- Confirmou! A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa! Vou encontrar meu médico, 

só ele tem vacina!

E com Marie de Moi agarrada aos seus prantos, sumiu pelo escritório aos gritos.

- A varicela! A varicela!


(A)moral da história 1: as pessoas estão assim. A verdade das coisas está no 

que desejam escutar. 

(A)moral da história 2: bater palma para maluco dançar enche o saco. 








quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Que graça, não?!

 

 

Graça era do tipo renitente, implicante. Não comprava fiado. Não arrumava crédito. Não fazia escolhas. Não se demorava no supermercado. Não retocava a sobrancelha, nem fazia escova. Não era amiga de ninharias ou de coisas. Não confiava nos outros. Não adulava o marido. Não acreditava em destino. Não lia horóscopos. Não tolerava arruaça e briga sem sentido. Não atendia o telefone. Não tomava banho nos domingos. Não saía sem necessidade. Não extrapolava o tempo no banco ou na rua – para não ser reconhecida. Não trocava de bolsa. Não se queixava do governo. Não entendia de política. Não gostava do PT. Não prestava atenção aos pormenores. Não gostava de pesquisar. Não controlava o dedo para compartilhar fake news. Não gostava de ler. Não queria tomar a vacina – mas foi obrigada pelo filho comunista, que “estava enfeitiçado pelo cão”. Não confiava em “vacina” feita no período de um ano – somente em cloroquina e afins. Não falava alto. Não falava baixo. Não suportava parte da igreja comunista. Não assistia à missa na igreja do bairro – porque o padre era comunista. Não tolerava comunista; comunismo e “absurdos” – incluía, no bolo fecal do ódio que apodreceu o seu coração, negros, gays e simpatizantes. Não sabia o que era comunismo – apenas que era coisa do demônio. Não gostava do papa – comunista. Não confiava na irmã – comunista. Não falava com o porteiro. Não cumprimentava o zelador – deixava-o falando com as paredes. Não gostava de bichos – de todo tipo, inclusive de gente moradora de rua. Não se achava fraca. Não se achava forte. Não era adepta de seitas – mas flertava com a maçonaria, com o olavismo e o bolsonarismo; com suas “teorias” e provocações. Não aturava Cuba e aliados. Não gostava do Norte do Brasil. Não gostava mais dos desertores, que antes amava – Sérgio Moro, Mandetta. Não vestia vermelho. Não tomava qualquer bebida rubra. Não lembrava que seu sangue era vermelho – felizmente. Não lia romances – todos feitos por vagabundos, comunistas. Não assistia à Globo. Não falava com xs amigxs do filho. Não aceitava namorico do filho com mulher com cabelo no sovaco. Não aceitava namorico com mulher com o cabelo pintado. Não aceitava namorico com mulher moderninha. Não sabia que o filho não gostava de mulher – sexualmente. Não queria saber, tampouco. Não achava que poderia contrair a Covid – nem o marido e o filho. Não usava a máscara corretamente – por birra. Não concordava com as roupas extravagantes do filho. Não aceitava a faculdade de letras do filho. Não dava dinheiro ao filho – para ele não se empolgar em sodomia. Não dormia bem. Não namorava com o marido há dois anos. Não tinha coragem de acabar o casamento – porque senão poderia perder as benesses e o nome de ser esposa do major Aquino. Não achava o marido um bom militar – porque não quis um cargo no governo. Não levava café ou água ao marido – só quando estava com bom humor; quase nunca. Não participava das reuniões de condomínio – porque era infestada por comunistas. Não concordava com nada que onerasse o seu bolso – o bolso do marido. Não tinha tempo para ajudar as pessoas carentes. Não tinha tempo a perder com pessoas que se diziam carentes. Não acreditava que todos esses “vagabundos” fossem carentes.Não dê o peixe, ensine a pescar…”. Não ensinava a pescar, entretanto – só falava que era preciso fazer isso. Não falava com estranhos. Não falava com conhecidos – tão-somente em estrita necessidade; caso de vida ou morte, até porque a família era consumida por escandalosos comunistas. Não compactuava com bandalheira. Não achava que o presidente fazia bandalheira. Não sabia o que é democracia – apesar de, nos últimos tempos, ser a palavra que mais saía de sua boca. Não participava da “vagabundagem” da coisa pública. Não suportava o SUS. Não tolerava qualquer slogan de governo petista – “para todos”; “Minha casa, minha vida” etc. Não conhecia, nem fez questão de conhecer, os ministros do STF – porque são comunistas e estão mancomunados com o PT. Não se incomodou com a gripezinha. Agravou-se a situação, que virou uma senhora gripe, contra ela, o marido e o filho. Todos ficaram acamados. Logo, foram ao hospital. O marido, direto para a UTI. Não aguentou, mesmo tendo tomado uma dose da vacina; faleceu com sete dias de internação. O filho por pouco não tombou. Ela assistia a tudo, calada, apática. Não podia dizer não ao SUS. Cedeu à morte em vida. Que graça, não?!   






terça-feira, 17 de agosto de 2021

Dois poemas de Tatiana Leal

 Incêndio


Comecei a pensar

em versos, e

sem perceber,

acendi um incenso

que não se apaga

por nada


todos os dias me

queima os dedos


o calor do incenso,

estraga as canetas,

amarela o papel,

e não completo

poema algum


insistirei, e quando

ficar pronto,

é melhor nos

lançarmos

ao mar.






The Sound of Silence


Sobram manhãs

das noites que

não me deito

contigo


carros já

loooonge

sobem com a lua,

a Serra do Grajaú


lá fora os ipês despe-

dem-se de julho,

na sala, quadros antigos

gritam o vazio


sobram segundas

de domingos que

não ocupamos o sofá


o elevador já

velho e barulhento,

desce com o sol,

todo o edifício

da tua companhia.








                        

        

Tatiana Leal é formada em Letras - Português /Alemão pela UERJ, 

carioca de coração, nasceu em 

São Gonçalo, mas vive no Rio desde 1987.









domingo, 8 de agosto de 2021

O Patinho Feio


 

Sempre se sentira diferente do resto da família e não era uma simples ideia sua, uma mania, era mesmo muito diferente. Ainda bem miúda, durante umas férias de verão no campo, em casa dos avós maternos, uma prima um pouco mais velha do que ela e muito interessada em coisas da natureza começara até a chamar-lhe Cuco. E o nome pegara prontamente, alastrando rapidamente para fora do enorme círculo familiar.

E tendo pedido detalhes sobre o que eram os cucos fora forçada a admitir que se sentia quase sempre como uma cria de cuco, enfiada à sorrelfa por pais desconhecidos no ninho de umas aves bem mais belas e elegantes. A única diferença é que não açambarcava as atenções e mimos de todos, muito pelo contrário.

Senão, vejamos. Era a única morena numa família de ruivos e louros, a única atarracada entre irmãos e primos esbeltos, a única desajeitada num clã de atletas e dançarinos, a única tímida numa tribo de extrovertidos. Até as irmãs e primas mais novas tinham mais graça, mais expediente do que ela.

Tivera esperança de que tudo melhorasse quando começasse a ir à escola, mas com uma irmã apenas um ano mais velha e outra um ano mais nova, ambas alunas excelentes e muito populares, as comparações eram inevitáveis e nunca a seu favor, claro está.

Não encontrara sequer uma única alma afim e percorrera a Primária e uma boa parte do Liceu sem amigos, sempre solitária, isolando-se por detrás de uma enorme franja a tapar-lhe os olhos e de uma atitude desdenhosa, fazendo questão de nunca ser a melhor da turma apesar de se saber suficientemente esperta para isso, tudo para não dar nas vistas. Sim, passar despercebida era o seu lema.

Um dia em que fora forçada a acompanhar a mãe e irmãs a um Centro Comercial para comprarem roupa, despachou-se logo, como sempre, e conseguiu convencer a mãe a deixá-la esperar no café em que sempre terminavam essas excursões, ou antes, essas provações. Instalou-se na única mesa vazia, junto a um grupo de jovens que juntara várias mesas onde tinham instalado dois ou três portáteis, tirando proveito do Wi-Fi gratuito da zona.

A conversa era animada e deu por si a escutá-los, disfarçadamente, fingido ler o livro que levara consigo para aguentar as longas esperas enquanto as irmãs provavam tudo e mais alguma coisa.

O seu contacto com a Internet era muito esporádico, usava-a apenas em pesquisas para a escola e nunca percebera o fascínio das irmãs por Facebooks, Twitters e quejandos. Fazia-lhe até imensa confusão toda essa cena de amigos, likes e isso. Acima de tudo não entendia como é que pessoas com um mínimo de juízo pespegavam todos os detalhes da sua vida, até mesmo os mais íntimos, num local onde qualquer desconhecido os poderia ler.

Mas ao ouvir aquele grupo descobriu fascinada todo um novo mundo de perfis incógnitos e possivelmente falsos, páginas dedicadas a “deitar abaixo”, intrigas, vinganças, comentários maldosos e, acima de tudo, o poder que algumas pessoas pareciam ter sobre aqueles jovens e não só.

Era todo um mundo que se lhe abria subitamente e mal podia esperar para chegar a casa para o começar a explorar, sobretudo agora que herdara o portátil de uma das irmãs mais velhas, já universitária, e não precisava de continuar a partilhar o computador da família.

Nos dias e semanas seguintes dedicou-se a fundo a aprender o máximo que pôde sobre redes sociais, criação de perfis credíveis, navegação anónima, modo de se ocultar dos pais e irmãs, caso estes tivessem a ideia peregrina de investigarem o que fazia no computador, escolha de sites, pedidos de amizade a partir dos perfis que inventara, enfim, toda uma campanha de preparação.

Finalmente, um pouco a medo, lançou um ataque inicialmente velado e depois progressivamente mais feroz contra uma colega de turma que achava particularmente irritante, sempre a julgar-se a melhor em tudo, sempre a gabar-se das suas muitas conquistas e amores. Com grande espanto seu, resultou. E teve o enorme prazer de ver as supostas “amigas” da colega a virarem-lhe as costas e a criticarem o que até então tinham aplaudido.

Sentiu-se realizada, descobrira finalmente a sua vocação. Fazia agora parte de uma enorme (e anónima) tribo, vasculhando a Internet à procura de alvos, atacando onde e quando podia, deleitando-se com o seu poder oculto mas bem real, vingando-se, assim, de ter sido durante tanto tempo o Cuco, o patinho feio numa família de cisnes garbosos.

Tinha agora o seu nicho, metamorfoseara-se, saíra do casulo onde sufocara durante tantos anos, alcançara o seu destino. Descobriu que tinha uma tendência inata para comentários mordazes que acertavam em cheio, tornara-se até uma das melhores no que fazia, espalhando terror e pânico onde quer que o nome que escolhera para os ataques mais acerbos — Cuculus, claro está — aparecia.

Luísa Lopes

Photo by Rosa Virginia on Unsplash





terça-feira, 3 de agosto de 2021

CARNAVAL, BANDEIRA E EU


 


Quero banhar-me nas águas sujas

Quero banhar-me nas águas sórdidas

Sou a mais solitária das criaturas

Me sinto só.

 

Confiei às mulheres os meus amores

Caí de quatro pelas sarjetas

Cobri minha alma de decepções

Valei-me Manuel Bandeira.

 

Vozes da morte contai a história

Da pessoa boa que sempre fui

E eu dormia ouvindo o ruído calmo

Do bambuzal.