Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Desbunde

Ela é toda abundância. Completa, inteiriça. Exceto a popa tímida, desenxabida, quase côncava na banda esquerda. E sente-se, por conta da  depressiva nádega, qual camelo manco, um nada quase, desabundante de tudo.

Certamente o espelho trabalha para Camila enxergar nele refletidos, com realce, os lindos lábios carnosos. Quando alaranjados cintilantes, eles trazem calor e alegria a qualquer ambiente. Quando adentram o bar da esquina da nossa rua, aliciam este homem, despeitam aquela mulher. Difícil se esquivar daquela boca convite. Mas Camila sorri um pouco só na chegada e logo se retrai, limpando o batom no guardanapo. Sempre preocupada com o pequeno defeito traseiro, não valoriza os encantos que lhe vão à frente.

Não se alegra, por exemplo, com o belo casal de seios que porta na fachada: unidos, parceiros, vultosos, aprumados. Um exagero! Para uma senhora de quase 50, dádiva das mais preciosas. Quando usa decote, escandaliza formosura. Mamas jovens, túrgidas, deliciosamente protuberantes. Mas ela não se beneficia da situação. Vai repetindo atitudes pessimistas, mergulhada no drama da deformidade posterior, negando-se à alegria, ao amor-próprio. Recolhida, Camila arqueia as joias e desiste da luta.

Conta também com dois braços firmes e funcionais e duas pernas grossas, torneadas na boniteza. Movimenta-se com desenvoltura, carregando pesadas sacolas do mercado até a casa. Despede-se de mim num aceno delicado que deixa exibir os belos tríceps na cava da manga da blusa. Carnes pregadas que não despencam, ano após ano, sem pelanca, estria ou celulite. Mesmo assim, muito nova desistiu de aceitar abraços. Preferiu o exílio da cama vazia. Nutre preconceito incurável contra si mesma. Ofende-se sempre, envergonhada pelo naco ausente, e não aceita elogio.

Há uns três anos, fez procedimento estético tópico. Mas o silicone enxertado não aderiu. A almofada acessória zangou. O vão ficou um pouco mais fundo e deixou Camila arisca. Agora ela quase nem se arrisca a cumprimentar os colegas.

Eu só queria aproveitar as festas de fim de ano para lhe dizer que há problema mais insolúvel no mundo. “Tem gente com fome”, “Tem gente sem água”, “Tem gente em guerra”, “Tem gente sem dente”, “Tem gente sem caráter”, “Tem gente que não presta”, “Tem gente que já morreu”, “Tem gente que perdeu a bunda inteira”. Eu só queria lhe mostrar as tantas virtudes. “Você canta”, “Você escreve”, “Você cozinha”, “Você está viva”, “Seu direito é lindo”. Mas não funciona. A vizinha continua teimando em se reduzir à parte defeituosa, contrariada com a lacuna na banda esquerda. Sofro por não lhe confessar meu maior segredo: adoraria me divertir naquela retaguarda assimétrica, naquele playground sugestivo dela. Peno porque ela se menospreza e não me dá espaço.

Sob nenhuma luz, às escondidas, ou diante da vizinhança, multidões, pisca-pisca, vaga-lumes, queima de fogos, sol a pino, eu seria o homem mais pleno, mais feliz do mundo se pudesse desfrutar do exagero divinal, da abundância que é Camila.


Maria Amélia Elói





domingo, 25 de dezembro de 2016

A insuspeita sensualidade da massa


A razão porque os homens não são vistos mais vezes na cozinha a preparar rissóis, pastéis de massa tenra, filhós, pizas, folhados é, provavelmente, porque ainda não descobriram as virtualidades sensuais da manipulação das massas.

Roberto não acolheu com muito entusiasmo a determinação da mulher de que nesse ano iriam passar o Natal com os pais dela, numa aldeia perdida das Beiras, mas um par de horas antes do almoço de dia 24 já estavam junto da mãe de Vanda a vê-la amassar as filhós. Juntava o fermento dissolvido em água morna à farinha peneirada, que formava um grande monte a um lado da masseira, e ia misturando pouco a pouco o azeite morno e as três dúzias de ovos batidos. Quando a massa parecia muito lassa, juntava mais umas mancheias de farinha; se começava a ficar pesada e difícil de manipular, acrescentava mais líquidos ― ovos, azeite, sumo de laranja, aguardente. Por fim, vinho do Porto. Dona Rosália metia os punhos fechados dentro da massa, com energia, ora um ora outro, pegava numa ponta esparramada de um lado e dobrava-a por cima do resto, voltava a empurrar e a esmurrar, voltava a repuxar pontas para o meio, num sovar diligente e enérgico. Os seios fartos dançavam-lhe por dentro das roupas grossas, cobertas pela eterna bata de florinhas, num ondear marcado pelas marés da massa a que Roberto não era indiferente. A operação parecia uma luta deleitosa, sem fim nem propósito utilitário, mas aos poucos a pasta lisa, carnal e maleável como barriga de mulher, ia crescendo a um lado da masseira. Mais um pouco de azeite sobre aquela nudez macia recordou-o de um jogo erótico com a mulher, que uns anos antes acrescentara um pico de excitação ao momento. «Quem sabe se com ovos batidos…» Por fim, misturados todos os ingredientes nas quantidades intuídas, o bolo, polvilhado com uma última capa de farinha, rotundo, alvo e sensual como nádega de mulher, foi acomodado a um lado por Dona Rosália, coberto com panos e um cobertor, para manter a tepidez necessária para a massa levedar. Por baixo da masseira, uma braseira acesa.
A irmã de Vanda e o marido só chegaram depois de almoço. Roberto gostava deles, por razões diversas: Miguel era um companheirão, sempre disponível para uma piada picante; Cláudia, um doce.
Ao fim da tarde, com a massa das filhós quase a transbordar da masseira, reuniram-se todos na cozinha velha ― um espaço que mantinha uma lareira antiga semicoberta por uma chaminé de grande tiragem. Na pedra do lar, vários cavacos acesos a aquecer uma caldeira de cobre, meia de óleo, sobre uma trempe.
Curioso por experimentar, Roberto ofereceu-se para tender as filhós. Sentado num banquinho baixo perto da caldeira, com uma tábua de cozinha sobre os joelhos, separava um punhado de massa, de um alguidar para onde tinha sido transferida, rolava-o nas mãos a formar uma bola e esticava-o com os dedos sobre a tábua até conseguir obter um círculo de uma grossura uniforme de um dedo e um palmo de largura. Então, com uma carretilha em ziguezague, como era tradição, aplicava ao interior uns cortes, para uma fritura eficaz, e largava a filhó suavemente no óleo fervente. Do outro lado do alguidar, a cunhada também tendia. Miguel com um espeto geria a fritura e tirava do óleo as filhós já fritas. Vanda distribuía-as por cestinhos e caixas, enquanto Dona Rosália as polvilhava com açúcar e mantinha as crianças longe do lume e do óleo quente, deixando-as também pôr o açúcar. O Senhor José, o patriarca, ia administrando o fluxo de lenha, para manter uma chama contínua, mas não excessiva.
O primeiro contacto de Roberto com a massa foi de surpresa. Não estava habituado àquela deliquescência oleosa e a sensação de mãos sujas retraiu-o. A maleabilidade sugestiva foi a primeira sensação estimulante. Depois, a textura e a densidade carnais tomaram conta dos seus sentidos. A massa macia e moldável transmitia às terminações nervosas das suas mãos sensações de grande carga sensual. A ilusão de tocar e manipular partes de um corpo feminino era muito real e perturbadora. Como bola, a massa dava a ilusão de seio, macio e deformável; como superfície, lembrava pescoço, barriga, interior de coxa. Os sentidos sabiam-se enganados, mas rejubilavam, contentes e subconscientes.
Enquanto manipulava a bola de massa entre as mãos, permitiu-se imaginar que metia as mãos por dentro das roupas da cunhada, ali mesmo ao lado, e tocava, agarrava, apertava-lhe os seios, fiado na incapacidade de ela e os circunstantes lerem o pensamento. Esta impunidade furtiva acrescentava um patamar de excitação ao seu desatino. Alguma coisa no seu corpo se inteiriçou. Felizmente, a tábua de estender as filhós protegia-o de maiores embaraços.
As pessoas não conseguem ler os pensamentos umas das outras, mas estão muito habituadas a ler os pequenos sinais da linguagem corporal. Talvez o cunhado de Roberto lhe tivesse notado a respiração mais apressada ou algum esgar mais libidinoso no rosto, ou talvez já conhecesse as delícias da manipulação da massa. Ao vê-lo entretido com a bola de massa entre mãos, provocou, irónico e risonho:
Essas são boas, mas eu gosto mais das outras!
Roberto sentiu-se corar, mas logo resolveu assumir:
Claro, as outras é que enchem a alma. Mas mais vale uma destas na mão que duas das outras... na caixa… ― concluiu, rindo.
Todos pareceram perceber e riram animadamente, exceto as crianças, sempre atentas:
Eu também quero das outras ― clamaram ambas.
Ah, vocês querem das outras filhós com aguardente? Ainda não têm idade ― trapaceou Dona Rosália. ― Mas arranjo-vos algumas com canela.
Estava lançada a brincadeira brejeira. Pouco depois, Cláudia, com uma expressão maliciosa, produzia um rolo com a massa, em vez de uma bola. As chalaças marotas não se fizeram esperar, a que não faltou a clássica demonstração da flacidez, sempre risível, que a massa ilustrava na perfeição.
Esta não vai lá, nem que lhe mostre as amígdalas ― gracejava, enquanto suspendia o pedaço cilíndrico de massa sobre a boca aberta.
Então, meninos! Hoje é noite de Natal… ― reclamava a matriarca, pouco à-vontade com tanta brejeirice à frente dos genros e das crianças.
Mas o ambiente era de pândega descontraída. Roberto prosseguiu, sugerindo carícias preliminares, ao estender as filhós. A frequente necessidade de abrandar a massa, molhando as pontas dos dedos em azeite, acrescentava realismo às manobras lascivas. Em crescendo, encontrou relações sugestivas entre os cortes da carretilha e alguns aspetos da anatomia íntima feminina:
Esta tem os lábios em ziguezague. Se calhar, dá dentadas. Agora, morde; agora grita! Agora, morde; agora grita... ― ria, visivelmente divertido, espicaçando o cunhado.
Mostra, tio, mostra! ― pediam as crianças, curiosas.
Roberto correspondeu, mimando uma bocarra, com a filhó aberta a meio:
Fujam, que esta é das famintas e vai-vos comer!
Miguel, entretanto, aceitou o repto malicioso de há pouco, retirando da caldeira uma filhó suspensa do espeto pela “anatomia íntima”.
Esta até ficou tesa, quando viu um espeto de meio metro!
A brincadeira e a correspondente risota prosseguiram até que a massa no alguidar se esgotou. Era a altura de lavar e arrumar tudo e de saborear as filhós com calma, acompanhadas de jeropiga. Depois do bacalhau e das couves do jantar, foram ver a fogueira ao largo da igreja e voltaram para distribuir as prendas, pois já ninguém aguentava as crianças. Antes do deitar, aconchegaram o estômago com mais umas filhós e uns copinhos de jeropiga. Era um remate perfeito.
O patriarca da família estava intimamente feliz. Não era todos os anos que conseguia ter toda a família junta. Já deitado, percebeu gemidos abafados vindos de dois pontos distintos do casarão familiar. Música para os seus ouvidos. Chegou-se a Dona Rosália, amoroso, insinuante, atiçado.
O que é que te deu hoje, Zé? ― fingiu reclamar ela.
Acho que é das filhós! ― sussurrou vaidoso, mentindo com toda a sonsice que a ocasião exigia. ― As tuas são as melhores ― acrescentou, fazendo deslizar os dedos ávidos pelas sinuosidades da massa que tão bem conhecia, pronta a ser amassada.

Joaquim Bispo
* * *
Imagem: Moniz Pereira (1920–1989) [pintor; cenógrafo na RTP], [Título temporariamente desconhecido], 1980.
Sindicato dos Trabalhadores das Telecomunicações, Lisboa.
*
(Este conto integra a coletânea, coordenada por Isidro Sousa, Boas Festas — Antologia de Natal, Silkskin Editora, Lisboa, 2015.)
* * *





sábado, 24 de dezembro de 2016

SÉRIE TROVAS PREMIADAS DE EDWEINE LOUREIRO (IV)






terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O cego de Caxambu

Sujeito gentil o meu avô.  Diziam que escolhia as palavras e premeditava gestos,
apenas para não magoar involuntariamente alguém. Tenho ótimas lembranças de sua
voz pausada, sua elegância esguia, suas mãos conciliadoras.

Por algumas vezes, passamos férias familiares em Caxambu, quando veranear numa
estação de águas era como tomar sol na pérgula do Copacabana Palace, só para
espiar uma ou outra starlet de Hollywood dentro de um maiô atrevido. O glamour
dos tempos vencidos transbordava.

O hotel em Caxambu era muito chique. Foi o palácio onde a Princesa Isabel se
hospedava, quando precisava tirar férias do Conde D’Eu, suponho, ou revitalizar
sua distante juventude nas fontes milagrosas do Parque das Águas.

Havia regras pitorescas no hotel. Só se jantava de terno e gravata e as damas
cuidavam de não repetir o mesmo vestido do jantar anterior, embora joias pudessem
ser alternadas noite sim, noite não.  Não que houvesse alguém para fiscalizar
os figurinos na porta, mas a simples transgressão do vestuário era motivo de
olhares reprovadores e cochichos maldosos entre os hóspedes.

Assim como o figurino das distintas senhoras, o cardápio ousava na variedade
obrigatória. Foi nessa época em que eu, menino de 11 anos com pescoço envolto
por uma gravatinha borboleta, conheci o purê de batata doce com iscas peito de pato,
a sopa de brócolis pedaçuda, o arroz com amêndoas e a truta amanteigada, couves de
Bruxelas cortejando um assado de vitela, o sorvete de caramelo e o Ile Flottante,
segundo meu avô, nome metido a besta dos ovos nevados, um pudim de claras batidas
que flutua sobre um denso creme de baunilha salpicado de raspinhas de casca de limão.

Foi nessa época também em que cai de amores pelo pecado da gula – ou da luxúria
gastronômica – e dele nunca mais me desgrudei.  Até hoje aprecio o prazer do degustar
como um orgasmo permitido em público.

O hotel hospedava Don Pablo D’Alvear, um cego ibérico, bem gordo e careca,
cuja gravata não descia além do umbigo e os botões do paletó surrado jamais
encontravam suas casas. Era uma figura fora do contexto de distinção e finura
que o hotel exalava. Mas não era um figurante. Todas as quartas feiras, assim
que as portas do salão do jantar se fechavam, abria-se a sala de música, onde
alguns dos recém-jantados hóspedes bebericavam digestivos em torno de um
piano de cauda. Pois ao lado desse piano, Don Pablo D’Alvear se metia a cantar ópera.

Não que varasse a noite com árias incompreensíveis, mas para um menino de 11 anos,
três minutos de cantoria era o bastante para puxar meu avô para o salão de bilhar,
onde menores só poderiam entrar acompanhado de seus responsáveis.  E mesmo fascinado
pelo bailar das bolas coloridas sobre o feltro verde, era perseguido ao longe pelas
extensões vocais insuportáveis do cego.

Certa noite, quando esperávamos no hall principal o abrir do salão do jantar,
do alto de uma escadaria larga de passadeira vermelha presa ao chão por frisos dourados
– a Princesa Isabel deve ter rolado a escada, pensei, por isso o tapete com garras
de segurança – surge o cego com sua bengala nervosa.
Meu avô, o gentil cavalheiro, tratou de subir os degraus e dando o braço a Don Pablo
descobriu que de espanhol o cego não tinha nada.

- Me larga! Conheço essa escada há mais de 30 anos!

Meu avô desceu a escadaria balançando a cabeça com um sorriso amarelo.
Nós e alguns hóspedes ao redor ficamos constrangidos com a cena, e mesmo
torcendo para que Don Pablo se estabacasse, acabei por admirar a desenvoltura
impressionante do cego em lidar com degraus. Mas um pensamento não me poupou:
desce escada melhor do que canta o desgraçado.

Outro ritual sagrado em Caxambu era caminhar até o Parque das Águas depois
do café da manhã, sempre com meu inseparável companheiro avô. Numa dessas
manhãs frescas e azuladas de Minas, vimos o portão da garagem de uma casa
aberto para calçada, e não para dentro da casa, como reza o bom senso.
Meu avô comentou a burrice de quem tinha projetado aquela ameaça ao pedestre,
mas mal prosseguimos a prosa sobre o absurdo, vimos Don Pablo D’Alvear aparecer
na esquina e caminhar com sua bengala nervosa em direção ao portão.

Meu avô parou e segurou meu braço. Apertou minha mão e atravessamos a rua.
E ficamos de camarote prontos a assistir o desastre iminente.
E lá veio o cego farejando com a bengala o seu suposto tranquilo e desenvolto caminhar.
Não deu outra.

Schcalablouft.

E foi Don Pablo ao chão. Primeiro caiu de costas, perdendo óculos e bengala.
E depois de soltar um urro de opereta bufa, virou-se de bruços tentando se levantar.
Mas a barriga não deixou. Bateu pernas e braços como se nadasse no seco.

Pela primeira vez, vi meu avô soltar uma gargalhada estrondosa. Ria e segurava
as entranhas como um ordinário de botequim. E ainda me bateu nas costas,
com uma alegria descomunal.

- Olha lá! Parece um mata borrão!

Saudade do meu avô. O cavalheiro que descobri um ser humano como outro qualquer.





segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Beethoven e o Telessexo - Por Manoel Herzog (convidado especial)


“Sex Call-Center, boa noite, com quem falo?
“Ludwig van.”
“Boa noite senhor Lúdi, hoje estamos tendo uma noite promocional, estamos disponibilizando: vozes louras, disque 1; índias, disque 2; asiáticas, disque 3; outras etnias disque 4.”
Desde uma Europa branca, erudita e cansada, desejoso de uma voz negra-blues-singer-gospel, disquei o quatro.
“Certo, senhor Lúdi, ainda fala comigo. Que tipo de etnia o senhor estaria desejando?”
“Na verdade uma voz negra, que case bem o ritmo com minha linha melódica. Questão de harmonia.”
“Certo, senhor Lúdi, vamos estar direcionando o senhor para a atendente Sarah. Bom divertimento. O número de seu cartão de crédito, por favor.”
Durante a operação tive a satisfação egóica de sempre que ligo no telefoda – ouvir uma composição minha.
“tananã – nanã – nanã – nanã
tanananã – tanananã…”
Para melhor compreensão do meu Für Elise aplique à onomatopeia acima a melodia do caminhão de gás.
Superado o entrave burocrático, fui direcionado à voz mais exuberante que já vi. Claro, me venha dizer que não se vê uma voz e eu contesto, a partir da sua linha limitada de raciocínio tampouco se gozaria no sexo só por ouvir, e a gente goza. Nunca tinha visto, visto mesmo, uma voz tão exuberante quanto a de Sarah.
“Sarah Vaugham, boa noite, com quem estou falando?”
“Ludwig van.”
“Ai, que nome lindo, amor. Estou ficando molhadinha só de estar ouvindo a sonoridade.”
‘É, vagabunda? fala pra mim, você deve ter um bundão gostoso, gostoso pra gente encher a mão.”
“Claro, amor, estou tendo uma bunda enorme, perfeita, só pra você. Esteja me batendo, me dando tapinha gostoso.”
Sarah tinha uma voz exibicionista, sabia de seus recursos vocais, arrasava na perfomance. Me fez esquecer por momentos minha solidão, minha reclusão, meu mundo matemático de música exata, remeteu a uma África ancestral às melodias européias, ensinou ritmo, batida, axé, remelexo. Fez esquecer o escroto do meu sobrinho fanqueiro, que sou obrigado a criar porque o pai morreu de desgosto. Sou pedra dura, comigo ele se fode, vai acabar enlouquecendo, antes ele do que eu, ainda se mata esse puto. Esqueço com Sarah da minha personalidade difícil, minha misantropia, minha reclusão, esse quarto de silêncios.
“Conta pra mim, neguinha, que que você está fazendo agora.”
“Estou estando peladinha pra você, amor, estou me tocando gostoso.”
“Nossa, tô peladão também. Tocando as teclas do meu piano mágico, ebony and ivory living together.”
“Isso, amor, esteja tocando, esteja tocando gostoso, aaaiiiiii.”
“Goza, goza, gostosa.”
“Vou estar gozando, vou estar gozandooooo.”
“Eu idem. Gozei, tchau.”
O preço da ligação é absurdo e, satisfeita a necessidade do instinto, nada justifica postergar os minutos telefônicos pra nada. Não há cigarrinho a dividir no telefone, não há comunhão no pós-venda.
Findo o ato, sempre me vem essa noia. Um arrependimento por viver, um vazio da alma, um vácuo de sons puros, um ruído de engarrafamento a poluir meu silêncio musical. Os gerúndios da atendente de telemarketing, lembrados, me faziam engulhar, e vi que a vida, o sexo comercial, a superficialidade das relações humanas submetidas ao mercado, eram tudo uma grande duma merda. Foi a partir daí que comecei a ficar progressivamente surdo. Os psicólogos chamam isso “ouvido seletivo”.





sábado, 17 de dezembro de 2016

Mapa - Poema de Diana Araújo Pereira (Em português e espanhol).



MAPA
Com pés de índio não pise no tapete branco. Com pés de negro não chegue na sala principal. Com este sorriso duvidoso não me olhe nos olhos que os tenho em segurança que os quero à salvo de dúvidas ou dores. Já passei pela ponte da incerteza. Cruzei o umbral dos tempos duros e gastos. Como à mesa e uso adequadamente os talheres. Sei manter a maquiagem e a máscara. Fecho os olhos de noite e conto as ovelhinhas brancas. Durmo tranquila depois de rezar. Hoje o mundo está organizado e meus passos caminham sem vacilar pelo mapa. O mesmo mapa que me deram no berço, que me fizeram tragar no leite, e que aprecio comodamente da janela ou da internet. Ah! E canto bem as canções que enamoram ou tranquilizam. Com esforço aprendi os lemas perfeitos com os quais permanecer de pé com os quais lavar o rosto antes de deitar com os quais descansar do susto cotidiano de existir do lado de cá.


MAPA

Con los pies de indio no me pises la alfombra blanca.
Con los pies de negro no me alcances la sala principal.
Con esta sonrisa dudosa no me mires a los ojos
que los tengo seguros
que los quiero salvados de dudas o dolores.
He pasado ya el puente de la incertidumbre.
He cruzado el umbral de los tiempos duros y gastados.
Como en la mesa y uso adecuadamente los cubiertos.
Sé mantener el mantel y la máscara.
Cierro los ojos de noche y cuento las ovejitas blancas.
Duermo tranquila después de rezar.
Hoy tengo organizado el mundo
y mis pasos caminan sin vacilar por el mapa.
El mismo mapa que me dieron en la cuna,
que me hicieron tragar en la leche,
y que aprecio cómodamente
desde la ventana o la internet.
Ah! Y canto bien las canciones que enamoran o tranquilizan.
Con esfuerzo aprendí las perfectas consignas
con que mantenerme de pie
con que lavar la cara antes de acostarme
con que descansar el susto cotidiano de existir por acá.


In Horizontes Partidos, Artepoética Press, N. York, 2016.






sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Casa de repouso


Gosto daqui. Deste silêncio que só é rompido por sons rotineiros. Os ruídos da TV na sala grande; o chiado das panelas na cozinha iluminada; o barulho das chaves pesadas, trancando as portas à noite. Gosto dos bancos no gramado. Sempre me dão a sensação de que estou num jardim inglês. E que a qualquer instante distraído serei Elinor ou Marianne Dadhwood, talvez a própria Austen pensando aborrecida sobre o desprezo de Mark Twain ou rindo da afirmação de Margareth Oliphant de que seus cenários se repetem em todos os livros. Não importa. Desconheço mulher da minha geração que não tenha desejado despertar amor em Edward Ferrers.
Em qualquer cenário.
Meu lado razão também gosta daqui. Das conversas diárias, dos hábitos recorrentes, da segurança do sono protegido pelos cães, meus cães — gosto de pensar, sem medo de competir com ninguém por seu afeto. Só lamento que durante o dia fiquem presos no canil. Mas à noite Olavo, o vigia, me deixa brincar um pouco com eles antes de ir dormir.
Chuck, o pastor belga, gosta de afagos leves ao lado das orelhas. Mais que isso e ele se afasta das minhas mãos, discretamente. Cleópatra, uma rotweiller imensa, me dá a barriga para que eu lhe faça cócegas e eu fico imaginando se não fará o mesmo caso um ladrão pule os muros. Ginger, a labradora que rebola ao caminhar, chega perto, me cheira fungando, depois se vira de costas e senta-se pesadamente em um dos meus pés. Fiquei sabendo que tentaram treiná-la para ser guia de pessoas cegas, mas ela não se adaptou porque é muito agitada. Minha garota rebelde. Sherlock, um velho dobermann, é o único arredio. Só me olha de longe. Não é um olhar perigoso, mas sinto que falta química entre nós. Respeito isso. Em cães, em gente. 
Goretti não vem hoje. Está de folga. Mas me emprestou dois livros e uma lupa para eu não ter a desculpa de deixar de ler porque meus óculos estão fracos. Cem Anos de Solidão e Estórias abensonhadas.  Já li e já li. Mas não lhe direi. Detestaria desapontá-la. Desde que ficamos mais próximas, e eu lhe contei sobre minha paixão pela leitura, ela se esforça em descobrir meus autores preferidos para me trazer uma, duas vezes por semana livros que toma por empréstimo na biblioteca pública. Tenho certeza de que Goretti é solitária. Sim, eu sei, apesar de separada, ela mora com a mãe, tem filhos, família grande. Mas é solitária. Que solidão não é quando falta companhia, mas quando insiste um vazio que nunca se preenche. Só os que afundam e flutuam alternadamente nesse abismo sem fundo se tornam gentis. E seguem gentis, mansos, esperando qualquer paraíso que tenha o calor de um abraço, de um agradecimento sincero. Goretti é assim. Acho que por isso me preocupo com ela e com o segredo que enxergo em seus olhos cor de mato. Os mansos me assustam. São possibilidades incertas. Podem ceder e ceder a vida toda, mas sempre haverá um momento de revolta. E desses momentos só se sabe que causam estragos.
Por que será que me sinto inquieta quando Goretti está de folga? Ela cuida de mim desde que vim para cá. Conhece meu jeito, minhas manias. É uma profissional como poucas. Atenta aos medicamentos, organizada, mãos firmes e delicadas para aplicar uma injeção ou pegar uma veia. Acho que gosta de mim. Eu gosto dela. Tem praticamente a idade dos meus filhos, mas é muito mais madura do que eles. E mais amorosa.
Olavo está me encarando, pensando se interrompe ou não meus pensamentos. Quer me avisar que os cachorros estão impacientes, esperando carinho. Os rabos abanando me cumprimentam como leques vertiginosos, convidando aos nossos rituais noturnos. Sozinhos nesta parte do jardim, eu e os cães em conversa intraduzível. Mas, hoje, há mais alguma coisa. O rapaz continua me encarando, aflito.
< A senhora tem um minuto, D. Ágata? >
Tenho vontade de soltar uma gargalhada, mas me contenho; poderia ofendê-lo. Olavo, assim como Goretti, é dessas criaturas especiais que encantam pela simplicidade. Não há subterfúgios, segundas intenções ou estratégias no seu modo de ser e de se relacionar com as pessoas. Sim, rapaz, eu tenho minutos, horas, semanas. Tempo demais para ouvir o que você vai me dizer, apesar de pressentir que não ouvir seria melhor. Na verdade, eu não quero saber nada do que você veio me contar sobre essa gente trancada como marginais, sobre esses corpos despejados em meio a pilhas de remédios e ao falso conforto dos seus quartos mobiliados com mentiras de última geração. São vidas inúteis. E não me lembro de sentimento mais humilhante do que se sentir inútil. Perceber que as pessoas se calam quando você chega, que inventam coisas para manter você bem longe delas, que bocejam enquanto você fala, que nada do que você faça tem valor para ninguém.
Olavo me fala do que eu já imaginava. Que esta noite alguém quer deixar de viver. E ele me pede que intervenha, que impeça. Eu me pergunto se conseguirei. Tenho horror à morte, essa trapaceira sem-vergonha. E de imediato o que me vem à cabeça são os versos do moçambicano: “Morre-se nada quando chega a vez; é só um solavanco na estrada por onde já não vamos. Morre-se tudo quando não é o justo momento, e não é nunca esse momento". Queria conhecê-lo. Vi-lhe a foto: uma cara comum. Mas eu romperia madrugadas ao seu lado, ouvindo poemas e contos magníficos.
Vamos, pensamento, se aquiete. Preciso ouvir Olavo, porque é certo que alguém deseja morrer hoje. Alguém que roubou um vidro inteiro de comprimidos.
< Quem pegou os comprimidos? >
Ele me olha, magoado. Percebe que eu não estava escutando sua história importante.
< Olavo > — digo, sem mentir — < Quando se chega à minha idade, é inevitável que a gente se distraia com frequência. Qualquer coisa nos leva para longe dos fatos. >
No mesmo instante, a mágoa se transforma em carinho. E me sinto mal por saber que manipulei sua bondade para me livrar da minha falta.
< O Sr. Juarez. Roubou o vidro de calmantes. A senhora acha que ele vai tentar... vai tentar ... >
Vai. Talvez já esteja tentando, neste instante, ou talvez prefira esperar que as enfermeiras façam a checagem noturna para só depois sentar-se na beira da cama, pensar por um momento na família, nos amores, fazer suas últimas orações, pedindo perdão, convencer-se um pouco mais sobre a proposta sem aval de que tudo será melhor num outro mundo, e engolir a overdose programada.
Antes de me apressar para dentro de casa, despeço-me dos cães, essas criaturas magníficas que compreendem tudo. Eu não quero ir. Não gosto que acontecimento algum atrapalhe as minhas noites tranquilas. Mas a iminência da morte não é mesmo coisa para se gostar.
Juarez não está na sala de jogos. Nem perto da televisão onde três senhoras e duas enfermeiras esperam a novela começar. Cada hóspede tem o seu próprio aparelho de TV instalado no quarto, mas a maioria prefere assistir aos programas na companhia uns dos outros. Sigo rápido até a ala masculina e paro na porta de um quarto igual a todos os outros. Duas batidas. Nenhuma resposta. Pode ser muito tarde. Desta vez, seis ou sete batidas mais fortes. Não há mesmo resposta. Hesito, com a mão na fechadura. Não quero encarar o irreparável. Mas tenho que fazer isso. Com a mão trêmula, abro a porta, agradecendo às regras que não permitem chaves ou trancas nos quartos. O escuro é quase total.
< Juarez? > — digo, me aproximando da cama onde o vejo deitado.
Mas ele não se vira. Não consegue. O efeito dos comprimidos já está adiantado e eu escuto seus gemidos baixos. Aperto a campainha insistentemente e crio coragem para olhar novamente para aquele homem deitado. Seus olhos, mesmo semicerrados, estão com medo. Por quê? Por quê?, pergunto baixinho; e, por um instante, tenho a impressão que o escuto dizer: Chega. Tento segurar sua mão magra, de ossos salientes, mas ele entra em convulsão. Os dois enfermeiros chegam para tentar ajudá-lo e eu me afasto para não atrapalhar. Há muito não tem vida neste quarto.
No corredor, rostos curiosos me perguntam o que houve. Não quero falar. Eu ainda converso com Juarez em pensamento para tentar entender por que hoje, por que tão sem sinais. Vou para o jardim, mesmo sabendo que estou no contrafluxo das pessoas. Preciso dos cães que estão agitados do lado de fora, sentindo a movimentação anormal da noite. Ou talvez seja o cheiro da morte. Assim que saio, Ginger é a única a roçar a minha mão com o focinho. Chuck e Cleópatra estão em posição de alerta, orelhas levantadas e olhos fixos no interior da casa, reverenciando mais uma partida. Não vejo Sherlock, mas talvez seja a minha visão deficiente que não consiga distinguir o seu pelo negro na escuridão. Olavo não se lembrou de religar as luzes externas e tudo o que faço é ouvir a respiração dos bichos.
Quando alcanço o banco, estou estranhamente desalterada. E só percebo as lágrimas quando uma delas me chega à boca. Juarez está morto. Decidiu tudo em silêncio, como fazem os que não têm dúvidas. E as tardes de jogos de cartas e as noites de novela e as conversas naquele mesmo banco não existem mais. Assim, num repente, expondo a fragilidade do tempo. 
E logo hoje que Goretti não veio. Eu queria muito que ela estivesse aqui. Para me dizer que desta vez não deu. Não, não deu. E daí? Que inferno isso! Eu não tive culpa. Eu nunca perdi nenhum deles. Mas desta vez não fui capaz de enxergar os gestos de despedida, o silêncio anormal, os olhos de fim. Ai, meu Deus, como eu estou cheia disso! Morte desgraçada. Como eu te odeio.
< D. Ágata, a senhora está bem? > — Olavo se preocupa com o meu silêncio.
< Estou sim, meu amigo. Só um pouco triste. Foi a primeira vez que eu... que eu não consegui chegar a tempo, sabe?>
Ele me olha com carinho. Não sei se entende realmente o que eu sinto. Que o que me consome não é a morte de Juarez, mas o meu atraso.
< A senhora já contou quantos foram?>
< Como?>
 < Quantos estão vivos graças à senhora. >
Na verdade, nunca me ocorreu contar. Seis, ele me diz. 
Marta, minha amiga de infância. Câncer de intestino. Uma lâmina que sumiu do ambulatório. E uma conversa sobre céu e inferno, sobre um deus a quem ela se curvava, sobre o pecado da morte provocada. Meses mais tarde, já em fase terminal, me confessou que não se arrependia de ter esperado pela “morte certa”, porque iria se encontrar com o seu deus. Muito tempo depois, eu ainda a invejava pela sua fé. Por essa crença em paraísos e anjos que torna tudo mais fácil.
Heloísa. Coração fraco. Marido e filhos mortos num acidente de avião. Ela sobreviveu por causa do trabalho que a reteve por um dia. Durante o enterro da família, o primeiro AVC, que a colocou para sempre numa cadeira de rodas. Não andava porque não queria, diziam os médicos. Não, doutores! Não andava porque não tinha para onde ir, para quem ir. Um frasco de remédio de pressão desapareceu do carrinho de enfermagem. Encontrei-a sentada ao lado da janela, comprimidos enfileirados no parapeito, mãos na cabeça. Deu trabalho. Mas, no fim, deixou-se convencer pelo argumento de que um único movimento errado neste mundo seria capaz de mandá-la para bem longe dos filhos, dos pais, do marido naquela outra vida que ela tinha como certa. Até hoje a vejo na sala, olhos sem viço, fingindo assistir à TV ou lendo livros que nunca termina. E me pergunto se não teria sido melhor deixá-la fazer o que queria e ainda quer. Mas então a escuto ao piano, nos fins de tarde, tocando Chopin, seu predileto. E vejo que ela está em paz com o seu tempo de espera.
Leonora e os rins que não funcionavam. Uma noite longa convencendo-a a largar a faca com que pretendia cortar os pulsos. Leonora e seu transplante bem sucedido, poucos dias depois. Por aqui, uma história feliz nunca é esquecida.
Ernesto. Abandonado pelos filhos por causa do alcoolismo. Sem visitas. E o veneno de ratos roubado do galpão no fundo do jardim. Uma noite de argumentos nos quais ele acreditou mais do que eu. Meses mais tarde, apaixonou-se por uma massagista que atendia aqui. Casaram-se e ele montou uma clínica para ela. Nunca mais bebeu.
Mas falta alguém. Duas pessoas, pelas contas de Olavo. Sim, sim. O enfermeiro da ala masculina. Natal do ano passado. Dívidas, muitas dívidas, e um filho pequeno cujo único desejo era ganhar uma bicicleta. Subiu até o alto do prédio sem que ninguém notasse. Ginger notou. Com ele, não teve conversa. Teve bicicleta. Uma coleta no fundo da minha bolsa o resgatou do telhado. Mas ele não sabe que fui eu; se ofenderia. 
Falta alguém. A minha memória está cansada; não tenho mais lembranças disponíveis. Mas Olavo me conta uma história que eu ainda não sei. De uma mulher infeliz que queria morrer para escapar do marido violento. E que um dia, num jardim cheio de cães, escutou quando uma velha senhora leu em voz alta: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”
Então, eu estava certa. Goretti e seus olhos cor de mato têm mesmo um segredo.





segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

teto


destilo teu veneno
num colírio
e pingo nos meus olhos
o escuro
misturo duas gotas 
com absinto
e encho a minha cara
contra o muro
retorno depois 
de perder os sentidos
sedento por vagar
pelo teu mundo





sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

OUTONAL




Pensei em te escrever uma elegia
Que não tivesse só tristeza e agonia
Mas o pranto se instalou em minha pena
E acabou por inundar o meu poema.

Pensei então em invocar as belas flores
E enfeitar com suas pétalas minhas dores
Mas o outono se instalou em minha pena
E acabou por murchar o meu poema.

Percebo então que a poesia já está pronta
E meus rabiscos se assemelham aos amores:
São instáveis, passionais, de faz-de-conta,
Cantam no palco o calar dos bastidores.





quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Flora

aperreio de um entanto que se quer no arrimo
a vontade de ser perto é por tudo o que importa
o momento deveria ceder ao repentino indício 
grassar sobre nós a força indistinta dos incêndios
devaneio ser tragado pelos seus intervalos
venha ao meu gorjeio feito o último encarne
guardo o receptáculo de te ninar as inquietações
abrace-me com a índole dos infindáveis
relampejo de vida que me abocanha pelo vínculo espiralado
a anistia além de todos os meus emblemas
não há oráculo que prestidigite nosso absurdo
você é a liturgia da minha sobrevivência
abrase-me na ventura dessa carapaça celeste
te habito na amplidão de um passarinho


[Imagem: Jules Lefebvre - Flora]





sábado, 26 de novembro de 2016

O quarenta e dois


André Cerino - Imaculada - 1999 - andrecerino.com.br


Ainda bem que cheguei ao quarenta e dois. Melhor ainda ter esta chance de me despedir dele. Impressão de que arrasta o chinelo, ora baila tão presto, dono do salão. Portador de angústia que não remata, mas também de delícia repleta de gozo perene. O 42 é paradoxo todo, seis vezes sete estranhezas custosas amontoadas. Será por que dobro da maioridade — não civil, mas humana?

O raso 40 não me deu tanto trabalho. O 2 a mais, no entanto, tem se mostrado ardido desde o começo, picante nos sentidos mais positivos e nos mais hostis: pimenta de quentura, ousadia e coragem; por outro lado — talvez principalmente — veneno de acidez dolorenta e pinicante. Bingo! Ele tem uma magia intrínseca que provoca todo tipo de irrequietação.

O 42 que nunca acaba é um verdadeiro spoiler. Inconveniente, age desferindo cruas verdades, caçambas de gelo no lombo. O bicho é mesmo um quebra-gozo, lesa-esperança de uma figa. “Suas limitações físicas ganharam força e estão tomando o poder” — ele se precipita, precoce zombeteiro, muito antes da chegada do 50, muito antes de eu querer assistir ao fim do filme. E me põe num difícil dilema, algo que afeta intimamente a mulher que sou. (Sim, estou falando do tempo estreitado da idade fértil, de condições biológicas menos favoráveis à reprodução, de sabotagens ao plano de gravidez. Por que acontece de subsistir tão latente o desejo, a necessidade de gerar mais um filho? Por que essa teimosia de não querer parar de parir, contrariando o bom senso? Dúvida-atoleiro sem solução. Assim, o 42 magoa fundo, quando permite que o coração ávido por vida more num corpo apático, beirando a esterilidade.)

Mencionei uma ardência difícil do 42, né? Agora cito aprendizado favorável, comprovado na empiria: tireoide e vesícula são completamente dispensáveis. A falta delas não mata nem aleija. Outro deleite importante: no 4 ponto 2, nasce uma capacidade maior de amar e de demonstrar amor. Sim, ele ajuda nos abraços verdadeiros, facilita o acolhimento, o encontro, faz gamar nas criaturas. Permite ainda que se fortaleça a fé no Criador e que se reconheça o brilho dos milagres, até das graças mais pequetitas. O 42 me tornou mais sincera, mais sedenta de sentir (de me sentir toda e de sentir o outro, de tomar parte, sentar com o outro para ouvi-lo, respeitá-lo, compreendê-lo, de me responsabilizar pelo coletivo). Dependência? Autonomia? Engajamento? Medo do exílio? Busca da salvação?

Tudo isso ecoa no fluxo da escrita, essa comadre inseparável linguaruda. Os personagens assumem um dever de empoderamento, a narrativa amadura, o prazer de criar se acentua, mais consciente do direito de confidenciar e de levar a refletir sobre toda sorte de bênção e de desdita. O 42 tem me trazido apetite voraz e bons recursos de resiliência. Entidade complexa, esse meu chegado que já se despede. Agora que venha o 43, este mistério de linhas próprias, e que me tempere ainda mais robusta e inacabada, com fome do 44.  


Maria Amélia Elói





sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Kuhn mastigado


A imagem que a ciência fornece de si própria é a de uma comunidade de investigadores teóricos e técnicos empenhada numa persistente exploração do mundo, em todos os seus aspetos, acumulando mais conhecimento ao que as gerações de investigadores anteriores legaram, aproximando-se paulatina mas inexoravelmente de desvendar os segredos últimos do universo. Thomas Kuhn (1922–1966), um ex-físico teórico, veio agitar esta imagem com a sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962, na qual propôs a seguinte tese genérica:

— a atividade da ciência normal consiste na resolução de enigmas, confirmando a concordância dos factos com a teoria, no âmbito de um determinado paradigma seguido pela comunidade de cientistas dessa área;
— quando o número ou a importância das anomalias, nos resultados esperados, tornam o paradigma insustentável, abre-se uma crise no seio da comunidade;
— desencadeia-se, então, uma revolução científica que traz novas teorias e práticas científicas, configurando um novo paradigma;
— aceite o novo paradigma pela comunidade científica, dissimula-se o antigo e entra-se num novo período de ciência normal.

Esse texto — pelo que tem de perturbação da tradicional imagem da ciência, sobretudo a do seu pretenso carácter cumulativo — tem ocupado, desde então, o centro das discussões sobre a capacidade da ciência aceder ao conhecimento e sobre a validade do que é tomado como verdadeiro.

Período pré-paradigmático
Na fase primitiva do desenvolvimento de uma ciência, quando ela se constitui como disciplina independente, geralmente, autonomizando-se em relação a um complexo mais vasto de áreas de conhecimento, é frequente que várias conceções de natureza estejam em competição, tentando ganhar primazia na resolução dos problemas que a comunidade científica da área considera mais importantes. A amplitude do campo de estudos é grande; inversamente, a precisão ainda é muito reduzida. Olha-se para um mesmo fenómeno e descreve-se de maneiras diferentes. «Na ausência de um paradigma, todos os factos que possivelmente são pertinentes ao desenvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de parecerem igualmente relevantes», pelo que as primeiras recolhas de factos aproximam-se de uma atividade ao acaso. (Kuhn) Sendo baixa a clareza na explicitação da teoria e pouco rigorosos os procedimentos metodológicos, cada escola não consegue impor-se às outras, nem constituir um paradigma. Aliás, os debates a respeito de métodos, problemas e soluções servem mais para definir escolas do que para gerar acordos. Por não existir um consenso do conjunto de pré-cientistas num corpo de crenças, cada um sente-se forçado a construir o seu campo de estudos, desde os fundamentos. Nessa fase, os pré-paradigmas não excluem os concorrentes — não conseguem —, como acontecerá mais tarde, quando um deles atingir o estatuto de paradigma.
Então, uma das escolas pré-paradigmáticas ganha ascendente, por enfatizar apenas parte do corpo de estudos ou por ser mais convincente, sobretudo por as suas teorias parecerem melhores do que as competidoras, mesmo que deixe por explicar alguns factos dos que estão em controvérsia. As escolas concorrentes desaparecem, quer pela conversão dos cientistas ao paradigma triunfante, quer pela marginalização dos defensores de teorias vencidas, mas que se mantêm irredutíveis.

Paradigma
Paradigma é o conceito central da tese de Kuhn; é o conjunto inextricável de teorias, leis, aplicações, procedimentos e dispositivos utilizados por uma determinada disciplina. Constitui-se através do sucesso em uma ou várias descobertas científicas que a respetiva comunidade científica considera suficientes como base para outros trabalhos. Representa um consenso em relação ao âmbito e à prática de uma ciência: os seus cientistas obedecem às mesmas regras e normas. A vantagem que um ganha sobre outro é, sobretudo, promessa de sucesso, mais que eficácia comprovada, seja «a análise aristotélica do movimento, os cálculos ptolomaicos das posições planetárias, o emprego da balança por Lavoisier ou a matematização do campo eletromagnético por Maxwell». (Kuhn) Fornece problemas e soluções modelares e promete uma previsibilidade genérica de resultados, no âmbito dessa ciência. Cada sucesso confere maior certeza ao paradigma e dá alento para o testar num âmbito mais amplo, mas sempre dentro dos pressupostos das teorias e procedimentos aceites.
O paradigma é o modelo pelo qual se rege a ciência normal, a que atingiu o estado de tradição coerente, isto é, um nível de confiança nos resultados e de autoconfiança na capacidade de encontrar soluções para os problemas futuramente levantados. Esse bloco coerente de uma determinada ciência é sintetizado pelos historiadores com nomes como Astronomia Ptolomaica, Dinâmica Newtoniana, Ótica Corpuscular. Através do comprometimento com o paradigma, os cientistas resolvem «problemas que mal poderiam ter imaginado e cuja solução nunca teriam empreendido.» (Kuhn)
A sua existência é uma realidade; basta constatar que, nas ciências humanas, «um mesmo comportamento é explicado segundo princípios diferentes pela sociologia, pelas neurociências, pela economia, pela psicologia ou pela sociologia cognitivista.» (Boudon)
O paradigma é o universo teórico e prático que o estudante encontra nos manuais em que se prepara para vir a ser um cientista. O modelo, bem estruturado, dessa fatia de mundo, permite-lhe concentrar-se no seu estudo, aprofundar uma determinada área, com a segurança de conceitos que o paradigma lhe fornece, sem ter de confirmar cada um dos seus pressupostos. Pode iniciar as suas pesquisas no ponto em que o manual se interrompe. Não precisará de as incorporar em obras genéricas, em que cada passo tivesse que ser explicado. Serão, habitualmente, artigos dirigidos aos pares, pessoas que conhecem o paradigma e têm facilidade em mergulhar nos seus aspetos mais esotéricos.

Ciência normal
A atividade da ciência normal consiste na resolução de enigmas, conforme dito atrás, no contexto de um determinado paradigma. Parte do pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo. Intenta forçar a natureza a encaixar-se nos limites preestabelecidos pelo paradigma. Todos os campos que o extravasem são ignorados e qualquer anomalia de resultados que surja no âmbito da resolução ordinária de enigmas é tratada com desconfiança e animosidade. Não tem por objetivo descobrir novos factos, nem inventar novas teorias. Aliás, os cientistas são, geralmente, intolerantes em relação a novas teorias inventadas por outros.
Os enigmas são os problemas previstos no paradigma que gere o seu funcionamento. Nunca se percorrem caminhos investigatórios que não estejam inscritos no “mapa” fornecido pelo paradigma. «Uma das razões pelas quais a ciência normal parece progredir tão rapidamente é a de que os seus praticantes concentram-se em problemas que somente a sua falta de engenho pode impedir de resolver.» (Kuhn) Fundamentalmente, trata-se de confirmar que os factos concordam com a teoria seguida. Cada quebra-cabeças resolvido não constitui uma surpresa, pelo contrário, é esperado, porque a adoção de um paradigma lega um critério de escolha de problemas com solução assegurada.
Embora os resultados possam ser antecipados com alguma certeza, a maneira instrumental, concetual e matemática de alcançar esse resultado é o quebra-cabeças que constitui grande parte da motivação e do fascínio sentido pelo cientista. (Kuhn) «O que o incita ao trabalho é a convicção de que, se for suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeças que ninguém, até então, resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem.» (Kuhn) Não se trata exatamente de um passatempo, porque existem outras motivações envolvidas — desejo de ser útil, esperança de encontrar ordem, excitação da exploração de um novo território — e os resultados são aproveitados e utilizados na produção científica e industrial.
Ao produzir resultados previstos pelo paradigma, este torna-se mais fiável e “verdadeiro” aos olhos dos investigadores. Paradigma e ciência normal são conceitos que se apoiam mutuamente. O que se perde em criatividade ganha-se em profundidade e precisão, porque sendo o âmbito de cada paradigma muito limitado, favorece-se a investigação exaustiva, intensa e rigorosa dessa fatia de mundo. No entanto, segundo Michael Polanyi, «o êxito do cientista depende, em grande parte, de um tipo de conhecimento particular, os conhecimentos tácitos, que se adquirem pelo exercício prático, não pela explicitação teórica.» Estes, referenciais do intelecto obtidos da experiência, mas pessoais e dificilmente transmissíveis, servem de modelos de comparação às associações que estão na base do fenómeno da intuição, cujo processo, mantendo-se obscuro, ganha vivacidade e prodigalidade através do empenhamento num trabalho de aproximação, meditação e indagação exaustiva do problema. «O caminho que leva do estímulo à sensação é parcialmente determinado pela educação.» (Kuhn)

Anomalias
Embora a ciência normal não procure novos factos ou novas teorias, eles surgem, no contexto da heterogeneidade de procedimentos e equipamentos exigida para a solução dos quebra-cabeças. Aliás, a ciência normal, com o seu rigor de procedimentos e medida de resultados, é uma excelente detetora de anomalias. São descobertas que manifestam que a natureza violou as expectativas prometidas pelo paradigma. O seu traço característico é a recusa a serem assimiladas aos paradigmas existentes. Tais factos anómalos introduzem uma primeira perturbação na tradição dessa ciência, que, geralmente, começa por negá-los ou tirar-lhes importância.
Confirmada a anomalia, a comunidade cientifica ganha consciência da insuficiência do paradigma e empreende uma exploração intensiva do domínio em que ela foi detetada. Podem surgir novas teorias. Eventualmente, a anomalia não será muito profunda e será possível reajustar o paradigma de modo a englobar a previsão do fenómeno anómalo. No entanto, nem sempre é possível alterar o paradigma de maneira a poder conter o dito fenómeno inesperado. Por vezes, a importância da anomalia, o número de anomalias, ou a sua resistência às soluções são tais que põem em causa a credibilidade e a eficiência do paradigma para continuar a modelar a atividade científica dessa área, pelo que se abre uma crise.

Crise
Num período de crise de paradigma, existe muita controvérsia acerca do paradigma e da anomalia que o pôs em causa. Numa primeira fase, os cientistas têm a tendência para cerrar fileiras na defesa do paradigma em que se movem. Diminui a confiança, devido ao fracasso de os quebra-cabeças darem os resultados previstos na área da anomalia. A sensação de fracasso pode ser tanto mais intensa quanto se pensasse ter resolvido ou estar prestes a resolver alguns quebra-cabeças importantes. A frustração advém de que não se trata de refazer cálculos ou ser rigoroso nos procedimentos, mas de que se está no limiar da desconfirmação total.
Aos poucos, muitos cientistas vão-se afastando do paradigma, embora nenhum paradigma seja abandonado enquanto não existir outro que o substitua. A ciência, de normal, passa a extraordinária. Concentram-se esforços na resolução da anomalia, afrouxando a fixidez das regras recomendadas e buscando soluções com recurso até a áreas externas, e às vezes afastadas, da disciplina em causa, nomeadamente a Filosofia. A solução pode já ter sido entrevista no passado, só que num período em que a ciência não estava em crise, pelo que a solução foi ignorada.
Eventualmente, a ciência conseguirá voltar à normalidade anterior, quer conseguindo eliminar a anomalia, quer isolando-a, mas, não o conseguindo, acabará por surgir uma nova teoria com pretensões paradigmáticas.
A crise é fundamental à emergência de nova teoria. Esta é uma teoria que necessariamente engloba e explica a anomalia que deu origem à crise.
Assimilada a descoberta, os cientistas podem dar-se conta de um maior número de fenómenos ou explicar com mais rigor alguns já conhecidos. Isso é devido a serem descartados procedimentos e crenças aceites anteriormente.

Revolução científica
O novo paradigma não surge de uma acumulação de conhecimento baseado no velho paradigma. Afirma-se como completamente novo e vem alterar profundamente e reorganizar o domínio da ciência em questão, pelo que é apropriado chamar revolução científica a este processo, associando-o aos períodos de reorganização social profunda. Dá-se uma desintegração da tradição desenvolvida pela ciência normal. Aumenta a insegurança. Muitos cientistas veem mudar as regras que regiam a sua prática, alguns veem postos em causa os pressupostos dos trabalhos em curso ou mesmo concluídos. Não se trata de acrescentar uma adenda, mas de reavaliar os factos em que se basearam.
Nem sempre uma nova teoria entra em confronto com qualquer anterior; pode referir-se a fenómenos desconhecidos, até aí, como a teoria quântica, ou ser mais abrangente, como a teoria da conservação da energia, e englobar outras de nível inferior, que não são alteradas.
A solução que dá origem a um novo paradigma pode surgir como uma iluminação repentina, como se, de repente, caíssem as vendas que os cientistas usavam. Não é correto falar-se de interpretação, mas de fulguração intuitiva. Alguma conexão neuronal é estabelecida, alguma associação inconsciente dá frutos. Para exemplificar a maneira diferente como os cientistas percebem o mesmo fenómeno que miravam antes, e agora veem como algo diferente, Kuhn fala dos testes Gestalt, em que, num dado momento, por exemplo, se vê um pato e, no momento seguinte, salta à vista a forma de um coelho, no mesmo desenho, com os mesmos traços. O cientista do novo paradigma passa a ver, por exemplo, a Terra a girar em torno do Sol, quando antes só conseguia ver o Sol a girar em torno da Terra. A alteração é tal que até a parafernália instrumental se altera, para dar resposta aos novos problemas, e até as perguntas que se põem aos fenómenos são diferentes. Não só o novo paradigma explica e dá solução a mais problemas, como se manifesta inconciliável com o antigo. Kuhn fala mesmo de incomensurabilidade, uma impossibilidade de usar a mesma medida para ambos, como num elefante e num sonho.

Regresso à ciência normal
Instalando-se o novo paradigma, sucede algo semelhante ao que sucedeu aquando da formação de cada ciência: o novo paradigma vai ganhando adeptos, enquanto o velho os perde. A conquista de aderentes, no entanto, não é instantânea e fulminante; eles vão-se aproximando num processo que deve muito à persuasão e à sedução, mas, como os paradigmas são incompatíveis, não se pode ficar a meio-caminho, pelo que a adesão ao novo tem um caráter semelhante ao da conversão religiosa. O paradigma antigo, por outro lado, mantém defensores irredutíveis, mas que vão sendo excluídos do sistema — são ignorados e os seus trabalhos rejeitados. Gradualmente, multiplica-se o número de experiências, de instrumentos, de livros baseados no novo paradigma.
Um aspeto importante relacionado com o regresso ao funcionamento normal da ciência é o dos manuais pelos quais aprendem os novos cientistas. Cada nova revolução científica obriga à sua atualização, fazendo-se esta pela dissimulação dos aspetos parcelares da história que conduziram ao antigo paradigma e até da existência de revoluções precedentes. Os cientistas não dispõem de um equivalente ao museu de arte, de que os artistas dispõem. O novo paradigma é apresentado como se toda a história anterior dessa ciência fosse um caminhar inexorável na sua direção, como se o conhecimento tivesse sido cumulativo. Ora, o que Kuhn vem mostrar é que as revoluções científicas introduzem mudanças de direção da ciência e que os vários paradigmas que a sua história viveu são patamares que pouco têm que ver uns com os outros e são, muitas vezes, totalmente incompatíveis. Os novos cientistas, assim industriados, tornam-se eficazes a lidar com os problemas do novo paradigma, mas ignoram essas tergiversações do percurso da sua ciência, vendo-se como alpinistas que contemplam e dominam a paisagem circundante, como se fossem continuadores de antigos alpinistas que escalaram os primeiros contrafortes dessa montanha, quando, na coerência da metáfora, escalaram e atingiram o topo de outra montanha afastada desta.
A ciência progride, sim, no sentido de evolução, tanto na fase normal, em que é cumulativa, como, principalmente, na fase extraordinária, o que não significa que se aproxima mais da verdade. Sobretudo, não se pode dizer que tenha um fim. À maneira do que acontece com os organismos vivos, que Darwin interpretou, as revoluções científicas são como que as mutações que habilitam as ciências com vantagens adaptativas, em relação ao período regido pelo paradigma anterior. Aumenta a precisão e a especialização, mas todo o processo não se orienta «para um fim preciso, para uma verdade científica fixada e permanente». Cada geração preocupou-se com os problemas próprios, como a atual se preocupa com os seus, mas uns não se encadeiam nos outros, nem há um fim definido, uma teleologia das ciências. (Kuhn)

Relativismo
Estas asserções da obra de Kuhn ressumam relativismo. O relativismo questiona a possibilidade de o conhecimento aceder ao real. Kuhn, negando que haja conhecimento cumulativo e aproximação à verdade, alimenta a tese relativista. O relativismo existiu em todas as épocas, mas é paradoxal que se afirme numa época de inúmeros sucessos das ciências. O que o impede que trave o desenvolvimento das ciências?
Kuhn afirma que cientistas de paradigmas diferentes vivem em “mundos diferentes”, falam “línguas” diferentes, pelo que é impossível qualquer diálogo. Embora tal entendimento pudesse conduzir à conclusão relativista de que ambos os grupos pudessem estar certos, Kuhn rejeita as críticas de relativismo, argumentando que os cientistas são uma comunidade muito especial, cujo trabalho é formular e resolver quebra-cabeças, apoiados, às vezes, em indícios muito ténues mas reais. Entre dois paradigmas consecutivos, é-lhes fácil determinar que o mais recente tem predicados de maior precisão nas predições, especialmente quantitativas, e um maior número de problemas resolvidos. «As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças nos contextos frequentemente diferentes aos quais são aplicadas.» Kuhn diz que esta não é uma posição relativista e revela que é um crente convicto no progresso científico.
Em relação à maior ou menor cientificidade, também Kant quis dizer, segundo Boudon, que «não existe um conjunto finito de critérios que, como uma checklist, possa ser aplicado para determinar se uma teoria é verdadeira. Em contrapartida, é possível, em muitos casos, decidir com certeza a favor de uma teoria contra outra. É por ser possível determinar com base em razões sólidas se devemos preferir uma teoria a outra que certas teorias desaparecem irreversivelmente em benefício de outras».

Conclusão
Thomas Kuhn, ao lançar em 1962 a obra A Estrutura das Revoluções Científicas, desencadeou, ele próprio, uma revolução na maneira como é entendido o desenvolvimento das ciências. Define uma imagem de cientista um pouco frívola, como alguém que se ocupa a resolver quebra-cabeças científicos, não procurando descobrir nada de verdadeiramente novo. Este panorama de falta de ambição descobridora só é perturbado quando os quebra-cabeças não dão os resultados esperados e mostram que há qualquer coisa de errado ou insuficiente na teoria. A crise assim desencadeada conduzirá, inevitavelmente, a uma revolução que alterará de alto a baixo o conjunto de teorias e procedimentos dessa ciência — aquilo a que Kuhn chama paradigma. O panorama que emerge dessa revolução é radicalmente diferente e incompatível com o anterior.
A tese de Kuhn tem a virtualidade de conter, ela própria, algo de paradigmático: pode ser aplicada a múltiplos aspetos da vida, da economia às ideias políticas. No entanto, não se aplica convenientemente à Filosofia, às artes, à Literatura, por serem refratárias a conformações paradigmáticas.
Apesar das críticas, a tese ainda não foi posta em causa por nenhuma “anomalia” grave, funcionando os seus radicais seguidores como ciosos defensores do paradigma, advogando que não há ciência sem pressupostos radicados em paixões e crenças e indo ao ponto de dizer que as teorias científicas podem não ter mais objetividade e garantia do que as mitologias.

Bibliografia
BOUDON, Raymond, «O Relativismo Cognitivo», in O Relativismo, Lisboa, Gradiva, 2008, pp. 25–35.
CARRILHO, Manuel Maria, «Kuhn e as Revoluções Científicas», in Colóquio – Ciências, N. 2, Lisboa, Jun. 1988, pp. 43–52.
FEYERABEND, Paul, «O Adeus à Razão», in Adeus à Razão, Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 327–333.
KUHN, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas, São Paulo, Perspectiva, [1990].
RORTY, Richard, «Pragmatismo como Anti-representacionismo», in John Murphy, O Pragmatismo: de Pierce a Davidson, Porto, Edições ASA, 1993, pp. 7–13.
SOARES, Maria Luísa Couto, «Teorias da Verdade», in O que é o Conhecimento?: Introdução à Epistemologia, Porto, Campo das Letras, 2004, pp. 199–223.

Joaquim Bispo
* * *
Imagem: Jean-Léon Huens, Galileu explicando a topografia da Lua a céticos, National Geographic Society, c. 1974.
* * *