Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

domingo, 25 de março de 2018

Cinzas da vida



Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira — 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Leonardo, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona velha da Quinta de S. Vicente.
Os primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem ordenados de datilógrafa e de eletricista; valia-lhes não pagarem renda de casa. Depois ela conseguiu entrar para hospedeira de terra, no Aeroporto, e ele para técnico do Rádio Clube, mas, se entrava mais dinheiro, a separação determinada pelos horários ditou um maior afastamento.
Quando o 25 de abril de 74 rebentou com os dias negros da Ditadura, abriu também janelas de esperança a todos os que viviam vidas de cinza. Amélia viveu as euforias das manifestações, das lutas por melhores salários, das liberdades conquistadas. Passou a sair com colegas que, como ela, terminavam o turno à meia-noite, para beber um copo. Era bem mais apetecível do que ir a correr para casa, onde a esperava a sogra controladora. Leonardo fazia geralmente o turno da meia-noite às oito da manhã.
No grupo de quatro ou cinco colegas, rapidamente se aproximou do Paulo, que, além de uma boa figura, tinha carro e era a boleia certa para casa. Por fins de novembro, Amélia passou a ser visita frequente do quarto dele na Calçada de Carriche. Nunca o marido suspeitou, embora a mãe não deixasse de o informar das horas a que ela chegava a casa.
Certa noite, lá por maio, o desejo não pôde esperar por um quarto — amaram-se no banco do pendura do carro de Paulo, numa rua sem casas dos altos do Restelo. De vidros embaciados, uma lanterna acesa tentando descortinar o que se passava lá dentro foi um final desagradável — pós-final, felizmente. Dois polícias de giro identificaram os amantes e aconselharam maior discrição.
No dia seguinte, o alarme: um dos polícias telefonou para casa de Amélia — sabe-se lá com que intuitos lúbricos — e não houve como negar a relação extra-conjugal. Depois de discussões violentas, Amélia saiu de casa. Paulo recolheu-a e durante umas semanas parecia que a situação era o melhor que lhes podia ter acontecido, a não ser…
A não ser pelos meandros escuros da natureza humana. Pareceu a Paulo que a situação de Amélia era de dependência, e tornou-se um pouco sobranceiro. Além disso, a relação perdera aquela fulgurância de chama que só a clandestinidade atiça. Sexo sem ser furtivo perdia parte da graça. E Amélia não deixou de o perceber. Dois meses depois, mudou-se para um quarto que dividia com uma amiga.
Paulo não gostou. Mesmo sem a excitação de coisa proibida, sexo em casa, disponível sem muito trabalho, agradava à sua preguiça inata. Agora voltava a ter de se esforçar — combinar encontros, organizar e acompanhar passeios, fazer trabalho de sedução. E tornou-se altamente ciumento. Quando soube que Amélia tinha saído com um grupo de outro colega, fez uma cena. Mas Amélia tinha crescido, à imagem do país, que estava muito mais aberto e liberal. Já não estava para aturar manápulas de controlo. E rompeu com Paulo.
Ao contrário do homem de ideias arejadas que Paulo parecera ser, revelou-se, afinal, um tipo misógino e vingativo: no auge do ressabiamento, telefonou para o ex-marido de Amélia. Identificou-se, pediu desculpa pelos atos anteriores, declarou-se solidário com a sua situação de marido enganado e pediu solidariedade para a sua similar situação de amante enganado. Por palavras hábeis, demonstrou como ambos tinham sido atirados para a mesma humilhante condição por uma mesma pessoa, uma mulher volúvel, sem caráter. A terminar, indicou pormenorizadamente o local onde ela se encontrava com o novo namorado.
Leonardo, querendo recuperar alguma dignidade que julgava perdida, dispôs-se a mostrar firmeza conjugal. Dirigiu-se ao local indicado e efetivamente apanhou os amantes em flagrante. Uma moca de Rio Maior, que nessa altura era muito popular nas lutas políticas norte-sul, foi a ajudante que convocou para dar o necessário corretivo na ex-mulher. Deixou-a inanimada com escoriações e hematomas nas pernas, nas costas, no peito e um traumatismo craniano. O namorado escapou antes que Leonardo pudesse apanhá-lo.
A Polícia tomou conta da ocorrência e o processo da agressão foi a tribunal em novembro. Depois de ouvir as queixas de uma e as razões de outro, o despacho do juiz foi claro: admoestava-se o ex-marido pela conduta descontrolada, mas tomava-se em conta a humilhação a que tinha sido sujeito. Verberava-se com ênfase a conduta traiçoeira de Amélia, causa primeira das posteriores agressões. Referia-se que, felizmente para ela, já não se apedrejavam adúlteras, como era de lei nos tempos sagrados relatados na Bíblia.
De nada valeu que o advogado de Amélia lembrasse que não era ela que estava a ser julgada, que ela é que fora agredida barbaramente, e que todo o indivíduo tem direito a não ser discriminado perante a Justiça, conforme a Declaração dos Direitos Humanos.
Amélia ouviu uma repreensão verbal por conduta indigna e o ofendido um pedido de comiseração, tendo em conta os tempos desvairados que se atravessavam. Saiu calada. Sentiu-se outra vez género menor. Percebeu que os tempos de liberdade e luz que a sociedade vivia não tinham tocado alguns setores.
Pouco depois, o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 75 punha um ponto final nas aspirações progressistas pós-ditadura de Salazar. Nada que ainda causasse perplexidade a Amélia. Claramente, o 25 de abril não chegara à Justiça, mas também já não ia chegar. Três meses depois, aceitou a carta de chamada de um primo e mudou-se para o Canadá. De vez.

Joaquim Bispo

Imagem: Jean-Paul Laurens, O Papa e o Inquisidor [Sixto IV e Torquemada], 1882.

* * *
Este conto integra a coletânea “Direitos humanos e minorias” da Revista Gueto, 2º semestre de 2017, edição especial, pp. 64–66.


* * *





terça-feira, 20 de março de 2018

A VOZ DA SUA BELEZA

1962

21 de janeiro, 05:21 h.  Um corpo é encontrado boiando nas marolas da Praia da Urca.
Há uma perfuração na testa e mãos amarradas. Está em decomposição. Irreconhecível.

21 de janeiro, 10:42 h.Um rabecão do Instituto Médico Legal recolhe o corpo sob os
olhares de pequena multidão de curiosos. Todos tapam o nariz.

21 de janeiro, 22:48 h. O legista conclui que um homem de aproximadamente 35 anos veio
a óbito há pelo menos 48 horas com um tiro frontal de arma de fogo calibre 32. Não há
outros sinais de violência, além das escoriações nos punhos provocadas pela força da corda  amarrada.

25 de janeiro, 09:23 h. Até a essa hora, ninguém havia reclamado o corpo, que também não
havia sido identificado. As digitais estavam deterioradas pelo tempo em que ficaram imersas.
Alguns peixes cuidaram de esfacelar os dedos.

7 de janeiro, 18:32 h. Raul da Silva Maciel acorda da anestesia depois de três horas de uma
cirurgia exploratória na região abdominal. Mal abre os olhos, se dá conta de que está numa
UTI pós operatória. Grogue e atordoado. Recebe a visita do cirurgião. Dá-se um diálogo curto e grosso.
- Sr. Raul, carcinoma ductal no pâncreas. 
- Só isso? 
- Isso é tudo, não há mais o que fazer. 
- Quanto tempo? 
- Três, quatro meses. 
- Três, quatro meses de morfina, por favor. 

9 de janeiro, 19:07 h. Raul da Silva Maciel abre com dificuldade a porta do seu quitinete no
Catete. Com a mesma lentidão caminha à cristaleira no centro da pequena sala. Carrega uma
caixa de ampolas de morfina auto aplicáveis, como se aplicavam soldados na Segunda Guerra. Suas mãos estão trêmulas, a ponto de quase deixar espatifar no chão a garrafa de uísque, cujo gargalo
leva à boca.

10 de janeiro, 06:32 h. Raul acorda com gosto de banco de igreja na boca, embebido em uísque e bactérias produzidas pela noite entre resíduos nas gengivas e tártaros. Está jogado no tapete,
ao lado da garrafa vazia. Não sente dores. Sua cabeça lateja. Esfrega os olhos lentamente.
Um letreiro de neon pisca dentro de sua cabeça: Morgana, Morgana, Morgana.

18 de janeiro, 21:00 h. Morgana Ferrante estreia no La Rose D´Or. Suas tentativas de se tornar
cantora foram quase frustradas, até que lhe estendeu a mão o Deputado Federal por Alagoas
Leonildes Ferrante, a quem canta “Ne me quitte pas” olhando olho no olho do Deputado, sentado
na primeira fila, ladeado de Juvêncio, motorista e fiel capanga.

18 de janeiro, 23:05 h. Fim do espetáculo. Morgana é recebida no camarim por um assistente de palco que lhe entrega rosas vermelhas. Há um bilhete anônimo. Porém, as palavras lhe estonteiam. “Sempre acreditei na voz de sua beleza.” Morgana fica pálida e rasga o cartão.

18 de janeiro, 23:18 h.. No banheiro do La Rose D´Or , sob a permanente vigília de seu motorista
corpulento, o Deputado Leonildes ajeita a glostora no topete, ainda inebriado pela apresentação
de Morgana. Não percebe a aproximação de um homem magro, barba por fazer, um tanto cambaleante, um tanto curvado, um tanto firme no dizer.
- Coronel Leonildes! Sou louco pela sua mulher.
- Que traste é você?
- Um homem que ama sua mulher. Morgana, Morgana, Morgana!
- Que despautério!
- Amo sua mulher mais que seu dinheiro pode comprar! Vossa Excelência porca não sabe da missa 
a metade. 
- Juvêncio! Tire esse cabra daqui! E some com ele daquele jeito!
Raul é amarrado nos punhos. Leva um mata leão e perde os sentidos.


1961

20 de outubro, 16:34 h. A primeira aula de Morgana no Conservatório de Música é um fiasco.
Os professores se entreolham desencantados. Um deles quebra o lápis e joga os cotocos no chão.
O pianista se compadece. Mais que isso: fica encantado com a beleza de Morgana, apesar da voz
rouca e de precária afinação. O nome dele é Raul.

21 de outubro, 17:07 h. Chove a cântaros no Rio de Janeiro. À saída do Conservatório, Raul cede
seu paletó à Morgana, que espera o bonde numa marquise, se esquivando do aguaceiro. Dá-se um
comedido diálogo:
- Você não é o pianista? 
- Sim. 
- Desculpe o vexame de hoje.
- Não há o que se desculpar. Acredite na voz da sua beleza.
Morgana ruboriza. Raul também.  Chega o bonde para Rua Aguiar na Tijuca. Morgana sobe, deixando rabichos de olhar para Raul. Que lhe levanta o chapéu ao longe.

27 de outubro, 17:10 h. Raul e Morgana se encontram no mesmo ponto. Desta vez sem chuva.
Dois bondes se aproximam. O primeiro: destino Águas Férreas. O segundo: Aguiar-Fábrica.
Raul disfarça, deixa seu bonde passar e muda de rumo. Dá-se um segundo e contido diálogo:
- Tijucana? 
- Sim. 
- Eu também. 

29 de outubro, 17:10 h. Raul pega o mesmo bonde de Morgana, dois bancos atrás. Fica espreitando
encantado sua nuca revelada pela brisa que levanta seus cabelos. Raul percebe que Morgana vai
descer do bonde. Apressa-se, passa a sua frente e, se equilibrando no estribo, oferece sua mão.
Dá-se o terceiro diálogo:
- Muito gentil, pianista. 
- Raul, me chame de Raul. 
- Tocas há tempos no Conservatório? 
- O bastante para conhecer a voz de sua beleza. 
Morgana e Raul fitam-se. Olhos tímidos que sorriem.

31 de outubro, 17:22 h. Raul fecha o piano e vê Morgana chorando, também a cântaros, na coxia
do auditório, semi encoberta por uma cortina. Dá-se o quarto diálogo.
- Posso ajudar? 
- Não. É pessoal. 
- Se precisar... 
- Obrigado. Você é muito gentil. 
- Vai de bonde? 
- Vou, mas hoje prefiro ir sozinha, desculpe. 
Morgana parte às pressas. Raul faz que vai atrás, mas não vai. Medo.

18:33, 31 de outubro. Hildete, mãe de Morgana, está esperando a filha no portão.
- Enxuga essas lágrimas, lava sua cara de desenxabida. 
- Ele veio mesmo?
- O Deputado veio só para uma visita de pêsames. Era amigo de infância do seu pai lá das Alagoas. 
- Mas papai se foi há mais de ano! 
- Não interessa o pretexto, ele veio ver você. 
- Mas tem idade para ser meu pai. 
- E dinheiro pra tirar a gente dessa pindaíba.

18:17, 3 de novembro. Morgana se arruma para um jantar com o Deputado Leonildes Ferrante.
Olha-se no espelho por séculos. Não está confortável. Pensa no pianista que nem lembra o nome.
Romeu? Raul? Rui? Seu coração bate forte pelo que poderia ter sido. Pelo que não foi. Pelo não
era para ser. Lembra uma frase dita por Raul ajudando a descer do bonde, que lhe acalentou
sonhos de ser cantora.

16:38, 10 de novembro. Um homem senta-se súbito ao lado de Morgana no bonde.
Morgana se assusta, mas uma meiguice desconcertada toma conta do seu olhar. Dá-se um
diálogo definitivo.
- Você? 
- Sim, seu pianista. Sumiu uma semana? Não apareceu mais no auditório. 
- Não posso mais estudar canto aqui, vim me despedir dos professores. 
- Como assim? 
- Vou ter aulas particulares. Embarco mês que vem para Paris.  

21:29, 10 de novembro. Raul faz da garrafa de uísque uma mamadeira. Dorme no tapete da sala
da quitinete.

07:05, 11 de novembro. Raul acorda amarelado. O espelho não nega. Abre a camisa amarfanhada.
Parece uma gema. Apalpa o lado direito do abdômen. Dores. Franze a testa, lava o rosto sem gosto.
Toma um sal de frutas lentamente. Olha as borbulhas no copo e vê um letreiro de neon: Morgana, Morgana, Morgana.

16:32, 13 de novembro. Fraco e com suspeita de icterícia, Raul sobe no estribo do Aguiar-Fábrica
destino Tijuca. Salta na rua de Morgana. Assiste atrás de uma árvore a um Buick preto estacionar
no portão e um motorista corpulento abrir a porta para Morgana entrar. Estonteante e trágica visão.
Vestido colado no corpo, cabelo preso, nuca em nudez plena, sandálias de salto, sorriso rodeado
de batom carmim e um colar de pérolas que acende a rua. Um cinquentão altivo e garboso sai do banco traseiro do carro e a recebe com um abraço interminável. Talvez esteja acontecendo um beijo -  não se sabe, Raul fecha os olhos. E vomita bílis na calçada.

14:12, 17 de dezembro. Raul aparece no Conservatório onde estava licenciado. Todos se
espantam com sua cor amarelada, sua voz claudicante e um insincero sorriso para todos e para
a vida. Ouve não sabe bem de onde, cochichos indesejáveis entre duas alunas.
- Lembra da Morgana?
- Aquela bonitinha da voz rouca desentoada?
- Casou com um Coronel das Alagoas. Deputado Federal. Herdeiro de usineiro.  Idade do pai 
dela. Bonitão e rico de alça de ouro no penico.
- Essa pequena nunca me enganou. 
- Agora chama-se Morgana Ferrante. Foi para Paris. Estuda canto.
Raul desmaia.

07:46, 20 de dezembro. Raul tem alta em um Pronto Socorro, para onde foi levado na
ambulância chamada às pressas pelos colegas do Conservatório. Pega o bonde Aguiar-Fábrica
e salta na rua de Morgana. Fica encostado duas horas no muro em frente, olhar fixo na janela do quarto que nunca conheceu, supostamente da Morgana que também nunca conheceu como sonhou.
O portão está trancado. As portas e janelas estão fechadas. Uma tabuleta diz Aluga-se. 
O vazio corrói.

16:40, 20 de dezembro. O Deputado Leonildes assiste à última audição de Morgana, agora
Ferrante, para uma banca de chansonniers em Paris. Não há entusiasmo entre os franceses,
apenas um grito solitário de “Bravo!”, seguido de um indiscreto “Arretada, minha cabrita!”. Morgana se curva agradecida.

23:52, 24 de dezembro. Raul na quitinete do Catete. Um passarinho depenado na gaiola.
Gargalo da garrafa de uísque sobe e desde à boca. Nos olhos fechados na cabeça jogada no sofá,
pisca o recorrente neon: Morgana, Morgana, Morgana.

23:52, 24 de dezembro. As luzes de Paris iluminam as mãos dadas de Morgana e Leonildes pelas margens do Sena. Carregam copos e uma garrafa de champanhe. De olhos para a Notre Dame, saúdam o nascimento do Menino Jesus. Erguem as taças e se benzem. Morgana encosta o rosto
no peito aconchegante de Leonildes. Trocam afagos agradecidos, um pelo outro.
Por motivos diversos.

23:52, 31 de dezembro. Parece que o tempo parou na quitinete de Raul. Só a barba crescida dá
sinal que uma semana se passou. No mais, o gargalo, a garrafa renovada, o corpo cada vez mais magro jogado no sofá. E claro, o recorrente neon no breu dos pensamentos.

1962

17:36, 1 de janeiro. O casal Ferrante desembarca no Galeão. Réveillon inusitado a bordo da
primeira classe da Panair. Só faltaram fogos de artificio, por incompatibilidade física, e um amor
nu e ardente, por pudores. No mais, muita champanhe e juras falsas e francas de amor eterno.

08:12, 11 de janeiro. As letras de um colunista social são ferozes: “O casal Morgana e Leonildes Ferrante desembarca de Paris. Ele trazendo a amada pelo braço. Ela trazendo na bagagem um pré contrato para cantar no Le Rose D´Or, a nova febre dançante de Copacabana. L´amour, toujour 
l´amour.”. Sobre a legenda, a fotografia de dois apaixonados sorridentes. Raul recorta Morgana do retrato e cola na parede. Tudo dói. Raul auto aplica uma ampola de morfina.

11:01, 12 de janeiro. Raul só tira os olhos do retrato de Morgana para e levar o gargalo da
garrafa de uísque à boca automaticamente. Lembra do dia da sua estreia no La Rose D´Or. As horas  passam intensas. Como passam a morfina, o uísque, o neon.

14:28, 13 de janeiro. Raul decide por em prática um plano para deixar de viver.  Não tem coragem de fazer pelas próprias mãos.

21:20, 18 de janeiro. Do fundo da La Rose D´Or, Raul assiste à Morgana Ferrante entrar no palco. Começa a cantar "L´himne à l´amour". Pelos olhos de Morgana, que fecham-se e abrem-se
para a primeira fila, Raul sabe que não é para ele. Disfarça, e antes do fim do espetáculo dirige-se ao banheiro.

06:15, 19 de janeiro. Uma mulher dá entrada num Pronto Socorro Público, entregue por um táxi não identificado. Tem o rosto retalhado por um corte extenso do supercílio ao lábios, carente de suturas urgentes. Sua boca sangra por uma suposta  perda de dentes. Apresenta hematomas no olho esquerdo e no dorso lombar, configurando lanhos produzidos por objeto contuso, fivelas de cinto, a conferir. Com a voz rouca e débil, consegue balbuciar: "Meu nome é Morgana. Caí da escada."





sábado, 17 de março de 2018

fourmis dans l’œuf - poema de Vivian Matsui




fourmis dans l’œuf






não saber mais se um torna-se ovo por retração ou por impulso talvez ambos talvez só por impulso brotem formigas elas rompem a casca o ovo é o mundo a formiga quebra a casca a questão é se elas comem a gema antes

espero que não o ovo estaria morto só o cálcio ninguém responde o ovo é pétreo

o ovo se fechou a formiga já estava dentro foi assim a gema quis sair um instantezinho deslize de exaltação quase um grito de liberdade depois um suspiro de alívio entrou a formiga esquiva fechou o ovo satisfeito coitado ingênuo elas se multiplicam cataporicamente a conclusão é nunca nunca nunca vulnerabilidade o ovo mesmo o ovo retraído só uma ilusão eremita de segurança no fundo ele treme suores frios enxaquecas de ansiedade e insônia o ovo nunca dorme sempre vigia mas é medo mesmo

o ovo melhor nunca sorrir de olhos fechados


A imagem pode conter: 1 pessoa

Do livro como (não) foi
editora urutau





sexta-feira, 16 de março de 2018

Viva (para M. que não conheci)



faz tempo que ser mulher não é obedecer 
a qualquer sina
ao destino alienado de acordar 
pra ser boneca de corda, recatada, feminina
pasto para o prazer
inconsentido, cocho para o caralho  
insaciável de José de Pedro de Antônio de qualquer mané
usada calada violada surrada sufocada pela ausência de opções 
ensinada como dogma, aplicada como droga
faz tempo que as amélias amorfas saíram do palco 
— caíram do palco
e um novo elenco de úteros (fecundado
pelo sangue menstrual da plebe)
pulou da coxia para falar às mulheres de 
coisas que as mulheres (ainda) não sabiam
direito, luta, sororidade, comunidade
cidadania, empatia
voz demais para os ouvidos loucos
para os carrascos toscos 
para a sandice psicopata dos 
paus-mandados para calar 
caçar 
executar — a 9mm
a voz-realidade que sorria um sol de forças
a mulher que não cabia, não cabe no
ódio-capacho dos covardes sem rosto
a voz teimosa, não silenciável, que 
transcende o corpo que tombou e segue guia
que mostra como é despudoradamente linda
— e para ser ouvida sempre
a mulher que faz a própria sina.
Marielle Presente!







quinta-feira, 15 de março de 2018

confraternizando




Entrou sozinho e disse boa tarde a estender-me uma mão húmida e sem pressão, viscosa, mesmo. Nem lhe dei atenção, a olhar a querida Margarida que afinal tinha vindo. Que bom, pensei eu a beijá-la, efusiva, que eu gostava, e muito, que a minha amiga Margarida tivesse conseguido vir. Ficámos a perguntar-nos que é feito, mas já ela cumprimentava um outro que eu nem sei quem era: gente mais nova; gente que tinha entrado na empresa, depois de eu me ter aposentado. E reparei que o homem continuava pespegado, ali, a dois passos.
Tinha nele qualquer coisa que ia mal com o sorriso tímido; um não sei quê falso estampado nos olhos cinzentos com espessas sobrancelhas a sombreá-los.
Um bonito homem, mas desinteressante, pensei eu enquanto via o Zé Eduardo a sorrir-me: que saudade! e abraçámo-nos.
Tinha-me perguntado: lembra-se de mim?
E eu não me lembrava, mas não disse. Sorri-lhe, apenas, a olhá-lo como se tentasse descobrir algum traço dele no meu passado, mas esvaida, sei lá eu porquê, de qualquer interesse.
Insistiu. Afirmou que tinha estado um ano e meio na empresa, e eu nem duvidei, mas era como se nunca o tivesse visto.
Não se lembra do Crisóstemo Ricardo?! exclamou, e lá teria as suas razões para achar estranho que eu não o reconhecesse.
Mas não, nem aquele nome me dizia nada; e não me lembrava da cara, se bem que achasse estranho que tivesse esquecido aquele arzinho pacóvio a querer parecer ser outra coisa. Se o tinha visto, varrera-se-me.
E ficamos assim, ele na dele e eu na minha, cumprimentando os conhecidos que passavam, e eu talvez tenha sido deselegante, antipática, mesmo, depois que ele voltou à carga: se eu não me lembrava duma sessão em que ele tinha estado a dizer versos; assim mesmo o disse: versos; e eu ri-me, dei uma gargalhada descomposta e disse, peremptória, como ainda não lhe tinha dito: não, não me lembro, nada; e disse desculpe; mas não, não tinha qualquer ideia daquela cara.
Terá ficado ressabiado que esta gente tímida armada de vaidades ou, melhor dizendo, esta gente vaidosa a dar ar de tímida, é gente para ser levada com jeito ou ficam ressentidas e viram feras.
Nem terá sido o caso e, ainda assim, Ana Cláudia viria contar-me, lá pelo fim do dia, ela que adora ouvir num lado e vir contar no outro.
Sabes? começou.
E repetiu, adiantando.
Sabes? aquele insonso do Crisóstemo...
Quem?! interrompi-a eu.
Aquele que ficou a teu lado na mesa, ao almoço.
Sim, tinha ficado na mesa em que almocei com mais nove funcionários, uns já aposentados, como eu, uns velhos e outros na flor da idade. Ficara sentado do meu lado esquerdo. Coisas de acaso, ou porque tínhamos organizado as mesas pela letra do primeiro nome, e lá estavam os Carlos, dois, as Célias como eu, que éramos outras tantas, uma Cátia, um Celestino, uma Cristina, uma Celísia e uma Cinthia, brasileira. E o dito Crisóstemo.
Ana Cláudia ficara na mesa dos ás.
Estava esfusiante num vestido amarelo a dar-lhe pelo tornozelo, com um decote em bico até meio das costas. Calçava sabrinas pois, dizia ela, os saltos altos lhe faziam cãibras. Envelhecera com elegância e nem pintava o cabelo de louro ou de azeviche, como a maioria das mulheres a taparem, desgostosas, as cãs que se lhes vão espalhando; tinha o cabelo pintado num azul mate que lhe ia bem com a cor dos olhos.
Ah! esse?! balbuciei sem o menor interesse e sem dar grande atenção à lenga-lenga de Ana Cláudia. Ela queria contar-me. Dizer-me que o conhecia, ela que conhecia sempre meio mundo em cada local onde estava; que ele era um presunçoso, um convencido. E exclamava: ora o Crisóstemo que sempre teve a mania que ele é que sabe, e tu a cagar postas de pescada. Ela que nem tinha estado na nossa mesa, teria ouvido contar. Quem sabe se teria sido a Celísia que nunca tinha ido muito à bola com a minha cara. Devia ter sido ela. E a Ana Cláudia repetia-a, prosaica e a rir-se como se eu também estivesse a rir-me com ela: armaste-te e ele achou-se depreciado.
Ora bem, convencimento e vaidade, foi o que lhe vi bailar por baixo daquele sorriso de bom moço. Eu a pensar, assim, com os meus botões, mas sem memória de quem ele seria.
Tem um sorrisinho manhoso numa carinha de pacóvio, disse eu, mas Ana Cláudia nem me ouvia.
Cantava, lembras-te? dizia, embrenhada apenas no que me queria contar.
E foi quando se me fez luz.
Lembrava-me, sim senhora! se me lembrava, agora, do Crisóstemo! Tinha o cabelo aloirado e usava óculos com lentes de fundo de garrafa.
Ao tempo que isso fora!
O Crisóstemo da contabilidade que andava a tirar histórico-filosóficas.
O funcionário do primeiro piso que fazia rimas. Ele mesmo o propalava: faço versos em rima.
E cantava, sim, cantava!
Sorri-me de não me ter lembrado, antes.
Agora com cabelo grisalho, teria mudado os óculos por lentes de contacto.
Cantava, sim senhora!
Desafinado e com voz de falsete, sem alcance nem vivacidade, mas cantava.
Lembro-me, agora, dele, disse eu a rir-me de ter descoberto e Ana Cláudia sem calar-se um instante a contar que o tal Crisóstemo tinha dito barbaridades a meu respeito.
Deixei Ana Cláudia que falava, falava, e  dirigi-me ao fundo da sala onde o homem tomava  um drink no bar que improvisáramos.
Peço perdão, disse-lhe a estender-lhe a mão que ele demorou a segurar porque nem entenderia a minha aproximação.
E sorri a dizer-lhe:
Lembrei-me, só agora, dos seus versos. Ainda canta?
Foi à capella que cantou e corou quando o aplaudiram.
E disse versos, como ele mesmo apresentou: vou dizer agora uns versos que tenho escrito.
E disse.





segunda-feira, 12 de março de 2018

78 Musical - Crítica (por Lohan Lage)


         Escrito por David Massena e dirigido por Bernardo Dugin, o espetáculo “78 Musical” encerrou mais uma temporada de apresentações neste último final de semana. O palco do Teatro Municipal Laercio Rangel Ventura, em Nova Friburgo (RJ), nunca esteve tão frenético e nostálgico. O musical energizou o público com canções que marcaram a década de 70 e histórias de amor e liberdade, tendo como cenários a discoteca Overdose e o recanto hippie de Lumiar, distrito de Nova Friburgo. Cenários que, por sua vez, extrapolam a mera ambientação, enquadrando-se como quase-personagens. A discoteca ganha vida a cada coreografia, a cada movimentação dos andaimes, a cada truque com as luzes; enquanto Lumiar ganha cores e vozes que remetem à natureza, e já se apresenta até com música própria, a linda “Lumiar”, de Beto Guedes. A música e a dança são a anima de ambos os cenários e ao mesmo tempo o ponto de intersecção dos personagens que circulam por eles.


(Atores em cena)

         Dentre esses personagens, destaca-se Sofia (Dani Calazans), a jovem que anseia por saber mais sobre a vida dos pais e num passe de mágica é lançada para o passado, mais especificamente para o ano de 1978. Num clima de “De volta para o futuro” com “Grease”, o enredo desvela uma história de amor que enfrenta o moralismo hipócrita da Igreja Católica. Igreja que, sobretudo em cidades do interior, mostra as garras dogmáticas com mais radicalismo.
         Vale salientar aqui o bom humor presente no roteiro de David Massena. Ao mexer no vespeiro religioso, David não erra a mão e cutuca a onça com a vara do alívio cômico. A sátira que morde e assopra, muito bem alinhavada no roteiro, fazendo um paralelo certeiro com a força musical que imperou na década em questão.


(À esquerda, David Massena; ao lado, Bernardo Dugin)

         Destaca-se ainda a atuação do casal protagonista, Tom, um hippie de Lumiar, e Rita, uma bailarina de jazz, vividos respectivamente por Miguel Toscano e Diana Cataldo; e também de Pedro Borges, na pele de Fabinho, que encarnou um hippie com muita propriedade e apresentou um belo trabalho cênico e vocal em seu momento solo, com a canção “Balada do Louco”, do álbum “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets”, de 1972.
         A propósito, música boa é que não faltou. Bee Gees, Elis Regina, Raul Seixas, Village People, Gloria Gaynor... Mesmo quem não viveu a década de 1970, pôde sentir latente essa época. Surpreendentemente, o espetáculo se lança na contemporaneidade e atesta a velha máxima de que música boa é atemporal; assim como determinados temas que são abordados, como a gravidez na adolescência, a polêmica em torno do aborto e o consumo das drogas. Tudo dentro de uma atmosfera atual, com uma roupagem anos 70.
          Um último salve para a direção, que se mostrou segura, ágil; soube conduzir mais de 30 atores/cantores/bailarinos e adequar as transições de cenas e trabalhos coreográficos com extrema praticidade, reinventando-se com base na movimentação dos andaimes. A banda, que tocou ao vivo, também contribuiu bastante para o êxito dessas transições, sempre no timing certeiro.  
         Assim como prega o espetáculo, o que é bom de verdade não morre nunca. A boa história acontece e se faz perene na memória e nos corações.
E assim permanecerá o “78 Musical”: imortalizado.

Autoria: David Massena

Direção: Bernardo Dugin

Elenco: Alice Verly, Amélia Dugin, Aylla Freire, Bruno Petram, Carol Groetaers, Catarina Souza, Catharina Bucsky, Cesar Castro, Christian Knupp, Christine Valença, Cil Corrêa, Cláudio Raposo, Cyomara de Paula, Dani Calazans, Daniel Abreu, Diana Cataldo, Gauri Shankara, Gianne Bonan, Ilana Guilland, Isla Gastin, Luísa Rossi, Lucas Mury, Luiz Henrique, Maria Clara Andrade, Miguel Toscano, Nabila Trindade, Pedro Borges, Verônica Basile, Verônica Bello





segunda-feira, 5 de março de 2018

utopia



sonhei com um mundo 
onde todos tinham vez
o poder era sucinto
e a fome era viver 
as fronteiras haviam caído por terra
as diferenças não eram mais violentadas
os homens não tinham mais sobrenomes
e o medo já não servia pra nada