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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Revista SAMIZDAT - Parcerias

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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

SAMIZDAT 32

SAMIZDAT 32


Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
Em Nome do Filho, Edelson Nagues

HUMOR
Breve Dissertação sobre o Palavrão, Joaquim Bispo

CONTOS
O Moedor de Café, Henry Alfred Bugalho
Criança Prodígio, Thiago Jefferson dos Santos Galdino
Filho da Pátria Sem Mãe, Marcelo Soriano
Vez em quando, Cinthia Kriemler
Relicário, Tatiana Alves
A deusa da chuva, José Guilherme Vereza
O Catavento Maluco, Otávio Martins
Depuração, Silvana Michele Ramos
Adivinho, detetive ou fofoqueiro, Roberto Klotz
Avessa (o), Sara Meynard
Coletivo, Edweine Loureiro
Purgatório, Zulmar Lopes
Doa-se um helicóptero. Tratar aqui, Leandro Luiz
Rugas do Tempo, Juliano Ramos de Oliveira
Minha vida, meu pesadelo, Sonia Regina Rocha Rodrigues
Marta e o gosto do tempo, Fernanda Cristina de Paula

TRADUÇÃO
A Galinha Degolada, Horacio Quiroga
Decálogo do perfeito contista, Horacio Quiroga

TEORIA LITERÁRIA
O que ninguém lhe dirá numa oficina literária - parte 1 (A Criação), Henry Alfred Bugalho
Castillo e Modern: dois poetas argentinos, Elias Antunes
O Grande Sertão de Riobaldo, Alessa Bertazzo

CRÔNICA
Europa Descarrilada, João Paulo Hergesel

POESIA
A fila, Volmar Camargo Junior
#18, Rafael Zen
Rito, Anna Apolinário
Olhos de distância, Daniel Moreira
Sagrado, Luiza Oliveira
Senilidade, Valmir Luis Saldanha
Nº 1, Douglas Batalha
Missão, Mariana Valle

Links para a SAMIZDAT 32

Scribd - http://www.scribd.com/doc/82903691/SAMIZDAT-32
Calaméo - http://www.calameo.com/books/000002238490b64673d2f
Recanto das Letras - http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/3522358





domingo, 26 de fevereiro de 2012

Cantai a vida que a morte é muda


Cantai a alegria do Sol e a ternura da Lua e, quando nem o Sol nem a Lua se mostram, cantai as nuvens pesadas que nos fazem companhia.

Cantai as folhas do Outono e as flores da Primavera, cantai o riso da alegria e as lágrimas do desgosto; cantai o andar pesado do vagabundo e o gesto solto da bailarina, cantai o picar da vespa e o voo da andorinha.

Cantai a água fresca da nascente no Verão, cantai o fumo da lareira do Inverno, cantai a bebedeira da borboleta e a disciplina da formiga; cantai a inocência do animal que corre e os montes que ao longe se quedam, cantai o ontem que morreu e o amanhã que nascerá.

Cantai o peixe que nada e o pássaro que voa, cantai o vento que sopra e a chuva que molha, cantai o dia que nasce e a noite que cai. Cantai o mundo todo por inteiro, cantai aquilo que é e aquilo que não é; cantai o sonho e o pesadelo que podiam ter sido e não foram ou que podiam não ter sido e foram.

Cantai os que se aproximam e os que se afastam, cantai quem compreendem e quem não percebem, cantai quem ajuda em horas de necessidade e quem foge ao sacrifício, cantai os que vêem e os que são cegos, cantai tudo o que à vossa porta passe. Ou que não passe.

Cantai, que eu não tenho voz.





sábado, 25 de fevereiro de 2012

Quotidiano Fantástico – A Carta Anónima


Joaquim Bispo






Uma destas manhãs, ao levantar-se, Henry deparou com a seguinte mensagem, junto à porta, escrita com palavras recortadas de jornais e coladas num pedaço de papel:

/ anjinhos / milhões / visitaram / chefe / bicicleta / fatias /

Incompreensível como parecia, não lhe atribuiu grande importância. De qualquer modo, ligou para Denise, mas ela não tinha visto nada suspeito, quando saíra. Teria sido, com certeza, composta por algum grupo de miúdos desocupados tentando divertir-se à custa dum vizinho. Espreitou pela janela do quarto a ver se descortinava os malandrinhos alapados por detrás de algum arbusto. Ninguém. Atravessou o corredor e olhou pela janela da sala. A rua estava deserta, ou antes, com os esporádicos transeuntes habituais. Nem sombra dos catraios.

Enquanto preparava o pequeno-almoço, atentou melhor naquele conjunto de palavras alinhadas no papel. Seria algo para levar a sério? Hum! Parecia tão desconexo, sobretudo a parte final!
De repente, um sobressalto. Pareceu-lhe detetar uma ameaça, velada, mas grave. “Anjinhos” remetia abertamente para a outra vida, ou antes, a morte. E uma bicicleta retalhada às fatias pareceu-lhe uma ameaça típica da Máfia.
Sentiu-se empalidecer. O tempo do verbo na frase – “visitaram” – fez-lhe temer por uma intrusão já realizada.

Levantou-se de um salto e vistoriou a casa.
Tudo em ordem. Aparentemente. Espreitou para o pátio. A sua bicicleta estava intacta e Bia, a cachorra, também parecia bem – viva e de boa saúde. Estava atarefada a remexer a terra. Nada parecia indicar que alguém tivesse entrado enquanto dormia. Aliás, Bia teria latido.

Parou a admirar o seu dinamismo. Após um momento, notou alguma coisa de estranho na maneira como se movimentava. Talvez uma certa atitude furtiva. Observou-a melhor.
Foi então que percebeu que a azáfama em que a safada estava empenhada tinha por objetivo enterrar vários pedaços de jornal, uma tesoura e um tubo de cola!


Crédito da imagem: http://pasidupes.blogspot.com/





quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O cão late

O cão late, late e late;
late porque o dono chega, porque está feliz,
e ele apanha.

Late para pedir comida, porque sente fome
e ele apanha
late para assustar o ladrão
e ele apanha

Um dia ele aprende,
que não deve mais latir,
não fica feliz,
não pede comida,
não assusta o ladrão.

Um dia
o cão
esquece que
ele foi cão.

E então o dono bate
porque o cão
não late.





terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Aventuras de um Folião Fracassado

Peço perdão pelas apressadas linhas, mas os primeiros acordes das marchinhas carnavalescas já chegam a minha sala e tenho pouco tempo para buscar o meu exílio voluntário. Sou um folião fracassado, confesso. Não consigo me imaginar no meio da Banda de Ipanema, vestido de árabe ou pirata, latinha de cerveja em uma das mãos, cantando “alalaô ôôô ôôô/mas que calor ôôô ôôô”. Tal atitude estaria fora do compasso da personalidade quase monástica deste que escreve. Já estou até providenciando os DVDs que assistirei nos quatro dias (quatro?) de retiro cinematográfico enquanto a folia come solta Brasil afora. Traumas de infância, talvez Freud ou um menos conceituado terapeuta explique.
Tenho uma certa fobia de me fantasiar desde o dia em que minha mãe me vestiu de palhaço para uma apresentação  na festa de encerramento do Jardim de Infância. Tente se imaginar com cinco anos de idade dentro de uma roupa de Clown, guizos por todos os lados, peruca improvisada com uma meia feminina e cabelinhos de lã, cara lambuzada de maquiagem pesada, um calor sufocante de começo de verão, tendo o pobre infante que dançar, dar cambalhotas e, o pior da tragicomédia, não estar com a mínima vontade de participar do evento. Imaginaram? Querem mais uns minutos para montar a cena em suas mentes?  Certamente já decifraram o porquê da minha verdadeira aversão a fantasias.
Voltando a festa momesca, meu pai costumava me levar todo sábado de carnaval a um baile infantil no clube próximo a casa onde morávamos. Com trajes civis, em meio a odaliscas, piratas, fantasmas e baianas mirins, ia eu meio sem graça, peixe fora d’água, tentar me divertir até que em um carnaval, um garoto maior desentendeu-se comigo (impossível lembrar o motivo da contenda) e me deu um empurrão mais forte do que aqueles utilizados pelos empurradores da carros alegóricos. Fui aterrissar debaixo de uma mesa, sob as pernas de sei lá quem, joelho lanhado, cotovelo roxo e a certeza de que não era talhado para os dias gordos de folia. Ao menos carrego o orgulho de contar que já briguei em um baile de carnaval, sempre procurando ocultar que se tratava de uma inocente matinê.
Por conta deste incidente, fiquei longe dos bailes até o momento em que eles começaram a ser transmitidos pelos canais de televisão, época que coincidiu com o advento da minha adolescência e a ebulição de hormônios. Nos anos oitenta pêra quase impossível para o meninos espinhentos verem um corpo nu e o carnaval era a oportunidade de ao menos apreciar as cabrochas semi-despidas e super-rebolativas (como as coisas mudaram!). Passava os quatro dias de folia em claro testemunhado as bacanais orquestradas. Anos mais tarde descobri que os organizadores de certos bailes contratavam meninas e casais mais desinibidos para se exibirem diante das câmeras, reduzindo assim a orgia a um espaço mínimo do salão, enquanto o resto da festa transcorria numa civilidade possível para a ocasião.
Então vieram as Escolas de Samba. Decorava sambas-enredo, pesquisava a fundo os enredos a serem apresentados e varava duas madrugadas assistindo aquela ópera em linha reta passar pela minha TV. Nunca estive na Marquês de Sapucaí, só a venda dos ingressos e suas filas colossais, serpenteantes, me desanimava à aventura. E desfilar então. Nem pensar! O fantasma do palhaço ainda me assombrava.
E as Escolas de Samba cansaram – quem vê uma, vê todas, já dizia o turista japonês que abandona seu lugar na arquibancada do Sambódromo após a passagem da segunda agremiação – e hoje fico longe desta loucura necessária, válvula de escape do brasileiro, que ao menos durante quatro dias pode ser um Rei, uma princesa, um destaque na avenida, dar seu sangue pela escola, manchando em vermelho o couro do surdo, sem deixar o ritmo cair. São heróis. Viva essa gente! Viva o bravo povo Brasileiro! E que todos aqueles que amam o carnaval brinque em paz estes dias gordos e que retornem sãos e salvos aos seus lares para tudo recomeçar na quarta-feira.
Alguém tem uma dica de filme imperdível para este folião fracassado?





segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Cinzas

Quando o último bumbo bumbou e o repenique parou de repenicar,
Batista levantou-se da beira da calçada, lépido e esguio como se nada tivesse acontecido. Caminhou firme pela rua, desviando de bêbados, latas de cerveja e poças de restos de chuva e urina. Tomou o rumo da ladeira sinuosa, quando foi recebido por paralelepípedos mal calçados. Seus pés ardiam. Suas pernas formigavam. O sol já dava sinais de inclemência. Suores brotavam do seu rosto, desciam pela nuca, corriam pelos braços e peitos nus.

Batista estava firme. Passo a passo, ao ritmo de um batuque imaginário,
era acompanhado de uma miscelânea de pensamentos e lembranças dos últimos cinco dias.
A colombina encantadora, a passista de ancas exuberantes, a socialite do camarote,
a turista sueca de cintura dura, a universitária do Leblon de tamborim na mão,
a morena mulher de verdade travestida de travesti no baile alegre,
todas, todas por onde se fartou de amar urgente e sem compromisso
passeavam desnudas seus sorrisos, cheiros e sons de sexo na sua memória recente,
efervescente e atormentada.

Ao chegar no topo do outeiro, tudo se dissipou.
Contemplou o bom e velho portão de madeira, não puxou mais que três vezes
a corrente do pequeno sino, quando um monge apareceu:

- Pode entrar, Irmão Batista. Esta casa é sempre sua.

E Batista não perdeu tempo. Banhou-se na bica do pátio, recebeu vestes humildes,
calçou sandálias. Comeu pão, bebeu água em cuia. Caminhou contrito até a capela,
esperou a missa, onde seguiu todos rituais: cantou, orou em voz alta,
elevou as mãos aos céus, abraçou o próximo e recebeu a comunhão.

Da pequena igreja, fisionomia contrita, desceu uma escadaria soturna.
Refugiou-se no claustro, onde por lá resolveu ficar recluso a tempo perdido.
De joelhos, olhos fechados, cabeça baixa, terço na mão. Meditando, orando, rezando.
Para regenerar a carne e lavar a alma o quanto fosse preciso.
Até que o próximo carnaval chegasse.





domingo, 19 de fevereiro de 2012

Pelo direito de ler livros infanto-juvenis

Sempre fui rata de biblioteca, devorando livros como outros devoram balas ou chocolates (ok, também sempre adorei devorar balas e chocolates, mas isso é só um detalhe). Amo boas histórias, independentemente de elas serem consideradas clássicas ou não, de serem reconhecidas pela crítica ou não. Sou daquelas pessoas que, nas livrarias, gostam de explorar as prateleiras, lendo orelhas e contracapas, para só depois de muito tempo decidir o que vai levar - e normalmente saio com os braços cheios, incluindo-se ali por vezes autores consagrados, por vezes alguns dos quais eu nunca antes ouvira falar.
Isso tudo, no entanto, é só um preâmbulo - ou nariz de cera, como dizemos em linguagem jornalística - para dizer que, no tocante à leitura, não tenho preconceitos. Não me envergonho nem um pouquinho de dizer que, na adolescência, li Paulo Coelho e Sidney Sheldon. Mas também li Machado de Assis e Umberto Eco, entre centenas de outros. Ainda no ensino fundamental, alternava a leitura de séries juvenis, geralmente de mistério, com clássicos da literatura brasileira, e não via nenhum problema com esse arranjo.
Da mesma forma, não vejo nenhum inconveniente, hoje, em alternar leituras ditas mais sérias com aquelas que me dão prazer. E nessas passei a incluir, há algum tempo, também literatura infanto-juvenil. Provavelmente muitos vão achar graça, afinal, já passo dos trinta anos (não se pergunta a idade exata a uma mulher); no entanto, não vejo por que deveria, por isso, abrir mão de uma boa história.
Há dois anos, passei a integrar um grupo local chamado Confraria Reinações Caxias, que se reúne mensalmente para discutir um título infanto-juvenil. Por outros compromissos, tenho ido a poucos encontros, mas o grupo serviu para eu ter a certeza de que não sou a única que aprecia um texto bem escrito, independentemente do público para o qual ele foi escrito.
Aliás, como leitora e também como escritora, e já ouvi o mesmo de outros escritores e leitores, acredito ser um tanto inexata essa classificação de leitura por faixas etárias. Uma boa história é uma boa história, e pode ser apreciada também por outros que não são seu público-alvo original. Não acredita? Pois atire a primeira pedra quem nunca caiu às gargalhadas no cinema, assistindo a filmes como Madagascar e Shrek. Ah, isso é diferente? Por quê?
Pois eu estou aqui para defender o fim do preconceito na leitura, o que inclui a defesa do direito de ler também bons livros infanto-juvenis.
E para quem não sabe por onde começar, deixo a dica de um dos livros que estou lendo no momento, e que é daqueles que você não consegue largar, de tão absorventes: Ladrão de Olhos - As Aventuras de Peter Nimble, de Jonathan Auxier. A trama gira em torno de um órfão cego, de dez anos, que sobrevive como ladrão, até que rouba uma caixa que contém três pares de olhos mágicos. A partir daí, muitas aventuras, com direito a criaturas falantes, corvos aterrorizantes, mistérios e charadas.
Experimente. Às vezes, vale a pena voltar ao mundo mágico das crianças.





sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

TOQUES

deviam ser sempre leves os toques
asa de borboleta
papel de seda recortado
bolhas de sabão

leves e semi-transparentes
translúcidos em tons pastel
suaves e mansos
espuma na areia

deviam ser ternos e calmos
e longos e quentes
e doces e tantos...

deviam vir musicados os toques
dedilhado em síncopas
vago piano





quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A matriarca irlandesa

Um irlandês católico não enterra seus parentes aos domingos. Herança das tradições gaélicas que nenhum dos O’Malley ousaria contrariar, nem mesmo agora que a matriarca tinha exalado o seu último suspiro.
A seanmháthair mór, ou bisa, como acabaram por chamá-la seus descendentes, tinha morrido, aos 89 anos, num sábado à noite, o que significava um velório prolongado até a segunda-feira. Logo de cara, os preparativos esbarraram num empecilho constrangedor: o corpo avantajado da matriarca não cabia em nenhum caixão. Como não havia tempo para outras opções, Seamus, o filho mais velho, decidiu que a mãe seria encaixada num ataúde de menor porte mesmo.
— Afinal — justificou-se ele, tentando fazer graça para os homens da funerária —, mamãe não pode reclamar de mais nada, não é mesmo?
A Senhora O’Malley tinha nascido em Cork, cidade da Província de Munster, República da Irlanda, em 1920. Gostava de contar para todo o mundo que tinha nascido no ano em que um Ato de Governo tinha separado o país em Norte e Sul, na tentativa de afastar católicos e protestantes de um conflito. Orgulhava-se de Cork, uma cidade construída sobre sete colinas, como explicava a torto e a direito. Sentia-se como a cidade, fortemente assentada em pilares morais, os mesmos que lhe permitiram criar a família com mão de ferro depois da morte prematura do marido, que a deixara viúva aos 34 anos. Viu-se sozinha numa terra estranha, com quatro filhos pequenos e um negócio de vender tecidos que, mais tarde, deu origem a uma grande tecelagem. Nunca aprendeu direito a língua portuguesa, mas aprendeu a amar o país que lhe deu o sustento e uma vida de regalias.



A filha caçula da Senhora O’Malley, Noreen, e seu marido foram os primeiros a chegar ao velório. Logo depois, foi a vez dos outros dois filhos, Duncan e Peter, dos netos, bisnetos, esposas, noivas e namoradas de netos e bisnetos, e dos amigos, fornecedores, sócios e vizinhos. A quantidade de feições semelhantes às da morta confirmava o quanto a seanmháthair mór tinha o sangue forte. Por último, chegou Padre Ambrósio, velho conhecido da matriarca e também seu confessor. Apressado, dirigiu-se imediatamente até o grupo que se encontrava ao lado do caixão, para dar início à missa de corpo presente.

No momento em que o religioso postou-se à cabeceira do caixão, um cheiro forte e característico tomou conta do ar:
— Aff! — exclamaram os mais próximos da defunta, abanando o nariz.
— Peço perdão a todos, mas os senhores sabem que é comum aos mortos soltarem gases — disse, em tom constrangido, o primogênito da Senhora O’Malley..
— Safado! — indignou-se uma voz enfurecida — Não foi essa a educação que eu lhe dei!
— Quem disse isso? — agitou-se Seamus.
— Você sabe muito bem quem foi que soltou esse cheiro pestilento por aqui, meu rapaz! — continuou a voz — A cada vez que você ia me fazer companhia, durante o coma, a morte desistia de vir me buscar só por causa do fedor naquele quarto! Eu só não me levanto daqui para lhe aplicar um corretivo porque você me entalou de propósito nesta caixinha apertada!
— Muito bem, quem está fazendo isso? Chega! Não tem graça nenhuma brincar com uma coisa tão sagrada quanto a morte! — continuou o primogênito, procurando entre os rostos próximos um candidato à culpa.
— Desde quando você acha a morte tão sagrada, meu filho? A primeira coisa que você fez quando eu lhe contei que o seu pai foi enterrado com um relógio de ouro e um alfinete de gravata de platina foi mandar desenterrar o coitado para surrupiar as joias!
Estarrecido, Seamus voltou-se para seu irmão Duncan e o apanhou pelo colarinho:
— Você vai aprender a mexer comigo, seu linguarudo, seu inútil!
— Inútil, sim, mas completamente inocente no caso presente — ouviu-se novamente, zombeteira, a voz.
— Ma...ma...mamãe?!
— Em carne e osso. Bom, pelo menos por enquanto...
Gritos, choro, desmaios e correria. O padre começou a benzer-se e a benzer os presentes, sem coragem de olhar para a morta. Afasta todo o mal, Senhor, dessa pobre alma que agora deseja descansar em Teu repouso eterno! Afasta dela o espírito impuro!, repetia sem parar.
— Lindas palavras, meu bom amigo, mas isso não é coisa do Tinhoso não! Não sei explicar como é que pode, mas confie em mim que sou eu mesma!
Incapaz de acreditar nos seus ouvidos, Padre Ambrósio voltou a clamar aos céus, iniciando um exorcismo improvisado:
— Eu comando que saias desse corpo, espírito imundo!
— Xiiiu! Quieto, Padre Ambrósio! Eu venho treinando essa coisa de falar com as pessoas sem abrir a boca há mais de um mês, desde que entrei em coma e padeci naquela cama, cercada por esses incompetentes! Só não sabia é que ia conseguir depois de morta!
Percebendo, por fim, que as palavras não saíam de mais nenhum canto senão da morta, as pessoas deixaram que a curiosidade substituísse o medo. Os conhecidos se aproximaram do caixão, afastando-se das janelas por onde entrava um mormaço pegajoso. Os bisnetos menores da matriarca se amontoaram num canto, apavorados, mas também felizes por verem o aperto dos adultos.
Nesse instante, um senhor de idade acercou-se da defunta e, pondo a mão sobre os seus cabelos espessos, disse, carinhoso:
— Minha querida cunhada. Há, ainda, alguma coisa que a prenda aqui, entre os mortais?
— Há,sim! Uma deles é desmascarar um velho indecente como você, que aproveitou todos os dias do meu coma para me bolinar! E vá tirando a mão da minha cabeça, seu depravado!
Indignada com a revelação, uma das noras da Sra. O’Malley tirou o homem de perto do caixão:
— Saia daqui, seu pervertido!
— Pervertido, sim, mas não é ladrão... — atalhou a defunta.
— O quê?! — retrucou a nora.
— Você já vendeu aquela minha placa de brilhantes que retirou do cofre do meu quarto, ou pretende usá-la, agora que eu morri, e dizer aos outros que eu lhe deixei de herança, minha nora?
Incapaz de fechar a boca de espanto, a acusada ouviu as expressões de indignação de toda a família.
— Diga para a sua mulher devolver as joias da mamãe! — gritou Peter, transtornado, para Seamus.
— E você, filho querido, aproveite e devolva o dinheiro que desviou da conta da tecelagem, está bem? — ironizou a matriarca.
— Eu sabia, eu sabia! — choramingou a caçula Noreen, buscando refúgio nos braços nada entusiasmados do homem ao seu lado — O meu marido avisou que as contas da empresa estavam com problema, mas ninguém quis ouvi-lo! Viram só? Peter, seu ladrão, você vai devolver até o último centavo do dinheiro que roubou da família!
— Bem, devolver, sim, mas descontando o dinheiro que o seu marido gastou em presentes para a amante, Noreen. Senão não seria justo com o seu irmão!
Descontrolada com a notícia, recebida de chofre, Noreen caiu num choro copioso e barulhento. Sua neta adolescente, desolada por vê-la tão abalada, tomou-lhe as dores:
— Que maldade, bisa! Tem certas coisas que é melhor não contar!
— Certas coisas... Sim! Como as agarrações entre você e aquele rapazinho, lá no meu quarto, enquanto diziam para todo o mundo que estavam me fazendo companhia, não é mesmo, bisnetinha?
— Melhor rezarmos agora a missa de corpo presente e enterrarmos logo a Senhora O’Malley! — atalhou, subitamente, Padre Ambrósio — A alma dela precisa de sossego. E a humanidade, também!
— Hahahaha, meu amigo medroso! Hoje é domingo, e os irlandeses não enterram seus mortos aos domingos!
Embaraçados, profundamente incomodados, os membros da família O’Malley não conseguiam mais se encarar ou dizer palavra. Tinham medo que a defunta, ouvindo sua voz, se lembrasse de mais algum malfeito.
As crianças, acostumadas a serem sempre as vítimas dos pais, tios e avós, soltavam risinhos abafados de contentamento.
— Você viu? A bisa disse que o seu avô peida! — provocou uma menina mais crescida.
— Cale a boca! Eu vou contar para a minha mãe que você falou essa palavra, viu? — agitou-se um menino menor.
— Peida, peida, peida...
— Para, para! Pior é a sua avó que é lad... ladr...ladrona! Roubou o broche da bisa!
— Não roubou! Ela sabia que a bisa ia morrer e pegou para ela!
— Xiiiu!!! — ralhou a defunta — O que é que você estão whispering aí, seu moleques? Estão cochichando para ver se eu me esqueço de vocês e não conto para os seus pais quem foi que quebrou a minha cristaleira, no ano passado? Pois fiquem sabendo que, depois que eu morri, eu sei de tudo, de tudo!
Silêncio completo da meninada.
— Cadê a língua? O gato comeu? — continuou a morta — Ah, não, eu já ia me esquecendo! O gato não comeu porque ele morre de medo de chegar perto de você, não é mesmo, Duncan Neto? Desde que você trancou o coitadinho dentro de uma máquina de lavar, há algumas semanas! Peste! Coisa ruim!
— Vovó, pare imediatamente de falar assim com o meu filho! — revoltou-se um rapaz que até então não tinha se manifestado.
— Seu fi...Seu?! ...Hahahahaha!
Os poucos visitantes que ainda restavam começaram a bater em retirada. Porém, antes que alcançassem a porta, a voz da Senhora O’Malley sibilou de novo no ambiente:
— Agora, me deixem conversar um pouco com as visitas, porque senão é falta de educação.





terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

novíssimas de Bentinho Casmurro escrevendo ao filho



Maria de Fátima



Itaguaí, 2 de Janeiro de 1885

Ezequiel

São seis horas. Escureceu há pouco. Lá muito ao longe, ladra um cão. O mais, é o tic-tac de um relógio e o meu respirar que, desde há tanto, chia como dobradiça a pedir óleo. Tenho o papel desta carta suado sob a mão e no entanto estamos no pino do Inverno. 
Escrevo-lhe Ezequiel, para lhe dizer das minhas demandas, do derradeiro modo que encontro para aquietar o meu desassossego. Que eu tenho tentado: escrevi até um livro. Mas desesperei tantas vezes, Ezequiel! Que eu tirei-lhe o carinho que lhe seria merecido e tudo por uma incerteza que ainda hoje me arrebenta o peito. Quando me visitou, há um ror de anos, não terei agido decerto como um pai que recebe um filho. Você estava então deitando corpo. Sei que depois disso foi arqueólogo na Jerusalém de Jesus Cristo. Que padeceu de umas febres. E eu que nem sei se é vivo se morto, sigo no anseio de encontrar em mim o sentimento que me tivesse deixado dizer-lhe eu amo-o, meu filho. Dizer assim numa certeza.
Mas não foi assim em outro tempo, e não o é agora que lhe escrevo.
Perdoe-me se puder, Ezequiel.
Você estava um homem feito, e eu tremi nas miudezas do meu corpo. Arrepiaram-se-me os pelos mais recondidos, que era Escobar quem se estava meneando à minha frente: os olhos, o pendor do corpo, o sorriso amplo. Paizinho, dizia você, e eu seco, granitoso, a soçobrar ao ciúme, a tourear um ódio. Como podiam dizer que era delírio de meu espírito, se era Escobar que eu via?! você igualinho a Escobar Ezequiel já morto.
Tentei encontrar na escrita o alento que a construção meticulosa da casa não me trouxe. A casa, a semelhar nos menores pormenores a de Matacavalos, não me deu o que esperava dela em noites de serenidade.
E, hoje, ando a tentar serenar essa dúvida espetada no meu espírito, a que tomou forma nas exéquias de Escobar. Ele morto e sua mãe de olhos embicados. Os olhos de Capitú melosos a chisparem um brilho danado ao velá-lo. E depois que foi o enterro, fiquei-me infernizando. Foi quando o meu desassossego criou raízes, se instalou para sempre.
Ía você crescendo, Ezequiel, e sua mãe, em gestos amorosos a olhá-lo. Capitú a acirrar-me, ouvia eu:
– Olha como o nosso filho parece o saudoso Escobar. Tá vendo o nosso menino, Bentinho?
Capitú a mostrar-me a facilidade com que você, pequenino, lidava com as quatro operações, os trocos, e as sucessões, tal e qual Escobar que fruia com os números. E eu vendo isso, via muito mais: via Escobar tal e qual no seu rosto, como mais tarde o veria quando você deitasse corpo.
– Igualzinho, nisso e no demais – dizia eu, casmurro.
E ao ritmo a que você cresceu, cimentou-se em mim a certeza na traição. Tanto, que o afastei de mim e consigo partiu também sua mãe: Capitú que Deus cedo levou para o seu seio.
Tenho sofrido muito, Ezequiel!
Finalmente, faz dois meses, decidi-me enveredar por um cuidado médico. Iria consultar um doutor da mente. Ouvira dizer que pela Europa ocorriam milagres. Consultaria Simão Bacamarte de quem tanto se falava por estes lados. E fiz meus passos na estrada que conduz à Casa Verde. Eu em mais uma demanda sincera de lenitivo para este meu estar sempre entre: foi assim ou teria sido de outro modo?
Ai, Ezequiel! eu aqui escrevendo devaneios, ditos que não terão para si qualquer interesse.
Deixe-me comunicar-lhe que, se um destes dias vier ao Engenho Novo, não estranhe que lá encontre apenas o criado. É na Casa Verde que doravante resido.
E como eu queria que viesse! Saber de si se algum dia escutou segredos. Se, por um acaso de estar passando, terá ouvido vozes para lá de uma porta como eu ouvi, naquele dia de há muito, Dona Beatriz a conversar com José Dias. Que terá sido aí que começou o meu engano. Eu a escutar José Dias dizer: eles estão de namoro, Dona Beatriz, aquela menina é o demo! José Dias falava de mim e falava de Capitú, e nem sei se de outro modo eu teria sequer imaginado casar-me com a que seria sua mãe.
Também ouviu segredos, Ezequiel?
Ouviu Dona Capitulina conversando? e com quem?! conte-me.
Terá ela dito que não sou seu pai?
Ou terá dito que eu vivia inventando traições?
Ou você terá escutado sua mãe falando com Sancha: elas duas juntas a chorarem Escobar?!
Ai! Ezequiel, como sofro!
Tanto ou mais desde que o doutor Bacamarte me faz ver tudo de outro modo: que terei sido eu e não Capitú quem andou traindo.
Diz-me o alienista que tudo se embaralhou de um sentimento ainda mais escondido do que se fosse segredo. E a dizer assim Simão Bacamarte batia-me com dois dedos no joelho:
– Bento, isso foi um amor que o senhor escondeu até de si mesmo, meu amigo! 
E o médico naquele jeito de revirar os olhos e ir fazendo gestos largos com as mãos, acrescentava:
– Meu filho, Capitu pode ter pecado, mas é a si mesmo, Bento, que precisa perdoar-se!
Que a mente tem revolteios e dobras e desvios feitos de tecidos finos, que em se lhe falhando um quê, pouco que seja, um tudo nada menos de oxigénio, um entrefolho que tenha ficado descosido na hora do nascer, e dá-se a mente em ver o que ninguém mais vê. Delírios, dizem os demais. E no entanto, é tanta realidade como a de outro que afiance o contrário, explicou-me assim o médico:
– Para si seria demais saber Escobar nos braços de Capitú! Já bastava assistir, dia após dia, aos afagos dele e de Sancha! Terrível ainda mais seria ver Escobar nas mãos das duas: Que Capitolina fosse castigada.
Assim me segredou Simão Bacamarte, tão baixinho, que eu quase juro ter sido eu que discorri. O alienista, prosseguiu:
– Não tenha dúvida, Bento. Você preferiu viver sob o efeito de um delírio. Preferiu inventar a traição de Capitú, e ver Escobar no corpo de seu filho. Foi uma escolha do seu espírito para afastar dos seus olhos e dos olhos de todos a realidade dum amor que nem  a si mesmo consentiu.
E o médico ainda rematou sobre o assunto:
– Que na hora do velório, seria você, Bento, quem olhava, perdido de amores pelo Escobar morto no caixão. Você, Bento, e não Dona Capitulina, sua esposa!
E a dizer isto, pareceu-me ver o rosto do alienista ironizar-se num sorriso.
Creia-me, Ezequiel, em todos estes anos, deve ter sido o único momento, um lapso, um instante, em que me senti em sossego comigo e com o mundo: finalmente eu sabia quem tinha sido o alvo de meus amores e ódios e ciúmes, sentimentos intensos e contraditórios que quase me foram endoidando. Que me fizeram tristemente perder de si.
O médico de pé, como ficava sempre nas longas horas de um dia e depois outro, e mais outro dia em que repetidas vezes fui à Casa Verde. Simão Bacamarte a indicar-me:
– Melhor será que fique sob o efeito de pastilhas e banhos e o demais. Aconselho-o que se interne, amigo Bentinho.
Simão Bacamarte a empregar o diminutivo, a mostrar-se íntimo, já me ía encaminhando para o quarto que me acolheria na Casa Verde. Ele quereria estudar a fundo o meu caso, que, disse-me, seria digno de um artigo em revista da arte.
Aqui tem Ezequiel.
Agora sou pensionista do moderno edifício que é a Casa Verde onde está sempre chegando muita gente da cidade e arredores.
Depois de ler esta carta, pode rasgá-la sem remorso.
Ou deite água em cada folha e deixe que a tinta escorra: serão lágrimas deste que, se foi seu pai, nunca o soube ao certo, e por isso nunca aprendeu de um amor que lhe dedicasse.

Despeço-me até sempre
Bento Santiago





Comsentimento


Praia das Maçãs, José Malhoa

O poeta estava certo.

Se o poema nasce do espanto,
eis por que não posso lhe escrever:
porque nada tem de surpreendente o meu querer





segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Poemas: Transbordado




Poemas, por Wellington Souza..


Um dos conceitos que não nos ensinam (ou que, pelo menos, não 'pregam') é o de saciedade.

Aquela gostosa seria suficiente por uma noite e depois não existiria depois. Queremos até transbordar e depois não queremos mais e depois queremos mais.

"Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor"*

E paradoxal, irônico, é que mesmo quando não queremos, queremos algo.



Ao extremo da saciedade

Queria saber ser tanto assim
ser tanto sem fazer desse tanto
muito, demais, transbordado.
Ser copo cheio e belo copo cheio
sem ser copo cheio e derramado de tão cheio
lambuzado
imperfeito.

Ser um peixe no rio
e ser o peixe do rio que ela fisgou
e ser peixe no rio fisgado
escolhido
mas que continua no rio
abanando o rabo como cachorro feliz.



Platônicos

Um amor simples e saciado
talvez se desate
se desgaste e vire cafés-da-manhã
que apenas em arrotos da memória
nos retornará.

Perigosos são os jejuados
insaciados.
Frutos de uns pedaços
do passado
que nunca nos
serviram.




Amor na fronteira do medo

Amor é a derrota do medo;
esse sinônimo de
Homem.

É a bandeira branca hasteada
nos lábios.

A espada
o escudo
a armadura
a adaga
espalhados com o vestido pelo chão do quarto
tomado.



*Caetano Veloso, 'O quereres'.

*


Créditos da imagem:
Como uma formiga ...,, de Wellington Souza





domingo, 12 de fevereiro de 2012

Curtas (Mariana Valle)

Pé-de-meia? (Mariana Valle)

Vamos fazer um pé-de-meia?
Você pede meia dose
e eu me dou inteira,
overdose.
Porque amar pela metade é dose!

Melodia (Mariana Valle)

Você vem com a letra
e eu com a melodia
e assim fica melhor
o nosso dia.

Mulher não é boneca inflável, é boneca amável, mas espeta ela pra ver se ela não explode...
(Mariana Valle)





sábado, 11 de fevereiro de 2012

Renascimento



Não, agora não!!!
Não, esse momento me pertence!
O clarão se anuncia, minha pele se reverbera, minhas vísceras...

Não, agora não!
Deixa-me sacramentar o criar, o respirar, o sentir meu desejo, a carícia que
me acaricia.

Não, agora não!
Eu preciso hoje orar, cantar, amar, gritar o meu nome
Não, agora não...
Deixa-me com meu instante, com as minhas ínfimas certezas advindas,com os
meus insignificantes e limitados progressos... 
Quero ficar longe das pressões e dos rancores.

Cale-se!
Não me atordoe.
Por que vou abrir meu ventre, tenho que costurar meu peito dos afetos rotos,
dessa cumplicidade insana....
Tenho que remendar cada vão soluço, 
cuspir cada gota do vinagre que elaboramos.

Não, agora não...
Quero hoje trilhar a aurora, me espreguiçando sem mágoas, com o sorriso
sereno de quem colhe rosas.
Sentir a terra na sola do meu pé, deixar o vento me castigar com lambadas de
chuva, lavando da alma o tudo que não lhe fui,

Quero sentir a chuva batendo no meu rosto, desatando a indecisão
insuportável dos receios, dos medos, das claudicações...
Quero enxergar o ser que sempre trouxe nas entranhas, destrancar com esta
chave a porta do medo, regozijar com o meu amanhecer. 
Quero a leveza desta madrugada, imersa no silêncio dos momentos mortos. 

Um novo alvorecer:a criança já dormiu....
O padeiro já trouxe o pão,
O leite está quente.
Há um fogão de lenha que traz de volta a minha simplicidade e pureza. 
Vou enxergar agora o mais primitivo do meu ser, como quem acorda e espreguiça e
nasce como um rebento, sujo de sangue, que chora e ecoa seu vagido de liberdade.
A liberdade sofrida, evadida da clausura do medo, que aspira e rasteja,
mas que sorve da teta da vida, que explora o cheiro da terra e rejeita o
azedume do vomito transformando-o em adubo da nova vida...

Estou saindo da aspereza eternizada para a digestão do sentimento e da
beleza, e veja: é da dor estancada que farei emergir o grande
pássaro!

Não, agora não...
Hoje sou pássaro e quero voar, vou sair do seu território, da sua
estreiteza medíocre e avarenta, agora vou ultrapassar a linha do seu
poder.
Não, agora não....
Quero dançar na memória da nossa vida, rasgar seus compêndios estragados,
urinar o suor frio do passado e acalentar este meu doce amanhecer com um
suspiro e um beijo, enquanto piso na relva molhada que é a trilha do nosso
adeus.



The end





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Tantos livros... para quê?

Today is World Book Day, apparently

Os livros me acompanharam durante toda a minha vida. Comprei sozinho meu primeiro livro quando tinha seis anos de idade, inclusive, na feira de livro da minha escola, menti que era pobre para ganhar 50% de desconto.
Toda a minha infância passei cercado de livros: minha maior diversão era abrir os vários fascículos da enciclopédia de minha mãe e ler os verbetes em referência cruzada, aliás, numa época em que eu nem tinha ideia do que era referência cruzada.
Comecei a escrever meu primeiro romance aos nove anos, e creio que, na época, devo ter ficado muito satisfeito com o meu livro de uma página só.
Durante alguns anos, eu passei horas e horas diárias dentro da biblioteca perto de casa, pesquisando, lendo tudo que eu pudesse, aprendendo, tentando me tornar o escritor que hoje sou.
Trabalhei em livraria, escrevi uma dúzia de livros e colecionei algumas centenas de exemplares a ponto de minha esposa me obrigar, toda vez que eu comprasse um livro novo, a botar um velho fora. Uma tarefa torturante, eu lhe asseguro, como seu eu tivesse de cortar uma parte de mim fora e jogá-la pela janela no meio da rua para ser atropelada pelos táxis.
Quando me mudei de Nova York de volta para a América do Sul, enviei uma caixa por navio com apenas o crème de la crème, primeiras edições, livros raros, livros que me inspiravam, que me atormentavam, dos quais eu necessitava.
Desapareceram!
Por alguma ironia do destino, todos os meus livros acumulados por anos sumiram!
Restaram-me apenas três, um de Borges comprado em Buenos Aires anos antes, a primeira edição de "O Nome da Rosa" e um de Fernando Pessoa. São os três livros que tenho hoje. Todos os demais devem estar apodrecendo em algum porto ao redor do mundo.

Os livros fazem parte da minha vida, por isto você achará estranho quando eu disser que odeio ir a livrarias. Tenho pavor!
É uma relação totalmente oposta da que tenho com bibliotecas. Nas bibliotecas, sinto-me em casa em meio àqueles livros antigos, sujos, amarelados, com carimbos em suas páginas soltando. São livros que resistiram à prova do tempo, bons ou ruins, mas que sobreviveram às gerações. Homens e mulheres viveram e morreram, e aqueles livros permaneceram e permanecerão lá.

Já nas livrarias, temos a hipérbole do excesso, do inútil.
Há livros bons?
Sem dúvida!
Mas são tantos os títulos, tantos os autores, tantas as editoras publicando tantos títulos de tantos autores, que mal dá para separar o joio do trigo. Você é capaz de fazê-lo?
Nem eu...

Nem sei para onde olhar quando entro numa livraria, oprimido por uma quantidade inabarcável de novos livros todos os anos. Só nos EUA num único ano se publicou mais de um milhão de novos títulos, e para quem? Quem conseguirá ler tantos livros?

Simplesmente não existe a mesma quantidade de leitores que o número de livros existentes. Cada vez que entro numa livraria, tenho a certeza que nunca verei meu nome na capa de um daqueles livros. E mesmo se chegar a ver, que diferença fará? Um livro para quem? Um livro para quê?

Aos nove anos, fiquei feliz da vida de ter escrito o meu livro de uma página somente. Hoje, também ficaria feliz se todos os autores repetissem esta minha façanha de meninice.
Um milhão de livros de uma página só publicados todos os anos. Ainda é bastante, afinal de contas, são um milhão de páginas para serem lidas. Teríamos de ler 2739,72 páginas ao dia durante um ano inteiro para lê-las todas, mas, mesmo assim, já nos pouparia do absurdo dos absurdos de vagarmos por entre tantos livros suplicando por atenção.

O subtítulo de "Assim Falava Zaratustra" de Nietzsche é "um livro para todos e para ninguém". Quão sábio havia sido este bigodudo alemão!
Como ele poderia ter antevisto que hoje todos nós escreveríamos nossos Zaratustras, livros para todos e, ao mesmo tempo, inevitável e fatalmente para ninguém?

(publicado originalmente em http://blogdoescritor.oficinaeditora.com/2011/12/tantos-livros-para-que.html)

Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
http://www.henrybugalho.com/





quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

hoje matei um menino











passavam das seis da tarde
o dia seguia sem dar por nós
o telefone não tocou
o menino veio
eu sabia o que queria
ele sabia o que queria

alimentei-o com um caldo ralo

pão e sonhos
olhamo-nos cúmplices
nos queríamos livres

eu dele
ele das tardes sujas de barro vermelho
sorriu
pôs debaixo do braço o caderninho com espiões e vilões desenhados
limpou o nariz nas mangas da blusa
não correu
não correria nem se eu mandasse
tomou nas suas mãos gordinhas as minhas
quis afagar-lhe os cabelos
ele não quis
pôs meus dedos em volta de seu pescoço
pediu-me para matá-lo
do mesmo jeito que pedia ao avô pão com margarina e açúcar

apertei lhe a garganta

regurgitou
vomitou o que engolira
sangrou pelas narinas
transpirava um ar fedido de mofo
parecia rir
não de mim
ria das coisas

as coisas foram-se rompendo
as tardes vermelhas viraram concreto
o sonho de ser espião ficou branco e saiu voando
e seu corpinho evaporava evaporava
evaporou
sumiu
com sua risada

enfim

conseguimos
as coisas conseguiram

tudo partiu
para sua própria existência
eu para ficar desperto o tempo que quisesse sem mais nenhum sonho
e o menino

foi



















terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Onde quer que seja

Little ballerina, by David Handley
O tempo me chega
pelos
ouvidos

e me pega
pela mão
como se eu fosse

uma criança
perdida
numa casa vazia

não fossem os móveis
pouco a pouco
descobertos

de seus panos
quentes
brancos

para que (?)
novamente possam ser
(re) cobertos

daquilo que o vento traz
daquilo que a gente faz
e que o tempo permite

que se acumule
estaticamente
esteticamente

sobre eles, sobre nós
há histórias
a se contar

e hoje o tempo me chega
pelos
ouvidos

e corre por mim
das pontas dos cabelos
a dos dedos dos pés

...

ela diz [a voz
do tempo me soa
feminina]

ela diz ter
olhado sempre
por mim

mas desconfio
que a verdade seja
"para mim"

e ela me viu
ser e mudar tantas
e tantas vezes

de móveis, de gosto
de rostos em espelhos
e porta-retratos

ela mantém a conta
ainda que não se queira
pagar para ver

ela me faz lembrar
de um tempo
que já se foi

e não sei
se sinto por ele
algo

além da dor
do lembrar
e não saber

...

enquanto ela canta
eu vago pelos cantos
como os fantasmas

de um passado
que agora se faz
presente

a casa era a mesma
mas eu
era outra

e dançava sozinha
sem medo de conter
lágrimas e passos

de ida
de vinda
de dança

...e ela cantava
e canta
enquanto eu sigo...

a casa era outra
mas eu
era a mesma

e com ele dançava
como se fosse a última
música

sem saber ou querer saber
se estavam fazendo aquilo
do jeito certo

rodopiando seguimos
a eterna dança, enquanto
ela canta e sempre cantará

quando quer
que seja, onde quer
que se esteja.





segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Aos perdedores, as cascas




(por Ramon Barbosa Franco)

Dedicado a Machado de Assis

Joaquim sentou na varanda e solicitou calmamente para o mordomo uma banana. Descansou numa cadeira. Era tanta informação girando em sua mente que mal conseguia respirar. Retirou um dos sapatos que apertava-lhe os pés e reviveu a sensação de alívio e conforto. Olhou a carta, que concentrava informações cabais. Ficou na dúvida: onde poderia jogar a casca da banana que acabara de receber do mordomo?
Rememorava os fatos e pensava, enquanto descascava a fruta, o quanto gostava de comer banana: a doce do paraíso. ‘Como gosto de bananas, pena que sempre desperdiçamos a casca’, analisou. ‘A casca se joga fora’, respondeu para si próprio. Depois, ficou repetindo mecanicamente a palavra casca. ‘Casca, casca, casca, casca, casca, casca, casca. Isso! CAS-CA! Casca!’
Se antes lhe faltava coragem para decidir em qual local daquela imponente varanda ficaria depositada uma simples casca de banana, agora Joaquim não hesitava em se desfazer completamente da fruta.
Voltou com fôlego para a sala.
- Co-comissrio! Co-comissário! - e chegando no cômodo - Co-comissário prenda-da Isaac ne-neste e-exato momento! Pren-prenda Isaac ago-go-ra! Fo-foi e-ele, fo-foi e-ele que-quem assa-ssissi-nou Elza, su-sua irmã gê-gêmea! Co-como gê-gêmeos, Isaac só era di-di-diferente de Elza no gê-gênero masculino. Por de-dentro, bem... Por de-dentro e-eram gê-gêmeos i-i-idênticos! Su-sua pederastia latente-te proporci-o-o-onava a inve-ve-ve-ja fatídica e de-desumana! Inve-ve-ve-ja que acabou com a vida de Elza. Aqui, se-senhores, na referida e supo-po-posta carta anônima e ameaçadora, que chegou até a vi-vitima, concentra a se-sentença co-contra Isaaac! O próprio assa-ssi-ssino se-se entregou neste documento ardiloso!
Todos na sala ficaram perplexos.
Até então Isaac demonstrava colaboração com as investigações. De fato, recusou a vinda do escritor e até mesmo alegou certa falta de concentração para evitar escrever o bilhete que solicitava a presença do autor renomado.
Com as palavras de Joaquim, as evidências começaram a ficar claras, principalmente para os familiares que acompanhavam o desfecho daquele assassinato. Eles passaram a reviver situações onde realmente Isaac colocou prova a disputa direta com a irmã, contrariando todos os votos de felicidades que os gêmeos mais afortunados da sociedade carioca receberam quando vieram ao mundo, há três décadas.
- Senhores, senhoras e meus queridos parentes: não caiam na ambiguidade deste falsário! Deste canalha metido a escritor! Vejam, até hoje ninguém aqui do Rio de Janeiro, ou de qualquer parte deste quinto dos infernos, soube precisar se a jovem traiu seu esposo naquela trama imoral e imprópria inventada por este mulato exibido. Este gago epiléptico. Ele mal consegue falar! Você, seu Joaquim Maria não passa de um molambo! Gago insolente! Epiléptico maltrapilho! Eu não matei minha irmã e nunca fui pederasta, como supõe este filho de lavadeira!!!
O escritor ouviu com dor os insultos me, falecida há tantos anos. Porém teve calma para o debate:
- Triste sorte do insensato-to! Filho de lavadeira-ra sim se-senhor e com muito orgulho. Ela não me deixou réis, mas dignidade. Agora vo-você Isaac, se-se traiu, a co-come-começar pelo olhar inquisidor que dirigiu a mim no mo-momento que o liberto me abriu as po-portas deste casarão. Das mãos do co-comissário pude ler claramente que o recado que ele traz consigo foi assinado pelo guarda-livros Paulo, o me-mesmo que me dirigiu este que guardo em meu bolso. Sendo o único curador dos Barroso, eras tu o homem que deve-ve-ria assinar as co-correspondências e os co-convites de fu-funerais. Estranhei o recado assinado por Paulo, mas co-como sou um antigo amigo dos Barroso, e isto desde a época de mamãe e de papai, não relutei em vir ajudar nas inve-ve-stigações. Repito que você se traiu, principalmente por co-confessar que é leitor de minhas obras, apesar de considerá-las impróprias ou imorais, co-como disse. Nunca imaginei que um trecho de minha pro-produção literária um dia iria se-servir de prenúncio para a morte. Aqui, nesta nefasta carta, você cita para sua irmã o trecho do meu co-conto 'As Academias de Sião': ‘- E se eu lhe der um remédio a tudo’. Logo de-depois acrescenta de fo-forma odiosa: ‘Como gostaria de ter vivido em Sião. Tu poderás ir para lá’. Para quem ainda no co-conhece este meu trabalho em 'As Academias de Sião' relato a fan-fantasia de troca de sexo. Isaac você gostaria de ter nascido mu-mulher. Por isso que arquitetou o homicídio. Co-comissário pre-prenda-o.
Joaquim sentou e fixou o olhar no marido de Elza. Era ele quem agora reprovava o escritor. O Comissário nem se mexeu. Continuava atônito com as revelações daquela noite. Foi após um silêncio de alguns minutos que Leopoldo, o esposo de Elza, numa atitude inesperada passou a insultar o escritor carioca:
- Não são provas para incriminar meu cunhado! Bem que ouvi sobre suas aspirações, Joaquim! Como alega, seu gago insolente, que um Barroso tenha matado outro Barroso? Falácias, são meras falácias sem qualquer comprovação! Dá até angústia em ouvir este homem falar, este negro exibido! Gago presunçoso! Sempre preferi, e prefiro, a literatura de Raul Pompéia, o grande Raul Pompéia que, infelizmente, já nos deixou. O seu magnífico 'O Ateneu' supera toda a produção deste filho de lavadeira!
Como que despertando de um sono, o Comissário proclamou:
- Guardas: prendam Isaac e Leopoldo! Os dois são comparsas na engenharia maliciosa deste crime! - e, se dirigindo para Joaquim - Obrigado por clarear a mente deste velho policial, mas, pelo amor de Deus, homem, cuide desta gagueira. Tente algum tratamento.
Antes de sair na companhia dos guardas que levavam os dois presos da noite, o Comissário cochichou ao ouvido do escritor:
- Percebi quando Leopoldo lhe lançou um olhar mortífero e cruel, notei o ódio dele. Um caso de pederastia assassina, motivado pela fortuna dos Barroso. Vai ver que Leopoldo era, na verdade, o 'marido' de Isaac. De certo, os dois se conheceram num colégio interno, já que ele falou tanto do livro de Pompéia.
Em tom de confidência, o escritor respondeu também ao ouvido do Comissário:
- Aos per-perdedores-res, as cas-cascas! Cascas!





domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ausência

foto: Juliana Charnaud

Um vôo noturno
Teus olhos de saturno
Circulam meu espaço

Boca de lua crescente
Sorrindo um pouco da gente
Sem pedir licença

Inocência
Meu inferno é o céu
O frio do inverno num pedaço de papel

Um poema...

Tua ausência





No lado de fora

foto: Raul Garré

Peixes no aquário
Mundo sem reflexo
O tempo do não espelho
Máscaras perigosas demais

Cápsulas que resolvem quase tudo
Por que o tudo quase sempre é nada
E quase nada é muito
Pra quem sobrevive das circunstâncias do dia a dia

Tudo tão artificial
Bomba de oxigênio, ar condicionado,
Dinheiro de plástico, bala de borracha,
Bola de cristal, doses de efeito moral

Mas que moral?

Eu caminho sem observar as vitrines
Encontro amigos jogados pelos cantos
Empilhados em apartamentos que não respiram

No semáforo, eu me sinto um peixe fora d’água





sábado, 4 de fevereiro de 2012

O grande feitiço de Machado






Tatiana Alves
Há autores cuja importância se restringe à época em que viveram. Durante a vida, são renomados e reconhecidos em seu meio, mas vão sendo esquecidos com o passar do tempo; escritores dos quais gerações posteriores sequer ouviram falar. Há outros, ao contrário, que só parecem ter seu mérito reconhecido a posteriori. Muitos chegam mesmo a morrer na miséria – Edgar Allan Poe e Luís de Camões constituem exemplos disso –, tendo no reconhecimento póstumo a sua forma de permanência. Muitos se eternizam dessa forma, sem terem, no entanto, desfrutado em vida dos louros advindos de seu talento.
Há um terceiro grupo, contudo, daqueles que não apenas tiveram a capacidade de se inscrever de forma grandiosa em seu tempo / lugar, como deixaram à humanidade um valioso legado, inegável e pleno, alçando-os à condição de clássicos. É a este grupo que pertence Machado de Assis.
De infância pobre e origem mestiça, em uma época regida por valores deterministas, seu triunfo como escritor já valeria por si. Mas o Bruxo do Cosme Velho foi muito além das ruas do Flamengo e de suas adjacências, tão habilmente retratadas em sua obra. Ousou mergulhar na alma humana, revelando seus desvãos mais sombrios e inescrutáveis, e talvez aí resida o seu maior mérito: é universal e atemporal, como universais e atemporais são as angústias e meandros da psique humana.
Considerado por muitos o maior nome da Literatura Brasileira, dividindo preferências apenas com Guimarães Rosa, Machado registrou, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, um retrato sombrio e mordaz da sociedade de sua época, numa acuidade que revela a eternidade das recônditas paixões humanas.
Capitu, sem dúvida a mais enigmática de suas criações, mostrou ao mundo, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o quanto uma mulher firme e decidida poderia amedrontar um rapaz casmurro, inseguro e desconfiado. Desdêmona oitocentista, constitui uma das maiores incógnitas da ficção brasileira, sendo a dúvida que paira ao redor de sua figura o traço-chave de sua complexidade. Com a criação da Humanitas,filosofia defendida pelo personagem Quincas Borba em outra de suas deliciosas narrativas, o narrador machadiano desvela ainda os males de uma sociedade em que a guerra se faz necessária à sobrevivência, ainda que esse embate na maior parte das vezes se dê de forma velada. Compaixão ou batatas, eis a questão.
Nessa galeria de personagens que, de tão presentes, parecem íntimos de quem se embrenha pelas trilhas machadianas, o que não dizer da misteriosa e fatal cartomante, talvez a desencadeadora de toda a tragédia em que mais uma vez o ciúme e a paixão entram em cena, denunciando a fragilidade humana? Tornamos-nos ragazzi in amore, seduzidos e iludidos pela pena do mestre que conduz o leitor, fazendo-o constatar, como Simão Bacamarte, que a pretensão de não ser louco talvez signifique ser mais louco do que os demais, sendo a Casa Verde pequena para a doentia e complexa psique humana.
 Mas foi talvez pelo olhar do defunto-autor que a sua representação de mundo tenha sido mais eficaz. Ao analisar a vida pelos olhos de um morto, conferiu ao olhar a neutralidade necessária, numa vereda insólita que ninguém até então ousara palmilhar. Parodiando Brás Cubas, que se considerava afortunado por não ter tido filhos, não tendo, desse modo, transmitido a ninguém o legado de nossa miséria, mestre Machado deixou-nos uma valiosa herança, inscrevendo-se no panteão dos maiores nomes da literatura universal.


Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Coluna Momento Lítero-Cultural, dos sites CronópiosAnjos de Prata, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ e à Academia Cachoeirense de Letras. Possui seis livros publicados.  É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.