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sexta-feira, 29 de março de 2024

Os Refugiados

 

 
Na Madrugada dos Tempos - Parte 20

 

A guerra é uma parteira: das entranhas do mundo faz emergir um outro mundo.

Não o faz por cólera nem por qualquer sentimento.

É a sua profissão: mergulha as mãos no Tempo,

com a altivez de um peixe que pensa que ele é que faz despontar o mar.

Mia Couto

Escritor e Biólogo moçambicano

Nascido em 1955

 

Mirsulo e a sua comitiva partiram há algumas semanas, levando consigo o ferido Tibaro, agora em franca recuperação.

Para Barinak fora um encontro muito produtivo. Apesar de não terem conseguido saber como fazer o tão desejado cobre, obtiveram um bom acordo com o sal, que seria trocado por pontas de lança e de seta. Além disso, de modo a conseguir trazer mais sal de cada viagem, Mirsulo iria entregar dois burros já domados e levou com ele um homem que iria aprender a lidar com os animais. Seriam pagos com a primeira entrega de oito cestas de um cotovelo de largo e dois de fundo, cheias de sal.

É verdade que socorreram um estranho e fizeram tudo para o ajudar, sem esperar nada em troca, mas essa era a lei de quem habita grandes espaços desertos. A vida é escassa e preciosa, por isso, os humanos devem ajudar-se reciprocamente e, mesmo na caça, só matar aquilo que se planeja comer.

Mergulhado nestes pensamentos, Erem ajudava a abrir a cova para mais um monólito, que chegaria dentro de dois dias. Já se avistava, numa colina a norte, o grupo de dez diligentes homens e mulheres que o fazia rolar sobre troncos. Seria o oitavo, de um total de vinte e quatro. O chefe do clã mudava assim o tema das suas preocupações; a ideia inicial era ter dez monólitos quando fizessem as festas das fogueiras[1], mas estavam com um atraso de dois. Não era grave, mas o décimo monólito seria o representante da estação e não estaria lá.

A festa das fogueiras era uma ocasião importante; seria escolhido um casal de adolescentes que envergaria respetivamente uma pele de auroque macho e uma de fêmea. O macho, ostentando enormes cornos, dançaria com a fêmea e simulariam o acasalamento. As crianças correriam em volta deles atirando as flores colhidas nos dias anteriores, para a união ser abençoada e produza muitas crias para alimentar os humanos. Ao anoitecer, as fogueiras acender-se-iam em vários pontos da aldeia e os jovens, para mostrar a sua força e coragem, fariam saltos mais ou menos acrobáticos por cima delas. Era uma noite de alegria e felicidade onde se festejava o milagre da vida e da fecundidade… naquela noite seriam concebidas algumas crianças que haveriam de nascer ao aproximar-se o fim do inverno. Naci, que partira entretanto para Hatiweik a fim de ir buscar a sua nova esposa, iria apresentá-la a Barinak nessa altura, buscando a bênção de Swol.

Pelo canto do olho, o chefe do clã viu um dos miúdos do grupo de Tailan aproximar-se em corrida.

— Erem! — A voz esganiçava fez-se ouvir ainda antes de parar a corrida. — Estão a chegar… — estava ofegante —… estão a chegar…

— Quem está a chegar? — Ele fingiu um ar aborrecido. — Fala, rapaz!

 — Muita gente… — o miúdo ainda não conseguira recuperar o fôlego —… vem aí muita gente… com trouxas e animais… muitos! Estão a ir para a casa da reunião.

Sem perceber que tipo de invasão seria aquela, Erem meteu-se ao caminho em passos largos, o que resultou num abandono geral do trabalho; todos o seguiram, mortos de curiosidade.

Ao aproximar-se da casa da reunião estremeceu. Havia um grande grupo de pessoas, como o rapaz dissera, com trouxas, crianças e animais. Eram principalmente mulheres, mas havia alguns homens entre elas. Sem contar, eram quase tantos quantos os habitantes de Barinak. Não sabia o que dizer e caminhou entre eles, atordoado, olhando-os e sendo olhado com curiosidade.

— Erem! — Uma voz feminina chamou de entre os estranhos. — És tu, Erem?

Procurou a origem da voz e localizou uma mulher, já entrada nos anos, bastante magra e com o rosto tisnado do sol e coberto de rugas. Havia qualquer coisa de familiar nela.

— Erem! — Ela insistiu. — És mesmo tu! Sou Cira!

O nome acertou-lhe como uma pedrada e uma onda de recordações; era sua tia, uma das irmãs de Birol. Correu a abraçá-la e interpelou-a com uma enxurrada de perguntas. Queria saber que estava ali a fazer, onde estava o resto do clã, quem era aquela gente…

Gradualmente, mais dos habitantes de Barinak apareciam e vinham questionar os recém-chegados. Havia estranheza por verem o seu chefe a conversar alegremente com um deles, mas alguns reconheceram a irmã de Birol e saudaram-na mais ou menos efusivamente.

Cira tinha muito que contar. Com lágrimas nos olhos, começou a narrativa:

“Após nos separarmos, seguimos sempre na direção da nascente do lago salgado. Retomamos a vida nómada, Birol estava obcecado em ver a grande catarata, para desagrado de alguns dos nossos que foram abandonando o clã assim que passávamos perto de alguma povoação.

O lago salgado, porém, crescia imenso a cada mudança de lua. Encontrávamos várias aldeias abandonadas e a terras, começando a salgar, estavam repletas de vegetação morta e despovoadas de pessoas e animais. Começamos a passar fome e o meu irmão não queria ouvir as vozes do clã que diziam para nos afastarmos do lago.

Por fim, chegamos a uma área muito extensa de terras encharcadas. Já não tínhamos comida há alguns dias e a água potável estava a acabar, toda a que nos rodeava era salgada ou cheirava mal. Acabamos por perceber que havíamos percorrido uma grande distância a embrenhando-nos num enorme pântano. A passagem que usamos foi-se estreitando até chegar a um sítio sem saída. A única solução era recuar, virados para Ner[2] até conseguirmos uma passagem que nos tirasse dali.

Birol já estava com febre e sentindo-se fraco há algum tempo. A fome e a sede que passamos naquela armadilha mortal acabaram com ele e com mais uns quantos dos mais fracos. Quando finalmente encontramos uma passagem, estávamos reduzidos a metade dos que começaram e mais mortos que vivos. Logo a seguir encontramos uma nascente de água doce e foi a nossa salvação.

Estávamos desvairados e perdidos, sem saber o que fazer. Retomamos a caminhada seguindo as estrelas-guias até encontrar uma povoação. Mas eles não nos quiseram lá. Tinham um muro de troncos em volta das casas e só nos deixavam montar as tendas no exterior. Podíamos entrar durante o dia, mas ao anoitecer tínhamos de sair.

Aí aconteceu a divisão; o meu irmão mais novo, Okan, revoltado por termos sido guiados numa caminhada para a morte, não quis mover-se mais; perdera a mulher e dois filhos, restava-lhe apenas uma menina. Ficaria ali, o povo da aldeia acabaria por os aceitar. A prima Ezgi e a maioria escolheu continuar para poente. Eu e o meu filho Demir e a mulher, Gizem, decidimos que voltaríamos para trás à tua procura. O Clã do Rio Brilhante, depois de tantos invernos a crescer e a tornar-se um dos maiores, destruiu-se completamente. O crescimento do lago salgado e a insistência louca do meu irmão reduziu-nos a nada.

Depois disso temos caminhado por essa terra imensa até que, no inverno passado, parámos numa povoação chamada Annakos a poente daqui. Já tínhamos ouvido falar de Barinak por caçadores e pastores, que ficava a poucos dias de distância e do seu amado chefe. Embora não soubéssemos o nome, já suspeitávamos de quem se tratava. Mais uns dias e empreenderíamos a viagem para cá. Aconteceu que, uma tribo nómada de Ner atacou a povoação, matou muita gente e roubaram tudo o que puderam levar. Perdemos Demir nesse ataque e acho que toda a população se dispersou, deixando Annakos vazia.

Pela minha parte, se tinha de fugir, que fosse para junto do meu sobrinho e da minha família. Esta gente que me acompanha sabia da minha intenção e resolveu seguir-me. Também eles vieram ao som das histórias do santuário que aqui se constrói e que protege este povo.”

Erem olhou o aspeto desolado daquele grupo, com carinho, mas, ao mesmo tempo preocupação. Era um número muito grande de bocas a alimentar.

Alim chegou, espantado com a quantidade de pessoas que ali via reunidas. Foram chamá-lo que estava junto de Lemi, de quem se tornara muito amigo. Este último não viera porque estava cada vez mais debilitado e já não andava. Tailan apareceu quase a seguir, acompanhado pelos cerca de cinco outros homens que atualmente o seguiam para todo o lado. Falava-se em lutas entre os “estrangeiros” de Barinak, a liderança dele era contestada.

— São nómadas? — Perguntou Alim diretamente a Erem.

— Não. — Respondeu o chefe do clã sem hesitar. — A maioria vem de Annakos, já estive lá, numa das minhas últimas caçadas. — Foram atacados e a aldeia foi destruída.

— Querem ficar aqui? — Tailan mostrou-se desagradado. — Não podemos aceitar tanta gente. Vejam só; quase só mulheres e crianças! Não podemos alimentar tanta gente.

Humilde e pacientemente, o grupo de refugiados mantinha-se praticamente em silêncio. Continuavam sentados no chão, agarrados aos seus pertences, olhando com esperança para os três homens que decidiriam o seu futuro.

— Algumas crianças já são crescidas, já trabalham. A maioria das mulheres são jovens, de certeza que poderão alimentar-se. Trazem alguns homens e alguns animais… — Alim observou, aproveitando o que de bom se conseguiria obter.

— Teremos de ver o que podemos fazer. — Disse Erem pensativamente.

Zia e Nehir aproximaram-se, também surpreendidas com aquela quantidade de estranhos de uma só vez. Ambas reconheceram a velha Cira e logo se abraçaram e beijaram-se, chorando de alegria com o reencontro. A curandeira, no entanto, começou de imediato a verificar entre os refugiados os que estavam feridos ou doentes.

— Mas… — Tailan estava espantado. — Estão mesmo a pensar em aceitá-los? Que faremos a tantas bocas?

— São bocas, mas também são braços e cabeças. — Erem olhou diretamente o amigo. — Estranho que sejas quem mais reclama, quando, também tu, foste um estranho em Barinak.

Ele não gostou de ser recordado e virou o rosto, contrariado, vendo chegar Fikri e Remzi, os filhos de Lemi, chamados da equipa que arrastava o monólito. Sabia serem críticos daqueles que continuavam a chamar estrangeiros e apelou à sua opinião: — Fikri, o teu primo pensa receber esta gente em Barinak. Que te parece?

O visado e o irmão olharam demoradamente para o grupo, aparentando não ter reconhecido a tia, pois eram muito novos quando saíram do Clã do Rio Brilhante. Quando os olhos de Fikri tornaram para o membro do conselho que o questionava, já a habilidade diplomática herdada de Lemi se sobrepunha à sua habitual impulsividade; percebera o conflito e que tinha de tomar uma posição. Ou estava do lado do primo, ou daquele homem, que detestava e admirava ao mesmo tempo.

— Porque está o nobre Tailan preocupado com mais estrangeiros a chegar aqui? — Ele colocou o braço sobre o ombro do irmão mais novo para que este não se manifestasse. — Todos sabem a minha opinião, não ma pediram quando vos aceitaram, mas também não era necessário, porque Erem é o nosso chefe e confiamos nas suas decisões. — Exibiu um pequeno sorriso para o primo. — Além de tudo, apesar de eu não gostar, os estrangeiros em Barinak têm sido muito úteis.

— Veremos o que dirá Naci quando regressar. — Respondeu Tailan com azedume.

— O meu filho, foi buscar a sua nova esposa fora do clã. — Ripostou Erem. — De resto, também pessoas do teu povo procuraram homem ou mulher entre nós e os nossos entre os vossos. Não defendias tu a união?

O rosto de Tailan fechou-se contrariado e cruzou os braços sobre o peito. Sempre fora um homem impressionante, que respirava energia e liderança. Agora, permanentemente seguido pelos seus protetores, estava habituado a que a sua vontade se impusesse sem necessidade de se justificar.

— Entre os nossos povos, sim. — Ele respondeu lentamente, sopesando cada uma das suas palavras. — Entre aqueles que vivem, nascem e crescem em Barinak.

Zia aproximou-se, entretanto, sentindo a tensão que se formava. Mesmo que inconscientemente, Tailan e o seu séquito estavam perfeitamente agrupados frente a frente com os vários elementos do Clã do Leão das Montanhas.

— Verás, que será bom para todos. — Erem deu um passo em frente e pousou conciliadoramente a sua mão sobre o braço de Tailan. — Não vês aqui novas esposas para os nossos homens? Crianças que em pouco tempo serão caçadores, pastores, pescadores? Mais braços para ajudar a construir o santuário. Em breve não se distinguirão de nós.

— O que eu vejo, — o chefe dos estrangeiros replicou com uma careta e sem perder a pose defensiva —, é uma grande quantidade de bocas a alimentar e um grupo perseguido por inimigos. Sabe se virão atrás deles? Eu não os quero junto de mim. — Com esta sentença, virou costas e afastou-se rudemente, seguido pelo séquito de guarda-costas.

Erem olhou para Zia, que se mantivera calada todo o tempo e depois tornou para o grupo que se afastava. Tailan, porém, ainda tinha mais um aviso e interrompeu brevemente a marcha para o fazer: -- Devias estar preocupado era em preparar para te defenderes, em vez de construir um santuário e estar a receber quem não se pode defender sozinho.



[1] Correspondia aproximadamente à primavera

[2] Norte

         
    

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21 - Os Esponsais
Introdução

Manuel Amaro Mendonça

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quarta-feira, 27 de março de 2024

Ao Vento

 





sexta-feira, 22 de março de 2024

Animal por Animal

 


Não há palavra ou expressão que, por si só, conceitue ou determine as unidades elementares de nossa existência, ou qualifique, com êxito, o ser humano – e tampouco todos os vocábulos e todas as sintaxes fracassariam em nos representar. O próprio indivíduo, ao descrever-se em um ou dois atributos, padece, pena, sofre e hesita – à exceção de Jaime II, que se definia como coaching quântico-motivacional, digital influencer e personal trainer.

Oficial da reserva do exército, atlético e pretenso inocente, por sua clientela era admirado feito um Apolo de Belvedere cujas tatuagens – a mais simbólica delas, a frase Missão Dada É Missão Cumprida, pintada no antebraço em escrita cursiva – retratavam não só os ideais de sua geração, mas uma história alusiva a culturas masculinas e aos derradeiros guerreiros. Assim acreditava-se, um soldado ou lutador, e assim forjava-se para, em contrapartida, manifestar os defeitos característicos aos homens de sua classe: o orgulho colossal, a severidade, o ego infantil.

Nenhuma das limitações assomava como trágica à Michele quando o casal de namorados decidiu, numa ação impulsiva, compor vidas e trançar destinos após seis meses de relacionamento. Jaime mudou-se para a casa de Michele e consigo levou, somente, Fritz, o dogue alemão, e seus halteres. Um homem precisa apenas de halteres para sobreviver – era um dos mantras espirituosos de Jaime e o mais proferido nos seus seminários.

Ao mutualmente habituarem-se às suas manias e máculas, Michele julgou-o intransigente e autoritário, ou machista, e Jaime enervou-se com perfeccionismo e a teimosia que ela manifestava ao ser contrariada. Michele era sansei, a terceira geração de imigrantes japoneses, e era professora de educação infantil e vegetariana, e apesar dos trinta anos paramentava os ombros com um xale de crochê. Vangloriava-se de seus parâmetros morais e julgamentos minuciosos, e a si confiava a redenção do mundo e da espécie humana. Nas apresentações pessoais declarava-se, sorridente, como virginiana. Era Michele, enfim, abominável como Jaime. Este, com o suceder das semanas, e devido ao seu instinto de caçador, identificou nela uma instabilidade nervosa ou taciturnidade acachapante – e tais comportamentos ele inferiu como naturais à infância da união. Mas ao regressar de viagem em certa circunstância, e ao estacionar o automóvel na garagem e adentrar o lar, flagrou-a com as pupilas dilatadas, ofegante, a desprender um calor estranho à pele. Jaime afastou o dogue Fritz, abraçou-a e beijou-a, e antes de conversarem sucumbiram ao sangue. Comprometido aos braços da paixão após o amor de crepúsculo, entre a vigília e o território dos sonhos recordou-se de Michele e sua condição, dos olhos condensados e malditos, o desespero– e concluiu: ela consumira entorpecentes.

Incapaz de confrontá-la – pois apesar de orador e coach suas palavras eram apropriadas a encorajamentos e exortações, não aos meandros da emoção e dos sentimentos –, precisou, além de constatar em Michele a recorrência de uma disposição soturna, flagrá-la novamente em um estado alterado de consciência para agir – justo ele, cuja vida principiava-se no verbo.

Na manhã de um sábado Jaime levantou-se cedo, preparou café, salada de frutas, despertou-a com afagos e com a paciência dos subjugados e convidou-a para o desjejum. Enquanto ela fartava-se à mesa, ele admirava os traços de sua face, a expressão plácida e complacente, oposta à de seus ápices de melancolia, e ao término da refeição segurou as mãos da namorada, encarou-a e perguntou:

O que há, Michele?

Incontinente, os olhos dela soçobraram-se em lágrimas.

Qual narcótico a derrotou?

Michele, aos prantos, balbuciou:

É muito forte, amor. É uma sensação, e só. Me obriga a atos abomináveis. Me derruba e me alça aos céus, falou ela e mais não disse malgrado a carinhosa persistência do namorado. Orgulhoso com o primeiro dos numerosos, futuros embates inevitáveis a sua admissão de vício, Jaime congratulou-se. Autênticos guerreiros não escolhem batalhas, falou para si, de frente ao espelho. Então começou a, de semana em semana, sitiar e fustigar Michele, e apesar de sua insistência ela não confessava, permitia-se apenas as lágrimas.

Nós haveremos de vencer, bradava Jaime para Fritz, em vislumbres de Júlio César.

Numa segunda-feira de angústia e antes do almoço, e por entrever a namorada em seus pensamentos, abandonou a ordenação das palestras e a assunção de novos compromissos e rumou para casa. No caminho comprou um buquê de flores e bombons sem glúten e lactose. Como era de intenção surpreendê-la, estacionou o carro na rua, longe da garagem e das grades. Sempre assustava amigos e familiares, e sempre compensara suas diabruras. Com cautela abriu e fechou o portão, passou pela monstruosa casa do cachorro, por canteiros cultivados, abriu e fechou a porta de entrada. No hall, ruídos incomuns alarmaram-no. Era o arfar de exaustão e eram os gemidos contidos, ou dolorosos, e era a úmida consistência do ar, e ao julgar com pressa Jaime inferiu que a amada se aproveitava da solidão e da folga matinal para ceder-se aos entorpecentes e aos narcóticos.

James renunciou a propósitos anteriores e, presumindo-a no quarto de casal, correu, atravessou a sala, cortou o corredor e adentrou o recinto onde presenciou uma cena cuja sordidez não será retratada em pormenores: Michele, de gatinhas sobre a cama – mas sob o cachorrinho –, em pleno ato sexual.

Amor, gaguejou ele.

No umbral da porta, estupefato e petrificado, assistiu a namorada rolar para além de Fritz, o dogue alemão, e gritar:

Eu sou assim, Jaime, eu sou assim!

Confinado às esferas da desilusão, ele percorreu a lateral da cama e sentou-se no colchão. Dissipavam-se os marcos da realidade, as sensações e naturezas. Michele, deitada em posição fetal, chorava. Fritz, deitado em posição fetal, lambia os testículos. James II tremeu ao abrir a porta do armário e a primeira das gavetas. De entre as cuecas apanhou um revólver calibre trinta e oito, herança do pai. Malgrado sua resolução fosse a de com celeridade findar a sucessão de exigências conhecida por vida, e a ciência de seus sofrimentos, uma lágrima tocou a ponta do cano antes de ele efetuar um disparo quântico contra o céu da boca.

No velório de Jaime, ao lado do esquife, Michele, de óculos escuros, abraçava Fritz, o dogue alemão.






terça-feira, 19 de março de 2024

Se ela vem


Lá fora, o tempo desaba. Esquento o café e preparo uma tapioca com manteiga. Arrumo os pratos na mesa, dois copos, talheres bem dispostos, como se ela estivesse aqui. Sento e reflito. Cada gole de café, um pensamento demorado. Vou à sala, invariavelmente, para pegar o álbum de fotografias do seu batizado. Como ela era fofa e sorridente… Fernanda foi uma menina muito feliz. Aos dezoito, resolveu que deveria ter uma vida independente e, para isso, teria de flanar por aí. “Pai, estar com você é maravilhoso, mas preciso conhecer o mundo”. Ela, como a mãe artista, precisava viajar, conhecer novos lugares; em suas palavras: se encontrar. Sequer cogito, hoje, a hipótese de Fernanda vir morar comigo. Um acaso do destino nos colocaria frente a frente, depois de seis anos longe. Ela estava em Barcelona, seu ponto de apoio, pois tinha um namoradinho lá. Na última ligação, estava afobada, demonstrando medo. Falamos pouco. Ela disse que precisava desligar, porque teria de cumprir uma missão para um trabalho. Poxa, quase não tive tempo de me despedir. Aflição de pai é uma desgraça; passo horas cogitando desastres. Ficamos, depois, dois dias sem contato. Já a postos com o telefone da Embaixada, Fernanda me ligou, relatando o ocorrido: descobriu que o namoradinho era um fino receptador de produtos roubados. Segundo ela, teria outra residência para comportar câmeras, celulares e inúmeros objetos roubados dos turistas. Foi o motivo de Fernanda se debandar para Madri, onde, segundo ela, poderia se esconder na casa de uma amiga. O dito cujo ainda tentava contato, ligando insistentemente. Soube que ele foi a Madri. Como não conseguia falar com Fernanda, pediu para um amigo ligar e contar que tudo não passava de um mal-entendido; que, na verdade, os produtos replicados eram da coleção de seu avô falecido; que o avô havia morrido há um mês e não tivera tempo de se desfazer legalmente. Ela, sensata, preferiu não pagar para ver e despachou o sujeito. O indivíduo insistiu e foi o motivo para ela requerer uma medida protetiva, que, logo depois, se transformou em prisão. Ela não me contou detalhes, mas deve ter passado por maus bocados. Decidida como a mãe, deu por encerrado a história. Mas a melhor notícia é que Fernanda, após o aperreio, virá para passar uns dias com o pai. E, lógico, farei tudo que for possível para manter sua aura perto da minha: hei de estar vivo e disposto para a próxima primavera, quem sabe, ao seu lado. Se ela vem, tudo flori.

 





domingo, 17 de março de 2024

Amanheço e anoiteço







                                     Amanheço e anoiteço.





              Mas em tarde permaneço.
















domingo, 10 de março de 2024

Eu vivo sempre no mundo da lua


 

Meu filho ensaia um solo em sua guitarra. A música me trouxe lembranças daquele sábado, em julho de 1969. Alguns dias depois eu completaria meus seis anos de idade. Um ano antes, minha mãe e uma cartilha “Caminho Suave” abriram um novo mundo para mim: além de ouvir o que se passava no rádio e no nosso televisor Philco Solid State, eu já conseguia decifrar algumas notícias e os caracteres que percorriam a tela em preto e branco. Também das revistas e jornais.

Tudo se transformava rapidamente. Criança, eu não percebia muito do Regime Militar implantado no Brasil. Não sabia o que era censura, até o dia em que minha professora, no ano seguinte, explicou-me para que serviam os rótulos da Censura Federal exibidos antes de cada programa: se podia mostrar na TV o que não fosse contrário ao Governo. Talvez tenha sido por isso que na mesma época canções como “Eu te amo meu Brasil” passaram a ser cantadas nas escolas.

Meu pai trabalhava muito. Comprara nossa primeira casa e juntava dinheiro para adquirir a sua tão sonhada Aero-Willys 65. Guardávamos o dinheiro em casa, numa lata depositada sobre o balcão do armário da cozinha. Ela se enchia de cédulas de dez cruzeiros novos. As notas de maior valor na época, continham, além do “carimbo” que eliminou três zeros, a figura de Santos Dumont estampada na frente e seu 14 Bis no verso. Eu admirava as chancelas do Presidente do Banco Central e do Ministro da Fazenda e sonhava um dia assinar minhas próprias cédulas.

Naqueles dias, meus pais se preparavam para a festa de casamento de uma das filhas de nossos antigos vizinhos, uma família descendente de imigrantes italianos.

Minha mãe escolheu, numa revista com catálogo de roupas, um conjunto de blusa e maxissaia. As mulheres mais ousadas usavam minissaias. Os botões eram alguns dos detalhes mais importantes na vestimenta feminina. Meu pai passou a cultivar um bigode fino, comprou um terno, camisa e abotoaduras.

Poucos dias antes daquele 20 de julho, meu pai ganhou de presente um compacto do grupo “Os Incríveis” com a regravação de uma música instrumental chamada “O milionário”. Só havia um problema: não tínhamos uma vitrola para tocá-lo. Ouviríamos pela primeira vez na festa de casamento, pois era certo que lá haveria uma, de alta fidelidade.

Vivíamos uma “revolução” política, o Milagre Econômico Brasileiro, uma efervescência cultural: com a realização de festivais da canção (meu primeiro caderno tinha uma fotografia de Chico Buarque na capa e na contracapa a letra de “A Banda”, vencedora do festival de 1966), movimentados por vaias e aplausos, motivados por pensamentos políticos; com a influência da Jovem Guarda inspirada no Beatlemania e com uma identidade brasileira surge a Tropicália, misturando ritmos e estilos. Tudo isso, só fui compreender mais tarde.

Chegou o dia do casamento de Pierina. Na festa muita música e gente que falava alto, com sotaque e com as mãos. Num evento como aquele, não havia muita ocupação para os pequenos. Eu fui salvo por um aparelho de TV, pendurado num galpão da casa da família.

A música se alternava entre tradicionais italianas, canções italianas com versões em português, MPB e Jovem Guarda. Eu, “escondido” debaixo de uma mesa, com a barriga cheia de tubaína, tentava ficar o mais próximo possível da televisão, que durante o dia todo fazia chamadas para a chegada do homem na Lua. Eu me esforçava para ouvir a narração de Hilton Gomes em meio as interferências da transmissão e aos gritos dos jogos de cartas, embalados por muito vinho e pelas canções reproduzidas na vitrola.

Poucos na festa prestaram atenção, mas eu fui uma das 600 milhões de pessoas que assistiram aquela transmissão ao vivo, uma das primeiras, no mundo inteiro. Hoje parece uma coisa muito simples, pois cada um faz a sua própria transmissão, instantaneamente, no seu smartphone, para qualquer lugar do mundo, mas naquela época, transmitir ao vivo era um grande feito. Transmitir diretamente do espaço, da superfície da Lua, mais ainda.

Me esforcei para ficar acordado, até às 23h56min, quando finalmente Neil Armstrong deu seu “pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade". Meu pai, no exato instante, com ajuda do noivo, colocava “O Milionário” para tocar.

O presidente americano Richard Nixon realizava o sonho de seu rival John Kennedy de colocar o homem na lua até o final da década de 1960 e “superar” os russos na Corrida Espacial, durante mais um episódio da Guerra Fria. Falou de seu gabinete na Casa Branca diretamente com Armstrong, Audrin e Collins, os dois primeiros na superfície da Lua.

No rádio, a chegada do homem à lua foi eternizada pela narração de um jornalista da Rádio “Voz da América”, que dizia em uma gravação, transportada para o vinil: “Você sentiu, ao vivo, todas as emoções da descida dos primeiros homens no satélite da Terra. Viveu com eles este momento histórico de absoluta grandeza. O que você ouviu hoje é notícia, amanhã será documento. Guarde, portanto, essa gravação e no futuro, mostrando-a aos seus netos, voltará a sentir orgulho de ter sido contemporâneo da conquista do espaço”. Acredito que depois disso eu tenha pegado no sono, pois só lembro do dia seguinte na casa de minha avó.

Desde então, a Lua me fascina. Durante bons anos de minha infância pilotei espaçonaves feitas a partir de cadeiras de cozinha e viajei no espaço sideral formado por cobertores. Acredito que tais lembranças inspiraram algumas de minhas histórias de ficção científica, desafiaram a minha imaginação e a de tantos outros. A conquista da Apollo 11 nos deu maiores esperanças de nos lançarmos com mais ousadia ao espaço, pois a curiosidade humana transforma a Terra num lugar pequeno para a nossa inquieta mente, que faz com que a nossa imaginação não tenha limites.

Vivo sempre no mundo da Lua, com a esperança de que a natureza humana não nos torne extintos antes de consolidarmos o nosso caminho no espaço.

Meu filho desconecta a guitarra. Solar “O milionário” era um de meus sonhos, não tive habilidade suficiente. Ele fez por mim.





sábado, 9 de março de 2024

Decisões, decisões

 


Sentado num dos bancos da estação, Pedro observa, distraído, a chegada de um comboio vazio, remoendo pela milésima vez o seu dilema: ficar ou partir?

Fora sempre o tipo de pessoa de se deixar “ir na maré”, mas desta vez não via outra solução, tinha mesmo de tomar uma decisão. Só que ao fim das duas semanas que lhe tinham concedido, muito a custo, estava ainda mais confuso do que quando começara.

Fizera tudo de que se lembrara para o ajudar a avaliar a situação, mas o prazo estava o fim, tinha de dar uma resposta final daqui a menos de uma hora e não fazia a mais pálida ideia de qual seria.

Amigos e conhecidos não tinham sido de grande ajuda. Contactara todos de que se lembrara, alguns, até, que não contactava há anos, mas, infelizmente, ao contabilizar as poucas opiniões recebidas, havia tantas a favor da partida como contra.

A família, bom, essa estava farta das suas indecisões, do seu eterno saltitar entre opções ao sabor do último a falar, muito francamente a opinião geral era de que era mais do que altura de ser ele o responsável por decidir a sua vida. Tinham-se, pura e simplesmente, recusado a opinar, particularmente a mulher. Mas esta tinha boas razões para isso, ajudara-o em várias ocasiões similares no passado e depois vira-se a ser o alvo do seu descontentamento quando as coisas não tinham corrido como imaginara. E nunca corriam, inevitavelmente, porque ele nunca tinha uma visão clara do que poderia acontecer.

Como agora. Esta oferta de emprego era muitíssimo tentadora, bom salário, despesas de estadia pagas, um país que sempre quisera conhecer e, como bónus, um certo ar de aventura com que sonhava vagamente desde miúdo. Mas havia a distância, a separação da família, a falta de comunicações regulares, os maus cuidados médicos, ou antes, a ausência deles, e, acima de tudo, o possível perigo de se vir a tornar um alvo por ser estrangeiro.

Por outro lado, ficar significava manter o seu ambiente familiar e o conforto da rotina, isso se nada acontecesse à empresa que, bem o sabia, passava atualmente por um mau momento. Mas podia ser que as coisas se endireitassem, o mesmo acontecera dois anos antes sem consequências de maior, podia ser, até, que lhe oferecessem finalmente um vínculo permanente.

Rotina? Ou salto no escuro? Que decidir?

Ouviu então o comboio que vira chegar vazio, agora quase cheio, dar o sinal da partida. E foi quando se decidiu, usá-lo-ia como símbolo da sua partida iminente. Não seria, certamente, um critério pior dos que adotara no passado e podia muito bem ser que o resultado fosse bem melhor.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite





domingo, 3 de março de 2024

ALGUMA COISA PASSADA


 

Um dos rapazes que ali estava tinha sono. Era madrugada de um dia qualquer que nenhum deles se lembra mais. Ali sentados na calçada já não esperavam mais nada de ninguém nem de nada. No entanto o sangue etílico os incitava a fazer algo de inusitado que, diante da impossibilidade de realizarem, se recusavam também a ir para casa.

Aquela cidade parecia inexistir. Nenhuma pessoa na rua além dos três, que sabiam que naquelas casas havia o pulsar da vida e que talvez uma nova vida se insinuasse num coito anônimo em andamento.

Nisto chegou um quarto rapaz levado por um quinto. Cumprimentaram-se em silêncio e dali todos foram embora como que levados por um pacto sinistro que se fazem entre bêbados ou talvez pela própria ausência de perspectivas.

Naquela noite (o que restava dela) Carlos dormiu relativamente bem e o sono avançou pela manhã. Quando acordou não tinha perdido nada. Almoçou como se aquele almoço fosse o primeiro desde a sua chegada, assim fazendo tinha a impressão de que chegara naquele dia e a noite anterior não fora perdida.

Cuidou então em preparar o momento a vir. Deitou-se novamente sem ter sono ou se tinha não soube, pois não dormiu. Deitou-se apenas porque queria fugir do tempo e do tédio que o ameaçavam de aniquilamento. Mas cansou-se de tudo e saiu pela chuva, encontrando os dois rapazes da madrugada. Juntos, eles se exilaram de si mesmos numa mesa de bar reservada por concessão do proprietário que (conhecedor da mania dos três em se isolarem) queria tê-los como fregueses. A despesa que faziam era considerável.

A noite chegou e os encontrou ébrios de copos, músicas que cantaram e conversas muitas. Aproximava-se o momento e Carlos não teve tempo e nem paciência para tomar banho. Chegando em casa comeu da sopa que havia e quando foi fritar um ovo se atrapalhou: a sopa derramada na gaveta de onde fora tirar uma colher era um sinal dele e de sua vida que escorria neutra. Acabada a refeição, Carlos se dirigiu à rua depois de pegar um livro. Passando por uma padaria comprou um maço de cigarros e destinou-se a casa dela sem a certeza de que devia fazê-lo.

-- Ela não está.

-- Obrigado. Volto depois.

Carlos sentou-se numa praça aparentemente deserta nas imediações para esperar. O livro deixado a um canto do banco. Fazia uma bela noite e ele pôde verificar a lua e dois velhos que, sentados no banco ao lado, conversavam qualquer coisa a que não deu atenção. Os olhos presos ao relógio.

Não havia perdido nada até que duas mulheres (ou seriam crianças?) da janela, com seus alardes, anunciaram-no e a todos quanto houvesse, a queda de um homem na rua. Carlos o reconheceu e foi ao seu encontro, levando-o bêbado ao seu barraco sem luz e esperanças. Deixou-o na cama que ocupava todo o espaço daquele quarto. Minúsculo barraco para quatro. Seriam seis, não houvesse a morte de dois filhos por inanição. A mulher do homem e os dois filhos pequenos que restavam receberam-no sem o menor sinal de espanto.

-- Isso acontece todos os dias, disse a mulher resignada. Você sabe como é... já expliquei pra ele, mas de que adianta? Agora a pouco quando vinha, vi ele e um outro de chapéu de feltro com os copos até aqui de pinga.

Aquele homem, Zé, era subempregado de um órgão público. Pagavam a ele o que queriam e o que pagavam não era nada. Mas o Zé não podia reclamar, pois senão nem isso. Esteve algum tempo em São Paulo como empregado (quando se conseguia serviço) da construção civil. Mas foi sendo mandato embora daqui pra lá, de lá pra cá, até que chegou aqui: cidade onde nascera e que confessava gostar. Afinal tinha sua mulher, seus filhos, aquele barraco e uma fome permanente. Mas são muitos os Zés espalhados pelo Brasil que, inevitavelmente, um dia irão se juntar. Não pode estar distante este dia. A lua cheia, quase explodindo de ódio, era uma prova disso.

Carlos deixou o barraco com aquela tênue luz de uma lamparina e uma ainda mais tênue esperança de melhores dias. Mas a lamparina insistente queimava o querosene e o fogo dela há de incendiar os povos para esta realidade zé-brasileira-mundo.

Ainda naquela hora, Carlos não havia perdido nada (ou quase nada) de si mesmo. Anterior a tudo seguiu para a casa dela, Mariana. O livro na mão trêmula e esta num corpo em expectativa. Mas era sempre assim. No livro uma ligeira, certa impressão de ser ridícula, dedicatória.

-- Ainda não voltou. Deixa recado?

-- Não. Encontro-a por aí. Obrigado.

Não havia perdido nada e ainda era tempo de receber alguma coisa daquilo que, deliberadamente, ofertara. Mas Carlos não sabia. Sempre foi bastante ingênuo. Dedicou-se à essência de si mesmo e se esqueceu de tudo, inclusive da existência. São coisas indissociáveis, mas há uma ordem de precedência segundo um filósofo e que Carlos desconhecia ou voluntariamente ignorava.

Encontrou-a num lugar onde não se sentia bem. Mas tinha que ir até lá. Era onde poderia encontrá-la e ele queria encontrar-se com ela. Contrariando a intuição de Carlos, bastaram algumas palavras para ele perceber que já era tarde demais para tudo. Havia um abismo e isto era o que havia. Disse a ela algumas poucas/bobas palavras de praxe e isso foi tudo o que disse. Estava acabado.

Carlos desceu a calçada até o bar onde estavam os dois rapazes. Expôs a eles alguma coisa do ocorrido, bebeu dois copos d’água e, deixando com eles dois cheques, foi embora. Sentou-se à porta de sua casa sem coragem para entrar. Se o fizesse, haveria uma série de perguntas para as quais não tinha respostas. Estava confuso, mas não tardou muito em se recolher. Deveria viajar na manhã seguinte (se houvesse manhã seguinte, é claro). O relógio importunava-o com aquele maldito barulho. Pensou em jogá-lo fora, mas não passou daí.

No quarto, a cama de casal era demais para seu pequeno corpo, posto que já o sendo, ainda se sentia menos. Nas paredes desgastadas um quadro de uma santa já um tanto descrente de sua santidade ao vê-lo. Deteve-se por alguns instantes na foto sorridente do dia do casamento. Aquilo o reconfortava em parte. Sentiu que nem tudo estava perdido para todos, na verdade estava acabado.

Pela veneziana entrava um pouco da luz que emanava de um poste em frente. Fechou as vidraças como se fechasse a si mesmo. O cinzeiro acusava o quarto cigarro e o relógio assinalava 3 horas da madrugada. A insônia e o peso de tudo exasperavam-no. E depois aquela dívida que ele tinha. Amanhã viriam os credores a despeito de tudo. Ignoravam tudo, menos as dívidas. Mas haveria de arranjar um jeito.

O dente podre e a cabeça oca lhe doíam. Tomou um analgésico e um copo de erva-doce. Isto acalma e dá sono, disse-lhe a mãe, preocupada com os fatos evidentes da desgraça do filho, mesmo sem conhecer as verdadeiras causas que determinavam isto ou aquilo. Diabos, mas ele também não falava, não se abria. Estava arruinado e todos sabiam disso, mas não havia como ajudar.

Voltou para a cama e acendeu outro cigarro. O dia amanhecia e nada de sono. O dia amanhecera de todo.

Desistiu da viagem. Trabalhar não pôde. Esqueceu-se de tudo e pegando uma caneta escreveu no papel higiênico: “Se algum dia eu me arrepender de alguma coisa, não vou culpar a mim mesmo e nem aos outros. Não vou culpar ninguém. Vou apenas justificar-me perante as diferenças individuais”.

Leu e releu o escrito. O pensamento não era de todo ruim, mas ficou em dúvida quanto ao caráter genérico ou específico do mesmo. Usou o papel para o fim que lhe é destinado, puxou a descarga e desfalcado de si mesmo foi almoçar.