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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Juízo final



Reduzidos pelo fogo
ao carbono essencial

devolveremos ao mundo

o calor perdido






terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O caso Dodô


As referências ao estranho caso de Dodô são escassas e pouco elucidativas. Foi ao folhear números do Jornal de Anadia do ano de 1965, em pesquisas etnográficas, que encontrei uma pequena notícia no fim de uma página par. Não consigo reproduzir o texto, porque entretanto perdi a cópia, mas lembro-me que tratava de uma mulher que se tinha suicidado, após ter assistido a uma apresentação do Coro Paroquial de Arouca, no Teatro Bairradino. A notícia referia que o grupo coral carregava um histórico de outras mortes inexplicadas de espectadores e levantava suspeitas sobre uma possível influência perniciosa da soprano principal, a tal Dodô. Na altura, não lhe atribuí grande credibilidade. Sabemos bem como, por vezes, se empolam e se adulteram factos com “explicações” sem qualquer relação de causalidade.
Quis o âmbito da minha pesquisa que eu consultasse outros jornais da zona centro, algum tempo depois. O Vouzelense forneceu-me a segunda referência a Dodô: após o espetáculo coral na Casa do Povo, um homem atirou-se do viaduto ferroviário para as rochas. Não se conheciam à vítima problemas económicos ou depressivos. Desta vez, a curiosidade obrigou-me a maiores empenhos. Alarguei a minha pesquisa etnográfica ao jornal de Arouca, na esperança de encontrar outras referências a Dodô, na sua própria terra.
No Arouquense, em todos os anos de meados de 60, foram noticiados um ou dois casos funestos com espectadores do coro paroquial. Depois de vasculhar os arquivos do jornal, comecei a fazer perguntas pela terra. As memórias estavam invariavelmente “apagadas”, mas depois de ser empurrado de um lado para o outro, dei com um ancião disposto a falar. Era um ex-professor primário e tinha teorias próprias:
«Sim, conheci-a muito bem. Chamava-se Maria das Dores. Era de uma aldeia da Serra. Farta de frios e malpassar, veio para criada de servir, para uma casa dalém. Até aqui, tudo normal. No princípio da década de 60, o padre, influenciado pelo espírito do Vaticano II, resolveu criar um coro, e ela foi das primeiras a aderir.»
«O senhor nem imagina. A miúda tinha uma voz! Ia para lá do que é humano. O canto dela tocava-nos onde nada mais nos atingia. Ouvir o seu atormentado agudo de soprano solar o Stabat Mater Dolorosa, sobre os graves de mau agouro dos baixos, compungia todo o auditório. Parecia que entrevíamos o fim do mundo, cataclismos inomináveis. Inundava-nos uma angústia tão grande que se, no fim da peça, olhássemos em volta, iríamos deparar-nos com muitas faces inundadas de lágrimas. Havia quem soluçasse incontroladamente. Não me admiro que algumas pessoas não tenham aguentado e tenham praticado atos tresloucados, como diziam os jornais.»
«A música tem o que se lhe diga. Não sei se o senhor sabe, mas aquelas notas têm relações matemáticas exatas entre elas, que já Pitágoras tentou desvendar. Na Idade Média, a Música era uma das sete artes liberais que os homens ilustrados deviam estudar, como a Aritmética, a Geometria e a Astronomia. E é perigosa, sabe? Há algo de mágico e maligno naqueles doze tons. Doze, como os signos do Zodíaco. E como os apóstolos, em que um traiu. A música entra no nosso espírito sem licença, sem nós querermos. Retine e ecoa no mais íntimo de cada um. É absolutamente intrusiva, violadora, manipuladora. Nós podemos estar muito satisfeitos da vida, mas se formos atingidos pela melodia certa, podemos ficar taciturnos e sentir-nos os mais miseráveis dos humanos. Era o que acontecia quase sempre que Dodô atuava.»
No dia seguinte, rumei à aldeia de origem de Dodô, nos altos da Serra da Freita. Era um lugarejo humilde, quase miserável, encaixado numa dobra da serra, em que as habitações confinavam com currais, e as poucas pessoas conviviam com todo o tipo de detritos rurais. Consegui localizar uma prima, já bem velha, que me facultou alguma informação mais íntima.
Contou que, quando iam as duas buscar as vacas, no fim do dia, Dodô parecia por vezes embeber-se daquele silêncio global, só céu e serra, e ficava muito parada, como se contemplasse algo peculiar, que só ela via. Então, lançava um canto dorido que se estendia pela superfície do planalto escalvado, alcançava as serras mais afastadas e regressava num eco transmutado, entremeado por reverberações fantasmagóricas como miragens. Contou que, nessas alturas, toda a sua pele se arrepiava, como se uma multidão de pequenos seres invisíveis as envolvesse.
Para Dodô, aquele eco parecia funcionar como estímulo, e prosseguia em repetições de outros cantos, outros enleios, sempre tristes. Certo dia, com o eco, vieram lobos. Seis, cinzentos e de olhos amarelos. Contou que ficou paralisada de pânico, certa de estar no seu último dia, mas Dodô enfrentou os lobos, com um canto da serra, nostálgico, mas firme e destemido. As feras estacaram surpreendidas e, perante o tom enérgico e uivado do canto de Dodô, afastaram-se, dando mostras de algum receio. «Ela nunca falava nisso, mas, um irmão, um pouco mais novo, um dia perdeu-se na serra, ou caiu nalguma quebrada, e foi atacado. Quando o encontraram, estava quase todo roído pelos lobos.»
Resolvi visitar o planalto onde ambas se tinham confrontado com os lobos. Como então, o dia chegava ao fim. A aragem fria e sussurrante trazia apelos, rumores, ameaças. Em certo momento, o murmúrio cortante pareceu-me um canto humano, uma queixa dorida e muito aguda. Nunca me senti tão sozinho. Após uma luta de minutos contra a superstição e o medo, dei-me por vencido. Desatei a correr sem olhar para trás, absolutamente aterrorizado.
Abandonei ali a minha investigação da figura e da personalidade de Dodô. Nem quis visitar a sua campa. Só resolvi contar tudo isto agora, vinte anos depois, porque me lembrei do caso ao ler notícias recentes de um estranho suicídio na Serra da Freita. 

Joaquim Bispo
*

Imagem: Caspar David Friedrich, Montanhas dos Gigantes, 1835.
Museu Hermitage, São Petersburgo.

* * *





quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O NEONATAL

Vésperas de Natal, 2018.
Esperança que ânimos receberiam
panos quentes, diferenças seriam esquecidas,
certos assuntos delicados evitados.
- Vai ter Natal este ano?
- Vai, na casa da Tia Leninha. Como sempre.
- Vai todo mundo?
- Ah vai, o Natal é mágico para as crianças.
- E os adultos?
- Bico calado. Só vale falar do calor e das rabanadas.
- Hipocrisia.
- Relaxa, não vai ser diferente dos outros anos.
- Verdade. Vamos todos pelas crianças.
- Ah, detalhe: não vai ter amigo oculto.
- Tá certo. O clima está para inimigo declarado.
E chegou a noite. Todos lá. Uns falavam do Palmeiras,
outros do filme do Queen, um grupinho mais separado
comentava Spike Lee. Muitas bobices simpáticas.
Claro, havia um constrangimento no ar.
- Bonita a sua saia.
- É do ano passado.
- Que crise, hein? Mas agora tudo vai melhorar.
Silêncio.
- Esse seu tênis deve ser muito confortável.
- É. Parece que estou descalço.
- Descalço, mas com o rastro da Nike.
Silêncio.
- O que é isso?
- Gin Tonica. Voltou a moda.
- O que são essas bolinhas pretas?
- Zimbro.
- Deus-me-livre, parece cocô de cabrito.
- É de coelho. Afrodisíaco.
Silêncio,
- Você viu o show do Roberto Carlos?
- Sempre igual. Preferi o filme do reloginho da Globo.
- Muito bonito.
- Que produção!
- Sempre me emociono.
- Pena que é da Globo.
Silêncio.
- Pessoal, vamos servir a ceia.
- E os presentes?
- Depois, meu filho, sempre depois.
Tia Leninha, em sua ingenuidade generosa, apareceu da cozinha.
- Queridos, fiz um prato novo.
- Até que enfim! Uma novidade!
Tio Genilson  bateu continência para anfitriã.
Alguns morderam a língua, engoliram o prosecco a seco, outros
repetiram o gesto. Mas todos rodearam a mesa.
- Ora, vejam!
- Arroz de lula!
À primeira piadinha, seguiu-se um respostão, logo depois
a réplica, a tréplica e, claro, o charivari instaurado.
Dedos em riste, perdigotos traçantes, veias saltadas.
Não houve tempo para silêncios respeitosos.
Tia Nancy saiu com fragmentos de rabanada no laquê.
E as crianças só foram receber os presentes em casa,
dias depois.





sábado, 15 de dezembro de 2018

Bala[n]ço








Me ensinaram a chamar de alma esse lugar que dói. E me disseram que é cruz para se carregar no lombo a vida inteira a estrada que impede qualquer mudança no roteiro. Ao longo da trilha, a impotência das verdades que nos assumem devagar, subliminar e sub-repticiamente. E uns poucos bálsamos disfarçados. Pequenos alívios impedindo as têmporas do estouro final. Reprimindo o corpo das vontades de fim. Estrada comprida, fustigando os pés no caminhar ininterrupto sobre pedras sujas, feias, irregulares, pontiagudas. Vitrine de convites. Um pulo para o nada. Um frasco de químicos permitidos. Um cilindro de chumbo de ponta oca. Um talho ou dois a gume afiado. Um passo para a frente do caminhão sem freios. São machos os atalhos. Fêmea é a trilha. Que descarta os desfechos que sujam de miolos as paredes brancas ou respingam carmim no tapete do quarto. Fêmea. Como estrada / escolha / dor / solidão / realidade / rejeição / tortura / desistência. Ou como a morte, híbrida. Ou como a resistência, inútil.
Me ensinaram tantas coisas. Que chorar é na cama ou no banheiro. Eu choro embaixo do chuveiro. Mas ele chora melhor do que eu. Sem soluço. Sem nariz vermelho. Sem inchar as pálpebras. Sem pudor. Chora. Em mim. Comigo. Por mim. E em nossa pororoca desconexa, são dele as águas doces que me dessalgam as margens. Ele chora livramentos. Eu choro constrangimentos, ridículos, desatenções, afetos ignorados, amores que morreram, amores que viveram para outros amores. Até que nos calamos juntos. Exaustos. Enfim, uádis. 
Me ensinaram sobre os ventos violentos que antecedem as calmarias. Mas nunca me responderam sobre os que sopram depois. As calmarias me inquietam, emissárias de repentes. Prefiro a alma e os cabelos revirados por minuanos. Os marasmos me foram e me são enganos muito caros.  
Me ensinaram também, e muito, sobre os homens. Que me dariam amor. Que me trariam intensidade nos olhos, que me enxergariam para além das fronteiras das carnes, que me fariam poemas ou músicas, que me seriam abraço e riso. 
Foi a primeira vez que me ensinaram mentiras. 
Talvez se tivessem me ensinado sobre o sexo. Sobre as trepadas. Sobre os gemidos se sobrepondo ao vazio das palavras. Sobre os falos ávidos excursionando a vagina ávida. Sobre os roçares das bocas molhadas nos peitos duros de tesão. Sobre os sabores e cheiros das peles e dos fluidos. Sobre as partidas honestas, sem despedidas ou promessas. Sobre essas coisas fáceis de suportar.
Talvez se tivessem me dito que o amor não vem para todos. Que o amor não faz parte de algumas bulas e cardápios. Que o amor não está entre os bálsamos disfarçados nem entre os pequenos alívios.
Talvez se tivessem me ensinado a não sentir.