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quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Acordar

 


Rosa mexeu-se debaixo dos cobertores. Manteve a cabeça coberta, não queria sair para o ar que sabia estar frio. Ainda estava meio a dormir e deixou-se estar a escutar os barulhos da casa: conseguia escutar os sons na cozinha, portas dos armários a fechar e talheres e pratos em movimento. A sua mãe deveria estar a preparar o pequeno almoço, bem quentinho, que ela devoraria num ápice. Depois sairia a correr para ir ter com a sua melhor amiga, despachando um veloz “Até logo, mãe!”. E as brincadeiras e correrias, mesmo quando tinha de ir à fonte buscar a água, nos tempos em que não havia canos que a trouxesse para casa. Mas essas eram memórias antigas, o tempo em que vivia com a mãe, o pai, o avô e a avó numa modesta casinha. Já partiram todos, envoltos nas brumas da memória, há tanto tempo…

Relutante, espreitou por entre a roupa, enfrentando a luz que inundava o quarto; aquela não era já a pobre habitação dos seus pais, mas a casa que construíram ela e o marido, com grande esforço. E agora, que os filhos já tinham seguido cada um o seu próprio rumo, parecia maior que nunca. Recolheu-se de novo para debaixo das mantas e esticou a mão para o outro lado da cama, vazio e frio. “Poderia ser ele quem estava na cozinha.”, pensou, tendo a noção de ainda não ter despertado completamente, “E daqui a pouco vem aí, ver se já acordei.” No sono semiacordado viu-se vestida de noiva, cercada da família de ambos, saindo da igreja num dia de sol… tantos que eram… e quase todos já deixaram este mundo também. Olhou a sua mão pálida e enrugada e teve a noção de que também ele, companheiro de uma vida inteira, se fora. Como todos os outros, não passava agora uns quantos fios que as Parcas fiaram e urdiram quando desenharam o seu destino, entrelaçado no dele.

A imagem do seu próprio rosto liso e pele macia, de longos cabelos negros ainda estava fresca na sua memória, quando a porta do quarto se abriu suavemente deixando espreitar uma sorridente senhora na casa dos cinquenta.

— Bom dia dona Rosa. — Exclamou a recém-chegada, melodiosa. — Então, não queremos acordar hoje? Já estou cá há um pedaço, mas estava a dormir tão bem, que não a quis acordar. Sente-se melhorzinha hoje? Vamos fazer a higiene e tomar o pequeno almoço?

Com esforço, Rosa sentou-se na cama e esfregou os olhos que fitou na imagem do espelho da comoda, mesmo em frente à cama: uma octogenária, rosto enrugado e cabelo revolto branco, sentada numa cama em desalinho, devolvia-lhe o olhar.

— Vem almoçar à cozinha? — A cuidadora insistiu.

— Sim, vamos. — Respondeu com as lágrimas nos olhos. — Mas tape-me esses espelhos, que eu não quero ver essa velha!






segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

O Coro Belsonar



(Uma tragédia brasileira)


O teatro está cheio — o espetáculo promete. Aguarda-se com expectativa uma peça moderna, em moldes clássicos, intitulada “Escola sem partido”, que conta com o famoso Coro Belsonar, aplaudido em palcos seletos de todo o país. Os espectadores, inquietos e ruidosos, demoram algum tempo a acomodar-se; por fim aquietam-se e faz-se um silêncio atento. Um minuto depois, ouvem-se as pancadas de aviso.


ESCOLA SEM PARTIDO

(As luzes de palco acendem-se progressivamente, como em alvorecer, e o coro avança — uma fila vinda da esquerda, outra da direita, como panos de cena que se fechem —, alinhando-se em duas filas compactas no fundo do palco. Na esquerda baixa, uma secretária e um quadro escolar. É o cenário de uma sala de aula.

Pela direita alta, entra o professor, um homem de uns quarenta anos, barbudo, óculos de massa, de saco de lona a tiracolo.)

CORO — Já fede esse negócio de professor e alunos. A gente não precisa de professores, não precisa!

(Não dando atenção ao coro, o docente atravessa o palco, coloca o saco sobre a secretária e, de pé, enfrenta o público.)

PROFESSOR — Bom dia, galera!; tudo bem? Aproveitando a descoberta de um fóssil de dinossauro no Brasil, a aula de hoje vai ser sobre esse grande cientista que foi Charles Darwin e os seus contributos inestimáveis para a Ciência.

CORIFEU — Fala Português, cara!

PROFESSOR (ignorando o dito) — Darwin foi um cientista inglês do século XIX que, enquanto jovem, viajou pelas costas da América do Sul e aqui se deslumbrou com a variedade e a especificidade morfológica das espécies, conforme o ambiente de oportunidades e de ameaças que cada uma enfrentava.

CORO — Não entendemos porra nenhuma! Não entendemos porra nenhuma!

PROFESSOR — A certa altura, percebeu que cada espécie proliferava se encontrasse alimento suficiente, e definhava se enfrentasse condições adversas, quer por falta de alimento, quer por ameaças de predadores.

CORIFEU — Qu'isso interessa? Vai logo onde tu quer chegar!

PROFESSOR — Como cientista, recolheu centenas ou milhares de espécimes e foi anotando e desenhando tudo o que observava. Cinco anos depois, de volta a Inglaterra, dedicou-se a estudá-las e a fundamentar a famosa “Origem das Espécies”, em que defendia que todas as espécies evoluíram de um tronco comum por um mecanismo autorregulado — a seleção natural.

CORIFEU — Deus é que criou o mundo, em seis dias, e todos os animais, os que voam, os que rastejam, os que nadam. Cala essa boca comunista!

CORO (apontando os dedos em pistolinha ao professor) — Cala a boca! Cala a boca!

PROFESSOR — Esta tese, simples e elegante, mostrava que o meio ambiente favorecia as características que melhor estivessem adaptadas a ele e castigava com o desaparecimento as menos bem adaptadas. Uma pequena diferença positiva de um indivíduo, ao dar-lhe maiores possibilidades de sobreviver e de procriar, acabava por se disseminar por um maior número de indivíduos e, ao longo de milhões de anos, estender-se a toda a população dessa espécie. Quando as diferenças da nova variante se acumulavam e tornavam impossível o cruzamento com a variante antiga, estava originada uma nova espécie. Daí, a enorme variedade de espécies.

CORO — Deus é que criou todos os animais de uma só vez. Diz a Bíblia. A Bíblia.

PROFESSOR — Exatamente! A narrativa bíblica foi um dos maiores entraves a este novo conhecimento. Até a comunidade científica, que não estava isenta de preconceitos míticos, demorou muito tempo a aceitar a verdade desta tese. Mas a origem das espécies pela seleção natural revelou-se certeira, até para explicar os fósseis que desde sempre impressionaram os Homens. A Bíblia explica-os dizendo que em tempos antigos existiam gigantes...

CORO — A Bíblia fala a verdade. Essas teorias são bobagem, disse o pastor. O pastor.

PROFESSOR — Um choque intransponível eram as eternidades necessárias para que o planeta tivesse originado tantas e tão afastadas espécies, quando da Bíblia decorre que o mundo foi criado cerca de quatro mil anos antes de Cristo, uma parcela ínfima da verdadeira idade da Terra. Hoje sabe-se que há vida na Terra há muito mais de seiscentos milhões de anos, e o registo fóssil traz à luz inúmeros testemunhos de espécies que desapareceram há muito, como a do nosso dinossauro encontrado há um ano no interior de Minas, que viveu há uns 65 ou 70 milhões de anos.

CORIFEU — Deus criou o mundo há menos de seis mil anos; onde você foi buscar esses milhão de anos? Cê é burro, cara?

CORO — Cê é burro? Cê é burro?

PROFESSOR — Esta é a resposta da Ciência, uma resposta racional, muito diferente da resposta mítica, supostamente revelada por Deus aos Homens. É tempo perdido discutir a existência ou não de Deus, porque não se pode provar, ou refutar, uma entidade que, por definição, é sobrenatural, fora da Natureza, e portanto não pode ser objeto de experiências reproduzíveis, como são as da Ciência. Além do mais, costuma ofender as convicções dos intervenientes na discussão.

CORIFEU — Deus, o Senhor Jesus, não tem discussão — é!

PROFESSOR — Toda a gente pode e deve ler a Bíblia. Se a ler com olhos racionais, poderá ter um vislumbre de como os povos antigos explicavam o mundo. Desde então, muito fizeram os Homens para fazer recuar a fronteira da ignorância.

CORIFEU — Deixa eu iluminar essa tua mente confusa: A Ciência, ela mexe com teorias e hipóteses; a Bíblia fala verdades reveladas por Deus. Então, se você tem um bom conhecimento da Bíblia, isso vale mais que um curso superior! Pra que serve essas besteira que você tá falando?

CORO — Pra que serve? Pra que serve?

PROFESSOR — O conhecimento guia-nos em muitas circunstâncias da vida e pode salvar-nos. Vou contar-vos uma história: Aquando do tsunami de 2004, que arrasou as praias do sudeste asiático, uma menina inglesa, de uns dez anos, de férias com a família numa praia da Tailândia, reparou que o mar recuara uns cem metros. Recordada que na escola a tinham ensinado de que esse era um sinal provável de tsunami, avisou os pais, que, felizmente lhe deram crédito e alertaram os outros cem veraneantes que estavam na praia. Assim se salvaram cem vidas. Pelo conhecimento científico.

CORIFEU — O nosso Salvador é o Senhor Jesus. Ele guia a gente pelo vale das sombras e salva os justos das iniquidades dos perversos. Ele abomina o Mal e caras como você que doutrinam a juventude com ideias comunistas e que o melhor era acabarem no pau de arara.

PROFESSOR — A religião ainda nos há de matar a todos.

CORIFEU — Todos, não. O Senhor ama seus filhos e exerce vingança terrível sobre os que tentam corromper eles. Você vai pro inferno!

CORO (novamente apontando os dedos em pistolinha ao professor) — Cê vai pro inferno! Cê vai pro inferno!

(De cenho feroz, o Corifeu aproxima-se do professor, de trás da cinta saca um revólver e dispara dois tiros à queima-roupa. O professor desaba, em sangue. O Corifeu corre o olhar pelo público e profere, solene:)

CORIFEU — O tempo da limpeza chegou! Vamo limpar a Escola de professor comunista.

(Guarda o revólver, dirige-se para o fundo do palco e encabeça a procissão das duas filas do coro que abandona o palco cantando.)

CORO — Vamo limpá. Vamo limpá. Vamo limpá à Escola!

(A iluminação diminui para um crepúsculo de luz negra.)

FIM


O público irrompe em palmas, mas o coro não regressa a agradecer, nem a personagem professor se levanta. Passado um minuto, os espectadores olham-se atónitos, os murmúrios passam a gritos, há telemóveis a ligar para a Polícia, a pedir ambulâncias. A Polícia responde que os efetivos estão em missão nos bairros problemáticos; o Hospital diz que não tem meios, depois da expulsão dos médicos cubanos e da contenção de despesas.

Joaquim Bispo


*

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes, Saturno devorando um filho, 1819–1823.

Museu do Prado, Madrid.

* * *






quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

ALEGRIA, ALEGRIA


                                    (Revisitando  e adaptando aos novos tempos um conto do meu primeiro livro 

“30 segundos”, Ed. Publit, 2007) 


Edna Teresinha se assustou com o interfone tocando tão cedo. 

Estranhou o despertar repentino, pensou naquelas coisas quando 

somos acordados de supetão. Onde estou, que dia é hoje, quem 

deve ser? 

Há tempos, o interfone, o telefone e o celular não tocavam,

Nem se ouvia algum barulhinho de mensagem, naquele

quarta e sala em Copacabana.

Arrastou os chinelos até a cozinha, chutou o pé da cadeira 

com o mindinho, maldisse a vida. E soube, enfim, pelo porteiro, 

que havia duas encomendas.

Não se lembrava que tinha encomendado alguma coisa. 

Vestiu máscara, empapou as mãos de álcool em gel, abriu 

cuidadosamente a porta, em seguida, a do elevador. 

Estavam lá uma caixa e um sacola de compras.

Passou a mão na testa, franziu as sobrancelhas e espremeu a 

memória já claudicante para lembrar que tinha feito uma compra 

pela internet e pedido algumas bobagens ao supermercado.

Estava começando mais um despertar, um tanto diferente de outros 

dias tão vazios quanto iguais.

Jogou spray de Lysoform na caixa e na sacola, e as colocou 

sobre a mesa. Deixou as duas lá para que dessem algum sinal do que seriam. 

E partiu para passar um café salvador.

Não escovou os dentes? Não lavou o rosto? Não deu um jeito nos cabelos? 

Não. A solidão permite pular certas etapas da civilidade.

De caneca na mão, abriu primeiro a sacola. Uma garrafa de champanhe, 

um cacho de uvas verdes sem caroço e um queijo de minas.  

A hora da caixa foi mais celebrada. Finalmente, lembrou que tinha comprado 

um vestidão longo, esvoaçante e branco, sem muitos babados, sem manga, 

mas com um decote que julgara arrasador na foto da internet.

Entendeu tudo. E sorriu.

Colocou a garrafa e as uvas para gelar. Dividiu o queijo em dois, devorou 

a primeira metade. Gostava de queijo fresco com café sem açúcar, sua dieta 

era minimalista: apenas os legumes cozidos e frutas frescas que a menina da faxina deixava 

uma vez por semana, e vários comprimidos, alguns tarjas pretas, e muitos 

daqueles que prometem milagres e longa vida nos anúncios à tarde na televisão. 

Montou a tábua de passar roupa na sua minúscula sala e levou algum tempo para 

encontrar a extensão do ferro elétrico. Achou no fundo de um baú de tralhas, 

onde moram as coisas que a vida esqueceu.

Tão logo, já passava o vestido com esmero e um sorriso interior, o mesmo que 

permaneceu quando esticou cuidadosamente a roupa no sofá da sala. 

Voltou para tentar dormir. Não conseguiu. Passou o resto dia zapeando a 

TV com um pote de pipocas no colo. Só pipoca e algumas fatias de queijo branco.  

Qualquer outra coisa, acreditava, poderia comprometer a cintura no vestido. 

Quando o sol se pôs, entrou no chuveiro. Banho morno e longo, cafunés de shampoo 

e condicionador, uma gilete para fingir uma depilação devida, hidratante pelo corpo, 

antirrugas no rosto. Fixou o olhar nos olhos refletidos, simulou com as mãos uma 

esticada na pele abaixo das orelhas. Lamentou pelas plásticas adiadas, 

pela curta validade do Botox. 

Balançou a cabeça e o cabelo molhado salpicou o espelho, que lhe disse que estava 

bonita assim mesmo, sem secador, do jeito que o tempo e a circunstância esculpiram.  

Zanzou nua pela casa sem fechar as janelas por um tempo impossível de se precisar.

Às 23:05h foi à cozinha e pegou uma taça fininha no armário. Cheirou e passou água 

misturada com gelo, para tirar os sinais de pouco – ou nenhum - uso. 

Às 23:16h abriu a champanhe e serviu-se. 

Às 23:25h vestiu-se. O branco lhe caiu bem. O decote nem tanto.

Das 23:30h às 23:54h dançou, cantou, esvouou-se, rodopiou ao som da televisão que transmitia 

um show. E leve e descalça saltitou feliz até o quarto. 

Às 23:58h abriu as portas do armário. Um espelho contra o outro. 

Colocou-se no meio. Olhou para um lado, olhou para o outro, viu infinitas pessoas, 

todas de branco.

Meia noite, comeu uma uva, largou a taça esvaziada na mesinha de cabeceira, 

pulou num pé só, o direito, e bebeu na garrafa.

Mandou beijo praquela gente toda, levantou um brinde, encharcou o vestido de champanhe. 

E desejou Feliz 2021. 






terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Um amor

 


Eram cinco da manhã e o galo cantava insistente, para anunciar o raiar do dia. Estava há um ano no local e não havia me acostumado com a ideia de morar em frente a uma casa, na cidade, que, além dos cachorros e gatos, era marcada por ser a morada de tantos bichos; um verdadeiro sítio. O dono do estabelecimento, quando me encontrava, acenava para buscar algum amparo, como se estivesse, humilde, se desculpando pelas inconveniências. Ele devia ter sessenta ou setenta anos. Com a magreza substancial, não dava para inferir a idade. E aí eu me perguntava por que essa selva a céu aberto. A outra vizinha, mais chegada e comedida, me alertara que o homem morava só; que havia perdido a mulher num acidente de carro e, por isso, pensava que compensaria a amargura com os bichos. Eu não tinha a cara de chegar e reclamar as noites mal dormidas. Minha mulher, num acesso de raiva, quando o carro do dito cujo não parava de alarmar, parou na porta de casa, enquanto ele caminhava pelo quarteirão, e o abordou com rispidez, para determinar que ele cessasse os barulhos: “Todos!”; que não conseguíamos trabalhar, quanto mais dormir; e, principalmente, cuidar dos nossos filhos. Foi, com essa deixa, que ele a alertou sobre a tremenda solidão: “Minha filha, se não fosse assim, eu já teria me jogado de uma ponte… Não sei viver olhando para as paredes, impregnadas de nada”. Minha esposa achou exageração, ameaça velada, mas não quis pagar para ver o pior. A mesma vizinha, compadecida, nos infligiu uma culpa sem tamanho: “Olha, antes de vocês chegarem aqui, ele tentou o suicídio. É um homem, sempre, no limiar da loucura”. Bom, falando em loucura, emendei que faltava pouco para que nós, os de minha casa, entrássemos nalguma paranoia, com a enormidade de sons que vinham dali. Mas, ao entrar em casa, ligar o computador para trabalhar, notei a força do egoísmo que me dominava. Ainda estávamos em plena pandemia, e temos um arcabouço completo de afeto para superar os dias de clausura. Dia sim, dia não, minha mãe vinha nos visitar, com quitutes variados, “para adoçar a vida!”; uma vez por semana, era a oportunidade da minha sogra, que não poupava esforços para nos fazer felizes. A alegria que reinava em casa era ver os nossos filhos saudáveis, contentes, rebentando a opacidade e a nuvem densa de uma calamidade que rondava e levara, no último mês, seis pessoas conhecidas. Claro, trabalhando em casa, mantínhamos todos os protocolos. Nossos encontros não se davam com toques, contatos ou coisa que o valha. A distância de dois metros era respeitada. E, numa quinta-feira de setembro, pensei no homem que, em vários momentos, havia me carregado de uma raiva que nem ao menos sabia que fosse capaz de suportar. Pensei que ele, no auge de sua solidão, não teria, por vontade própria, provocado qualquer inconveniente. Era, como declarou a vizinha, “um pobre coitado”. Depois, com o passar dos dias, me inteirei, mais atento, que a vizinha ia regularmente à casa do morador solitário. Acompanhei as entradas furtivas cinco vezes, no período da manhã, logo cedo. Seria um amor que se formou na quarentena? Bom, não teriam nada a perder. Sim, perderiam se quedassem apáticos, dois solteiros, cada um em sua redoma. Estava seguro de que poderia, ali, brotar um amor. Percebi que a vizinha o defendia com a força de uma mãe, que protege o filho miúdo, contra as desventuras do mundo. Daí em diante, sobreveio uma sensação de alívio e de condescendência. O amor se faz nas formas mais imprevisíveis.





domingo, 17 de janeiro de 2021

Ausência do amor

 










sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Manteiga com Marmelada


Embora estivesse preparado para isso, a porta quase o atingiu. De todas as mulheres que conhecera, Maria Helena era a melhor a bater com a porta na cara das pessoas. Uma verdadeira artista.

Suspirando, virou-se e abriu a porta do elevador. Viera de tão longe, e para nada. Não conseguia entender a atitude de Maria Helena, como não entendera a de Susana, ou a de Gabriela, ou a das muitas outras mulheres que tinham passado pela sua vida.

Ao penetrar no forno que era a rua apercebeu-se subitamente de que era agora um homem totalmente livre. Sem emprego, sem relacionamentos e, a partir do dia seguinte, sem ter onde morar. O mundo abria-se à sua frente, com miríades oportunidades e destinos que podia escolher à sua inteira vontade, sem estar dependente de nada nem de ninguém. Mas ao contrário do que lhe era habitual não se sentia esperançoso nem excitado com este panorama, mas assustado e, até, um pouco só.

Precisava de pensar muito a sério nos passos seguintes, a começar pelo mais premente, a habitação. Era ridículo que uma pessoa com o seu estilo de vida não tivesse dinheiro nem sequer para ir passar umas noites a um hotel ou para a renda do primeiro mês de um novo apartamento alugado. Não sabia como, mas o dinheiro escoava-se-lhe pelos dedos e era raro o mês em que não se via aflito para pagar todas as despesas em que se metia.

Ao seu desconforto moral juntava-se agora uma sensação de fraqueza. Era tarde e ainda não almoçara. Por sorte estava perto de um dos seus restaurantes favoritos, mas que Maria Helena sempre detestara. Achava-o uma mistura sem sentido, cozinha chinesa e francesa no mesmo menu. Estava já à porta quando se lembrou de que não podia usar os dois cartões de crédito enquanto não pagasse parte do saldo. Meteu a mão ao bolso e contou rapidamente o pouco dinheiro que trazia consigo. Talvez desse para um café e uma sandes.

Não conseguia ultrapassar a atitude de Maria Helena. Ou a do patrão, que o despedira há duas semanas. Ou a da senhoria, que não lhe renovara o contrato de aluguer. Ou a de Gracinda, que também o abandonara. Que se passava com essa gente? Seria assim tão impossível compreender a sua filosofia de vida, o seu modo de estar no mundo?

O patrão, por exemplo. “Não cumprimento de funções!” Não esperava, com certeza, que passasse o dia inteiro enfiado num escritório a olhar para fiadas de números, quando havia tantas outras coisas para fazer. Estudar, jogar (não que fosse muito bom em desporto, mas o importante era tentar um pouco de tudo), dar passeios, eu sei lá. Produzia de facto menos que os outros, nunca cumpria as cotas, apesar de terem sido reduzidas várias vezes, mas, pelo menos, nunca lhe faltavam assuntos de conversa.

Despedido! A ideia causava-lhe tantas náuseas como a sandes meia amachucada que comprara a um vendedor ambulante.

Até custava a acreditar! Mas ontem fora o seu último dia de trabalho. E o que o chocara mais fora a completa indiferença dos colegas quando se despedira. Sempre pensara ser popular, ou, pelo menos, um deles. Ficara, contudo, com a impressão de que não deixava saudades.

A princípio recebera a notícia com indiferença. Até se divertira à custa dos ares pomposos do patrão durante o jantar com Gracinda e, mais tarde, com Maria Helena. Rapidamente arranjaria algo melhor e mais bem pago. Infelizmente os patrões em perspetiva não ficavam entusiasmados com os cursos abandonados a meio, os vários empregos de que fora despedido sem carta de recomendação, as ideias meio alinhavadas e a completa falta de capacidades comprovadas. Passara-se um mês e nada tinha conseguido.

O pior era que os credores sabiam da situação e fora obrigado a gastar todo o dinheiro que recebera para pagar algumas dívidas urgentes. Nem dinheiro lhe ficara para comer e no fim do mês tinha o problema dos cartões de crédito. Não deixava de ser irónico. Ontem, marisco e vinhos caros no melhor restaurante da cidade. Hoje, pior que um mendigo) estes, pelo menos, não devem a toda a gente).

Sentindo-se pior deitou fora o resto da malfadada sandes. Não chegara, sequer, a descobrir de que era. O melhor era voltar para casa, enquanto ainda tinha uma.

Esse era um outro ponto que não compreendia. Mudara-se para aquele apartamento de luxo porque era exatamente o tipo de local onde sempre sonhara viver. Carote, é claro, mas do melhor. Porteiro (dia e noite), piscina, ginásio, serviço de limpeza, enfim, uma vida descansada. Havia regras, é claro, dúzias delas. Nada de animais, festas só depois de informar os vizinhos, informar o porteiro sobre possíveis visitantes, código de vestuário em público, enfim, um nunca acabar de imposições. Concordara com a senhoria quando esta lhe dissera que eram essas regras que mantinham o nível do prédio. Mas...

Mesmo assim não havia razões para não lhe renovarem o contrato. Só porque quebrara uma ou outra regrazita (a megera da senhoria insinuara que tinham sido todas e algumas em dose repetida) não via porque não podia continuar por ali. Não tinha dinheiro para a renda, é claro, mas isso só viria a ser problema depois de seis ou, com alguma sorte, sete meses. Em vez disso estava na rua. Literalmente. Incrível!

Apesar do calor apressou o passo. Ainda não começara a empacotar as coisas e precisava, pelo menos, das roupas se tinha esperanças de encontrar um quarto algures sem pagamento prévio. O resto teria de ficar, pois não tinha onde guardar a tralha que acumulara num ano. Ainda se ao menos pudesse vender algumas coisas! Faria bom dinheiro, pois era tudo da melhor qualidade e de um bom gosto impecável. Ou o melhor, ou nada, era o seu lema. Mas nada estava totalmente pago e não precisava de acrescentar problemas legais à longa lista das recentes desgraças.

Distraído com os seus pensamentos por pouco não era atropelado por um camião. Insultou vagamente o motorista, embora a culpa fosse totalmente sua. Mas insultar motoristas sempre o pusera de boa disposição, embora ficasse furioso quando o insultavam de volta. Mas desta vez não resultou.

Que ideia tão parva tivera em visitar Maria Helena. Depois da última conversa, ou antes, discussão, as hipóteses de reconciliação eram diminutas. Mesmo assim tivera esperanças de a conseguir convencer a aceitá-lo de volta. Ensaiara discursos, olhares suplicantes e expressões contritas. Mas não tivera tempo de os experimentar. Assim que vira quem ali estava, Pum! O prédio até estremecera com o vigor daquele bater de porta!

E gastara a última nota no táxi em que atravessara meia cidade. Agora nem para o autocarro tinha.

Maria Helena estava fora da equação. E Gracinda? Sempre lera que as mulheres em vias de se divorciarem passam por fases de sentimentalismo, de anseio pelos “bons velhos tempos”. E se falasse com ela? Talvez fizessem as pazes e arranjasse um tecto para os dias seguintes. Havia, é claro, a ordem do tribunal mantendo-o afastado da casa da em breve ex-mulher. Nunca percebera bem porquê. Serenatas às duas da manhã, telefonemas contínuos, súbitas aparições no emprego, nos restaurantes ou no médico talvez pudessem ser considerados um pouco excessivos, mas, uma ordem do tribunal? Tudo o que pretendera era que a mulher desistisse da ideia do divórcio e que voltassem a viver juntos.

Divorciarem-se por causa de Maria Helena! Francamente! Sempre tivera uma amante, desde a primeira semana de casados. Nessa altura amava perdidamente Gracinda mas isso não o impedira de se entender com Odete, a empregada da loja de vídeos. E essa fora apenas a primeira. Não era promíscuo, nada de escapadelas momentâneas, por muito desejável que fosse a mulher. Uma de cada vez, e durante o máximo de tempo possível.

Mulher, amante, as duas faces do casamento, pelo menos do modo como o entendia. Cada uma tinha o seu cantinho na sua vida e nada lhe dava mais satisfação do que passar de uma para a outra. Pena que as coisas não durassem. Mais cedo ou mais tarde a amante começava a exigir mais, (mais tempo, mais disponibilidade, mais compromisso), e a relação acabara.

Mas Gracinda só agora descobrira não ser a única mulher naquele casamento. Felizmente só soubera de Maria Helena. Fora o suficiente para exigir o divórcio. Estranhamente, isso levara à rutura com Maria Helena. Sempre soubera que era casado e nunca o pressionara sobre esse ponto. Parecia que finalmente conseguira a tão desejada estabilidade, com a mulher em casa, satisfeita com o casamento, e a amante na outra casa, contente com a sua situação. O divórcio estragara tudo. Não só perdera a mulher como começara a ser pressionado pela amante para se casarem, “agora que estás livre”. Daí a discussão e a rutura.

Chegara, finalmente, a casa, cansado, suado e esfomeado. Ignorando os olhares de soslaio do porteiro de serviço entrou no elevador e subiu até ao seu andar. Colado à porta estava um aviso da senhoria lembrando-lhe que devia sair até ao meio-dia seguinte. Irritado, amarfanhou-o e atirou-o para o chão, quebrando mais uma regra.

Chuveiro ou comida? Sentia-se esfomeado, mas não seria capaz de gozar o que quer que fosse antes de se lavar e mudar de roupa. Tresandava.

Foi de espírito mais feliz que se dirigiu para a cozinha em busca de alimento. Não esperava grande coisa, pois sempre comera em restaurantes (pelo menos até ter problemas com os cartões). Mas sempre devia haver pão e qualquer outra coisa.

O pão era de há dois dias, mas uma passagem pela torradeira e ficaria ótimo. Enquanto tratava disso abriu a geleira. Estava quase vazia. Retirou o pacote de manteiga, quase no fim, e pôs-se em busca de mais qualquer coisa que lhe pudesse adicionar. Era um hábito que sempre irritara Gracinda e também Maria Helena e as outras. Nunca se satisfizera com uma simples fatia de pão com manteiga. Tinha de lhe pôr algo mais: fiambre, queijo, azeitonas, enfim, o que houvesse à mão. Às vezes saíam as misturas mais estranhas. Mas só manteiga é que não.

Sempre fora assim. Em miúdo era a avó, uma mulher enérgica e despachada, que tratava dos lanches dos inúmeros netos quando estes saíam das respetivas escolas e esperavam em sua casa que os pais os viessem buscar. Sentavam-se todos em torno da bem polida e enorme mesa da cozinha, já decorada com os copos de leite que tinham de beber até à última gota. Depois vinha a pergunta sacramental: “Queres o teu pão com manteiga, ou com marmelada?” Marmelada feita em casa, já se sabe, que a avó Cremilde não gostava “dessas mistelas que se vendem por aí e que nem sabemos de que são feitas”.

O mais velho respondia e recebia a dose pretendida, preparada mesmo ali à sua frente. Um a um todos indicavam a sua preferência. Havia-os de todos os tipos. Os fanáticos da manteiga, os fanáticos da marmelada, os que variavam, com regra fixa (um dia uma, no seguinte a outra) ou ao sabor da ocasião.

Os problemas começavam sempre quando chegava a sua vez. Em vez de escolher, dizia sempre: ”Quero manteiga com marmelada”. E rebentava a habitual tempestade, a que já nem prestava atenção. Segundo parecia querer as duas coisas denunciava mau caráter, egoísmo, ganância, e muitas outras coisas do mesmo género. “Hás de acabar preso (ou assassinado, conforme a disposição do momento)”.

As consequências também eram sempre as mesmas: ficava só com o leite!

Nunca conseguira perceber porque era um crime tão grande escolher manteiga com marmelada. Ainda hoje não entendia o problema. Se havia das duas coisas, porquê limitar-se só a uma delas?

Agarrando na sandes de manteiga com sardinhas de conserva que entretanto preparara dirigiu-se para a que ainda era a sua sala. Estava na hora do seu concurso televisivo favorito e não tencionava perdê-lo. Emalaria as suas coisas antes de se deitar ou durante a manhã. Ou até durante a tarde, dando uma desculpa qualquer à senhoria. Sim, não havia pressas. Alguma coisa se havia de arranjar.

Luísa Lopes






domingo, 3 de janeiro de 2021

EXPURGO

hoje eu mordi 

um chumaço de 

papel higiênico 

para estancar 

(ou tentar conter) 

o sangramento 

da língua dilacerada: 

como um cadáver 

antecipado que devora 

o seu próprio sudário.