Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Colcha de Retalhos #14

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


INSATISFEITA

- Você é a melhor coisa que já aconteceu na minha vida!
- Está me chamando de coisa?




ESPETÁCULO

A noite de estréia é um espetáculo. Mágico, incomparável.
As noites seguintes já não têm o mesmo encanto. Os sorrisos já não são mais os mesmos.
Algum tempo depois, ela junta as tralhas e toma outros rumos.
Paixão itinerante.




EMBRIAGADO

Todas as coisas e idéias tendiam para a esquerda
Depois, inclinaram-se um bom tanto para a direita
Então rolaram para o centro e por ali ficaram
No equilíbrio frágil de uma mesa de boteco
O álcool e a política têm efeitos semelhantes




BAILE DE MÁSCARAS

Nenhum dos dois conseguia se envolver, desenvolver confiança, intimidade, cumplicidade - esses detalhes que sustentam um relacionamento. Sabiam que era coisa de uma noite, uma semana, com sorte, um mês.
Mas, estavam decididos a tentar, vestir as máscaras e ver até onde a mentira os levaria.
E levou longe, até que a morte os separou.






segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Vida que segue no face

é tanta vida cá dentro
que nem mais saio lá fora

vi uma amora florindo
curti o tombo da tia
foto do chefe sem sunga
viral do gato atrevido

receita sem leite ou glúten
vídeo de alguma verdade
troca de delicadezas
ruídos disseminados

quem faz um milhão de amigos
carece sair da toca?
basta teclar um sorriso
postar a selfie e hashtag

filho namora sem beijo
obesidade chegando
mulher se gruda na rede
jantar à mesa não rola
bebê chorando no berço
tem o bumbum todo assado
e viva a ciberfamília
que não conversa nem briga

não há mais olho no olho
a bike tá encostada
piscina fica vazia
realidade esquisita
confinamento de dores
suor, saliva, temperos
delícias abduzidas
o vício que me consome

partilho tanto cá dentro
que nem sei mais ser lá fora

#vidaquebrilhanoface
#vidadefatoquemirra


Maria Amélia Elói





domingo, 25 de outubro de 2015

O segredo do retrato de Mário Soares



O visitante comum que percorra a galeria de retratos do Museu da Presidência encontra o que espera: um enfileiramento de grandes retratos de figuras sisudas, solenes, um pouco ameaçadoras até, dos presidentes da República Portuguesa, durante o século XX. Essa é a formulação a que o visitante está habituado e a que a magnitude do cargo parece exigir.
Então, surge-lhe o retrato de Mário Soares, que rompe com a lógica hierática dos retratos e choca violentamente com as representações anteriores. O retratado mostra os dentes, sorri, tem um ar bem disposto e descontraído, parece contar uma anedota, falar para o observador.
Muitos visitantes e alguns críticos têm reprovado esta formulação do retrato de alguém que foi Chefe de Estado e, embora reconhecendo a bonomia do retratado, prefeririam um retrato mais austero. No fundo, um Chefe de Estado é mais do que si próprio, é a figura da Nação, e, se um anónimo se pode fazer retratar em pose informal, uma figura que tenha exercido aquela alta responsabilidade deve, a bem da dignidade dos símbolos da pátria — como o hino e a bandeira —, apresentar maior compostura.
Embora contrafeito, o visitante comum desculpará a irreverência, que atribuirá a ideias modernistas do retratado. Sobressairá uma imagem de homem portador de uma mentalidade arejada.
Mário Soares é uma figura incontornável da política portuguesa. Representou um papel importante na organização de fações socialistas antes do 25 de Abril de 74 e foi determinante no rumo da política do país no pós-25 de Abril. Foi Primeiro-ministro e Presidente da República. É neste cargo que é retratado por Júlio Pomar, para ficar representado na galeria dos presidentes, tal como os anteriores. Tudo isto sabe, previamente, o visitante avisado. Mas também sabe que, ao longo da História, muitas obras de Arte, para além de leituras óbvias, podem manter incógnito, debaixo dos olhos do espectador, algum “segredo” que as revelasse e explicasse. De Júlio Pomar, em cujas obras já terá entrevisto mensagens escondidas, o visitante avisado só pode esperar desafios interpretativos. Por isso, aplica-se a analisar a obra que tem perante si.
A figura de Mário Soares é bem reconhecível no retrato, apesar de não estar representada de forma naturalista. O rosto está tratado com mais cuidado do que o resto do corpo. Reconhece-se o sorriso, a testa alta e desimpedida, a forma especial dos olhos, as bochechas. O rosto não é o de um retrato típico, mas não deixa de refletir a postura de bonomia de Mário Soares, que olha o interlocutor nos olhos, sem preconceitos. Apresenta a atitude de bom conversador, disponível para o gracejo e para se entusiasmar com o discurso do outro. O braço direito gesticula animadamente, como um orador inflamado. Mas sorri. Parece ocupar uma posição sobranceira ao interlocutor. Inclina-se para a frente, em atitude de aceitação e entendimento com o outro. Traz à memória a estátua do poeta Chiado, instalada no largo do mesmo nome. Só que, em vez de um banquinho, Soares está instalado numa cadeira muito especial. Relacionando a figura, a função e a forma da cadeira, reconhece-se-lhe o caráter marcadamente associado ao poder, devido às duas cabeças de leão que ostenta nos braços. São sinais não casuais.
Todos os poderosos gostam de se associar ao rei da selva. O poder usa o retrato como mais uma ferramenta de afirmação e legitimação. A envolvência do retratado afirma o seu poder, o que a expressão fisionómica nem sempre consegue.
O quadro vive, sobretudo, da mancha — no fundo, na roupa, até no rosto. A linha surge de maneira pontual para marcar alguns elementos mais caracterizantes — os olhos, a boca, a linha de delimitação das bochechas. Nos outros pontos onde é utilizada, serve mais de elemento para texturar áreas do que para desenhar fielmente. Até nas mãos a linha perde caráter definidor.
De que falará ele com tanto entusiasmo? É um político, um socialista. A mancha rosa que espalha com a mão direita não deixa dúvidas. Mas trata-se de uma mancha informe, um esboço, uma ideia. Fala dela sem fazer um desenho rigoroso. É uma ideia que não se sabe como pôr em prática, um sonho, uma utopia. Lido assim, o retrato fala.
E a mão esquerda, o que faz? Aponta rigidamente para si próprio. Contrasta fortemente com a direita, que é mais natural em alguém que fala para outrem. Esta mão esquerda está colocada numa posição estranha, inesperada. Conterá alguma pista para leituras alternativas?
Então, reparando com atenção, percebem-se dois ou três riscos curvos à frente da ponta do indicador da mão esquerda, recurso muito utilizado pela banda desenhada para sugerir movimento. O dedo abana lateralmente. Indica um “não”. O visitante avisado, em alerta, recupera instantaneamente uma frase marcante do PREC: “Olhe que não! Olhe que não!”
O olhar descobre agora que a cor da manga esquerda é diferente da do restante fato. A convicção instala-se: o aparente braço esquerdo de Soares, não é um braço dele, é de Álvaro Cunhal. O retrato, mais que marcar para a posteridade a fisionomia de Mário Soares, lida pelo artista, plasmou um momento marcante da história de Soares e do país, quando os dirigentes dos dois partidos mais poderosos se enfrentaram perante as câmaras da RTP em 7 de novembro de 1975 — faz agora 40 anos. Soares acusava Cunhal de pretender a instalação no país de um regime ditatorial comunista, ao que este respondeu daquela forma que entrou nos ditos populares e que Pomar — o maroto do Pomar! — fixou em pintura. O quadro fala.
Soares foi muito importante em vários aspetos da vida política do país, mas vencer o Partido Comunista em 75 foi a sua coroa de glória, pela qual foi glorificado interna e externamente. Não custa admitir que o próprio Soares goste de se reconhecer e ser imortalizado naquele episódio, se é que tomou conhecimento ou consciência dele no quadro. Como não? Pomar e Soares são amigos desde que, presos pela PIDE, foram companheiros de cela em Caxias, em 1947.
Pomar encostou Soares ao seu lado esquerdo, para que o seu braço esquerdo ficasse invisível. Em sua substituição colocou o antebraço esquerdo de Cunhal. Em termos de organização espacial está genialmente estruturado, e em termos ilusionísticos funciona.
O visitante avisado, satisfeito com um primeiro aparente êxito hermenêutico, sente-se tentado a enveredar por muitas outras especulações sobre a obra visitada. Soares é poder no momento da pintura e é poder no momento do episódio: dominava o governo e boa parte das forças armadas. O braço direito da cadeira parece cercá-lo. Ou defendê-lo. As cabeças de leão estão tratadas de forma bem diversa: a do braço direito é bastante naturalista, como o gosto naturalista da direita social; a do braço esquerdo, muito esquemática, faz lembrar o modernismo estético das correntes de esquerda. O rosto do leão da direita faz lembrar os rostos severos, bigodudos, dos militares da velha guarda, a que não falta um reflexo vítreo de monóculo; o da esquerda, as representações cubistas.
A escolha da cadeira com dois leões nos braços não foi inocente e o desigual tratamento de cada cabeça indica, seguramente, um enquadramento do retratado, talvez político, talvez social, talvez global. Mantém-se destacado da direita conservadora e da esquerda utópica. Talvez apenas possibilidades de que pode dispor, em que se pode apoiar, mas não usa. O seu não-alinhamento fica evidenciado. O visitante avisado trava agora a deriva especulativa ao reparar no vermelho inquestionável do braço direito da cadeira. Terá sido usada a referência topológica da Assembleia da República? Será uma referência internacional? Ou nem tudo tem de ter simbologias?
Parece ter havido a intenção de mostrar uma faceta de relação descontraída com o poder, até para contrastar com a pose hirta do seu antecessor e rival Ramalho Eanes. No entanto, parece poderem lá ser lidas fortes referências ao poder e às suas lutas políticas, especialmente o episódio televisivo de 7 de novembro de 1975. E o que é que o maroto do Pomar nos mostra ainda — aceites as leituras anteriores —, ao organizar os elementos formais daquela maneira? Que Soares, mesmo no auge da luta política, não argumenta para o seu adversário, não se vira para ele; exibe-se para a câmara de televisão, para os espectadores, para os eleitores. Acentua o seu lado solar, vaidoso, teatral. Neste sentido, o retrato de Soares, para além da representação fisionómica inconfundível e da fixação de um episódio político marcante, faz uma leitura psicológica do retratado. Maior completude não se pode esperar. Só lhe falta falar? Nem isso! Este retrato comunica muita coisa — praticamente, fala.

O visitante avisado acredita que esta obra apresenta sinais de estranheza, como outras tantas pistas a serem investigadas e talvez desvendadas, no entanto, toma consciência das limitações das interpretações, como áreas de leitura incerta, para cujo conhecimento talvez só valha uma atitude de escuta silenciosa da obra, que pode ou não deixar intuir ressonâncias, se não de verdade, pelo menos de verosimilhança. 

Joaquim Bispo

* * *
Imagem:
Júlio Pomar, Presidente Mário Soares, 1992.
Óleo sobre tela, 174 x 140 cm.
Lisboa, Museu da Presidência da República.

* * *





sábado, 24 de outubro de 2015

SÉRIE: TROVAS PREMIADAS (I)






quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Deve ser o frio

Anda, como todas as plantas da casa, meio murcha, negando verde, desistindo de esticar folhas e caule. É claro que falta sol. Mesmo quando as peças se amarelam e esquentam porque é dia leve lá fora, é sem nuvens e é de algum vento capaz de sacudir as cortinas e as energias viciadas e encalhadas nos cantos dos cômodos, falta sol. Está, como todas as plantas da casa, ressequida, com a pele quebradiça e boa parte do corpo dando defeito. O blusão colorido e o batom vinho para sempre na boca não dão mais jeito. Não disfarçam. Não distraem. Não aliviam. Deve ser o frio.

Deve ser. O frio. Assemelha-se, e não vagamente, aos peixes que tentou criar sem sucesso anos atrás. Queria os dourados, barrigudos, de olhos arregalados, circulando no aquário ao redor da folhagem plástica e do termostato, mas também acolhia os que se reproduziam rápido, os que faziam faxina entre as pedras e os que tinham nadadeiras longas. Criar peixes é uma agonia. E um exercício filosófico constante. Perdeu um a um até entender que não há paz possível em se brincar de Deus. Parece que aprendeu os comportamentos dos bichos e agora os repete, todos ao mesmo tempo: nada sem rumo e não vai a lugar nenhum, come o que cai na frente da cara, sofre das doenças de inverno – inevitáveis os pontos brancos – e sobe à superfície para se encher de ar quando o ambiente fica insuportável. E isso é tudo. Vai resistindo conforme oscila a temperatura. O frio, deve ser.

Tem, e não por preguiça, um sono que só aumenta e a pega de segunda a segunda, à noite, pela madrugada, e por último também nos intervalos da rotina. É chegar em casa que os ombros pesam, o barulho do apartamento vizinho espeta os ouvidos e qualquer assento chama. Não precisa ser cama com edredom, o sofá é suficiente e abraça seu metro e meio todinho. Vale cadeira, vale banco de ônibus, valem as costas apoiadas na parede e até os olhos abertos. É prestar atenção para ver que o corpo permanece, mas a vida voou dali sabe-se lá para onde. O bom é que volta. A vida volta contrariada, mas volta. Deve ser só o frio.

Ouviu mais cedo, e não por escolha, que em tanto tempo de profissão aquela voz vestida de jaleco com flores bordadas na gola jamais viu quem se recuperasse de um 10 F32, som de alegria insistente e velha entrando pelas orelhas blá, blá, blá, não fazia sentido, como não faz sua garganta ardendo e seus pés gelados, apesar de duas meias soquete sobrepostas. Mais cedo chovia e era cinza por todos os lados, na mesma medida fora e dentro, e ela pensou que estava em casa, que tinha enfim compreendido, que tudo em si combinava com tudo ao redor, que havia sintonia e coerência entre a rua molhada, glacial, e os seus cabelos pingando água do céu, e, bem, era bonito aquilo tudo assim: o passo cabendo na calçada e o sentido, de repente, da possibilidade de rédea na mão outra vez. Mas não. Certezas ditas dentro de salas iluminadas e aquecidas artificialmente são de uma convicção desoladora. Talvez não haja cura para ela. Deve ser, mesmo, o frio.





quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Caro Amigo Fred

Antes de tudo, queira desculpar-me por escrever-lhe esta carta tanto tempo após o acontecido, mas você há de convir que fui pego de surpresa pelo desenrolar dos fatos e só agora me sinto em condições de relembrar todos os momentos que juntos passamos. Nada como o tempo para cicatrizar tristezas e fazer germinar alegrias.
Lembro-me bem do dia em que o vi pela primeira vez. Mal desconfiava que, algumas horas depois, você já estaria instalado em minha casa. Logo que lhe avistei, saído do ninho em sua inaugural excursão junto com seus outros dois irmãos no telhado da fábrica que dava para a varanda do meu apartamento, desconfiei que você, amigo Fred, era o mais levado do trio e daria muito trabalho à sua mãe. Você não curtiu cinco minutos em liberdade, caindo pela fresta que existia no teto da loja abaixo de casa. Como já era fim de expediente e o estabelecimento estava fechado, você miou por toda a noite. Miado de filhote, assustado, temeroso do desconhecido e do desamparo.
No dia seguinte, eu fui resgatá-lo, lembra-se? Meu plano era devolvê-lo ao telhado, mas, apesar de estranhar o local,  você me conquistou e foi ficando. Com dias de convívio era praticamente o dono da casa e, já que insistia e permanecer junto a nós, que ao menos tivesse um nome. Frederico José, nome de imperador, Fred para os íntimos.
Curti por demais suas brincadeiras de filhote, como a de se atracar com o meu braço que, por consequência, vivia arranhado. Você ainda desconhecia o poder de suas garras, mas com o passar do tempo soube domá-las. Meu braço agradeceu sua disciplina.
Quem disse que gatos são indiferentes aos seus donos?  Se a afirmativa estivesse correta, você, Fred, possuía então alma de cão. De fidelidade canina, sempre ao meu lado em casa, varava madrugadas deitado sobre a minha impressora enquanto eu trocava a noite pelo dia em salas internéticas de bate papo. Era divertido abrir a porta da casa e você vir receber-me, revelando haver passado o dia dormindo eu seu gesto de espreguiçar-se.
Fatos pitorescos envolveram sua curta existência, meu amigo, como aquele em que, durante sua primeira ida ao veterinário, o mesmo, ao examinar sua genitália, declarou solenemente: “é uma fêmea”. Por dois meses você foi chamado de “Frida”, até os testículos aflorarem, revelando sua masculinidade.
Ou quanto você “surtava”, correndo de um lado a outro da casa, subindo nas camas e nos encarando com um olhar ao mesmo tempo brincalhão e assustador? Durante seus surtos, eu tinha a impressão de ter um tigre, um puma ou pedaço da selva dentro do meu apartamento.
Imaginei que conviveria no mínimo dez anos com você, caro Fred. Durou um ano e meio. Gatos em geral morrem de forma violenta, diziam. Eu não acreditei.
Ficou a lembrança Frederico José, doze anos depois, tornada pública.
Do seu amigo,
Zulmar Lopes





terça-feira, 20 de outubro de 2015

O GIGANTESCO TORMENTO DE DOROTEIA

Doroteia sempre teve medo de anão.
Desde muito criancinha.
Uma vez, estava num elevador público com a avó. Entra um anão.
- Né neném não, né Naná?

Foi sua primeira manifestação da fobia, que a persegue a vida inteira.
Na infância mais madura, foi uma sequência de oportunidades perdidas.
- Vamos ao cinema, Doroteia?
- Ver o quê?
- Branca de Neve.
- Não vou.

No aniversário da amiguinha.
- Quem são aqueles bichos enfeitando a mesa de docinhos?
- Gnomos, filhinha.
- Vamos embora.

Na adolescência deixou de ver Willow na Terra da Magia, com a turma do colégio.
- Aquela sociedade que só tem anão? Tô fora.

Já adulta, um amigo a convidou para uma festa num barco. No melhor estilo Ilha da Fantasia, 
o amigo produziu um anão vestido de marinheiro para receber os convidados no cais. 
Por pouco não levou um tapa e caiu dentro d’água. Doroteia esteva a beira de cometer um crime.

Uma vez quase cometeu. Havia um anão flanelinha na porta do saudoso Real Astória no Baixo Leblon e Doroteia teve um impulso assassino de dar marcha a ré sobre ao cidadão que estava ali ganhando uns trocados. Foi contida a tempo pela razão e bom senso. Sorte dela e dele. 

Trintona, profissional, casada e com filhos, engoliu seu medo que a atormentava para não 
passar para as crianças. Recusava-se a ler ou ouvir qualquer notícia sobre o escândalo dos anões do orçamento. Mas circo, filme ou teatrinho com anão era função do marido.

Soube por alto que haviam proibido na Inglaterra a indigna modalidade esportiva Arremesso de Anão e que muitos anões arremessados - com todos os dispositivos de segurança, claro  - protestaram por perderem o ganha-pão. Doroteia se enterneceu, mas não esticou assunto.

Um sábado sem marido foi na despedida de solteira de uma amiga num daqueles shows de streaper masculinos. Belos rapazes, belos corpos, belos músculos, belos órgãos. Até que surgiu um anão. 
Doroteia se desesperou. Saiu porta afora da boate e pegou um táxi
Correu risco. Ainda bem que o motorista não era anão.

Uma madrugada, acordou com um barulho estranho na sala. Era o marido insone que assistia a Game of Thrones, quando bem na telona aparecia o anão Tyrion Lannister. Doroteia mandou o controle remoto na televisão. Charivari no casamento, crianças acordando chorando, imenso prejuízo e 30 gotas de Rivotril para sossegar. 15 para cada um. 

Doroteia se açoitava com a fobia. Seria preconceituosa? Destrambelhada? Politicamente incorreta? Iminente criminosa? Assassina enrustida? Potencial psicopata? Teria sido traumatizada na tenra infância?

Submeteu-se a uma sessão de hipnose.

Voltou ao tempo. Dois anos de idade. Viu-se subindo nos dedinhos gordos, 
alcançando a maçaneta do quarto dos pais e pronto. O trauma de cena primária? 
Pai e mãe gemendo um sobre o outro? 
Nada disso. O casal assistia a um filme pornô, onde um anão 
de tênis sodomizava uma cabrita.

- Foi isso. Não posso carregar esse trauma vida afora.

Procurou um psicanalista.
Na surdina, não queria que ninguém soubesse que precisava de tratamento. 
Não pediu indicações a ninguém, não se aconselhou com seu clínico, nem com seu marido, nem com o ginecologista. Abriu o catálogo do plano de saúde e foi com a cara e a coragem.

Um fim de tarde, de óculos escuros e lenço na cabeça, bateu na porta de um consultório: Dr. José Luiz Arrabal Cartagena, psiquiatra e psicanalista. 
Estufou o peito e entrou. É hoje.

Seguiu-se um surto. Chamem a ambulância, tragam uma camisa de força. 
Perdeu estribeiras e sapato.
O psicanalista não passava de metro e meio.








domingo, 18 de outubro de 2015

O meu Che

Para Silvana

O meu Che não é humano, e sim um gato que, agora, está no fim de sua longa vida de 15 anos e que, nos últimos dias, esteve muito, muito perto da morte. Há pouco mais de um mês foi parando de comer, e alimentá-lo tornou-se algo muito difícil. Ora aceita uma coisa, mas bem pouquinho, depois não mais, e é preciso descobrir o que ele vai conseguir comer. E assim o gato que já foi tão imenso e gordo, mal cabendo em meu colo, está magrinho e diminuto. Diminuiu tanto a ingestão de alimentos nessa semana que a veterinária falou que eu me preparasse, a hora estava chegando. E é aí que tudo aquilo que com facilidade orientamos para as outras pessoas cai por terra. Que percebemos o quanto um bichinho de estimação é muito mais do que um bichinho de estimação.
Acontece que sua existência mescla-se à nossa de tal forma que a ameaça dessa imbricação se romper é avassaladora, uma desestruturação profunda. O Che é muito mais do que esse gato cuja cara parece desenhada à mão, tamanha a beleza dos traços felinos, com seus longos pelos de cores variadas, em tons difíceis de definir, meio dourado em certos momentos, acinzentado em outro, sempre vestindo luvinhas brancas. Eu olho para ele e o que vejo é também a sobrevivência de uma Marina que não sou mais, ao menos não mais com exatidão. Uma Marina de quinze anos atrás, que fez questão de nomear o gato como Che, que temia a forma como os seres humanos parecem sempre destruir as poucas experiências de transformação e generosidade que já foram feitas neste nosso mundo, mas que ainda assim achava que de algum jeito era possível mudar, revolucionar. Uma Marina que quase que reverenciava todos que pegaram em armas, em sua pureza, para transformar o mundo. Que tinha menos compromissos, apesar de tantas tarefas a cumprir, que era mais solta, mais ingênua, mas também tinha muitos receios. Que era mais jovem. Que queria muito escrever e não parava de iniciar textos, mas tinha muito medo também, por isso os guardava, interrompidos, e quantas, quantas foram as vezes em que os destruía.
E que levantava da cama às cinco e meia, mesmo tendo ido dormir à uma ou às duas da manhã, acordada pelo miado do gatinho que conseguia subir na árvore em frente à casa, de lá pular para o telhado, andá-lo todinho e ir para outros telhados, mas não conseguia voltar sozinho. Para pular do telhado para o galho e descer pela árvore, ele teria de dar um salto para cima, para um lugar mais alto, e simplesmente não tinha coragem, apesar de assistir à sua professora, uma linda gata preta de coleirinha vermelha que morava na clínica em frente à minha casa, desenvolver o movimento com facilidade e precisão. Então ele ia até o fundo do telhado comprido, alcançava a laje, mais baixa e que ficava sobre a área de serviço, e de lá miava pedindo ajuda.
Sei que era o fim, mas eu não conseguia fazer de outra forma. Acordava, levantava, pegava uma escada e a encostava do lado de fora da janela da cozinha. Punha então um pé e depois o outro sobre a grade, dependurando-me (o pé-direito da casa era muito alto, o imóvel era de 1922) e então catando o Che pelo cangote, para então voltarmos, eu e ele, ao chão. E muitas eram as vezes em que ele resistia, tinha medo, e eu tinha de atraí-lo com comidas e petiscos, fazer artimanhas.
As pessoas achavam que era preciso dar um basta, por isso um dia o deixei lá em cima, quase tendo um troço de tanta pena, a ver se ele aprendia a descer sozinho. Passou um dia e uma noite lá. Eu pus comida em cima da laje e só não o tirava porque me sentia constrangida a ser firme no processo educativo. Enfim ele desceu. Sozinho. Mas não pela árvore, e sim dando um salto de fato imenso, da laje ao chão. Um salto que fazia um barulhão quando ele pousava as patas no piso de cimento do quintal, e que me fazia temer por elas, patas – aos nove meses ele tinha sido gravemente atropelado e, além do pulmão perfurado, fraturara o fêmur, que havia ficado tão moído que exigiu a colocação de um grande pino que está com ele até hoje. E se o pino se mexesse com um salto tão grande, num gato pesado como ele era? E se a pata tivesse novo problema?
Felizmente não teve, e assim passaram a ser as descidas do Che de seus passeios noturnos, os quais permaneceram, mas tiveram seu raio de alcance diminuído depois que ele ficou com uma febre misteriosa e que os veterinários da USP suspeitaram fosse o que até então eu nunca nem tinha ouvido falar: Aids de gato. Não era, mas depois dessa decidi que havia mais que passado da hora de castrá-lo, e os homens da casa (meu então companheiro e um amigo nosso que habitava o quartinho do fundo) que se calassem com seus argumentos de que a castração era uma violência ao ser do gato e sei lá mais o quê. Que eu assumiria uma posição repressora, violenta ao extremo. Que fosse, eu queria meu gato vivo, já tinha passado sustos demais com ele, o atropelamento fora horrível e ele só sobrevivera porque seu organismo era novo e conseguiu se recuperar rápido.
O Che traz ainda a memória de uma Marina que mudou de casa diversas vezes, sempre levando o gato, que a todas se adaptou. Em uma, fez amizade com o siamês Toni, que vinha chamá-lo para passearem juntos pelos muros e telhados. Em outra, teve de conviver com uma cadela que morava na casa da frente, e assim só podia sair para suas voltas pelos fundos, onde ficava nossa casa. Che que depois sofreu talvez a maior das humilhações de sua vida de gato, tendo ido morar em uma casa onde já havia um cachorro. O cachorro até o recebeu bem, mas ele, com sua vivência de gato que andava na rua e com seu ódio instintivo e ancestral aos cães, nunca o aceitou. Ao contrário, a cada oportunidade de encontro ameaçava-lhe patadas no focinho ou nos olhos.
Uma Marina que certa altura julgou o Che profundamente sozinho pela casa, sem mais sair, tantos eram os casos de envenenamento de gatos na vizinhança. Certamente ele poderia aproveitar a companhia de um semelhante, sempre fora receptivo aos demais gatos e uma época, lá no início, até havia meio que posto pra dentro uma gata de rua, linda, que depois morreu atropelada. Só ele que se sentiu violentado com a minha ideia de trazer uma gatinha filhote para ser sua amiga, e passou a fazer “fuuuu”, com a boca, para mim, de pura indignação, fazendo que eu abortasse o plano e, envergonhadíssima, devolvesse a gatinha aos donos da mãe dela.
Um Che que sempre ficava bravo quando algum gato se aproximava de seu jardim, e mesmo por dentro do vidro dava um jeito de espantar os invasores, mas aceitou a curiosidade de um jovem gato preto e muito peludo, magérrimo e faminto, com quem eu também simpatizei de imediato e passei a alimentar, até deixá-lo entrar e ele virar o Romeu, que está aqui, hoje, conosco.
Que depois do atropelamento perdeu a ingenuidade que o fazia deitar-se no meio da rua onde eu morava e passou a ser mais medroso e arisco (foi mesmo preciso reeducá-lo para sair, tamanho o medo da rua que ele passou a ter, logo depois de passados os quarenta dias de recuperação da cirurgia na pata); que abria portas, pulando nas maçanetas, por mais altas que fossem; que quebrou meu rádio-relógio, muito anos atrás, para fazer barulho e me acordar, para que eu pusesse comida fresca em seu potinho; que de novo quase morreu quando descobrimos sua insuficiência renal, parando de comer, tomando litros de soro, tendo que comer uma ração especial da qual, na época, só havia duas marcas: uma que ele não aceitou de jeito nenhum, e outra, importada, que às vezes ficava retida no porto de Santos e não se achava em lugar nenhum, fazendo-me rodar por lojas e lojas pra achar alguma remanescente. E que custava um dinheiro que eu não tinha. Mas que começou a ser tratado com homeopatia e foi melhorando tanto, que pôde voltar para a ração comum.
De lá para cá sempre tomou os remédios que a Dra. Silvana – a “minha veterinária”, como tantas vezes soltei sem querer – passava e viveu uma vida boa, não saindo mais para as ruas, mas sendo um mestre para o jovem Romeu, o qual, depois de uma tentativa de ser o reizinho felino da casa, logo se sujeitou à sabedoria do Che, com suas muitas vidas e experiências.
Agora a vida do Che está chegando ao fim e é muita coisa que vai com ele. Ele é esse companheiro que ia comigo até no banheiro, que tomava café da manhã sentado na cadeira ao lado, que comia o requeijão e a manteiga, e é também a memória de minha vida como adulta, até então. Está comigo praticamente desde que saí da casa dos meus pais, viveu aventuras e mais aventuras e fazia por onde honrar seu nome, escolhido com tanta paixão. Seu nome que ficou também como um resto de mim, e quantos não foram os que brincaram, ao ouvir o nome dos dois gatos, Ah, um mais revolucionário, outro mais romântico! (E isso porque o nome Romeu foi escolhido ao mero acaso, motivado pelo Romeu borboleta da história de Ruth Rocha, que tanto ouvíamos na época em que o gato surgiu em casa, eu e meu filho, narrada pela própria, e com a expressão de angústia da mamãe borboleta: “Romeu, filho meu, onde você se meteu?” que ficava em nossas cabeças, fazendo que Romeu fosse o primeiro nome a nos vir à mente.)
Pensar na morte, mesmo de um bichinho, é enfrentar que nós todos temos um fim, que por mais que tenhamos que esquecer esta verdade para conseguirmos viver a nossa vida de todo dia, ela tem realmente um fim. Não é brincadeira, nem teoria. E o duro é que o fim não é só inevitável. É feio, é triste, nos assusta e repugna. Deprime. Nos faz pensar em até que ponto vale sustentar a vida, no que é o sofrimento do outro, em até quanto conseguimos sentir o outro e saber o que vai ser melhor para ele – ainda mais assim, quando o outro não tem como falar para nós. E em como nos agarramos à vida com tamanho fervor, essa vida que nos traz tantas dificuldades, mas da qual não queremos nos apartar e nem queremos de jeito nenhum que aqueles que nos são queridos se apartem. Em quantas pessoas já confortamos, mas na nossa vez é sempre difícil, porque viver é sempre diferente de observar, mais ainda de julgar. Em que atravessar a morte de um animal é um aprendizado para podermos lidar com as outras mortes, será? No nosso egoísmo em querer a vida, mas também no quanto é difícil saber quando chegou o fim, nas reviravoltas dos processos e coisas, e mais um monte de coisas que nem terminamos de formular.

Sei que das outras tantas vezes em que chegou muito perto do fim, o Che conseguiu reagir, renascendo. Desta vez o quadro é bem outro. Há a idade, uma doença crônica e grave. Ainda assim, ele está me brindando mais uma vez. Não com uma ressurreição, mas com uma leve melhorada, trazendo uma alegria a meus olhos por ver os olhinhos dele com um pouco de brilho novamente. Sei que não teremos como driblar a morte, mas a força deste gato me parece mesmo incrível.





sábado, 17 de outubro de 2015

No mesmo prédio que meu pai










                    Depois de algum tempo trabalhando no centro, sempre lembrava que meu pai também trabalhou nessa região, na mesma rua que eu. Uma vez, eu e os meus irmãos fomos buscá-lo em seu escritório, éramos muito pequenos. Conseguimos chegar até ele, para sua enorme alegria. Perguntei para minha mãe onde era o tal prédio. “É o mesmo que o seu”, ela respondeu. Nunca mais entrei para trabalhar da mesma forma. Parecia que eu seguia seus passos, não em sua profissão, mas nas mesmas ruas, nos mesmos restaurantes, nas lojas do centro; como se eu vestisse seus ternos, gravatas, e usasse seus sapatos ali, na cidade.













sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Fomes



A fome não é exigente: basta contentá-la, 
como, não importa. 
(Sêneca)

No primeiro tombo, ralou os joelhos no assoalho duro. Ganhou consolo, colo, chupeta. Viu o piso inanimado de madeira ser chamado de bobo e feio pela mãe, e receber do pai tapas insanos. Não achou graça. E chorou aos gritos, nariz escorrendo, punhos tão cerrados que arrebentou a pulseira de ouro de chapinha na qual o nome dela estava gravado em letra bordada. Esperneou, corcoveou, puxou os próprios cabelos e os da mãe, que a sujigava nos braços para que ela não caísse. Então, o pirulito. Grande, multicolorido. Entregue pelo pai como um troféu melado. E não houve mais choro ou ranger de dentes. Que gracinha! Menina linda da mamãe! Amorzinho do papai! Que belezinha!
Passou a infância entre doces, sorvetes, choros e elogios. Chocolates pretos, brancos, crocantes, recheados. Recebidos em momentos de dor, de aflição, de insegurança, de carência. Na adolescência, descobriu os sanduíches de dois andares, os refrigerantes, os achocolatados misturados com granulados, as casquinhas de biscoito que enfeitavam os milk-shakes e que depois passaram a ser comidas sem os milk-shakes. E como a ansiedade não passava, e como os meninos já eram ridiculamente fiéis às formas esquálidas, e como as dela eram redondas e macias como as almofadas do sofá, deixou que toda aquela fome, constante e imensa, fosse aplacada por novos sabores. Incluiu na dieta um baseado por noite e cinco dias de álcool por semana. Vodca. Retirada sem aviso do estoque do pai. A Stolichnaya era tomada em copo de plástico branco. Em casa. No quarto. Caso alguém entrasse sem bater, não daria muita atenção a um copinho descartável. Na rua, fazia vaquinha com os amigos; compravam gelo.
Mas a fome não passou. Não passava nunca. Além do apetite causado pela larica e pela ressaca, havia mais. E ela queria esse mais. Da primeira vez que fez sexo, sentiu-se saciada, relaxada. O banco de trás do carro era apertado para o seu corpo gordo, mas aquele aperto todo tinha excitado o parceiro. Mais atrito, mais encaixe, mais penetração, ele explicou assim que a trepada terminou. Naquela noite, ela se esqueceu do baseado e do copo de vodca, que dormiu metade cheio embaixo da cama.
Viciou-se naquele alívio que a fez esquecer os doces, os refrigerantes, as pizzas, o álcool. E descobriu que o que lhe dava mais prazer no sexo era enfiar na boca o membro ainda mole e senti-lo crescer ao comando da sua língua nervosa. Em pouco tempo, ganhou fama de ser a melhor na prática do sexo oral. Ela diria pênis e boquete, mas ainda não estava pronta para essas palavras tão íntimas.
Namorados, amantes, ficantes. Ela escolhia. Marcava e desmarcava dia e hora. E decidia quanto tempo duravam. Desejava, implicava, atraía, rejeitava. Passou a trocar o almoço por transa. O jantar, os lanches de fim de semana. Trocou de idade várias vezes, virou mulher. Gostosa, safada, experiente, esperta. Magra na medida certa. Cheia nos lugares certos. Até que cismou que precisava entender aquela fome maior do que ela. Procurou psicólogo, padre, benzedeira, astrólogo. Comprou livros que falavam de obsessão, de compulsão, de possessão, de fugas, de vícios, de complexos, de negação, de distúrbios. Nada. 
Então, leu sobre o controle e sobre a dominação. E teve fome de algemas, chicotes, correntes. Fome de poder. Esse pirulito grande, multicolorido.







quarta-feira, 14 de outubro de 2015

sketch



Se alguém a desenhasse, assim, saracoteando o corpo sebento pelas ruas da cidade, daria por certo, sobre o risco com que traçasse aquele corpo esguio, uma aguada num tom verde alface que  é, ainda, o tom do seu casaco, veludo canelado e dois botões, um deles apenas, e nem será o genuíno, ajustando o casaquito curto sobre o trapo do que terá sido uma camisa, um tecido sedoso com ramagens, ou flores, ou outro desenho que sumiu na voragem do muito sujo.
E a sair das mangas, muito justas e curtas, dois pulsos magros e umas mãos de dedos longos e unhas escuras.
Unhas cortadas rente que não batem nada certo.
Mas o pormenor das unhas não faria parte do desenho.
Talvez os sapatos, informes, a chapinharem solas e tiras pelas ruas.
Que quem a desenhasse tentaria captar-lhe o essencial se bem que a perguntar-se se seria menina, ou teria sido senhora, aquela rapariga de passos incertos pelas ruas da cidade; aquela rapariga silabando dizeres incongruentes nuns lábios cuja cor se confunde com o negro da cavidade onde o alvo dos dentes nem já se presume.
E quem quisesse fazer-lhe mais do que um simples esboço acharia o instante de lhe captar um pormenor mais cuidado, quando, de sopetão, ela parasse naquela atitude muita sua de falar aos objectos. Falas desentendidas ao ouvido dos passantes, linguagem que a rapariga terá aprendido, ainda criança, em outro país, quiçá em outro mundo.
Pormenores, ainda, quando ela parasse numa montra ensimesmada com o seu reflexo, a saia subida acima dos joelhos, o tecido preso na cintura a formar uns gomos onde guarda segredos misturados com bocados de pão seco e bolorento e os guardanapos de papel que pede a apontar nas mesas das esplanadas.
Uma saia que fede a caca seca de cachorro.
Um esboço que alguém fizesse em folha alva havia de salientar-lhe, sim, a saia que ela traz repuxada e, numa aguarela suave, faria também aperceber o sarro que lhe domina a pele das pernas, das mãos e do rosto.
Um esboço apenas, não um desenho fiel e, no entanto, a dar ensejo, a quem nunca a tivesse visto, de exclamar, ainda que nada dissesse, ainda que ficasse apenas com o ar piedoso que é o que coloca cada um que a vê saracoteando-se pelas ruas da cidade: olha, uma pedinte. E, a fixar-lhe os lábios que no desenho sugeririam um balbuciar de indefinições: olha o que a droga fez a esta desgraçada.
Um retrato fiel teria que lhe expressar nos olhos aquele mundo que ela terá trazido de outros mundos, de outros vividos, de outras gentes, outros linguajares, doenças e choros e tantos risos, e tantos brinquedos que ela terá tido, e pai e mãe, e até avós e dois irmãos.
Será disso que, quem a olhe de frente, lhe verá sorrisos de criança entre os lábios secos.
Quem a olhe, simplesmente, sem querer desviar-se daquele incómodo que é a rapariga suja e aloucada a intrometer-se no bem-estar quotidiano.
O mesmo sorriso que lhe adivinharia o alguém que lhe perseguisse passos imprecisos pelas ruas da cidade na mira dum esboço, um traço que guarde aquela rapariga entre duas páginas dum caderno.
Alguém que a traga à luz do dia num país distante. Quem o sabe.
Um desenho pendurado numa parede, uma moldura emoldurando, e um outro alguém a observar e a dizer, sem mais entusiasmo do que aquele que é costume nos seres civilizados que olham um quadro ainda que nem seja de artista de renome: que parecida; tal e qual ela.
A dizer assim a outro alguém e, nem dando conta da imensidão do seu desígnio.
Tal e qual a Ema, a Alluisa, a Petrova.
Alguém a dar-lhe um nome.
Se alguém um dia a olhasse para fazer um esboço.
Que ninguém aparece para lhe despir aquele casaco verde alface, desatar-lhe a saia repuxada à cintura, dar-lhe um duche.
Ninguém que, a fazê-lo, lhe falasse com cuidado, imitando, ao menos imitando, o tom de carinho com que ela regredisse ao berço e, assim, se deixasse ficar nuazinha: e que bela teria sido esta rapariga, diria esse ninguém que aparecesse, acrescentando: o tom de pele e o cabelo claro fazem adivinhar que tenha nascido em terras frias lá a norte.
Ninguém a jogar-lhe pelo chão, com o cuidado devido, o que ela traz embrulhado na saia e talvez ainda julgue serem os seus sonhos. 








sábado, 10 de outubro de 2015

Vlog do Escritor



Há exatos nove anos, eu criei o Blog do Escritor, onde tenho compartilhado dicas de escrita, considerações sobre o mercado literário, reflexões sobre este ofício, minhas angústias e uma porção de outras coisas.

Então, quinze dias atrás, iniciei outra etapa neste trabalho, agora em vídeo, mantendo o mesmo espírito original do blog.

Abaixo, estão alguns dos principais vídeos deste período que já foram ao ar no Vlog do Escritor.

ESCREVA SEU LIVRO


O QUE É ROMANCE?


O QUE É CONTO?


Aguardo-os por lá, com suas dúvidas e comentários.

https://www.youtube.com/henrybugalho





sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Errantes



Madrugada. Dentro do carro trancado, insulfilme nos vidros, sentado ao lado do motorista, sou eu e mais três. Usamos capuzes, pra evitar reconhecimento. Qualquer tipo de contato que ultrapasse os códigos gestuais está proibido. Não sei quem financia esse ataque, apesar de desconfiar. A questão não é o porquê se faz isso, mas o quanto se lucra; pelo menos pra mim.

Checo a arma algumas vezes, por pura ansiedade, mesmo porque a conheço bem, e então noto um certo desconforto do motorista. Finjo não perceber, descansando a arma sobre minha coxa. Um carro passa rápido por nós. Uma buzinada longa, seguida por outra curta. Chegou a hora.

Avançamos a passos largos pela rua mal iluminada. Parecemos fantasmas em busca de novas almas. A ordem é fazer um cerco, pra não deixar ninguém escapar. Ao longe, já é possível ver dezenas de pontos luminosos. Nossos alvos. O líder gesticula. O seguimos nos esgueirando pelas paredes, a fim de manter o fator surpresa.

Morram, seus filhos das putas!, é o grito do líder ordenando a matança. Então avançamos calmamente contra aqueles viciados, encurralando-os em seu próprio beco. Alguns, certamente mais lúcidos, tentam correr, mas a única chance de escapar é vir em nossa direção. Até chamaria isso de instinto de sobrevivência, mas é uma estratégia um tanto suicida.

Após um minuto, a gritaria cessa. Restam alguns gemidos, então eu e outro cara somos ordenados a finalizá-los. Os outros dois voltam para o carro, com a intenção de trazê-lo para recolher os objetos de valor e as drogas que restaram. Evidentemente, o sistema se retroalimenta.

Não temos pressa. A vizinhança não vai chamar a polícia; deve até estar nos agradecendo pela limpeza. Descarrego minhas últimas balas e paro pra trocar o pente de munição. É então que assisto a cena mais bizarra que já vi nesse meu mundo. Uma mão se esgueira por entre o amontoado de corpos, mexendo-se com tanto empenho e força que parece pedir ajuda apenas com aquele gesto. Olho pro lado, mas o outro cara está preocupado demais em tentar achar algo de valor que possa por no bolso antes que os demais apareçam. Lembro daquele velho ditado…

Volto minha atenção àquela mão, que agora já é um braço inteiro deslocando seus antigos companheiros. Quando a cabeça aparece, puxa o ar com tanta força e ruidosamente que tomo um pequeno susto. O outro cara surge ao meu lado, e não consegue se conter.

Mas que porra é essa?, quebra o protocolo. Saca a arma.

Faço um gesto com a mão, pedindo pra que espere. No breu, a silhueta de uma figura esquelética finalmente consegue se desvencilhar dos corpos, se equilibra com alguma dificuldade e fica parada há poucos metros de nós. Após uns segundos, avança em nossa direção, cambaleante, arrastando um dos pés. O outro cara empunha a arma, mas recua, a passos curtos, assim como faço.

Quando passa por um poste mal iluminado, aquele ser me causa repugnância. Digo isso porque nunca vi nada parecido. E é impossível distinguir seu gênero. A roupa mulambenta é o que menos chama atenção. As escaras e feridas por toda a pele das pernas, braços e rosto me chocam, mesmo eu já estando acostumado a lidar com a escória no submundo.

Isso aí parece um zumbi…, fala o outro cara, entredentes, daqueles que a gente vê na TV.

É pior. É real, contesto.

O cara então atira. Na perna, arrancando-a do corpo na altura do joelho e fazendo aquele ser desabar.

Puta que pariu, isso aí injetou tudo que encontrou daquela porra nova, a russa…

Sei o que é – krokodil; mas não consigo falar, nem desgrudar os olhos da cena: o ser apoia as mãos no chão, levantando o corpo com dificuldade. Põe o joelho da perna que lhe restou no asfalto, e segue o caminho se arrastando em nossa direção.

Que loucura, cara! Que puta loucura!, diz, eufórico.

Não me afasto mais. Espero-o se aproximar, e ele levanta uma das mãos em minha direção. Seu rosto é uma massa disforme, mas a boca aberta, e o som que sai dela, me representam um lamento – um pedido de ajuda, talvez. Mas o que eu posso fazer?

Então um farol ilumina o rosto daquele ser, e o ronco do motor se torna mais alto. Olho pra trás. Eles não vão parar. Eu e o outro cara pulamos para o lado, alguns segundos antes de ouvir um arrastado chio de freio. Junto a parede, ouço um tiro e, em seguida, uma pancada seca.

Os outros saem do carro, cada um tentando entender o que aconteceu. O cara do lado do motorista observa o amontoado de ossos jogados alguns metros à frente. Olha pra mim, como que cobrando uma explicação, mas contorno o carro e paro ao lado do líder, que observa o outro comparsa deitado sobre uma poça de sangue. Providência divina, penso, e mexo no bolso do cara, jogando pro líder uma correntinha que tinha sido indevidamente apropriada.

Me afasto dali, sem nada dizer. Acabei de tomar minha decisão.

Essa é sua escolha?, grita o líder.

Hesito por um instante, mas não tenho medo. Uma rajada de tiros em minha direção. Eu sigo, sem sentir nada. Providência divina, me pergunto, e dobro a esquina. Minha visão escurece.




Foto: Long Road To Ruin – 53/365, de Simon Wicks.





quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Lobotomia

Subtrair do todo a parte

   indistinguível parte
   indivisível parte
   imensurável parte

que causa
tamanha dor

tirar dele pedaços

   memórias
   números
   dados

aleatórios

até que se altere
a soma do ser

de forma
a torná-lo algo
novo, sem dúvidas

   ou sentido
   ou direção
   a seguir

não mais que um
código de barras

uma fila numérica
uma pilha disforme
de partes soltas

estagnada
anestesiada e

   pela primeira vez
   na história
   de sua existência

absurdamente feliz.





segunda-feira, 5 de outubro de 2015

lua cheia



talvez
a lua cheia de hoje
seja o único ponto de referência
entre a nossa existência
e a poesia





domingo, 4 de outubro de 2015

Mania de inglês: os favoritos para o Nobel

Numa crônica de 15 de maio de 1863, Machado de Assis escreveu:


Os ingleses têm, entre outras manias, a mania de grandes e singulares apostas. Não menos ingleses foram muitos dos nossos políticos que, confiado cada qual na sua impressão ou na sua esperança, lançaram-se aventura e ao azar da fortuna. 

Os ingleses apostam de tudo. Apostam no futebol, no rúgbi, no cricket. E apostam, também, para a premiação do Nobel de Literatura, mantendo sua tradição de eficiência.

Em 2014, Modiano não figurava entre os 10 mais cotados, mas Alice Munro estava em 6º em 2013, e Mo Yan, o 4º em 2012. O que torna a lista da casa de apostas Ladbrokes uma fonte interessante e razoável a chance do Nobel de Literatura de 2015, que deve ser anunciado nesta quinta-feira,  ser um dos onze .

Não podemos, no entanto, confundir as coisas: a Ladbrokes não traz análises críticas e considerações literárias: é uma casa de apostas.

1. Svetlana Aleksijevitj, nascida na Ucrânia mas bielorrussa (a última ditadura escancarada da Europa; pode "pega bem" premiá-la) - paga 5/1.

2. Murakami (sempre ele; nunca me animou - comentário que me torna uma pessoa desqualificada em diversos ambientes)

3. Ngugi Wa Thiong'o (o impronunciável queniano vem frequentando a lista nos últimos anos, esteve em Paraty; ligado aos movimentos anticolonialistas)

4. Philip Roth (era o 9º em 2014)

5. Joyce Carol Oates (ou JCO, como é conhecida a americana; nunca li nada dela)

6. John Banville, consagrado por O Mar (que não li); dono de uma prosa extremamente sofisticada e de agradável leitura. Li com muito prazer Luz Antiga e Os Invencíveis. Seu nome, que nem entre os 10 estava, pulou para o sexto luga.

7. Jon Fosse (norueguês, seu nome cresceu na última semana).

8. Adonis (poeta sírio e que, por isso mesmo, tem grande chance. Considerado um grande renovador da poesia árabe)

9. Ismail Kadaré (albanês, Dossiê H é incrível; li também Crônica da Pedra, igualmente muito bom)

10 Ko Un (coreano); paga

Peter Handke e Amós Oz, israelense que consegue irritar esquerdas e direitas, estão em 11º e 12º.

Pessoalmente, acho que Roth poderia dar a honra à Academia Sueca de premiá-lo. Talvez ela mereça. 

Notou a ausência de brasileiros? O Brasil "indicou" Moniz Bandeira, que não é literato. Acho que o segundo escritor em língua portuguesa a ser premiado será o Mia Couto.

O que você pensa da lista? Quem você acha que leva este ano - e quem você acha que deveria ganhar este ano?