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segunda-feira, 30 de março de 2020

Cláudia


Paula aproximou-se do caixão da amiga e não a reconheceu. Sim, é costume vestir os cadáveres com a melhor roupa, dá-se uma formalidade à morte. Nem mesmo um jogador de futebol, a quem todos veem com os joelhos de fora em campo, seria velado com as roupas com que conquistou um campeonato para o seu time. Mas não era aquilo que Cláudia chamaria de elegância: ela, que sempre chegava com um belo vestido longo e um colar com uma pedra que se destacava do conjunto – era cliente habitual dos jovens hippies que vendem seu artesanato na praça diante da agência da Caixa Econômica – jamais aceitaria aqueles trajes. Aliás, foi justamente para se ver livre disso que se tornou funcionária da Caixa. Naquele banco estatal, sentia-se respeitada pela postura oficial da instituição. Por isso mesmo chorou de felicidade quando recebeu seu crachá com seu nome: Cláudia. E a família, o que fazia agora? Vestia nela terno e gravata, certamente amarrando os seios cheios de silicone para que não fossem percebidos – mas todos os seus colegas de trabalho sabiam que eles estavam lá –, retirava o esmalte de suas unhas. Certamente retirar-lhe-iam também o nome: escreveriam na lápide o nome que ela recebeu no batismo e renegou quando saiu de casa: Cláudio.
               Doía não poder impedir isso. Doía não ser legalmente responsável por aquele corpo e não poder dar a Cláudia a despedida que ela merecia e gostaria de ter tido, sendo reconhecida na morte como quis ser reconhecida em vida. Não teve escolha senão entregar o corpo à família, que construiu no velório o homem que Cláudia se recusara a ser. Paula mesma a encontrara morta: era costume das duas irem ao cinema nas sextas, após o expediente. Mas Cláudia, deprimida desde a morte do irmão – e mal acolhida no velório dele – faltara dois dias seguidos ao emprego e não respondia aos telefonemas de Paula. Paula correu à casa dela, tocou inutilmente a campainha, buscou um advogado, foram à delegacia, invadiram o apartamento e a encontraram morta. Envenenara-se. Paula encontrou na agenda o telefone do pai de Cláudia. À família que a destratara no velório do irmão cabia fazer os funerais dela. Se ao menos Cláudia tivesse um marido, seu corpo não teria ido parar nas mãos daquela família. Talvez o marido a amparasse e ela não tivesse chegado ao gesto extremo.
               Paula então lembrou-se: é melhor ter um marido para quando minha hora chegar.





domingo, 29 de março de 2020

Esperança


 

Luís olhou demoradamente a chave que tinha na mão, quando já estava em frente à porta.

Depois de tudo o que se tinha passado, continuava a conservar aquela chave. Ao utilizá-la, acederia a um mundo que deveria estar esquecido e ao qual ele não pertencia. Por uns segundos, considerou dar a volta e ir embora desaparecendo para sempre daquela situação. 

Deitando o pensamento para trás rodou a chave na fechadura e abriu a porta que cedeu sem dificuldade.
O hall do apartamento encontrava-se na penumbra e com a mão direita tateou, conhecedor, o botão que acendeu as luzes.
Percorreu com o olhar a sala, o sofá que lhe trazia tantas recordações… e apenas tinham passado três meses desde que estivera ali a última vez.
A pequena mesa, entre os sofás, tinha dois copos, um dos quais tombado. Havia amendoins e pistáchios espalhados no tampo e no chão.
Mantinha-se, por cima do sofá maior, o desenho a lápis da torre Eifell, que ele fizera numa outra vida. Durante a lua de mel na cidade luz. Tudo estava como antes; a mesma mobília, os mesmos tapetes, as mesmas pinturas…
Dir-se-ia que o tempo parara naquela casa no mesmo dia em que se fora.
- Isabel! – Chamou suavemente, quase com receio. – Onde estás?
Avançou pelo corredor que levava aos quartos, não acendeu a luz porque a iluminação que saía da porta para onde se dirigia era suficiente.
- Isabel! – Insistiu, enquanto caminhava devagar.
Na entrada do quarto, chutou uma garrafa abandonada no chão, que rebolou para debaixo da cama. Parou junto ao candeeiro de mesa de cabeceira que também ali jazia tombado.
Sobre a cama, numa amálgama de lençóis, cobertores, almofadas e longos cabelos escuros desalinhados, estava um corpo imóvel enrolado sobre si próprio.
Pé ante pé, aproximou-se e pousou suavemente uma mão sobre o braço da jovem, sussurrando:
- Isabel! Estou aqui.
Dois olhos iluminaram-se com um estremeção, por trás dos cabelos negros, enquanto a voz chorosa se lamentava:
- Luís, ele foi-se. Ele foi-se novamente, mas desta foi de vez…
Pacientemente, ele sentou-se na cama, aconselhando :
- Tem calma, já sabes que ele volta sempre…
- Desta vez não. – As lágrimas corriam livremente no rosto belo que ele descobrira com movimentos suaves por trás da cortina de cabelos. – Voltei a fazer-lhe uma cena, ele tinha-me avisado que não me aturava mais cenas de ciúmes.
Luís olhou-a com pena, enquanto lhe acariciava o rosto e perguntava:
- Que vamos fazer de ti, meu amor?
- Eu não consigo! – O choro tornava-se mais forte. – Elas comem-no com os olhos, não posso ir com ele a lado nenhum que elas querem tirar-mo e ele é meu, só meu!
Escondeu o rosto na perna dele, enquanto chorava descontroladamente.
- Como foi desta vez? – A voz profunda dele não mostrava particular interesse enquanto lhe afagava o cabelo.
Por entre soluços ela explicou:
- Foi no restaurante… No Mario’s; uma empregada nova… loira, pequenina, passou a noite inteira a fazer-se ao Carlos.
- Tu costumas ver coisas onde elas não estão. – Censurou-a com meiguice. – Sei-o bem. Não estaria a pequena a ser simpática apenas? É uma empregada, tem que agradar aos clientes.
Isabel parou de soluçar, rodou a cabeça e olhou-o nos olhos:
- Achas que não sei ver quando me querem o homem? Baixava-se de forma a mostrar o decote todo! Dava para ver o umbigo!
Ele não conseguiu conter um sorriso.
Isabel recomeçou a chorar:
- Vês? Nem tu me levas a sério. A gaja estava a atirar-se a ele. Quando estávamos a meio da refeição ela veio perguntar se estava tudo bem e eu não aguentei mais. Gritei-lhe que viéssemos embora.
- Mas vieste com ele… Ele trouxe-te cá?
- Aqui é que foi o pior. Eu tentei acalmar as coisas e fazer-lhe uma bebida mas aí quem explodiu foi ele. Atirou com as coisas, gritou que não me queria ver mais e foi embora. Agora nem me atende o telemóvel...
- Vais ver que não é nada! Está zangado, mas vai passar.
Chorava, agora mansamente e deixava a cabeça caída na perna dele gozando dos afagos carinhosos e cheios de amor que recebia.
- Só tu me entendes, amor… - Lamentava-se entre as lágrimas. – E tratei-te sempre tão mal…
- Não vai ser com certeza agora que te vais querer redimir. – O tom de voz alterou-se ficando mais cínico. – Por isso não vamos falar do assunto.
- Perdoas-me? – A voz dela principiava a arrastar. – Eu não queria fazer-te… mal.
- Não tenho nada a perdoar-te. Achaste que era altura de mudar de vida e mudaste…Tomaste alguma coisa? – Perguntou preocupado.
- Sim… Tomei um calmante… Tenho… muito sono…
- Então deixa-te estar, dorme, descansa.
- Fica…
Olhou o relógio. Duas horas e trinta e cinco da manhã… Como de costume, ela ligava-lhe e ele corria para os braços dela a consolá-la… Das dores de outro.
O respirar dela tornara-se ritmado, entrecortado a espaços por pequenos suspiros. Ele não se cansava de lhe acariciar o cabelo. Parecia incrível como amava aquela mulher que o desprezara e abandonara. E ele tornava a correr, como um cachorrinho, sempre que ela estalava os dedos; deixava a casa, a cama e a sua atual mulher, que cada vez achava menos graça à situação.
Uma lágrima rebelde escorreu até ao queixo e pingou nos lençóis.
Ajudou-a a poisar a cabeça no travesseiro e levantou-se.
Apanhou-lhe o telemóvel do chão, procurou a última chamada recebida e leu: “Chamada perdida, Carlos 5 de maio 2010 1:45”
Sorriu. Ela dissera-lhe que ELE é que não atendia o telemóvel…
Pegou no seu próprio telemóvel e marcou o número:
- Carlos? Sim, sou eu. (…) Claro, já sabia que me chamaria. (…) Está a dormir agora. Parece que tomou um calmante. (…) Sim, vem para cá, eu vou embora. (…) Vá lá, já sabes como ela é, fica furibunda, mas é doida por ti e não consegue conter os ciúmes. Vem para cá e deita-te ao pé dela, vais ver que amanhã fazem as pazes. Um abraço. (…) Não te preocupes, sabes que me preocupo com ela e que vocês podem contar comigo. Adeus.
Desligou o aparelho e aproximou-se novamente da cama. Cobriu-a com o lençol, depositou-lhe um beijo na testa e sussurrou-lhe docemente:
- Adeus meu amor, ainda não é desta que volto para ti… Um dia hás de pedir que o faça… Prometo aqui que só me tornarás a ver nesse dia… E, mesmo que não te torne a ver, amo-te demasiado para te desejar mal. Adeus.
Deitou um último olhar ao corpo adormecido e caminhou lentamente até à porta fixando demoradamente cada objeto do corredor e a posição de cada móvel. Tinha a sensação que não mais voltaria ali.
Sopesou a chave no bolso, enquanto perguntava a si próprio se a deveria deixar na mesa da sala.
Cada passo dado demorava mais que o anterior até chegar à porta da rua. Uma vez aí, pensou que um dia, Isabel iria precisar de ajuda novamente; iria telefonar e ele viria correndo uma vez mais, na esperança que fosse para ficar.





quinta-feira, 26 de março de 2020

Páscoa

“Até o final da quarentena, todos os professores da nossa escola deverão atender os alunos por meio de videoaulas. O treinamento na nova plataforma de ensino começa hoje à tarde. Na próxima quarta-feira vocês já deverão estar capacitados para reassumir suas turmas. A escola voltará a funcionar, só que virtualmente, neste primeiro de abril. Serão pelo menos dois meses de exposição de conteúdo à distância. As horas on-line serão contabilizadas no calendário letivo como aulas dadas”.
Após ler aquele meigo recadinho despachado pela coordenadora pedagógica, Raquel tomou um suco de maracujá com sal de fruta, mas que de nada ajudou na digestão da novidade. Depois de um tempo silente e pensativa, dobrada em seu afligimento particular, nossa querida professora entrou em pânico, desferindo lamúrias em série pela casa: “Se eu não sei tirar nem selfie, se não baixo aplicativo no celular, se nunca fiz curso à distância, se sempre lecionei olhando nos olhos das minhas crianças, se gosto do burburinho das turmas, se nada disso está no contrato de trabalho, se é tudo tão difícil e diferente, se não quero virar youtuber, proftuber... Não consigo. Não quero. Vou pedir demissão”.
Vendo a agonia da esposa, Natan veio em seu socorro: “Calma, meu bem. Você aprende”.
“Aprender a ser tecnológica assim, de supetão? Esse povo está doido”.
“Raquelzinha, lamento informar, mas nós não temos escolha. Você vai ter de se adaptar, pelo bem da nossa família”.
“Está tudo implodindo, Natan. Você não vê que é a minha ruína?”
Raquel sentiu raiva da profissão que escolheu, das inovações impostas goela abaixo, das transformações digitais, de estar sendo obrigada a sobreviver no século XXI, de ter de aturar modernidades e ouvir discursos clichês de resiliência, de haver contratado outrora conselhos de coachings e de psicólogos e de haver inclusive comprado e lido livros de autoajuda. Sentiu corar a cútis, sentiu tremer o tônus, sentiu ferver o ódio pelo vírus e por todo o ônus que a oprimia. E pranteou, em grossas lágrimas e estranhos urros, sua débil condição.
Lalá, a filha de sete anos, acordou meio assustada com aquele barulho incomum. “Mãe, cadê meu leitinho com Nescau?”
“Hoje não tem leitinho, não tem almoço, nem lanche, nem brincadeira, hoje não tem diversão. Você está me vendo, mas não estou aqui. Não conte comigo para mais nada nem hoje nem nos próximos dias.”
“Que isso, mãe? Você está com aquela doença?”
“Não, Lalá. Sua mãe está preocupada porque vai ter que aprender a ensinar pela internet.”
“Aula pelo computador? Legal, mãe. Queria que minha professora ensinasse desse jeito.”
“Ela deve estar se preparando também, Lalá, mas pra ela vai ser fácil. Ela é mais antenada que eu para essas coisas de informática.”
“Natan, já pensou o gato pulando no meu notebook na hora da aula? Os vídeos rodando e rodando e rodando sem carregar cem por cento, já que nossa internet é fracotinha? Meus alunos, a coordenadora, a diretora vendo você desfilar pela casa sem camisa, de bermudão ou de cueca puída? Ai, que vergonha. O pai da Júlia, aquela aluna superdotada, insistindo para assistir às explicações junto da menina? Já pensou a meninada toda ensaiando Melim ou Anitta e eu não conseguindo parar a cantoria?”
“Calma, mulher. As ferramentas de ensino não devem ser assim tão complicadas. Você não admira tanto a Jana, que faz teletrabalho há tanto tempo? É a sua vez de ficar moderna, de trabalhar sem sair de casa.”
“A Jana não é professora. Ela é jornalista.”
“Mãe, eu sei tudo. Te ajudo com a internet.”

Quando, enfim, chegou o momento de assumir a sala de aula virtual ainda como que movida pela iminência do fracasso, pensando seriamente em fugir , viu e ouviu pintar na tela, como mágica, um a um, cada rosto, cada voz da turminha. Criança é treco tão cheio de vida! Criança é claro que é milagre!
A educadora respirou fundo. Estava, enfim, diante, bem dentro do universo cibernético que tanto a havia testado e consumido.
“Oi, tia Raquel.”
“Estou te vendo, tia. Você está me vendo?”
“Tia, que bom que você está aí.”
“Tia, você está aqui.”
Respondeu, ao mesmo tempo comovida e orgulhosa:
“Muito prazer, 3° Ano B. Aqui é a tia Raquel, a nova tia Raquel. Raquel da Ressurreição."
“Oi, tia. A aula hoje é sobre o quê?”
“Eu me preparei para tanta matéria. Mas acho que a aula vai ser mesmo sobre medo, desafio, distância. E também, principalmente, sobre coragem, transformação, presença. Acho que vai ser uma aula sobre cruz, pessoal. Uma aula sobre Páscoa.”


Conto de Maria Amélia Elói





quarta-feira, 25 de março de 2020

A pedra


No verão, Tiago passava o dia na ribeira. Um fio de água, um charco aqui outro acolá; para os seus quinze anos, era o paraíso na Terra. Caçar pássaros com a fisga não passava de pretexto para andar descalço pelas areias sussurrantes, sob a sombra de amieiros e salgueiros. Raios de sol penetravam nas densas ramagens, mas não conseguiam alterar o frescor da proximidade da água. Silêncio não havia, tampouco ruído. Sons naturais eram a melodia do local: rumorejar das copas verdes, ciciar do fio de água em algum socalco entre pedras, um ou outro chilreio. Ao longe, o som cristalino das campainhas dos rebanhos e os cantos de ranchos de mulheres, em trabalhos campestres.
Naquele dia, esta sinfonia em surdina foi alterada por um “chap-chap”. Tiago afastara-se ribeira abaixo para uma zona aonde ia poucas vezes. A uns cinquenta metros, havia um pego com uma dimensão que permitia nadar. Era de lá que o ruído vinha. Aproximou-se furtivamente, não deixando que a areia pisada o denunciasse. O inesperado afogueou-o. Era Delfina, a filha do rendeiro da quinta contígua, um ano mais nova que Tiago, e que ele já não encontrava havia bastante tempo. Espreitada dali, parecia nua, e muito entretida a nadar.
Caramba! Como estava bonita! E nua? A curiosidade era bem mais potente que o respeito devido. Ia ficar à espreita até vê-la sair da água. A menina, no entanto, alongava o tempo de banho. Com o coração a bater, farto de conter o entusiasmo, Tiago resolveu acelerar o processo. Pôs um seixo na fisga, sentiu-lhe a dureza, apontou para uma rocha do outro lado do pego e disparou. A menina parou de nadar, olhou em toda a volta, em alerta. Tiago meteu a mão ao bolso e lançou segunda pedra. Desta vez, a menina nadou rapidamente para a margem, apanhou as roupas e correu para casa.
Aquele vislumbre fugidio excitou-o até à exaltação. Nunca mais o abandonou. Anos depois, ao recordá-lo, mete a mão ao bolso e ainda encontra lá a dureza da primeira pedra.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 1º lugar, na categoria Conto, no IV Concurso Literário Internacional Palavradeiros, de Boa Vista, Roraima, Brasil, e integra a coletânea resultante — páginas 24 a 25:


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Imagem: Menir do Outeiro, c. 4000–2500 a.C.
Altura: c. 5,6 metros. Diâmetro: c. 1 metro. Peso: c. 8 toneladas.
Reguengos de Monsaraz.

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segunda-feira, 23 de março de 2020

“MEU PRESIDENTE”



                                                                                                                            
                                                                          
Início da década de 1960...
A pequena vila, acanhada, era quase estéril de empregos. Afora os pequenos sitiantes e comerciantes, o resto lutava só Deus sabe como... Mas tudo era mais fácil, visivelmente mais fácil que hoje. É bem verdade que a comida não era tão diversificada como agora, mas existia a fartura. Em quase todas as casas podia-se ver uma horta ampla, um chiqueiro apinhado de crias, galinhas aos montes, sem contar as frutas! A gente comia até se fartar, e não havia a menor preocupação com a sobrevivência futura, como hoje. Não sei se isso, se essa despreocupação estava só com as crianças, e ficava para os adultos a angústia do “como fazer?”. Acho que não... As pessoas eram leves, não mostravam tensão. Eram falantes, alegres, maravilhosamente solidárias. Tempo bom! Sadio nos costumes e nas amizades!
Em casa, minha mãe, viúva, com uma penca de filhos... Éramos assustadoramente pobres, quase sem perspectivas, mas comida não faltava. Do quintal vinha muito do nosso sustento. Comum era a troca de verduras e legumes com os vizinhos. Não me sai da lembrança o caramanchão de chuchu de Dona Eulália. Imponente, fecundo! Erguido próximo ao batedouro de roupas, alimentado com água em abundância, produzia o ano todo! 
Todos nós trabalhávamos. Minha mãe fazia salgados para os bares, meu irmão era metido a eletricista, o outro era balconista da Casa Pereira, a única loja de tecidos da vila, e assim por diante... Eu, caçula de sete anos, defendia o meu com uma caixa de engraxar. Tempo bom pros engraxates! Todo mundo usava sapatos de couro. Ainda não havia surgido a febre do tênis. Bom mesmo era engraxar botinas! O cano alto permitia cobrar mais caro pelo serviço. Justificável, não?
Na praça da igreja, pela manhã, eu tinha o melhor ponto. Cedo, com o sol ainda fraquinho, os velhos se juntavam nos bancos para uma prosa gostosa, e ali eu fazia a minha clientela. Quando o sol esquentava, e até que chegasse a hora de ir para a escola, ficava difícil. Era raro encontrar um ou outro freguês pelas ruas. De vez em quando conseguia algum na barbearia. Mas, decididamente, não era vantajoso esperar.
Achei uma saída espetacular! Ia engraxar em domicílio! Passava pelas casas e assim engraxava os sapatos da família inteira. Com o tempo consegui organizar uma clientela fixa, e com isso tinha trabalho de segunda a sábado. Já sabia que na segunda-feira engraxaria na casa do Seu Dorival, na terça na casa do Seu Duílio, na quarta na casa do Seu Osório... Adorava as sextas-feiras! Verdade mesmo! Nesses dias eu nem passava pela praça. Ia cedo para a casa do Seu João. Sujeito incrível! Meu ídolo! Gostava tanto de conversar com ele que fazia meu serviço lentamente, com esmero excessivo. Nunca lhe sujei as meias! Alongava minha tarefa ao máximo para poder ficar mais tempo ao lado dele. Como era sábio!
Sempre que eu chegava, um farto café da manhã me esperava. Até queijo eu comia! Parecia mais um banquete! Nutria um carinho especial por mim... Acho que era mais um caso de simpatia recíproca, de empatia, de encaixe completo. Aquela velha história de panela e tampa... Era mais que isso! Era uma afinidade tamanha, tão intensa e profunda, que fazia o tempo voar, que alimentava a minha alma! Homem de seus cinquenta e tantos anos, muito calmo, costumeiramente vestido em terno de casimira ou de linho bem amarrotado, os cabelos sempre lustrosos, recendendo à brilhantina. Mãos grandes, com as unhas sempre bem aparadas, e trazia no dedo anular um largo anel de ouro com uma imensa pedra de rubi. Uma figura marcante, sem dúvida alguma!
Seu João era meu chapa! Sempre que falava comigo, com aqueles olhos de raios-X, não hesitava em demonstrar seu afeto e me fazer um agrado. Às vezes, fico pensando se eu não encontrava nele aquele pai que eu havia perdido?! Sei lá... Só sei que ele era muito importante pra mim! Guardava as suas palavras como um registro, e as ficava matutando à noite, antes de dormir. Entre tantas coisas que me passou, guardo claramente e com saudade as suas aspirações. Apesar de toda sua sabedoria, não se aprofundara nos estudos. Deixava claro em suas conversas o desalento desta proeza irrealizada. Queria ter sido engenheiro! Mas, entremeado pelas peripécias que a vida reserva a todos, não passou do quarto ano primário. Foi pra luta, trabalhou muito, e tornou-se cartorário. Aliás, profissão que levou até o fim da vida!
Mas o que mais me empolgava mesmo, era a sua campanha política. Conversava horas e horas, comigo, sobre isso. Estava se preparando para ser Presidente da República! Hoje sei que só falava disso comigo, é claro! Falava sobre suas estratégias políticas, seu plano de governo, da escolha e da preparação de seus cabos eleitorais... Juro! Desejava ser um deles! Eu me sentia tão envolvido com suas ideias, que queria que os dias voassem para que eu me tornasse mais velho e pudesse chegar a ser um cabo eleitoral dele. Verdade! Era até capaz de fechar os olhos e me imaginar com as mãos cheias de “santinhos” com o retrato dele, e com bandeiras trazendo o “slogan” de sua campanha. Sabe como ele me “comprou” nesta campanha toda? Com seu plano de mudar o calendário. Afirmava, e isso acontecia sempre que nos encontrávamos, que quando fosse Presidente da República mudaria completamente o calendário. Não haveria dias comuns da semana.  Nada de feira, feira, feira... Só existiriam o sábado e o domingo. E mais ainda, o calendário escolar seria invertido. No período das férias teríamos aulas, e o período das aulas seria transformado em férias! E não era pra eu me empolgar? Estudar só três meses por ano? Inacreditável! Seria a glória! Daí o meu interesse pela campanha e pelo meu ídolo. Ele era o máximo! Quantas ideias maravilhosas! Como eu o admirava!
Hoje, com os meus cabelos brancos, rememoro tudo isso e chego a ter ataques de riso quando penso em algum detalhe particular daquelas nossas conversas. Propostas utópicas! Devaneios... Sandice pura! O pior de tudo é que eu procurava passar essas ideias adiante! Dentro de minha ingenuidade e afoiteza, propagar esta campanha era primordial! Em casa falava com minha mãe, com meus irmãos, com os vizinhos. Na escola, falava com os meninos. Mas ninguém me ouvia. Ninguém se empolgava... Cheguei até mesmo a pensar que o ideal seria levar todas essas pessoas até a casa do Seu João, assim ele mesmo exporia suas ideias e seu programa de governo. Quem sabe assim, as pessoas se motivariam! Que nada... Ninguém queria me ouvir... Quando dava por mim, falando pelos cotovelos, entusiasmado com a campanha, estava sozinho. As pessoas davam-me as costas, e eu ficava pregando no deserto. Achava-as tolas, desinteressadas, burras mesmo! Afinal, não davam ouvidos a ideias de vital importância, a planos que mudariam totalmente suas vidas! Seria uma guinada de cento e oitenta graus! Bobagem... Inútil tentar convencê-las... Eu me sentia mais triste ainda porque percebia a minha incompetência como cabo eleitoral. Nunca poderia ser um deles! Não conseguia convencer ninguém!
E foram muitos meses assim, anos até! De repente, a voz do “Meu Presidente” se calou. Não falava mais... Nem comigo, nem com ninguém. Ficou triste, abatido. Nem engraxava mais os sapatos! Também, não os usava! Só calçava chinelos e quase não andava. Só que uma alegria eu ainda sentia. Não ouvia a sua voz, mas seus olhos me falavam. Seu jeito de me olhar ainda era o mesmo. Transparecia amor, carinho, cumplicidade. Eu ficava tempo ao lado dele, sentado em uma cadeira no canto do quarto. “Meu Presidente” estava muito mal. Eu não sabia bem o que lhe acometia o corpo, mas percebia que estava chegando ao fim. Ao fim da campanha, ao fim da proeza, ao fim da vida.
E o agosto terrível chegou...
Levou, com seus ventos mórbidos e angustiantes, a vida do “Meu Presidente”. Velho amigo!  Meu timoneiro!
Sempre que passo por aquela rua, olhando aquela varanda, vislumbro a sua imagem no mesmo traje de linho, com aquele sorriso zombeteiro, com aquele olhar afetuoso, e com a mesma imponência do “Meu Presidente”.


Regina Ruth Rincon Caires
                                                             





quinta-feira, 19 de março de 2020

Expiação





As cinzas, apesar de sutis, me cobriam – me confundiam. Declaravam que seria ou viria a ser pó, como nas escrituras. Assim fui levado a crer. E sobre essas coisas de sagrado, etc. e tal, já não me meto mais. Não quero mais tomar partido. Durante um tempo fui ferrenho defensor dessas ideias; da sapiência e correção irreprochável dos homens de lá. São só homens, ouvia. Mas são homens com responsabilidades. São homens, talvez, com maior responsabilidade. Têm de dar exemplo.
No alvorecer da vida, muitas e muitas vezes, era contido ao ambiente sacro, por decisão de meus pais. Não os culpo; tentaram, errando, fazer o melhor. Acertaram errando, quiçá, com um juízo de temor e obsessão às determinações de alguns sacerdotes que frequentavam a minha casa – segundo suas interpretações. Eu, menino, já me sentia assaz culpado, um criminoso pelos atos banais de uma vida mundana: aprisionar calangos e animais não domésticos; matar insetos indesejáveis; destruir, com muita energia, formigueiros e afins, para alojar os bonecos dos Comandos em Ação; comprar chicletes com tatuagens autocolantes e fixá-las nos braços e pernas.
Certa feita, padre Jerônimo, num dos almoços regados a vinho e a enormes quantidades de asinhas de frango, uma de suas extravagâncias prediletas – que me fazia questionar o pecado da gula –, para agradá-lo, sobretudo, me encontrou distraído, meio acabrunhado. Em trejeito propenso a me assustar, numa lógica pouco convencional de aplicar “brincadeiras” grotescas, deu-me uma bênção da qual não precisava: “Senhor, que esse menino tome juízo e pare com esses vexames de querer se alijar de seu caminho. Declaro, portanto, segundo as ordens de nosso Senhor, que deverá ser um bom padre, para a expiação de seus pecados!”. E ria, como se não houvesse amanhã. Ria, descontrolado, ansioso por minha resposta; que não veio. Veio, sim, o choro e a procura implacável por meu esconderijo, nos confins do guarda-roupa de meus pais. De lá, por sorte, depois de tanto chorar e dormir (chorando), minha mãe me achou e me socorreu, com um beijo e um abraço apertado; e uma sopinha quente a me esperar. Já não estava lá o pesado homem que, como penitência, decretara que deveria ser padre.
Passei a ter pesadelos, celebrando missas em lugares inóspitos, para as almas e os ventos, que percorriam gelados as minhas espinhas. Não sei bem como sucedeu, mas, tal qual o tempo penoso que demorava a passar, mãe me punia com sua ânsia de querer desvendar a minha arrelia da vida. Naquela época, no final dos anos oitenta, ter um psicólogo era luxo. Fui obrigado a participar de tantas sessões quantas fossem necessárias para mostrar o profundo segredo de meu coração; e, assim, me pôr em ordem.
Foram dias torturantes, porque o senhor psicólogo, mesmo gentil, relativamente ao qual não tenho nada a favor nem contra, passava infinitas horas a me questionar. Eu não queria falar. Eu não queria sair de casa. Eu mal queria sair de meu esconderijo. Eu não queria ser padre. E não sabia ao certo o que queria ser. “Meu filho, olha lá o seu futuro! O presente é atroz; o futuro vem como furacão, mais forte ainda. É bom ir pensando no que vai ser quando crescer”. Esse era meu pai, homem muito pronto, milimetricamente organizado, focado, e me exigia a mesma carga: pronto.
Os meus pesos eram inúmeros, para uma criança de dez anos. Eu, sinceramente, me sentia atulhado, cansado. O psicólogo, por sua vez, se dedicava a me perguntar sobre questões escolares, amiguinhos, vontades, brincadeiras; nada sobre minha vida familiar exemplar. Não apresentando melhora, então, minha mãe resolveu me tirar depois de um ano. Atribuo ser uma decisão errada. Talvez precisasse de mais uns anos. Aos poucos ia soltando, mesmo que com sacrifício, as correntes que me prendiam. Não podia ser tudo de uma vez.
Com treze anos, enfim, sabia definido que não teria nada que ver com as determinações religiosas. Essa consciência eu tinha, agora, por mim. Desvencilhei-me de uma responsabilidade imposta.
Com quinze – para a minha iniciação à vida adulta, refletia –, precisava dar uma guinada drástica: montei uma banda de rock. Meus pais se desesperaram. “O que que você vai ser, Ricardinho, um pronto na vida?”. A prontidão que esperavam, definitivamente, não era essa. No entanto, feliz por mim, por minha coragem de ser livre, entreguei-me. Não sabia tocar bateria – não tão bem quanto desejava –, mas sonhava em me aventurar pelo país e passar os restos de meus dias viajando e tocando em cada estado, ou mesmo no exterior, se a bênção fosse grande.
Passados alguns perrengues, digo que há uma fé aqui; uma fé própria, independente e humana. Não sei como conseguiria ultrapassar os obstáculos se não a tivesse. Quem sabe, de certa forma, ser “padre” é assumir o múnus de cuidado e, nesse sentido, sim, sou cuidador de vidas.






terça-feira, 17 de março de 2020

Caixa de lápis







                                                                     Ontem você me deu uma caixa de lápis usados. Apontei-os e agora estão aqui do meu lado, como se eu continuasse a escrever o que você deixou incompleto. Escrever é continuar. O amor é continuar. Quando eles terminarem, pequenos textos se juntarão, tímidos, concisos, a essa obra reunida que é você.




Créditos da imagem: Gyzelle Góes





segunda-feira, 16 de março de 2020

Via Dolorosa



Via Dolorosa 


I.              Jesus é condenado à morte

O dia da sua morte começou na barriga da mãe. Quando foi espirrada lá de dentro, já tinha o destino do lixo, um amontoado de imundícies no leito do rio, onde catadores bêbados, cachorros magros e ratos enfurecidos disputavam restos de comida. Apodreceu em meio às cascas por algumas horas, mas quis a sorte, ou o azar, que espremesse um choro azedo exatamente na hora em que Madalena, uma das putas da rodovia, fazia o seu ofício. Curiosa, escavou a montanha de entulhos e tropeçou os olhos no bebê, que se mexia muito pouco.


II.            Jesus carrega a sua cruz

Kelly Cristina vingou nas mãos daquela mãe improvisada. E tomou mais corpo do que podiam suportar os olhos embriagados dos catadores e dos drogados que disputavam as margens do rio. Aos 14 anos, já fazia a vida. Aos 16, tinha um dos melhores pontos no calçadão que margeava a rodovia paralela ao rio.  Era a preferida dos motoristas e caminhoneiros, que a recolhiam embaixo do viaduto. Aos 17, mais tarde que a maioria, criou barriga. Como queria ver a cara da criança, escondeu de Madalena a prenhez, até que nenhuma das mulheres teve coragem de lhe fazer um aborto.
Viu a filha nascer bem cedo, numa manhã de sexta-feira, dia de movimento intenso no calçadão. Saiu do barraco, mais tarde naquela noite, banhada e perfumada, apesar do cansaço e das dores. Não sabia que, ao voltar, a criança já teria ido embora. Madalena tinha destino combinado para o bebê e achou melhor lhe dar sumiço sem avisar a ninguém. 
Kelly Cristina, histérica, esbofeteou-a para que dissesse onde estava a filha, mas nunca mais soube da criança.


III.          Jesus cai pela primeira vez

É tarde da noite. Da vida, também. Kelly conhece o veneno que sacia o seu sangue. Vai morrer do prazer que sente pelo sexo de todo dia. Não lhe interessa a saúde que os exames feitos pela ação social das igrejas da vizinhança comprovam, uma vez por ano. Seu corpo morre é de vontade, não de descuido; aquele corpo de curvas sensuais que é disputado sob o viaduto. Há nove anos, provou seu primeiro homem. Tinha gosto de pressa. Nunca mais experimentou coisa melhor que os homens da estrada. Faz com pressa o ofício até hoje. E goza.
Ela olha o cadáver do traficante com quem se amasiou depois de parir a filha sendo levado porta afora. Sem sobressaltos. Ela olha, indiferente, o homem morto, lembrando-se apenas das surras diárias que ele lhe dava. E das pedras de crack que ele trazia. O puto só entregava o bagulho em troca de um boquete demorado. Pau mole de merda, pensava, enquanto tentava acelerar o gozo dele. O único contratempo dessa morte é que agora ela vai ter que arranjar as pedras em outro lugar.
Mais cedo, durante a briga, foi atingida duas vezes pela ponta da faca do companheiro: no bucho e no rosto, no mesmo lugar onde, na véspera, o anel de ouro pesado que ele usava a tinha deixado com um olho roxo. Nada dói. E mesmo que doesse. Ela não tem tempo para cuidar de feridas. Briga de gente é coisa de porrada. Mas a briga deles tinha sido de bicho. No impacto do primeiro soco, cuspiu a gilete que guardava embaixo da língua. Ainda teve tempo pra pensar se queria mesmo ficar sem o macho e sem o crack. A cada indecisão foi atingida pela ponta da faca. Agora, só pensa é na beleza do talho que desenhou com a lâmina na garganta dele. Sorri, imaginando que o vagabundo só deve ter se dado conta de que tinha morrido lá do outro lado, no meio do inferno.
Ali, naquele fim de mundo sórdido, a polícia não tem interesse em saber dos fatos. As meninas mentem por ela. Dizem que quem matou o companheiro de Kelly foi um homem que nunca viram. Entrou na casa, matou, fugiu. Ninguém questiona. Nem a polícia nem os vizinhos. Um traficante a menos distribuindo sonhos de merda. Mais um ponto de vendas liberado pra outro vagabundo fazer dinheiro com o vício alheio.
Quando se levanta da cama na manhã seguinte, Kelly Cristina faz três clientes de uma vez só, no mesmo quarto. Sua pressa está atrasada. Deu para se lembrar da filha; imagina cada dia um rosto diferente para a menina. Pensa nela enquanto faz sexo com pressa na rodovia. Bebe cachaça e fuma uma pedra de crack quando acorda; bebe e fuma entre um cliente e outro; bebe e fuma na cama dura da casa de Madalena, para poder dormir. Não dorme. Imagina o rosto da filha. Chora durante o sexo e crava as unhas nos homens. Depois, se esquece de gozar ou de fingir. Já não é a preferida dos caminhoneiros nem disputa o calçadão. É mulher de beira de rio, de beco lateral.


IV.          Jesus encontra a Sua Santa Mãe

Ontem à noite, desligou os sentidos. Seus olhos amanheceram perdidos nos entulhos do leito do rio. Madalena a encontrou pela manhã, imunda e abraçada às próprias pernas. E se lembrou dela bebê, naquele mesmo lugar, sem forças, coberta pela sujeira do lixo. Os anos a cobriram com a sujeira da vida.
Na casa das meninas, para onde Madalena a levou, Kelly não chora mais. Faz o que mandam, faz o que pode. Sem sexo, sem filha. De vez em quando, uma das meninas lhe dá uma pedra de crack, mas nada é suficiente. Ela precisa de mais. No quarto, treme, sua, grita, se urina. Passa as noites acordada, nos braços de Madalena, que tenta acalmá-la e impedi-la de sair.


V.            Jesus recebe socorro para carregar a cruz

Agora já faz um ano que Kelly trabalha para Ceiça e José Arlindo. Ceiça, uma mulher imensa, simpática e desbocada, que trabalha em casa nos cabelos e nas unhas da vizinhança. É irmã de Madalena. Zé Arlindo, um homenzinho mirrado que encanta a freguesia numa lojinha de frutas no centro da cidade. São amasiados, companheiros plenos. Pertencem a um mundo que criaram só para si. Gostam de Kelly. Fazem dela a filha que os anos não trouxeram. Pagam pela internação, pelos remédios, pelo médico de todo mês. E não falam do dinheiro gasto, só de coisas boas. 
Aos poucos, Kelly controla a depressão. Distrai-se com as clientes de Ceiça, que a tiram da apatia com suas fofocas e gargalhadas. Zé Arlindo, que se ausenta de vez em quando para uns negócios secretos, sempre pede a ela que o substitua na banca de frutas. Kelly Cristina já é mais procurada pelos fregueses do que ele. 
Há muito, tornaram-se amigos. Um sentimento novo que Kelly não sabe se deseja. Ela ainda pensa na filha que não conheceu além do parto; nas cicatrizes que traz no rosto e no ventre; nas pedras de crack que deseja com todas as forças e tremores, todo dia. O mero pensamento na droga já a faz suar e sentir dores fortes na barriga, apesar dos remédios que toma.


VI.          Verônica enxuga a face de Jesus

Esta noite, só esta noite, Kelly quer outro remédio para a agonia que inferniza os seus dias alienados. Quando entra na casa das meninas, suas narinas se fecham, como se assim pudesse impedir o cheiro das lembranças. Ela precisa de Madalena, a única mãe que conhece. Em seus braços, sente-se forte para ir em frente. Forte para se destruir novamente.


VII.        Jesus cai pela segunda vez

Nem faz um mês que Kelly voltou. Nem faz um mês que cobre de novo o mesmo ponto na rodovia, que bebe, que fuma as pedras de crack que troca por dinheiro ou por sexo. É capaz de repetir esse caminho rasteiro quantas vezes precisar. Não se despediu de Ceiça nem de José Arlindo. Teve medo de que eles lhe pedissem pra ficar. Gosta de imaginar que tenham esperado por ela durante alguns dias — precisa acreditar nisso —, mas compreende que os decepcionou como faz com todo o mundo. Por hábito, por natureza.
Não importa. Ela não pensa mais na sujeira que lhe serviu de berço, nem na imundície pegajosa que pegou de cada cliente, nem naquele lixo humano a quem deu fim pelo fio da gilete. Não se assusta mais com a noite que nunca termina. O que ela sente dói além da carne e dos ossos. Uma agonia que não cessa, um descontrole na alma. É dor de cansaço.


VIII.      Jesus fala às mulheres de Jerusalém 

Ela cai no chão, entorpecida pelo crack e pela cachaça barata.  Quer dormir, mas não vai. O que ela vai é se levantar; ela sempre se levanta. Precisa apenas esperar que o corpo elimine os excessos para ser capaz de se reerguer. Mas hoje seu corpo não quer obedecer. Ouve vozes ao seu redor e sente que alguém despeja na sua boca, lentamente, uma sopa cheirosa. Quando um agasalho de lã envolve seus braços enrijecidos, a dor se distrai por uns momentos. Ela agora tem muitas mães. Aperta a mão de quem a aqueceu e, fortalecida pelo caldo, consegue sentar-se, exalando um cheiro de vômito. As mulheres recuam. 


IX.          Jesus cai pela terceira vez

Não, nada mudou. Aquelas senhoras educadas, que exercitam apenas por dever o honroso ofício da caridade cristã, a acusam sem dizer palavra. Ela é apenas uma prostituta drogada.
Levanta-se, cambaleando, e foge do risco de se sentir humana. Ela precisa prosseguir com a noite, encontrar qualquer caralho e trepar muito, gozar, beber, fumar muitas pedras para que a luz da manhã aconteça sem dor. Ou não aconteça.


X.            Jesus é despojado de suas vestes

Cinco da manhã. A madrugada foi um tempo sem clientes. Kelly prefere pensar que está se preocupando à toa e que a escassez não é só para ela. Está sem homens, sem droga. Ninguém lhe dá mais nada se não for em troca de dinheiro. E enquanto cambaleia pensando no que ainda pode roubar na casa de Madalena, para trocar por uma pedra, não percebe os rapazes que se aproximam. Nem suas vozes histéricas nem os risos alterados.
A curra não a viola pelo sexo multiplicado naquelas seis ou sete posses descontroladas. O que a enche de fúria é a impotência. É o consentimento que não deu. 


XI.          Jesus é pregado na Cruz

Debate-se como um bicho até que sente a lâmina gelada entrando no seu ventre, no mesmo lugar em que entrou a outra, mais antiga. A carne fina explode com facilidade e o sangue esguicha nos rapazes, fazendo com que recuem por um instante. Mas logo voltam e a chutam até os entulhos na beira do rio, onde ela se mistura aos restos de comida. Às gargalhadas, perseguem algumas ratazanas e as apanham pelo rabo, jogando-as sobre Kelly Cristina. Depois, entediados, vão-se embora.


XII.        Jesus morre na cruz

Kelly Cristina não sente mais nada. Inspira o fedor da comida podre e aninha-se sob as cascas. Conhece aquele berço fétido. Agoniza em meio ao lixo. Aliviada. Finalmente, é hora de seguir o caminho que vem adiando desde o parto. Madalena não está por perto. Não pode condená-la, mais uma vez, a viver.


XIII.      Jesus é descido da Cruz

Ceiça acorda Zé Arlindo antes que o despertador soe a campainha. Ela não sonha nunca, mas essa noite sonhou com Kelly lhe pedindo um abraço. 
Ceiça se apressa, sem esperar pelo marido. Vai até a casa das meninas. Madalena está em pé na porta, pronta, esperando como se tivessem combinado esse encontro ruim. Tiveram o mesmo sonho.
Juntas, percorrem a pé a trilha das meninas ao longo do leito do rio. As marcas da noite estão nas paredes com cheiro de sexo e nos preservativos usados que servem de rastros. Kelly Cristina espera por elas com os olhos sem viço e a boca entreaberta por onde entrou o último ar da noite. O seu corpo aguarda por um abraço.


XIV.       Jesus é sepultado

A tarde não tem pressa de acabar. No cemitério, Madalena e Ceiça, de rosto seco, consolam as putas da rodovia. Quando estiverem exaustas, consolarão uma à outra. E só então vão chorar.
José Arlindo olha de longe a comunhão das mulheres e pensa em suas frutas para se distrair da falta de ar, da falta de tudo.

É de tempestade o céu que testemunha o caixão sendo engolido pela terra. Mas no outro céu deve ter sol. Lá, deve ter.