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sexta-feira, 30 de março de 2012

Cosmopolita

Francisco Ferreira

Fui deitar-me e havia varandas,
alpendre e trinca-ferros trilando;
havia jardins? Havia...
e flores, à namorada, roubadas.
Havia frutas nos quintais? Havia...
pomares invadidos e risos
de crianças desembestadas, de bocas sujas, a correr
havia estripulias...

Acordei num turbilhão de gentes correndo,
sempre correndo, sem rumos
como quem vai a algum lugar e alhures! Apressados...
A cidade, velha dama provinciana, adoecida
inchando a olhos nus
malta de pedreiros, engenheiros, serventes e pedintes
e de hieróglifos indecifráveis nas fachadas,
ensaios de uma língua natimorta!
Muros, cercas e alarmes trancam sorrisos,
bons-dias e “olha o leeeeeeeeeeeite”
encarcerando em prisão-perpétua
padeiros, verdureiro, leiteiro
extintos, na mesma condenação
de outras dignas profissões abandonadas.

Não compreendo estas janelas
de comportamento inadequado:
sempre fechadas, na escassez de sorrisos...

Biografia
Francisco Ferreira, poeta do interior de Minas Gerais e residente em Betim, no mesmo estado,  com algumas premiações literárias, participações em antologias e dois livros de poemas em gestação.





quinta-feira, 29 de março de 2012

A FOTO DE SÃO TOMÉ

Márcia Regina de Araujo Duarte 

A foto do rosto.
O rosto na foto.
A cara da foto deflagra o mais puro sorriso.
Sonho de liberdade
cultivado na ambiguidade,
dubiedade do Ser.

Por trás, o por do sol,
vislumbrado
de cima da Gruta do Santo.

Como Tomé eu pago pra ver
a beleza que encanta a tantos andarilhos
que em aliança se unem nas mãos
a apreciar a criação.

A foto do rosto
revela o que está por trás:
A imensidão!

O sorriso na foto do rosto
é o semblante de Deus.

E o sol, astro-rei,
se põe placidamente
a encantar a multidão
que lhe observa atentamente
até que seu último raio
suma na linha do horizonte.

O sol se foi,
mas a foto do rosto ficou.
E todos os dias
o sorriso da foto
me transporta ao infinito,
a alcançar novamente
o momento mágico
do mais singular registro:

O por do sol
visto de cima da Gruta do Santo
que paga pra ver.


BIOGRAFIA
Márcia Regina de Araujo Duarte, carioca, Psicóloga, sob nome literário de Regina Araujo, desde 2008 vem participando de diversos concursos literários, tendo sido extensamente premiada em poemas; contos; crônicas e romances, em nível nacional e internacional. Publicou em 2010 - “Caminhos em Descaminhos – Uma Viagem no Mundo Mágico da Poesia”, com mais de 40 poemas classificados em concursos entre 05/2008 e 05/2009; e em 01/2012 lançou “Confrontos de uma PsicoFêmea” – livro vencedor na UBE/RJ em crônicas. Seus textos compõem mais de 40 antologias de classificações em concursos. Participa de inúmeros eventos culturais e literários no Rio de Janeiro, como: Poesia simplesmente, Polem, Corujão da Poesia, APPERJ, UBE, etc.
blog: http://muraldosescritores.ning.com/profile/ReginaAraujo





quarta-feira, 28 de março de 2012

palavras da pedra

Edson Bueno de Camargo
para Nydia Bonetti 

sê como pedra
para saber
os desígnios da pedra

pensar como o veio do granito
e sua alma de magma endurecido

falar as lentas
palavras da pedra
que carregam
mais de mil gerações humanas
em um cristal de basalto

Biografia
Edson Bueno de Camargo - Santo André - SP, em 1962, mora  em Mauá – SP. Publicou: “cabalísticos” Orpheu – Editora Multifoco – Rio de Janeiro – 2010; “De Lembranças & Fórmulas Mágicas” Edições Tigre Azul/ FAC Mauá -2007; ”O Mapa do Abismo e Outros Poemas” Edições Tigre Azul/ FAC Mauá -2006,  “Poemas do Século Passado-1982-2000”, participou de algumas antologias poéticas e publicação literárias diversas.
http://umalagartadefogo.blogspot.com





terça-feira, 27 de março de 2012

O Insaciável

Luiz Semine

Ele é insaciável, tudo devora
Buraco negro permanente
Suga tua alma e tua gente
E recomeça a cada aurora.

Se pensa ser ele decadente
Saiba, age rápido sem demora
Afia e aponta aguda espora
E sangra o alvo inconsciente.

Osco veste mil fantasias
Histórica personalidade,
Monumento da humanidade,
da fauna bicho de valentia.

Aumentando sua validade
Do homem aproveita a teimosia
De papel e metal em garantia
Dar em troca da necessidade.

Por ele se mata, por ele se morre
Tudo pra que se multiplique
É sua natureza que maior fique
Ébrio veneno como um porre.

Faz pensar que és tu quem corre
Atrás dele acelerando o pique
Mas da esfinge és piquenique
E devorado, sobram-lhe as dores.


Biografia
Luiz Semine, 38 anos, é redator e roteirista por profissão. Escritor e poeta iniciante, é apaixonado pela língua portuguesa e, desde cedo, ávido por ler e escrever. Recentemente resolveu tirar da gaveta alguns escritos e participar de concursos. Recebeu alguns prêmios em concursos nacionais de contos e poesias e foi contemplado também no Edital de Apoio a Roteiros de Longa Metragem da Fundação Cultural do Estado da Bahia de 2007. Está se dedicando a ampliar a sua produção de versos e prosas e pretende em breve publicar seu primeiro livro.





domingo, 25 de março de 2012

Sete


7 gatas vadias, em 7 ruas esconsas, escondem 7 sardinhas.

Todas as 7 miam desafios ao dia que passa e para todas as 7 o sol se põe indiferente.

Uma é amarela, outra castanha. Uma tem pintas, outra tem riscas; há uma que tem pantufas, outra que não tem bigode e há uma que tem, na ponta da cauda, um tufo espetado. Uma tem pelos compridos e finos, outra tem-nos grossos e curtos; uma tem manchas negras de pelo lustroso e há outra que tem feridas peladas. Há uma a quem faltam unhas e há outra a quem faltam dentes, uma terceira que é coxa. Há mais diferenças, tantas!

Mas todas miam. Todas têm consigo a capacidade de criar o futuro, quer o tenham concretizado quer não; e todas têm numa rua estreita 1 sardinha escondida, não necessariamente para si.

Há 7 carros velozes, em 7 estradas diferentes. Só há um destino, para as 7 gatas vadias.

Mas as sardinhas, ah! As sardinhas têm todas destinos diferentes...
Uma foi comida pelos filhos, outra pelos pais e uma outra ainda por formigas. Houve uma que deu alento a uma outra gata vadia, outra foi devorada por um cão necessitado. E uma foi roubada por quem não precisava.

E há uma que permanece escondida, à espera da sua necessidade.





sábado, 24 de março de 2012

Quotidiano Fantástico – O Papa-Jornais


Joaquim Bispo









Na minha rua, existe um personagem singular – um comedor de jornais. Devora todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas do café, quer os que o vento empurra rua fora. Uma vez por outra, até já o vi debruçado pela abertura do Papelão.

Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria dele.

A mulher que salga sempre a comida inveja-lhe a memória. O rapaz que sonha com pescarias no tanque do fontanário diz que ele assusta os peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas que plantam jacintos nos charcos da calçada criticam-lhe a voracidade. O oriental, de cujo livro de folhas perenes se escapam, por vezes, pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.

Todas essas queixas recorrentes desapareceram a semana passada, repentinamente, como que por influência dos astros. Quando saí de casa, para comprar as pevides de melão matinais, as conversas esvoaçavam à volta do Papa-jornais. Todos gorjeavam a bondade desta figura grada da terra, que devia dar nome a um dos camiões do lixo, gabando a utilidade da sua preferência gastronómica para o asseio do bairro. E lamentavam-no com lágrimas e meias-de-leite. Disseram que tinha havido uma distribuição maciça de jornais gratuitos e ele morrera de indigestão, mas eu depois li um desses jornais e percebi que não terá sido indigestão mas intoxicação neo-liberal.





sexta-feira, 23 de março de 2012

Os anjos dormem


O homem declara o amor à sua própria vida,
Quando deixa o irmão entregue ao perigo.

Estávamos Camila, Frederico e eu no ponto de ônibus, em frente a faculdade. Enquanto esperávamos, falávamos sobre violência dos dias atuais. Ficamos surpresos ao perceber que nós e nossos amigos estávamos tão próximos de crimes.

Camila nos contou que uma vizinha de sua tia, uma menina, havia sido estrupada na semana passada. O crime aconteceu quando ela chegava em casa. Foi até reportagem na TV, disse Camila. Frederico nos falou, que certa vez fora assaltado quando estava pagando a mensalidade da faculdade. E não foi na rua, foi dentro da faculdade mesmo, renderam os seguranças e levaram o dinheiro da faculdade e dos alunos.

Antes, que eu pudesse contar o que aconteceu comigo, meu ônibus chegou no ponto. Despedi-me as pressas dos meus amigos e subi na condução. Entrei no ônibus pela porta traseira. Aguardei os outros passageiros passarem pela roleta e pagarem a tarifa. Quando chegou a minha vez, paguei a tarifa, passei pela roleta e sentei-me na janela, próxima a porta dianteira, pois ficara melhor para que eu descesse e pegasse outro ônibus para casa.

Encostei minha cabeça no vidro da janela e naquela mistura de cansaço e sono, deixei o pensamento fluir. Pensei na conversa minutos atrás, na violência que falávamos há pouco; percebi que de certa forma éramos privilegiados, pois por mais próximo que estivéssemos de crimes, de área perigosas, nada de grave havia acontecido conosco ou com a nossa família. Sim, é verdade andávamos por bairros perigosos. As cidades grandes tem dessas coisas. Todo mundo pensa que vai conseguir um emprego nelas, então todos se mudam para os grandes centros, as empresas crescem, a população aumenta, mas chega um momento em que não há emprego para todos, então as empresas selecionam melhor. Muitos perdem seus empregos e em um instante se veem sem dinheiro e com contas para pagar; precisam pagar o aluguel, a luz; precisam comer e, quando se tem filhos para alimentar, não é difícil entender porque alguns ficam ficam desesperados. Saem para rua, começam a roubar, mas como nem todas as vítimas tem dinheiro, precisam roubar mais e, às vezes, por medo matam. Logo uma rua ou um bairro que era tranquilo passa a ser perigoso, passa a ser visado por bandidos. O caminho para chegar até casa da minha mãe tornara-se um desses lugares. Imaginar que na minha infância, no verão, corríamos de pega-pega e brincávamos de esconde-esconde até dez e meia, onze horas da noite, sem nos preocupar com assaltos ou bandidos.

Hora de descer. Fui atrás de um rapaz, bem arrumado, carregava uma bíblia no bolso. Pensei comigo não deve ter muito na mesa, mas paga o dízimo todo o mês. Atrás de mim desceu uma menina. Percebi que nós três caminhávamos na mesma direção, até o outro ponto de ônibus. Assim como eu, acredito que eles também estavam cansados e com frio. Meu pensamento estava solto e peguei-me a pensar sobre o frio. A noite não estava gentil, muito frio e vento na rua. O tempo era cruel com os pobres. Com os ricos também, mas os pobres passam mais tempo na rua, desabrigados; os ricos tem seus carros e suas casas. Até casa de pobre era fria, sem ar condicionado ou aquecedor para aquecer a casa. Lembrei uma frase que ouvi de um senhor no ônibus uma vez, "frio existe para matar pobre. Já viu rico morrer de frio?" Aquelas pareciam tão reais agora.

A distância parecia maior do que eu lembrava-me, talvez por causa do frio. Caminhávamos no mesmo passo, o menino mais a frente eu no meio e a moça atrás. Do silêncio dos nossos passos, ouvi um grito "Não se mexa, que te meto bala". Não era comigo, mas olhei para trás, vi que um ferro brilhava no escuro, era uma arma. O rapaz na minha frente também olhou para trás e quando ouvimos "Não corre !!! Que te mato", ambos corremos. Passamos por uma esquina, olhei para ver se a menina também corria, não vida nada. Uma moto passou pela gente, de uma parada, vi que eles nos olharam e seguiram em frente. Enfim, chegamos até o outro ponto de ônibus, envolvidos no nosso egoísmo estávamos salvos. 

Eu e o rapaz chegamos a trocar duas palavras. Já não era tão desconhecido, parecia-me que eramos amigos. O ônibus deles chegou e ele partiu. Quando o meu ônibus chegou, eu ainda estava com medo, mas quando sentei no ônibus e relaxei, outros sentimentos me envolviam. Percebi que havia ganho na loteria da vida, mas não conseguia deixar de ver nas lembranças da minha mente, os olhos daquela menina que pedia ajuda, comecei a ter vergonha; vergonha de ter sido egoísta e covarde; de não ter tido coragem para socorrê-la. Parei e pensei o que poderia ter acontecido a ela. Não tinha ainda pensando nela até o momento. Ela poderia ter ficado sem nenhum trocado, poderia ter sido morta, talvez sido estrupada. Talvez estivesse rindo dos babacas que correram. 

Não sei o que houve com ela, sei que senti-me como um covarde e mal conseguia me engolir. Vi o meu reflexo no vidro do ônibus e não consegui encarar. Tomei uma decisão. Apertei o sinal para descer. Precisava saber o que tinha acontecido, corri até a primeira esquina e nada enxerguei; senti o mesmo medo de antes, mas lembrei do meu reflexo e decidi continuar. Vi que tinha algo no chão, parecia um corpo. Era ela deitada e sorrindo. Um sorriso lindo de quem ri de um babaca. Ouvi então uma voz das sombras “até que enfim alguém apareceu”, quando me virei tudo era escuridão.





quarta-feira, 21 de março de 2012

Catarata


Pela sentida escassez de luz,
sofrem influências as impressões
do impressionista de Giverny.





terça-feira, 20 de março de 2012

O homem só

O homem só não liga por ser só. Acostumou. Casa vazia, cama vazia, peito vazio.
Não por falta de tentativas ou de oportunidades. Até teve. Marias e Tânias, Beatrizes e Lucianes,Glórias e Janaínas. Não se ajeitou com nenhuma. Todas um chiclete: deliciosas no início,sem graça no fim. Foi cuspindo uma a uma.

O homem só sempre foi só. Menino só. Adolesceu e madurou só. Não que não tivesse tido amigos. Até teve. Geraldinhos e Pingos, Xandes e Inácios, Claudios e Marquinhos, Moreiras e Almeidas. Não plantou amizade com nenhum deles. Todos um porre: divertidos no início, enjoados no fim. Foi vomitando um a um.

O homem só tem manias que só ele. Não dorme de luz apagada, se enxuga com toalha molhada, esquece a televisão ligada, não atende telefone por nada. Deixa o celular morrer de tocar. Muitas vezes nem responde a ligação. Pra quê? Para quem? Só se fala ao homem só somente o indispensável.

O homem só se vira sempre só. Não tem nojo de pia, de cueca usada, de pijama amarelado. Cata farelo do chão, passa pano nas coisas, tira teia dos cantos. Lava roupa, lava louça, limpa ralo, janela e panela. Espana a vida sozinho. Não vê do que se queixar.

O homem só tem dois horrores: gente e cebola. A faca que corta a laranja não pode cortar cebola.Fica o gosto e o desgosto. Lembra da mãe desatenta, da avó sem cuidados, do pai caladão.

O homem só trabalha só. Escreve por encomenda, redige por intuição. Ao som de um piano ao longe, inventa um mundo de gente e gente de todo mundo. Conversa com Joões, conta casos para Marias, discursa para multidões, enche a cara com Gustavos, namora Desirées, tem filhos com Rosanas. Vive instantes intensos rodeado de vidas geradas por palavras e expressões. É amigo e ouvidor, conselheiro e fiador, companheiro e porta-voz, inimigo e desafeto de infinitas criaturas. Assim como as cria, mata todas numa teclada só. Quando o tempo acaba, o saco enche, o piano cansa. Aos primeiros acordes ao longe, ressuscita um a um com o elixir da imaginação. Quando o abstrato se dissipa e a concretude emerge esfregando a verdade no seu nariz, o homem só volta a ser só. Tão absolutamente só que não se dá conta que não é tão somente só no mundo.

O homem só tem uma vizinha. Que também é só. Que não liga por ser só. Acostumou. Casa vazia, cama vazia, peito vazio. Não por falta de tentativa. Até quis Maurícios e Joaquins, Pablos e Melquiades, Reinaldos e Beneditos. Mas as tintas do destino também a pintaram só. E só vive a fazer a vida longe da rua, longe de gente, longe de tudo. Tal e qual seu vizinho, o homem só.

A vizinha só não escreve. Toca piano. Pelas mãos que passeiam a bailar, viaja porta afora. Conversa com Marias, conta casos para Joões, encanta platéias distintas, toma chás com Enedinas, namora Adamastores, tem filhos com Rafael, vive instantes intensos inebriada de vidas geradas por notas musicas. É amiga e ouvidora, conselheira e faladeira, companheira e porta-voz. Inimiga e desafeto de infinitas criaturas. Quando a música chega ao fim, de duas uma: ou busca outra no ar, para encher a vida de tantas vidas, ou fecha o piano. É neste exato silêncio que a verdade grita. E a vizinha só volta a ser só. Tão absolutamente só que não se dá conta que não é tão somente só no mundo.

Quando pisca duas vezes a luz na varanda ao lado, iluminando a copa do oitizeiro da calçada, as folhas sombreadas dizem que está na hora. O homem só e a vizinha só, sós como são, a sós se dão.

Não se denominam, mas se desejam. Não se exclamam, mas se beijam.
Não se perguntam, mas se tocam. Não se falam, mas se despem. Não se dizem, mas se apertam. Não se pronunciam, mas se sugam. Não se anunciam, mas se invadem.
E se contraem, e se mexem. E se viram, e se desviram. E se sobem, e se descem. E se ondulam, e se tremem. Até que ela emite um aviso gutural crescente e ele responde com uma respiração ofegante, ibidinosa, satisfeita. Chegam onde querem chegar quase que ao mesmo tempo. Explosões silenciosas, jorros secretos, acelerações,
desacelerações. Altas e baixas de pressões. Restauram-se os dois, pós-gulosos que são. Aceitam-se num carinho breve e infinito, saboreiam um torpor como uma sobremesa dos deuses.Até que se vão. Cada um pro seu canto, cada um para o seu mundo.
Sem uma palavra, sem um "durma bem, meu bem", sem um sorriso só.

Bem, assim era como acontecia.
Mas como tudo que acontece na vida, desaconteceu.

Um dia, a luz ao lado parou de piscar duas vezes. As sombras das folhas do oitizeiro emudeceram de vez. Foi o sinal derradeiro. Ninguém mais se apareceu.

Sem o alento do piano ao longe, cansado de tanto não escrever, tomado por uma inquietude curiosa, o homem só debruçou-se na varanda contígua, pescoço de girafa à procura aflita de suas razões e emoções de viver. Antes que despencasse no jardim, caiu num pranto só. Viu nada, nada, nada. Só uma sala vazia, vazia, vazia.
Sem vida, sem vizinha, sem coisas, nem o piano.

Pela primeira vez, o homem só sentiu a falta de companhia.
E sucumbiu de sua verdadeira solidão.





sexta-feira, 16 de março de 2012

Leito seco

Parou de conduzir o barco para olhar a lua cheia fazer amor com as águas. Depois, lânguido como se tivesse sido ele a penetrar o rio, dormiu sem se preocupar mais com a viagem. Pela manhã, achou-se encalhado num leito seco e magoou-se com a traição das águas vingativas que o tinham empurrado para aquele barro endurecido e fétido.
Inconformado, Orêmio pediu perdão à Perfumada. A tentação de espiar o amor dos outros colocara a coitadinha em sofrimento. Não ia conseguir tirá-la dali, nem iria abandoná-la ao sol que racharia o seu casco. Mas como é que foi que eu me arranchei aqui? ¾ questionou-se, atônito.
Saltou da Perfumada e sentiu lhe corcovearem as solas dos pés dentro da sandália. O calor que brotava do barro arrebentado em fendas subia pelas pernas até quase o umbigo, cozinhando os músculos. Para que lado? ¾ desnorteou-se, procurando algum destino no horizonte estagnado. Mas nada oferecia esperança. A imensidão sem gente repousava morta, como o rio sob seus pés. Não entendia o truque. Arre! Nunca vi rio que seca de repente!  ¾ resmungou para o nada. ¾ Parece até coisa do Encardido!
Fechou os olhos, beliscou os dois braços ao mesmo tempo e estapeou as faces, tentando afastar a visagem. Antes de espiar novamente, ainda benzeu-se. Duas vezes. Que nada! Nem na força, nem na reza! O sol sem piedade continuava lá, esturricando o mar de lama.
Cobriu a Perfumada com uma lona, salvando-a de morte imediata, e decidiu-se pelo caminho rente à proa. Nem bem se afastou três ou quatro metros com os pés largos, sentiu o empurrão. Virou-se, assustado, e estancou sem jeito. Ninguém! Sentiu que por pouco não borrava as calças. Tomou novo ar, olhou para a Perfumada, pedindo ajuda, e deu outro passo, gritando para a imensidão: Vá de retro! Apressou de uma vez a caminhada, afastando-se do barco com passadas decididas.
Sentiu os braços em volta do corpo sem saber que eram braços. Pensou em cordas, em cipós e, finalmente, em polvos, mas percebeu que fossem o que fossem, eram macios. Então, um a um começou a enxergar-lhes os corpos, até que muitos olhos mergulharam nos seus. Fundo. ¾ Qu...quem são vocês?! ¾ sussurrou, incapaz de manter-se homem por mais nem um minuto.
¾ Almas, almas, almas... ¾ responderam em coro.
¾ Asnice! ¾ gritou ele ¾ Essa coisa de fantasma é conto do vigário!
¾ Não somos fantasmas. Somos almas. Almas errantes ¾ corrigiu-o uma mulher idosa.
¾ Errantes? Quer dizer…alma penada?!
¾ Sem direção.
¾ Ora, pois que tomem rumo!
¾ Não podemos. Precisamos de ajuda!  ¾ choramingou uma menina.
¾ E eu com isso?
¾ Você é o guia ¾ lhe disse um homem calvo, vestindo terno e gravata.
¾ Eu?!
¾ O guia ¾ confirmaram duas senhoras.
A coisa tinha passado dos limites. Não havia sonho ou pesadelo que durasse tanto! Como acordar? Ó, Senhor! Eu me alouquei, é isso? Endoideci e não me dei conta! ¾ agoniava-se Orêmio. E nisso que se entregava ao desespero e à incompreensão, sentiu uma mão pequenina apertando a sua.
¾ Bença, padrinho. Quanto tempo!
As veias da cabeça pareciam querer arrebentar-lhe o couro cabeludo. As náuseas converteram-se em vômito e as mãos geladas, mesmo sob o sol ardente, acusavam a doença que o acometia: demência! Pois que mais seria aquela peça que os ouvidos lhe pregavam?! Ele acabara de ouvir a voz de Ritinha, a afilhada que fora encontrada afogada num banco de rio, havia pouco mais de seis meses! A mãozinha da criança, que tanto conhecia, apertava a sua.
¾ Padrinho tá doente?
Não conseguiu responder. Ao seu lado, a menina não parecia gente desencarnada.
¾ O tempo é tão curto, homem, nos ajude! ¾  pediu-lhe uma mulher entristecida.
¾ O que vocês querem? ¾ rendeu-se ao sonho.
¾ Prosseguir ¾ concordaram todos.
¾ Para onde? ¾  perguntou, curioso.
¾ Para onde temos que ir.
¾ E onde é isso? ¾  insistiu ele.
¾ Onde for nosso lugar ¾ disse um jovem.
Orêmio se lembrou da Perfumada. Parada mais atrás, no meio do leito seco, ela parecia assistir à bizarrice sem se importar com o curso da empreitada. Esperaria por ele ali, à sombra da lona que lhe cobria o casco, mesmo que ele demorasse.
¾ É a Perfumada? ¾  quis saber a afilhada.
¾ É sim, Ritinha.
¾ É a coisa que o padrinho mais ama em sua vida, não é?
Pego de surpresa, se deu conta que sim. Nem a mulher, que o esperava de volta a cada viagem, nem os pais, que já tinham partido havia muito, eram tão importantes quanto o barco.
¾ Foi por isso que padrinho foi escolhido ¾ continuou a menina.
¾ Escolhido?
¾ Como guia ¾ respondeu ela.
Era a segunda vez que ouvia o nome.
¾ O que é isso?
¾ É um vivente que Deus incumbe de resolver as pendengas ¾ disse-lhe o homem de terno.
¾ Pendengas...?!
¾ Os motivos que ainda nos prendem aqui, almas errantes. Que não nos deixam seguir em direção ao além. Questões malresolvidas, mortes misteriosas, apego excessivo a coisas humanas, entende? ¾ explicou-lhe, pedante, uma mulher que, soube ele pouco depois, era professora.
¾ E esse guia seria eu...
Como então, não lhe bastava o ofício da pesca, ao qual se dedicava em vocação, embora sempre sem saber do amanhã. Agora, Deus brincava com sua vida!
Ele, Orêmio do Carmo Soares, era um ribeirinho. Homem de águas, de peixes, de Perfumada. O estudo que tinha devia aos padres do colégio franciscano, onde a mãe fazia faxina em troca de pouco salário e de instrução para ele. Era pescador como o pai. Das letras que aprendera a mais que os outros homens do rio, fazia uso apenas para cortejar as raparigas, ou para se impor aos comerciantes velhacos.
¾ Pois digam a Deus, ou a seja lá quem for que esteja impedindo vocês de irem para o além ou para o raio que os parta, que eu não sou guia coisa nenhuma! Era só o que me faltava! Não sou! Não quero ser! ¾ disse, afastando-se, emburrado, das almas que o cercavam.
¾ Vai embora? ¾ quis saber um mascate.
¾ Vou!
¾ E a Perfumada? ¾  perguntou-lhe uma moça pálida .
¾ O que tem ela? Volto pra buscar!  ¾ irritou-se Orêmio.
¾ E se ela não aguentar a espera? E se a madeira ficar quebradiça com a secura? ¾  inquiriu a professora.
¾ Eu volto logo, minha senhora, pode ter certeza! ¾ falou, com maus modos.
¾ De onde? – ironizou um policial que até então se mantivera afastado.
De onde, Senhor? De onde voltar se ainda nem sei onde estou?, desanimou.
¾ Se nos salvar, Deus lhe salva a Perfumada, meu filho ¾ continuou a professora ¾ Esse é o trato.
¾ Trato?
¾ O trato que Ele faz com o guia. ¾ disse um homem calvo, de terno, apontando para o céu — A nossa eternidade em troca do que lhe é mais caro, mais querido nesta vida. Pelo visto, é a Perfumada... Ou não é?
Orêmio sentiu as pernas fracas. A possibilidade de nunca mais tocar em Perfumada apertou-lhe o peito. A companheira dos anos, a confidente das noites não lhe podia ser arrancada por um capricho de Deus! Ele precisava ceder, cumprir, fazer o que lhe fosse pedido. Perfumada não entenderia uma morte em abandono. Não o perdoaria pela ingratidão. Seu caminho era o das águas, como o dele. Em vida; na morte. Nunca aquele leito seco.
Olhando pela primeira vez para os rostos que o cercavam, percebeu que não seria preciso perguntar-lhes as histórias. No fundo de cada par de olhos, enxergou as tais pendências que retinham aquelas almas vagueando pela terra. Viu a vida de cada um. Viu a morte de cada um. Viu o que tinha que ser feito.
A professora assassinada pelo aluno que tinha reprovado. O homem calvo, de terno, morto porque descobrira um desvio de dinheiro na empresa. O policial assassinado por seu parceiro corrupto. A senhora idosa que morrera do coração ao saber que o marido era pedófilo. E Ritinha, a afilhada querida, vitimizada pela violência bêbada do padrasto, e jogada ao rio para que sua morte parecesse acidente.
Uma a uma, as almas gravavam dentro dele informações que ele usaria mais tarde, na capital, para reabrir antigas investigações e criar novos finais. Até que, por fim, viu saltitar, feliz, em direção à bruma, a afilhada Ritinha.
O sol já estava se pondo quando Orêmio retornou, exausto, daquela estranha lida, daquele dia que parecia tão cheio de vários outros dias.
Perfumada o aguardava ansiosa, como só o fazem os amigos e os barcos velhos. Queria saber das histórias. E Orêmio se deitou dentro dela, e lhe falou de tudo. De onde estava escondida a arma que matara a professora. Dos documentos que haviam sido encontrados com o colega do homem calvo, sujos de sangue. Da câmera de segurança que gravara o momento em que o parceiro do policial tinha atirado nele. Do esconderijo secreto do velho pedófilo, onde fotos de meninos e meninas abusados foram encontradas. Da confissão do irmão de Ritinha, que tinha testemunhado a morte da menina e se calado por medo.
Orêmio continua a percorrer o rio, todas as noites, espiando a lua fazer amor com as águas. Depois, se enrosca com a Perfumada e adormece. Ele, agora, tem novo ofício. Espera por manhãs de leito seco.





quinta-feira, 15 de março de 2012

bilhetes para o teatro


Filomena para ali embasbacada com a certeza, vinda nem sabe de onde, que se esperar um pouco, se lhes der azo, surgirá um batalhão. Bichinhos nojentos, congemina Filomena a imaginá-los aos centos nos rebordos húmidos, nos cantos escusos do acanhamento da sua cozinha.
Tinham que sair dos ninhos justamente nesta noite, infeliza-se Filomena Mónica, uma vidinha de casa-trabalho-trabalho-casa, a  desenhar a certeza de que não será hoje que verá as luzes a baixar, mornas, e o pano de boca a correr vagaroso como pestanas a dependurarem-se no olhar da sala.
Filomena que comprou dois bilhetes na primeira fila para ver aquela peça de teatro.
Leu, algures, que aqueles bichinhos cor de merda comem despojos nos lábios do humano que durma num descuido.
Um deles desiquilibra-se e cai sobre o metálico do fogão.
Filomena arrepia-se, mas reage. Pega num pano, largado por ali à toa, humedece-o no correr da torneira, e vai apanhar o animal sem que lhe toque.
O nojo eriça-lhe os pelos dos braços.
Com o cotovelo carrega no botão e solta a tampa do lava loiça, desimpede o cano e, num cuidado imenso, coloca o bicho no sítio preciso para que vá por ali abaixo.
Depois olha o relógio: não terá tempo para exterminá-los e ainda ir ao teatro.
Na borda exterior da chaminé os bichos avançam vagarosos, e Filomena nota que a tinta está em mau estado: estrias, pequenas lascas, um branco mais para o amarelo com ar de cagado.
Sobe para um banco e repete os gestos de apanhar cada um dos animaizinhos com o auxílio daquele pano humedecido. E serão três vezes que Filomena sobe e desce. E serão quatro os bichos que ela joga pelo cano.
Que nem morrerão, pensa Filomena irritada com o incómodo que representam, ainda mais naquela noite.
Umas pestes andantes, rumina. Que nem que percam a cabeça, nem assim, deixarão de deitar ovos. Uns demónios. Umas almas penadas a infernizarem-lhe a noite.
E Filomena numa quase náusea deita o pano húmido no saco do lixo.
Irá exterminá-los, bicho a bicho, ovo a ovo.
Irá fazê-lo nessa mesma noite.
Os bilhetes do teatro que fiquem apodrecendo nas páginas do livro onde os guardou desde ontem, depois do escritório:
 – Dois, na primeira fila  – tinha ela pedido.
Não os há-de rasgar: que os bilhetes fiquem para recordar que, num dia que seria hoje, tinha tido a intenção de ver representada a peça que já leu várias vezes. E que tinha querido fazer surpresa ao Francisco que também gosta de teatro.
Dará jantar ao filho, e pedirá ao marido que leve o menino: que a avó fique com ele e lhe dê almoço no dia seguinte. Terá assim tempo de desinfectar tudo, de envenenar os cantos, de descobrir os bichos ainda a sair dos ovos. E Filomena sente o nojo escorrer-lhe pelo corpo, mas não desiste.
E não irá dizer-lhe como tinha imaginado: Francisco, comprei dois bilhetes para o teatro; deixamos o menino com a tua mãe, sim, Francisco?!
Não lhe dirá isso.
Irá falar-lhe apenas que é necessário exterminar os bichos.
Há-de dizer-lhe:
– É urgente exterminá-los. Será hoje mesmo. Levas o menino para a tua mãe, sim, Francisco?!
E o marido há-de apressar-se a fazer o que é esperado, ele que não saberá que, se não fossem aqueles animais, passaria a noite no teatro.
Filomena há-de ouvi-lo ao telefone:
– Mãezinha, pode ficar com o menino até amanhã depois do almoço?
Francisco a desfazer na totalidade a surpresa que Filomena tinha para ele.
– Não se preocupe, mãe, não é nada demais; eu depois conto. Pode ficar com o menino? pode?
Será assim que o marido irá responder, que a sogra terá perguntado:
– Alguma coisa grave, filho?!
E Francisco desligará o telefone, não antes de dizer, assim como que a colmatar um esquecimento que nem deveria: dê um beijo ao paizinho.  E dirigindo-se-lhe:
– A minha mãe vai almoçar com a tia Gertrudes, mas que sim, que levemos o menino.
E Filomena tirará da cómoda um fatinho azul e uma tshirt com risquinhas e mais uma outra, ambas em tons de azul, e nem dizeres, nem desenhos, e que nem sejam cor de rosa e nem sequer amarelinhas. Que a tia Gertrudes não possa dizer: que mau gosto que tem a tua nora!
Filomena rebuscará na gaveta umas peúgas.
– Cá estão elas! – dirá ao encontrá-las.
E há-de colocar as meinhas no saco juntamente com o pijama e outras peças de roupa, e o urso de peluche. E a chupeta, que o menino ainda a pede quando dorme.
De um lado para o outro, irá até esquecer o extermínio dos bichos e os bilhetes do teatro.  Mas logo há-de sorrir um soriso desconsolado, ao pensar na surpresa que teria feito ao marido.
Filomena que há-de pedir:
– Traz remédio forte, Francisco.
E que o traga em gel, há-de recomendar, que é o mais indicado, terá lido Filomena, ou terá ouvido em algum programa. Ou terá visto na net.


Ela decidida a eliminar todos os bichos nessa noite, grita para que o marido a oiça:
– Francisco, temos baratas na cozinha!








segunda-feira, 12 de março de 2012

Papelão (Mariana Valle)

Eles catam no lixo
o seu lixo, bicho
e você ainda diz
que tem problemas?
Sente só o esquema:
eles dormem num papelão,
no chão.
E você reclama?
Olha o papelão!
Eles não tem
o que comer.
E você o quê?
Vai dizer "dinheiro"?
Para.
O que te falta é
vergonha na cara.





domingo, 11 de março de 2012

Carícias da noite


Atrás da rapariga com sua maquiagem
borrada, existe um discurso masculino sem afetos,
um tratado sem Tordesilhas, uma amorosidade raspante, 
um coro de vozes discordantes, um amor sem amantes, 
fragmentos de almas em desencanto...


Um corpo sem carícias se esvai num céu sem estrelas,
carícias da noite adormecem no colo
Noturno de Chopin.

Entre ruínas e paredes descascadas,
vejo o quadro de Van Gogh caído no chão.
Entre luzinhas coloridas piscantes,
garotas se debatem com suas asas picadas,
no picadeiro da ilusão.

Me enrosco em rabiscos de prazeres noturnos,
sou carimbada  na entrada de bordéis,
extasiada, presenteio a Lua para anjos da madrugada.

Entro em ninhos aquecidos e enterneço aflições geladas.
Saio da visceralidade diurna
e circulo na noite solitária,
com sua chuva persistente,
desfilo com  animais...

Me descontamino das ruas cheias,
e dou colo pra solidão,
escancaro meu corpo em plena Avenida São João,
entre juras e perjúrios, sou pura exposição.

The end





sábado, 10 de março de 2012

Se a felicidade pudesse ser retratada

(Sou eu o protótipo de Papai Noel)


Henry Alfred Bugalho


Alguns dias atrás, eu e minha esposa reviramos algumas fotos minhas de infância: do meu batizado, eu com meu pai de quem mal me lembro, eu e minha mãe ou com amigos, eu-bebê e eu-adolescente.
— Parece que você era feliz — ela comentou, lá pelas tantas.
Pensei um pouco, fitando a mim mesmo tantos anos mais novo, então respondi:
— Todos parecem felizes nas fotos.

Eu não era uma criança triste, disto estou certo. Não havia motivos para isto, não sei nem se eu tinha o direito de ser infeliz. Dramas familiares todos carregamos, mas eu não era triste. Só não sei dizer se era feliz, provavelmente não.
Quando criança e rapazola, eu era do tipo melancólico e introvertido. Tantas dúvidas me angustiavam. Existe Deus? Existe alma? A morte é o fim? Reencarnamos ou vamos para o Céu? Por que existe sofrimento no mundo?
Eram muitas perguntas que me afligiam profundamente. Eu não possuía respostas para elas e, nos incontáveis livros que li, também não as encontrei. Aliás, até hoje não sei respondê-las, mas já não me inquietam mais. Aprendi talvez a aceitar o mundo como a grande incógnita que é, ou talvez tenha sido melhor negar tudo e tocar a vida adiante sem mais estes problemas sobre as costas.

Lembro-me de temer terrivelmente o diabo. Se Deus observava tudo, e o diabo era o grande inimigo de Deus, então ele também deveria observar tudo. Estaria ele embaixo da minha cama, só à espreita?
E eu era tomado por pavor irracional, rezando pais-nossos e ave-marias à exaustão, até conseguir dormir.

Eu era uma criança solitária. Havia amigos, alguns para a vida toda, mas o meu universo interior sempre foi muito mais real para mim. As minhas brincadeiras eram povoadas por uma constelação de seres imaginários, que me divertiam muito mais do que qualquer criatura de carne e osso. Eu criava mundos e personagens, entretido com enciclopédias e seus verbetes de mitologias e heróis mortos, ou com os mocinhos destemidos do cinema e dos gibis.

Já adolescente, assolava-me a certeza que jamais encontraria uma mulher que me entendesse, que aceitasse este meu universo íntimo e particular, esta minha necessidade de ficar quieto ou falar pouco, mas havia me equivocado.

Ainda acredito que a felicidade está dentro de nós, que nada exterior possa causá-la. Alguém é feliz naturalmente, ou não é. Todavia, descobri que um grande amor pode ser uma das maiores alegrias na vida de uma pessoa. É uma pena que sejam tão poucos os agraciados nesta loteria!


Outro dia, eu e minha esposa revimos algumas fotos nossas destes quase doze anos juntos.
Qualquer um que as visse poderia facilmente comentar:
— Parece que vocês eram felizes.
— Todos são felizes nas fotos — seria a resposta esperada, pois esta é quase uma obrigação diante de uma câmera. Ninguém pode estar sério que alguém já grita, "Cadê o sorriso?". Em algumas máquinas há até uma função que detecta o sorriso e só fotografa se todos estiverem mostrando os dentes, mesmo que de falsa felicidade.
Felicidade, genuína ou artificial, é o que devemos fatalmente ostentar num retrato.
Mas eu e minha esposa fomos e somos felizes, além dos sorrisos ensaiados, além do tempo que passa e desgasta tudo na vida.
Somos e fomos felizes, e a nossa felicidade, a mesma do dia em que nos conhecemos, foi congelada em nós como numa foto esmaecida de outrora.


Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
http://www.henrybugalho.com/





sexta-feira, 9 de março de 2012

O Primeiro Conto da Vida de Claudialberto


 Foto: "Bathtub, Minneapolis, MN, 1987.", by Maggie Osterberg
http://www.flickr.com/photos/mediawench/4685205907/

Criou um clima.
Fechou as cortinas do apartamento.
Acendeu velas aromáticas.
Desnudou-se...
E ligou para o tele-sexo, antes de se embebedar na banheira.
------------
por, M.M.Soriano - m.m.soriano@gmail.com





quinta-feira, 8 de março de 2012

a flor esquecida




encontrei uma flor agarrada à chave da grade
a chave é igual à minha

onde vivo todos têm uma


     a grade que abre
     divisa os espaços apartados
     do espaço comum

     lá
     acima de onde vivemos
     põe-se limpo e úmido ao sol
     aquilo que nos veste aos olhos alheios

era uma bela flor esquecida
    
     um convite ao passeio

saquei-a à grade
levei-a no bolso

enquanto estendia ainda noite o que me veste
para esperar a manhã desde o início
       
     que hora me resta para desvestir-me
     e lavar das roupas o suor do dia?

fiquei tentado pela vontade de mantê-la

     quem dará falta dela
     se dela se esqueceu?


a chave pouco importa
onde vivemos
compartilhamos um mesmo segredo

     ou dois, mas um dá para a rua
     esse, o da grade, só nós, os que vivemos dentro, vemos


quem descuidou à flor
hora ou outra dará pelo descuido
e voltará para reavê-la

devolvi-a, pois, à grade donde a tirei
essa flor também não era minha
como pude querê-la

     deus, e como não?


quem a perdeu
se alegrará de encontrá-la lá

     quiçá nem perceba que andou passeando comigo
     esteve em minhas roupas
     e no espaço em que me aparto


a mim
valeu-me mais ter comigo a flor esquecida um momento
que ficar para sempre com ela
deu-me
     decididamente
um pouco de poesia











publicado originalmente em: http://poeticaipsisverbis.blogspot.com/2012/01/34-flor-esquecida.html





quarta-feira, 7 de março de 2012

João Istanbequi


(por Ramon Barbosa Franco)

Inspirado em "Ratos e Homens", de John Steinbeck


Era quente como na cidade anterior. Os dois boias-frias chegaram na plantação da usina a pé, vieram caminhando como de costume. O trabalho era no corte da colheita de cana e o manto verde se prolongava por aquele solo paulista, da ponta Oeste do Estado que estava praticamente infestado de cana e fuligem. Jorge, mais ligeiro e esperto, conduzia o colega, Lauro, corpulento e manso. De repente, Lauro estica a mão fechada para Jorge:
"- Ele parou de respirar..." - e, em desespero de criança, passa a chorar - "... o Zé Chico não quer mais respirar Jorge!"
Jorge pega o rato nas mãos:
"- Lauro, este é o quinto Zé Chico que você mata! Você, sua besta, você não sabe que ele é fraco! É um ratinho pequeno porra!"
Lauro, se ajoelha e chora mais forte.
"- Desculpa Jorge, desculpa..."
Jorge, olha para o lamento do amigo, num arrependimento por ter gritado com tão inocente criatura, apesar de monstruosa de grande, manda o Zé Chico para o meio do canavial. Lauro se levanta, se dá conta de que não terá mais Zé Chico por perto e corre para o meio das canas, na tentativa de encontrar o roedor.
"- Deixa isso aí, merda!" - esbraveja o amigo.
"- Cadê?! Cadê?! Cadê o Zé Chico?!" -  e para o amigo - "Acha ele Jorge, acha ele Jorge"
Jorge, insatisfeito, deixa o matulão no chão e caminha na direção para onde mandou o rato, por sorte acha o bichinho largado no chão.
"- Tá aqui, tá aqui todo quebrado..."
Lauro, ainda triste:
"-Enterra ele, Jorge. Enterra, enterra ali na sombra daquela paineira"
"- Pra quê? A gente tá aqui de passagem, depois da safra nunca mais a gente volta aqui"
"- Ah, mas quem sabe um dia eu volte para rezar para o Zé Chico..."
Era um paineira, e como estava quente, a sombra convidava para um descanso. Jorge cedeu ao pedido.





Apenas planos tolos

Ou "tolos feitos de nada"
Nail Sticking Out of Wall

E se tivesse feito tudo
o que há
tanto prometera?

teria o rosto de seu mestre
emoldurado, pregado na parede
próxima à porta e sorrindo

como se soubesse como
se aprovasse, como se disse
"bem-vinda, filhinha"

como se fosse
mesmo seu
pai

e sobre ele estaria um nome
imitando aquele um dia
escrito à mão

e ao seu lado estaria outra
memória que a considerasse
boa

e aos seus pés
[como se uma cabeça
flutuante os tivesse] uma planta

num cachepô
[antúrios, talvez, vermelhos]
daria uma falsa impressão

de.vida
ao passado
e aos seus mortos.

Talvez se o tivesse
ali tudo fosse
diferente

mas nem sequer o tinha
tirado dos planos
já vencidos

e na parede branca e vazia
um prego permanecia
em sua eterna espera

e a ele mantinha enrolado
o grande rosto numa folha
de papel [A3]

[e não havia na parede nem
na foto ou na folha alta
qualidade]

deixava desbotar seu ídolo
selado num armário
assim como outros tantos

planos repletos de
[e incompletos por]
'e se','como se' e 'talvez'

apenas planos tolos
feitos de nada
além de papel.





segunda-feira, 5 de março de 2012

Sem escolha

foto: Raul Garré


Se eu pudesse escolher
Iria querer te ver
Numa tarde de chuva
Sob alguma marquise
Coração palpitando
Parecido com o meu

Aí então...

Eu não teria escolha.





Infortúnio

foto: Daniel Moreira


O silêncio de novo
Ouço luzes e vultos sangrentos
Os mesmos operários do medo
Que assolam o meu quarto de estar

O infortúnio trouxe o desalento
Paredes vestidas de luto na esquina
Fotografias marcadas e cartas rasgadas
Jogadas no lixo
Pela janela do quarto andar

[ilusão

O fim como começo
O mundo inteiro do avesso
Girando sem parar.