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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O Conselho de Barinak

 

 
Na Madrugada dos Tempos – Parte 17
 
 

Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição

venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence.

Agostinho Silva

Filósofo, poeta, ensaísta, professor e filólogo português

(1906-1994)

Depois do choque inicial e da alegria dos hati, que se encontravam a acompanhar o ferido Tibaro, pela chegada dos seus conterrâneos, foi a altura de tratar dos assuntos mais práticos. Zia e as suas noras, Damla e Nadire, organizaram junto do povo a libertação temporária de algumas casas, para hospedar os estrangeiros. Os visitantes, no entanto, não mostraram grande simpatia pela ideia de serem separados. Os burros que acompanhavam a comitiva traziam o material para erguer as tendas com capacidade para os alojar a todos e aceitariam apenas que lhes indicassem o local para as montar.

Apesar da alegria de ver o seu filho vivo e a recuperar, o aspeto de Barinak, de que tanto ouvira falar, deixara-o tremendamente desiludido. Não passava de inúmeros casebres, onde as pessoas viviam como se fossem selvagens, sem roupas adequadas… e sem se lavar, conforme o seu nariz que não cessava de o informar. O próprio déms pótis vivia numa palhota daquelas, em vez de ter uma verdadeira casa com várias divisões, onde residir com toda a família. Como eram pobres e desengraçadas aquelas casas redondas comparadas com as belas e alvas casas de Hatiweik.

Erem levou Mirsulo e Savírio a ver o santuário, do qual os dois estrangeiros ouviram falar lá na sua terra, mas eles não pareceram muito impressionados. O curandeiro caminhou por entre as pedras, afagando com mais atenção aquelas que haviam sido diligentemente esculpidas por Asil. O chefe estrangeiro olhou pensativamente para o círculo inacabado e decidiu, contra a vontade do companheiro, que deveriam orar a Tarunte naquele local, como agradecimento pela salvação de Tibaro.

Mais tarde, os estrangeiros reuniram-se aos seus homens para serem iniciadas as montagens dos alojamentos onde passariam a noite.

Erem e Zia observaram o afã dos estrangeiros a erguer as tendas onde pernoitariam e logo ali comentaram a fantástica tenda central, maior que quatro das casas de Barinak juntas. Parecia impossível como podiam ter tanto tecido para tantas tendas, tão grandes e como montavam as estruturas tão rápido, prendendo-as ao chão com estacas e cordas. As roupagens deles, as armas, por ali se via possuírem conhecimentos muito superiores. Podiam ser um amigo poderoso, ou um inimigo muito perigoso.

Mirsulo e Savírio recolheram-se à tenda principal e mandaram chamar os homens que haviam ficado na aldeia com Tibaro. Era óbvio que queriam saber de tudo sem serem ouvidos e sem interferências. Erem, por sua vez, foi para a casa da reunião e mandou chamar Alim, Tailan e Lemi. Este último chegou apoiado num pau e com aspeto bastante débil; já estava febril há vários dias e as mezinhas de Nehir não pareciam nutrir qualquer efeito.

Erem queria saber o que achavam os seus amigos/conselheiros, dos visitantes e como deveriam agir para com eles. Todos concordavam que deveriam agir com cautela. Alim já conhecia Hatiweik, o seu povo e o déms pótis anterior, Taramor, que deveria ser o pai de Mirsulo; não achava que fossem perigosos, a menos que houvesse algo que eles quisessem muito e fosse-lhes recusado. Eram uma povoação com muita gente e aqueles homens que faziam parte da comitiva era uma pequena amostra de quantos podiam ser reunidos para a guerra. Negociara várias vezes com pessoas de lá e, embora tivesse de deixar algumas das coisas que trocara, como pagamento por comerciar, nunca teve problemas com eles.

— Não entendo. — O chefe franziu o sobrolho. — Deixar coisas? Então ias trocar coisas com o povo e tinhas de deixá-las?

— Não todas. — Esclareceu Alim. — Como era de fora de Hatiweik, tinha de pagar o que eles chamam taxa de comércio. Deixava uma cabra, às vezes três galinhas.

— A quem? — Erem insistiu.

— Ao déms pótis. — O antigo comerciante sorriu.

— O chefe? — Também Lemi estava confuso. — Ele andava pelas casas a pedir as coisas aos comerciantes?

— Não! — Alim soltou uma gargalhada. — Toda a povoação é cercada por muros altos e só se consegue entrar por dois ou três passagens onde estão homens do déms pótis a guardá-las. Se estás a sair da povoação com coisas que estás a comerciar, ou não és de lá e estiveste a fazer negócio, ou és de lá e vais negociar para outro lado. De ambas as formas tens de pagar a taxa ao déms pótis. Os homens e mulheres que vivem lá dentro também têm de pagar pelas coisas que fazem e trocam, também aqueles que trabalham os campos fora dos muros, ou os pastores e caçadores.

— Assim ele tem tudo sem fazer nada… — Concluiu Tailan. — Já vi essa povoação há muito tempo, mas nunca estive lá dentro.

— A verdade, — acrescentou Alim —, é que ele assegura a defesa da povoação com homens armados e esses homens recebem bens pelo seu trabalho. Claro que ele tem de tudo para si e para a sua família sem precisar de ir pescar, caçar ou trabalhar a terra. Mas todos pagam com a satisfação sabendo que não vão ser atacados por ninguém porque terão quem os defenda. Se alguém roubar alguma coisa a outro é castigado com chicotadas ou podem até cortar-lhe uma mão, os homens do déms pótis encarregar-se-ão disso.

Os outros três exibiram expressões de espanto e horror.

— Nós também cuidamos uns dos outros e se alguém achar que outro lhe tirou algo que lhe pertence vêm até mim e aceitam a minha decisão. — Observou Erem. — Se nos atacarem, vamos defender-nos. Todos caçamos, trabalhamos as terras e temos porções de comida iguais, eu encarrego-me de que assim seja… ninguém tem de me dar nada por isso.

— Se tivesses muita gente para todo o trabalho, não terias de o fazer. — Explicou Alim com simplicidade. — Só precisarias de dar as ordens.

O chefe calou-se por momentos, meditando nas explicações do conselheiro.

— Então achas que Mirsulo tem muitos homens e mulheres prontos a servi-lo, dentro da sua povoação? — Lemi mostrou-se preocupado. — E, portanto, uma grande força para lutar?

— Não tenho dúvidas. — Retorquiu o visado como o acenar de confirmação de Tailan. — Se, apenas para ir buscar o corpo do filho, traz consigo tantos homens como conseguiríamos juntar para uma luta, terá muitos mais, para defender a sua povoação e para manter a alimentação de todos.

— Devemos temê-lo, portanto. — Concluiu Erem com os olhos fixos no vazio.

— No mínimo, respeitá-lo e agradá-lo. — Alim acenou afirmativamente com a cabeça.

— … sem mostrar medo ou fraqueza. — Acrescentou Lemi, por entre o seu respirar difícil. — Devemos ser hospitaleiros, mas apresentarmo-nos como iguais.

— Agora que já tem o filho dele, e vivo, ao contrário do que esperava, que acham que fará agora? — O chefe enfrentou os seus conselheiros.

— Como o acho um chefe bom e justo, — começou Alim —, acho que quererá regressar à sua terra rapidamente para mostrar a todos que o seu herdeiro está vivo.

— Também pode voltar mais tarde com ainda mais homens e levar todos os alimentos que temos. — O tio do chefe continuava a temer a força do hóspede. — Viram que estamos preparados para nos defendermos, mas que somos poucos, comparados com eles.

— Não me parece que seja esse o modo de agir deste povo. — Interveio Tailan. — Como nós, estão fixos numa localização. Não são como os nómadas que podem destruir tudo numa região e depois simplesmente mudar-se. Eles devem preferir manter a amizade com os vizinhos, aumentando as possibilidades de comércio e mais vantagens para ele e sua família.

— Também concordo. — Afirmou Alim.

Lemi sentia-se um pouco perdido nesta nova teia de relações. Antigamente, as tribos seminómadas festejavam quando se encontravam e apenas se deviam temer nos períodos de fome.

— Então, — concluiu Erem —, devemos temê-los, mas mostrarmo-nos iguais. Respeita-los, mas não demonstrar fraqueza. — O chefe sorriu. — O meu filho Naci concordaria com essa última parte. O resto, duvido muito.

Tailan e Lemi acenaram afirmativamente.

— Naci tem-se dado muito bem com os estrangeiros. — Ressentiu-se Alim com uma expressão triste. — Mais com esses estrangeiros, do que com todos nós que vivemos aqui e partilhamos estas terras com ele. Pode ser que a sua atitude em relação a nós mude daqui para a frente.

— Pois chamemos então os nossos hóspedes. — O chefe ergueu-se decidido. — Partilharemos aqui a última refeição do dia com eles. Chamem as vossas mulheres e filhos. Vou escolher os nossos melhores para dançarem em volta da fogueira… dançarão a vitória sobre os homens-macaco e como caçamos e matamos os nómadas que nos roubavam. Perceberão que desafiar-nos tem consequências.

Os outros homens levantaram-se de seguida imitando o chefe. Tailan, com uma expressão divertida, curvou respeitosamente a cabeça e respondeu:

— Será como dizes déms pótis.

Manuel Amaro Mendonça

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16 - A embaixada

Parte 16 – A Embaixada

 

A seguir:

Confraternização

Na Madrugada dos Tempos-Projeto

Na Madrugada dos Tempos

 

 





quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Definição

 


 





domingo, 17 de dezembro de 2023

Antigo instrumento

 




Então, ela foi reformada. Um velho instrumento que me foi dado quando eu tinha treze anos. Em função de alguns fatos, ela acabou não sendo descartada e por fim retornou a mim. Assim que tive dinheiro e vontade, decidi ressignificá-la totalmente. Foi preciso trocar de braço para que seu principal problema fosse corrigido. Porém, ele não foi jogado fora, pendurei-o na minha parede, símbolo de mim, como aquela escultura que representa eu e meus irmãos, antes de nascermos. Uma espécie de sinal de via-férrea, que, ao invés de avisar que aqui passa um trem, existe aqui um olhar terno e conciliador manifestado através dos power-chords que aprendo com meu sobrinho nas aulas de guitarra.










domingo, 10 de dezembro de 2023

Meu primeiro Natal sem Papai Noel

 


Cedo, acordei meu pai. Era o dia combinado para a montagem da Árvore de Natal. Sentei-me ao lado dele na mesa do café da manhã para garantir que começássemos logo. Finalmente chegou a nossa vez de montar a árvore, escolher os enfeites, as cores. Minha mãe também enfeitava a árvore, porém temos o gosto um pouco diferente uma da outra. Pelo meu tamanho, não consigo fazer tudo sozinha e meu pai aceita mais as minhas ideias para a decoração.
Subimos ao sótão e descemos o material. Peguei várias caixas de papelão com as bolas e enfeites de Natal. Minha árvore seria colorida. Também teria muitas luzes de tom azul.
Meu pai armou a árvore com a maior paciência e arrumou cada um dos galhos com muito cuidado. É inacreditável como algo daquele tamanho cabia numa caixa tão pequena. À medida que a árvore crescia, ele explicava que cada um dos enfeites tinha uma simbologia, um número certo de bolas, de sinos, de anjos e até me disse o que representavam as bengalas.
– Não são doces, papai?
– As bengalas representam os cajados dos pastores e do Pastor maior, Jesus Cristo, que conduz o seu rebanho rumo à salvação – disse papai.
– Muito legal tudo isso pai, mas eu quero muito mais na minha árvore, preciso enchê-la de enfeites. Colocamos as doze bolas e os três sinos na parte da frente, mas quero colocar muito mais nas outras partes dela.
– Claro querida, ela é sua!
Depois de tudo montado, restou colocar a Estrela-Guia no topo da árvore. Meu pai segurou bem firme a escada e eu, esticando o braço o máximo que pude, coloquei-a. Foi como se eu exibisse o meu troféu.
Olhei com atenção para o pinheirinho e achei que estava faltando alguma coisa.
– Pai, onde está o Presépio? – perguntei.
Para minha surpresa ele apanhou uma caixa nova, abriu com todo cuidado e começou a desenrolar cada uma das personagens que representavam a Natividade. Era um Presépio bem maior que o que tínhamos.
Me detive aos Três Reis Magos, questionei:
– Por que eles entregam presentes ao Menino Jesus?
– Era costume, quando se visitava um rei, presenteá-lo. Eles haviam seguido a Estrela que, segundo as profecias, os levaria ao Rei dos Judeus. Nem imaginavam que encontrariam um Menino humilde, um Pai dedicado e uma Jovem Mãe que adorava o filho. Mas reconheceram sua realeza, reafirmada pelos anjos que os orientaram.
– É por isso que ganhamos presentes no Natal?
– Alguns dizem que sim e que mais tarde o Papai Noel assumiu o papel de distribuir presentes para as crianças, como uma forma de se lembrar do Espírito do Natal.
– Como na história do Nicolau, naquele filme que assistimos?
– Sim, querida.
Chegou a hora certa. Eu faria a pergunta que não saia da minha cabeça desde o começo do ano, mais precisamente desde o início das aulas, quando eu entrei no sexto ano. Eu perguntei para minhas amigas o que elas haviam ganhado do Papai Noel e elas riram de mim, me chamaram de criancinha ingênua e me disseram que o Papai Noel não existe, que são nossos pais que compram os presentes e os colocam debaixo da árvore no dia de Natal.
– Pai, Papai Noel existe mesmo?
– O que você acha? – respondeu-me ele com uma pergunta.
– Eu sempre acreditei na existência dele, mas estou com dúvidas. Na escola eu sou a única que acredita. Acredito porque você sempre me contou histórias dele e garantiu que ele existe.

– É bom ou não que ele exista?
– Pai, não fuja da minha pergunta. Por favor, ele existe ou não existe?
– Para mim, sempre existiu. – Afirmou papai.
– Então me diz uma coisa. Por que no Natal do Ano passado você me fez aquela pergunta quando estávamos no shopping?
– Que pergunta?
– Você queria saber o que eu havia pedido ao Papai Noel em minha cartinha. Insistiu para que eu dissesse, melhor, insistiu que eu mostrasse na loja de brinquedos o que era. Depois você saiu, enquanto eu e a mamãe fomos até uma outra loja e, depois, encontramos o senhor voltando do estacionamento.
– Só fui levar algumas das sacolas e pegar o cartão do estacionamento que eu havia esquecido dentro do carro.
– É! Coincidentemente, o presente veio embrulhado com o papel da loja onde eu lhe mostrei o brinquedo!
– Entenda, o Papai Noel fez de tudo para lhe agradar, por ser uma menina boa. Até o papel da loja ele foi buscar!
O olho direito do meu pai começou a tremer e ele não consegui olhar diretamente nos meus olhos. Será que poderei continuar confiando nele? Se o Papai Noel não existe, será que meus pais contam outras mentiras para mim? – Fiquei pensando.
O Menino Jesus já estava na manjedoura. Pronto! A árvore estava concluída. Eu saía para dar a notícia para a minha mãe quando meu pai me chamou:
– Filha, ainda não arrumamos a lareira. Precisamos pendurar as botas!
– Acho que não será preciso.
– Não quer nada neste Natal?
– Querer, eu quero.
– Então, se não pendurar as botas, onde colocará a cartinha para o Papai Noel?
– Papai Noel existe?
– Para mim, sempre existiu. – Reafirmou meu pai.
– Pai, não sei se acredito em você.
Senti a tristeza no olhar de meu pai e vi uma pequena lágrima escorrendo em sua face.
– Filha, algumas coisas em nossa vida são mágicas e precisam de fé. Fé é acreditar em algo que não se viu, que não se sentiu no momento em que aconteceu, mas que existem sinais e testemunhos de que são reais. Temos elas como verdade e que nos faz bem acreditar.
– Assim como o nascimento do Menino Jesus?
– Sim, como o nascimento Dele ou como nos ensinamentos Dele.
– Mas com o Papai Noel é diferente. Eu estou vivendo isso, sentindo isso, não é preciso que alguém me conte sobre isso, pai.
– É, você já está mocinha, pode fazer as suas escolhas. Sempre pôde escolher no que acreditar. O que eu posso ainda lhe dizer é que eu continuo acreditando na magia do Natal, na vinda do Salvador e isto me faz bem.
– Pai, vou continuar acreditando em você. Vou fazer a cartinha.
– Que bom!
Ele me deu um abraço bem forte.
– Pronto, as botas já estão penduradas. Quando quiserem, você e seus irmãos já podem colocar as cartinhas.
– Certo, a minha carta vou lacrar e a minha bota fechar com cola quente.





sábado, 9 de dezembro de 2023

Drama


Ansiosa, vê-o deslocar-se pela divisão soturna, misto de sala e cozinha, com a segurança de quem memorizou há muito os percursos mais curtos e eficientes. A cadeira de madeira é incómoda, mas nem se atreve a mexer-se receosa de que se der nas vistas a expulse apesar da tempestade. Sente-se uma intrusa na casa onde nasceu e de onde foi levada aos três anos, logo após a morte da mãe. Poucas ali viveu depois disso, mas do pouco que recorda a sala está diferente, mais austera, sem nada de supérfluo exceto uma pequena moldura barata com a foto da mãe.

Fora uma péssima ideia ter feito a longa viagem até à aldeia, mas não tinha dinheiro nem para onde ir e um pai sempre é um pai. Mas fora um tremendo erro ter gasto assim os últimos tostões. A expressão que lhe vira quando lhe tinha aberto a porta provara-o. Se não tivesse começado a chover fortemente naquele momento exato e ela com a filha nos braços nem a teria deixado entrar. Assim, de mau modo, indicara-lhe um pequeno sofá desbotado a um canto onde a deitara, tapando-a o melhor que podia com o seu próprio casaco, apesar de ter apanhado alguma chuva.

Via-o agora a caminhar de um lado para o outro, ignorando-as totalmente, a preparar uma refeição que só esperava poder partilhar. Nada comera todo o dia, poupara o pouco que lhe restava para a camioneta e para o táxi até ali.

Nem podia sentir-se ofendida, o pai, afinal, não era seu pai, como lhe revelara a tia antes de morrer. Nascera fruto da violação da mãe por um antigo namorado, que nunca lhe perdoara ter escolhido outro. A mãe nunca recuperara totalmente, tendo definhado até morrer. E ela fora logo recambiada para casa da tia, com o pretexto de que um homem sozinho não saberia criar uma criança. Mas a razão era outra, muito loura e de olhos claros, tinha herdado os traços do pai.

Apesar de imóvel, a sua mente trabalhava a cem à hora, tentando encontrar argumentos para o convencer a deixá-las ficar, pelo menos até descobrir um modo de refazer a vida. Não tinha culpa do que acontecera à mãe nem de ter perdido a tia, ficando sozinha aos dezasseis anos, tendo então sido recambiada para a aldeia de um pai que mal conhecia e que claramente não a queria ali. O namorado, bom, esse era culpa sua, mas fora apenas uma tentativa de escapar do tédio sem futuro daquele povoado perdido nos montes e que tivera más consequências quando as promessas de diversão e amor se converteram em pequena criminalidade, traições sem fim e finalmente o abandono quando a presença de uma bebé se tornara demasiado incómoda para a vida de farra que pretendia ter.

E aqui estava ela, sem estudos, sem nada saber fazer, sem dinheiro ou casa e com uma filha nos braços. Esta era a sua última esperança. Se não a aceitasse de volta, não fazia a menor ideia do que poderia fazer, passara os últimos meses em pensões cada vez mais manhosas, as únicas que um outro trabalhito lhe permitiam pagar, mas esses escasseavam cada vez mais, havia muitos desempregados, porque empregariam alguém sem aptidões?

Foi com alívio que viu que, de má vontade ou não, tencionava dar-lhes de comer. Pelo menos encheria a barriga por uma vez e mal seria que não as deixasse passar ali a noite, era tarde e lá fora a tempestade aumentava de tom. Bem comida e com uma noite bem dormida, as coisas talvez parecessem menos trágicas de manhã.

De repente, reteve o fôlego. A filha virara-se, claramente pouco confortável no velho e estreito sofá, ficando agora deitada de costas. E numa das suas idas ao armário que lhe servia obviamente de louceiro e despensa, o pai parara de chofre, ficando a observá-la. Depois, da última prateleira do armário, tirou uma manta que mesmo de longe parecia bem fofa e quentinha. E, com todas as cautelas, aconchegou-a em torno da neta de dois anos que nunca vira e que tanto se parecia com a mulher que adorara e cuja morte o transformara numa espécie de zombie, sem vontade ou emoções.

Luísa Lopes





domingo, 3 de dezembro de 2023

NA LÁPIDE

 

 

                                             (Lápide de Augusto dos Anjos)

Por Milton Rezende


Poeta, venho visitar

o teu túmulo de ossos

(o que restou de ti

nessa existência às avessas).

Mas os teus versos,

inscritos na vida

como numa pedra tumular

do tempo eterno,

subsistiram aos vermes

que agora me espreitam

e até mesmo a essa imensa

capacidade de esquecimento

que adquirimos como herança.

E é por isso que estou aqui,

e não para prestar homenagem

a uma pequena porção de terra

onde te esconderam na ilusão

de privar-nos de tua sábia

e triste companhia que amamos.

E através deles (os teus versos)

tu nos comunicaste o sentido do efêmero

e a maneira mais artística e correta

de desconsiderá-lo.

 






terça-feira, 28 de novembro de 2023

A Embaixada

 

 
Na Madrugada dos Tempos – Parte 16

O que faz que os homens formem um povo é a lembrança das

grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras.

Ernest Renan

Escritor e historiador francês.

(1823-1892)

Os dias estavam mais claros e o frio já não mordia os ossos com a mesma intensidade. Havia um vento suave que acariciava a planície e trazia o cheiro de primavera. As montanhas distantes, porém, continuavam com os cumes alvos, os ursos não deviam aparecer por enquanto, mas não tardariam.

Erem sentia-se cansado e não ficou nada aborrecido quando os caçadores disseram que não havia necessidade de fazer parte dos grupos. Graças à franca colaboração com os estrangeiros residentes e agora reforçados com os companheiros do convalescente Tibaro, havia homens e mulheres suficientes para a caça. Os seus quase quarenta e oito anos pesavam-lhe e o frio do inverno parecia não lhe ter ainda saído dos ossos, mesmo ali, sentado ao sol à porta da sua casa redonda.

Com os olhos fechados, deixando-se levar pela letargia, começou a chegar-lhe ao ouvido um rufar longínquo. Ergueu-se subitamente desperto. Recentemente acordaram que haveria sempre duas pessoas de vigia, durante o dia, no alto de um monte próximo. Quando fosse avistada a aproximação de alguém, faria ressoar com pancadas um enorme tronco oco que arrastaram para lá. Sequências de uma pancada, intervalada com duas batidas rápidas, significava uma pessoa, duas pancadas, três, seriam três ou mais. O batuque era constante e isso era alarmante.

O chefe correu até ao topo da colina onde já tinham chegado outros aldeãos que discutiam acaloradamente. Os vigias, um era uma das suas sobrinhas e outro um neto de Tailan, apontaram nervosamente o extremo norte da planície. Distinguia-se perfeitamente um grupo de cerca de trinta indivíduos armados de lanças que descia o caminho em direção ao casario de Barinak, logo atrás havia mais uns quantos que parecia arrastarem algo. Chegariam primeiro ao agrupamento de casas onde Tailan e a maioria dos estrangeiros residia.

— Depressa, vão ter com Lemi e Tailan, que reúnam os homens que houver por aí e vão para o extremo do povo no caminho da montanha. — Erem enviou os vigias, sentindo-se preocupado por a maioria dos homens se encontrar na caça ou a arrastar as pedras do santuário. — Que levem armas. — Depois voltou-se para outro dos homens: — Corre a avisar Zia do que aqui vimos. Ela que reúna as mulheres capazes de lutar e vão lá ter também.

Acompanhado de vários dos que já se encontravam no alto da colina, Erem apressou-se na direção que indicou ser o ponto de encontro onde esperariam os forasteiros que se aproximavam. Se viessem com más intenções teriam de lutar. O que o preocupava era que, mesmo conseguindo igualar o número de inimigos, seria com mulheres pouco habituadas a usar as armas e os homens que, como ele, já não estavam na melhor das formas. O seu coração apertava-se com a ideia de que viriam em busca dos assaltantes que estavam agora mortos e atirados do penhasco para onde era arremessado o lixo da aldeia.

Atravessou o “bairro” dos estrangeiros, onde já não passava há muito, que era simbolicamente separado do resto do povoado por um pequeno regato, afluente do largo rio que fornecia água e peixe à população. As construções alinhavam-se ao longo do trilho calcado a que chamavam o caminho da montanha que serpenteava até ao limite do casario. Reparou, com admiração, que já havia muitas casas e poucas tendas, desde a sua autorização para que fossem construídas. Como era cada vez mais difícil encontrar pedra suficiente e a pouca distância, para todas as casas, várias delas já eram completamente construídas em adobe e apenas cobertas de colmo; havia-as quadradas, redondas, retangulares, as tradicionais redondas de pedras empilhadas eram uma minoria. Com a utilização dos ângulos retos, havia vários exemplos de habitações geminadas partilhando o telhado. Qualquer uma delas tinha uma área muito superior à da humilde palhota de Erem e possuir mais do que uma divisão. Algumas tinham até as paredes alvas como a neve, cobertas do que parecia ser um pó que, embora sujasse as mãos, não saía da superfície.

O chefe chegou ao extremo da povoação. Os invasores ainda não se avistavam devido ao relevo do caminho sobre uma suave colina. O seu olhar analítico observou como a linha de árvores não andava longe do casario e como seria fácil um atacante mal-intencionado chegar por ali, em vez de o fazer pelo caminho. Começavam, entretanto, a chegar alguns aldeãos, com ar preocupado, mas todos traziam lanças ou ferramentas com que pudessem causar dano. Olhou o simples punhal de cobre que trazia à cintura e perguntou-se se não deveria ter ido buscar a sua lança também.

O vento suave carregava as nuvens que obscureciam o sol, a espaços; o frio que se fazia sentir lembrava que a primavera ainda era uma criança e o inverno não andava longe.

Quando os invasores chegaram ao alto da elevação, já havia perto de quarenta elementos a esperá-los e eles imobilizaram-se à vista das primeiras casas, parecendo conferenciar.

Zia foi a última a chegar. Trazia um grupo de dez ou quinze crianças armadas de fundas. Numa guerra, toda a ajuda é pouca, dizia o sorriso dela para o olhar interrogativo do chefe.

Àquela distância, já se podiam distinguir os recém-chegados; com exceção de dois deles, todos trajavam igual; a cabeça tapada com chapéus castanhos, túnicas cintadas que desciam até ao joelho, tendo depois as canelas e os pés cobertos por peles. Além da lança, onde reluziam as pontas de cobre, traziam o que parecia ser um pedaço de madeira forrado a pele. Era óbvio que se tratava de gente preparada para combater. Os outros dois aparentavam um aspeto diferente, com longas túnicas; uma cor de sumo-de-uva e a outra preta, cabelos longos a cair até aos ombros e grandes barbas.

Não se ouvia um murmúrio do lado dos defensores de Barinak, quando um dos invasores se afastou dos restantes e caminhou para a povoação em passo largo, mas pausado, erguendo bem as mãos nuas.

— Saudações e paz, vos envia Mirsulo, déms pótis[1] de Hatiweik. — Falou o homem numa voz forte e clara, embora com sotaque carregado. — Que Tarunte, deus da guerra e da paz, vos dê muitos filhos e alimento para todos. — Pousou a mão direita sobre o coração e fez uma curta e respeitosa vénia.

— Saudações e paz, estrangeiro. — Erem adiantou-se. — Que nos quer Mirsulo, com tantos homens preparados para a guerra?

— Peço perdão em nome do meu senhor. — O homem parecia versado em diplomacia. — Os caminhos são perigosos e Hatiweik tem muitos inimigos. Os homens são para proteção e não para a guerra. Mirsulo veio pessoalmente buscar o seu filho Tibaro, para o honrar enterrar junto dos seus antepassados. Disseram-nos que se encontrava com Erem, déms pótis de Barinak.

Levantou-se uma onda de murmúrios felizes entre os atemorizados defensores.

— Eu sou, Erem, filho de Birol. — Continuou o chefe. — Mas o teu senhor está enganado, Tibaro não morreu. Está vivo e recupera dos seus ferimentos.

Após uma rápida expressão de alegria, o emissário perdeu toda a compostura e partiu numa corrida a reunir-se aos seus.

Desta vez foram os dois elementos que se destacaram do grupo e avançaram rapidamente, seguidos de perto pelo emissário. O homem de preto tinha um ar austero e grave por baixo do chapéu de couro entrançado. As espessas barbas pareciam querer fugir em todas as direções de tão desengraçada carranca. O seguinte trazia os cabelos soltos decorados com pequenas esferas e apenas um fio em volta da cabeça suportando um disco reluzente no meio da testa. Iguais discos pendiam em cada uma das orelhas e um ainda maior ao pescoço, pousado sobre a túnica cor de vinho decorada com finos entrançados e pedaços de peles. O seu rosto visível por cima da barba aparada exibia confusão e alegria quando se dirigiu a Erem:

— És o guardião do meu filho e também o seu salvador? — O homem pousou a mão sobre o coração. — Se tal coisa é verdade, pois só acreditarei quando vir com os meus próprios olhos, serás o meu irmão mais querido que aqueles do meu próprio sangue!

Mirsulo, felicíssimo, agarrou e abraçou um atordoado Erem, antes que qualquer pessoa pudesse reagir. Ato contínuo, os soldados soltaram grandes gritos de alegria, embora mantendo a distância.

Confundido, mas agradado, ao mesmo tempo, Erem sorriu e pediu-lhe que o seguisse até ao convalescente. O acompanhante de Mirsulo, sem perder o seu ar austero, seguiu-os como uma sombra silenciosa. O caminhar dos dois chefes lado a lado foi o mote para o “desmobilizar das hostes” e os defensores dividiram-se, uns atrás deles e outros para junto dos soldados, a saciar a curiosidade.

Nehir, que se recusava sempre a participar nas atividades que envolvessem mortos e feridos, aguardava na sua tenda, tristemente, que começassem a chegar as primeiras vítimas. Qual não é o seu espanto, vê chegar o pai e um estrangeiro vestido com roupas estranhas, a conversar alegremente, logo seguidos por quase toda a aldeia misturada com outros estrangeiros.

O encontro entre Mirsulo e Tibaro foi comovente, o chefe estrangeiro não conseguiu deixar de verter uma lágrima. Apesar de ter dez filhos, aquele era o mais velho e o que ele esperava que lhe sucedesse. Não o conseguia dissuadir de participar nas caçadas… e esta quase lhe tinha sido fatal.

Apesar de quase não se conseguir ouvir, Tibaro falou com o pai e acalmou-o, dizendo que se sentia bem melhor e tecendo elogios à curandeira, à sacerdotisa, ao extraordinário chefe de Barinak e ao seu povo acolhedor. Foi o momento do silencioso companheiro de Mirsulo intervir e questionar diretamente o doente sobre o tipo de tratamentos que lhe fizeram.

Ao ver o esforço que Tibaro fazia para falar e notar que a sua respiração ficava cada vez mais ofegante, Nehir tocou no braço do estranho e pediu-lhe que não o maçasse mais; ela responderia a todas as perguntas.

O homem, que estava curvado sobre o doente, ergueu-se e deu um passo atrás, olhando-a com um misto de desdém e escândalo: — Quieta, mulher! — Ordenou rispidamente numa voz de barítono. — Quem te deu ordem para falar?

Imediatamente, qual leoa a defender a cria, Zia colocou-se ao lado da filha: — Tu é que precisas de autorização para falar, homem! — Ela apontou-lhe o dedo ao peito. — És um convidado na tenda dela e nesta aldeia!

— Parem! — Interveio Erem olhando interrogativamente para Mirsulo.

— Elas têm razão, Savírio. — O chefe estrangeiro advertiu sem sorrir. — És um convidado aqui. Tens de respeitar os costumes. — Depois olhou diretamente para Erem e explicou. — Não estamos acostumados que as mulheres desempenhem estas funções e muito menos interpelem diretamente os homens.



[1] Proto-indo-europeu: “Senhor de sua casa”, derivará em déspota.

Manuel Amaro Mendonça

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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Ímpeto

 






sábado, 25 de novembro de 2023

O plano

 


Era no tempo em que os animais falavam. As espécies tinham-se espalhado pela Terra, ocupando todos os nichos passíveis de sobrevivência. As predadoras caçavam as outras, ocupavam-lhes o território e ficavam por ali a acasalar, a multiplicar-se e a banquetear-se com os corpos estraçalhados das presas que iam apanhando, de cada vez que a fome rosnava. Se os indivíduos das espécies alimentícias se tornassem escassos para as necessidades de uma espécie predadora, esta migrava para territórios mais abundantes em caça.

Esta fábula conta a história dos Breus e dos Listeus, raças muito semelhantes de bípedes caçadores, ferozes e territoriais, aparentados com as hienas. Talvez por serem bípedes, ambas as raças se reclamavam de terem os Homens como ascendentes primordiais e emulavam os seus mitos e as suas formas de organização.

O encontro destas raças, em tempos distantes, foi dramático e sangrento: os Breus, incapazes de prevalecer na zona que habitavam, ocupada por uma raça mais bem adaptada, migraram para uma zona prometedora que os adivinhos indicaram e resolveram instalar-se. O facto de o território já estar ocupado pelos Listeus não constituiu um dilema: atacaram-nos massivamente, matando-os onde quer que os encontravam. Não era para comer; era só para desocupar o território da raça rival. Apesar das aspirações humanas, mantinham a animalidade intacta.

Reagindo às matanças substanciais, os Listeus sobreviventes organizaram-se e deram combate aos invasores. Iniciou-se assim um guerra de limpeza étnica mútua, que foi produzindo extensos morticínios de ambos os lados. A posse completa e indivisa daquele território justificava todos os sacrifícios. Era uma posse que cada raça tinha como promessa associada à mitologia das origens humanas. À vontade de o possuir, juntava-se, com toda a veemência, a ordem divina. Mais do que uma necessidade, era uma obrigação.

Então, cada raça já se tinha estruturado política e socialmente e ia organizando estratégias para suplantar a inimiga, mas nenhuma conseguia o intento assumido de eliminar por completo a outra. Muitos massacres mútuos depois, sem se revelar um claro vencedor, chegou-se a um período de beligerância de aparente baixa intensidade, em que a demografia apareceu como arma a não ser negligenciada. “Se muitos dos nossos morrem nos confrontos cíclicos, há que fazer nascer muitos outros, para que o inimigo nunca consiga fazer-nos extinguir."

A guerra quente continuou a estalar a intervalos. Produzia um massacre, que era depois retaliado exponencialmente pela outra raça, até se chegar a novo período de cansaço. A escravatura foi surgindo, aqui e ali, como estratégia de sobrevivência para os vencidos e como mais-valia para os vencedores. Então, as proximidades entre vencedores e vencidos, embora assimétricas em termos de poder e direitos, criavam tolerâncias, cumplicidades, até amizades, numa espécie de promiscuidade rácica. Era a coexistência possível, que, às vezes, imitava e dava a ilusão de uma sociedade igualitária, mas que não era vista com bons olhos pelas castas dominantes de cada raça.

Conta-se que, certa vez, muitos anos depois dos enfrentamentos iniciais, uma fêmea breia foi queixar-se a Fauce, o governante local, de que uma sua escrava, cuja cria tinha morrido, estava a tentar apoderar-se da cria da dona, a sua. E arrastara perante o soberano a fêmea listeia, que carregava às costas uma cria com poucas semanas de vida. O governador, assumindo as funções de juiz por inerência, em atitude grave, mandou que ambas defendessem a sua razão, apesar de uma ser dona e breia, e a outra escrava e listeia. Havia que manter uma aparência de justiça.

Cada uma defendeu a sua maternidade com toda a veemência. Não parecia fácil aquela decisão. Em pé, perto de Fauce, o vizir aproximou-se do rosto daquele e ciciou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O dirigente, embora em atitude judiciosa, assentiu ligeiramente. Lembrava-se bem do episódio evocado pelo vizir e da decisão do seu antepassado humano, que fazia parte da jurisprudência dos decisores daquela raça. Após meditar um momento, mandou chamar o carrasco e ordenou-lhe que talhasse a cria em duas partes iguais, “para que nenhuma mãe receba mais do que a outra”, como fizera o antigo governante humano.

Logo a fêmea listeia se lançou ao chão, pedindo que, em vez de tão sábia decisão, a cria fosse entregue à fêmea breia.

Estava encontrada a verdadeira mãe. Só a mãe real teria tal atitude de salvamento da cria, como bem deduzira o humano que Fauce emulava.

O antepassado mítico entregara a cria à verdadeira mãe, mas, e agora? Entregar a cria listeia à fêmea listeia? Nada de mais insensato. Havia que estar atento a muitos aspetos. Os tempos iam lassos, mas não se podia perder de vista o plano inicial. Chamou o vizir e perguntou-lhe se tinha alguma informação importante sobre o caso. “É muito provável que a cria seja filha do macho da breia”, informou ele, em surdina.

Fauce voltou a baixar a cabeça, em aparência de trabalho de justiça. “Nada de relevante. Entregar a cria à fêmea breia? Filho de mãe listeia, ainda que filho de pai breu e criado pela fêmea breia, sempre manteria a semente da insurreição listeia”, concluiu para si. “Pior: como mestiço, poderia vir a arvorar-se em paladino da concórdia das duas raças.” E, com um sinal inequívoco para o verdugo, indicou: «Corta!».

Enquanto o sangue da cria espirrava, sob os uivos da fêmea listeia e o silêncio apaziguado da fêmea breia, o governante, na pose solene que a dignidade do cargo exigia, confortava-se com o orgulho do dever cumprido. Por agora, era um animal, com um plano a executar. A humanidade fazia parte do mito, mas podia esperar.

Joaquim Bispo

*

Imagem:

Almada Negreiros, A Sentença de Salomão, tapeçaria, 1962.

Tribunal Judicial de Aveiro.

* * *





quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Vadia Liberdade

 


Ostentava Virgínia um olhar de abismal e cósmica depravação, efeito de sobrancelhas tão assombrosas em seus contornos quanto as sinuosidades das galáxias; e de olhos arregalados como astros cuja iluminação, ao invés de eclipsar os corpos celestes, evidenciava a graça de suas formas e traços; e, também e por último, de lábios delineados por vermelhos como a cauda dos cometas.

Enfim, ostentava um rosto de pervertida.

Tal caráter ninguém acusava, nem os amigos, com receio de ofenderem-na, nem os inimigos, com receio de, mediante a verdade, despertarem-na para transformações benéficas a ela e inconvenientes a eles. Pois malgrado a máscara do vício não representasse um erro si, tampouco a obscenidade, aliados e adversários reconheciam em sua face o pecado original, nossa sina de uso e abuso, estigma discernido em percepções efêmeras e meditações sigilosas, temorosos eles de manifestar as íntimas ponderações e apreciações de valor e, pela via e vida das palavras, identificar princípios não agradáveis e alusivos à si.

Alheia à expressão era a própria Virgínia, e em sua narrativa interior ela descrevia-se como casta e correta, adepta do ascetismo, modelo nem tanto de moralidade como de insanidade, afinal desconsiderava os seus melhores instintos ao almejar uma existência de abnegações e renúncias, de fastidiosos meios-termos. E era alheia a despeito do habitual contemplar-se no reflexo de espelhos ou no confinamento das fotografias, do assistir-se nas filmagens de um casamento em que valsava com os primos, na pista e no semblante a desfilar com os lábios entreabertos e vermelhos, olhos ornados por rímel, o quadril além das curvas. Não aferira sua condição de pervertida nem ao analisar os numerosos e impudicos sonhos e o permanente fantasiar, reputando-os como resultado das mais saudáveis, e superiores, psicologias. 

Mas o recorrente existir acua-nos frente à verdade, e apesar de Virgínia, no passado, furtar-se às evidências e depreciar as graças do acaso, logrou a sorte última de convergirem as circunstâncias para o reconhecimento precoce de sua devassidão. E assim descobriu-se impressa na fotografia de um jornal: a imagem apresentava um casal de idosos e, em segundo plano, imprecisa em curvas, Virgínia. Ou melhor, na cena percebia-se somente Virgínia a despeito do enfoque nos vetustos bailarinos, como se numa concordância de equívocos competisse à silhueta revelar seu caráter de libertina.

A visão da imagem e a epifania resultante ocorreram no café da manhã seguinte. Lambia a manteiga do dedo quando abriu o periódico e reconheceu-se na fotografia. Virgínia ingeriu a revelação, lançou as folhas no mero ar. Deus dos céus, alarmou-se ela. Não sou assim, não fui assim; mas sou. Como, indagou ela, como jamais vira-se em sua verdadeira face, e à mente assomou-lhe a recordação das ilusões de óticas que, se desmistificadas, jamais retornavam à condição de enigma.

Ergueu-se.

Antes graciosa qual os felinos de seus sonhos, então movimentou-se com outra sensualidade, consciente de suas muitas curvas e graças e do libidinoso potencial da carne. Nos aposentos da casa não se ouvia vivalma, e na rua o silêncio sobrepunha-se ao cotidiano. Frente ao espelho do quarto, olhou-se, e ao olhar-se mal se percebeu, como se houvesse nela o de sempre, o mesmíssimo, e agora evidente, sempre. Virgínia encarou-se, confidenciou ao reflexo.

Vadia, eu sou uma vadia.

Sentia-se plena.






domingo, 19 de novembro de 2023

Sufoco

 



Estava de cabeça baixa, alheio, e fui surpreendido por uma mão pesada que tocou o meu ombro esquerdo. Era Ernesto, com a sua incrível disposição para o tumulto. Logo, da sala se fez ouvir a sua voz cavernosa, pelo que pedi que amenizasse o tom. Ele não me deu os pêsames; como de costume, profundamente indiscreto e curioso, quis saber a razão da morte. Não sei que morbidez é essa das pessoas se interessarem tanto na causa mortis. Querem encontrar alguma justificativa, perversão oculta, é isso? Disse a ele que não tinha ideia. Eu havia sido informado do fato há pouco mais de cinco horas. No fim da noite, João, nosso amigo em comum, ligou para me informar sobre o ocorrido, que o corpo de Nara teria sido encontrado por um familiar, já em estado de decomposição. Pelos cálculos, segundo o legista, teria morrido há dois dias. A causa ainda era uma incógnita. No tempo em que namorávamos, a minha preocupação era com o cigarro: ela fumava um atrás do outro. Segundo João, ela teria diminuído sensivelmente o consumo, por uma gravidade adquirida no pulmão, de que ele não sabia precisar. Lembrei, automático, de nossas caminhadas no Parque Rio Branco, nos sábados e domingos à tarde, em que ela pedia arrego, alegando extremo cansaço. Afora isso, Nara tinha receio de ir ao médico – decerto por medo de desvendar uma doença fatal. Sim, ela tinha temor da morte prematura; sua mãe morrera de um mal súbito aos vinte e oito anos. Nunca usara drogas na minha presença, a não ser maconha (que não considero droga) e uns comprimidos para ansiedade. Ela era craque em abandonar terapias. Sendo doutora em Artes, alegava que os psicólogos, pelo menos os que ela teria consultado, eram “fracos”, mal entendiam de filosofia. “Como pode, Júnior, filosofia é a mãe das ciências!”, falava exaltada e cansada de uma tal peregrinação, até que encontrou o Dr. Augusto Proença, psicólogo e professor universitário. Após, não sei se por excitação dos sentidos, Nara pediu um tempo e logo acabou o relacionamento. Nunca falou, mas talvez me achasse mínimo para a função de seu acompanhante – em se tratando de estudos, só fiz uma pós-graduação em Estética da Arte… Quando voltei a mim, Ernesto insistia que a morte de Nara teria sido por problema no coração, que uma vez ela se queixou de dor no peito – ora, pelo que sei, Ernesto era um “amigo” ausente, não era de ligar ou marcar encontro, sempre esteve muito ocupado com as suas finanças. Levantei-me e fui ao banheiro, para me safar do inconveniente. Foi o momento em que vi, de relance, o rosto de Nara. Estava inchado, e a pele aparentava estar muito fina; um balão d’água prestes a explodir. Já não era Nara. Passei um longo tempo chorando no banheiro, pensando que poderia ter feito algo. O namorado de Nara, segundo soube dias depois do sepultamento, alega união estável e quer ficar com o apartamento. Ela conhecera o boa bisca há somente cinco meses. Julgo que por carência e bondade excessivas, até ingenuidade, porque ele alegava dificuldades financeiras, colocou-o em casa, razão que a fez discutir com a mãe, e não mais se falavam. A família de Nara pediu na Justiça a reintegração da posse e uma nova exumação/perícia do corpo. Meu Deus, que sufoco, só peço a que deixem em paz.






sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Uma simples assinatura

 






sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Pássaro Negro

 


Avó e neta cruzaram o Callejón del infierno para acessar a Plaza Mayor. Tereza esperava ansiosa pela coincidência. Num outubro do Século XVIII, noutra noite de Lua Cheia, a praça ardeu em chamas e o arco de entrada da praça transformou-se num portal para o inferno.

No momento em que se preparava para um ritual, a mulher acusada de prejudicar o herdeiro do trono espanhol Carlos II - O Enfeitiçado, foi capturada pela Inquisição e enviada imediatamente para a fogueira. Ela tentou, mas o rei não tinha cura.

Conta a história que o fogo ateado não queimava a mulher. Ela irradiava muito calor a partir do centro de sua testa, o que provocou ainda mais fogo, levado pelo vento e incendiando a praça.

– Vó, se temos costumes diferentes, por que usamos fantasia hoje?

– Aproveitamos os costumes deles para nos mantermos incógnitas, parecendo pessoas comuns, brincando com todas as outras que se vestem de bruxas, fadas, duendes e tudo mais.

– Mas por que no passado eles perseguiam as feiticeiras? – questionou a curiosa Anna.

– A ignorância, a ânsia pelo poder motivou as perseguições. Quando não sabiam como explicar algo, transferiam o seu ódio para aqueles que faziam experimentações e buscavam repostas, cura para aquilo que afetava a vida das pessoas. Achavam que sempre tínhamos más intenções. Apenas invocamos as forças da natureza, o destino escolhe os caminhos. É a nossa missão.

– O que vamos fazer, vovó?

– Hoje, a luz da Lua Cheia nos ajudará a criar um perfume capaz de encantar qualquer pessoa. Basta uma gotinha dele para que aquele que escolhermos faça tudo que desejarmos, ao menos por um dia. Se ingerida, a mesma gotinha será capaz de prorrogar a vida de quem a absorve.

– É por isso que você vive faz tanto tempo?

– Acho, minha pequena, que você precisa saber mais sobre a minha, sobre a nossa história. Já atravessei muitos séculos. Em 1672, também numa noite de Lua Cheia, na véspera do Dia de Todos os Santos ou do antigo festival do Samhain eu estive aqui, para fazer a mesma coisa que você fara hoje pela primeira vez. Esta noite me rendeu a cicatriz em minha testa, similar a esta que você carrega. Não fosse o encantamento de minha mãe, eu teria perecido.

– Eu vou ser perseguida também?

– Talvez não, hoje todos são mais tolerantes. Apesar de, no passado, muitos inquisidores terem pago com a vida pelos seus pecados nas perseguições, alguns escaparam e aprenderam o segredo da vida prolongada. Também, com o passar do tempo, o dia preferido das feiticeiras foi transformado pela Igreja Católica, na véspera do Dia de Todos os Santos e muitos povos aproveitam os três dias para homenagear os seus mortos, em paz. Nós, comemoramos a vida.

– Já está na hora?

– Quase. Preste bem atenção, pois uma noite de Lua Cheia, num 31 de outubro, só acontecerá novamente daqui a dezenove anos, em 1939. Você terá vinte e sete anos e deve trazer a sua filha aqui, da mesma forma que faço hoje. Juntas preparem a poção.

Tereza tirou da bolsa algumas pétalas de gerânio-rosa, uma ametista e uma garrafa com água mineral. Anna levava uma pequena bacia de cobre. Tudo foi colocado na vasilha e por fim, Tereza agitou a água com um galhinho de alecrim. Os raios da lua intensificaram-se enquanto projetados sob a mistura. Anna, quase sussurrando, pronunciou uma espécie de oração, numa antiga língua Celta. Tereza a repetia. Não perceberam o sujeito de capuz que se aproximava.

Depois de alguns minutos exposta à luz da lua, a água apresentou tons de lilás e as pétalas se dissolveram por completo. Anna retirou a pedra e colocou tudo na garrafa.

Quando saiam, o homem, que carregava uma pesada Bíblia, segurou o braço de Tereza.

- Então, bruxa, pensou que escaparia! Não morreu pelo fogo, vai morrer pela minha adaga.

Anna, que segurava o frasco, o abriu com cuidado, molhou o dedo e passou pela marca na testa. Depois ordenou:

- Suba na torre da Real Casa de Correos e salte de lá.

- O Inquisidor não questionou e seguiu a passas largos em direção a Puerta del Sol.

Mãos dadas, Tereza e Anna saiam da praça. No beco, um rapaz tocava Blackbird ao violão.