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domingo, 25 de fevereiro de 2018

A Final Olímpica



Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.

*

No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros. No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.
Victor Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em 2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.
O polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança, mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço — o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente. A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a bomba atómica?

*

Horas mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão. A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos necessários, a qualidade das comunicações com os satélites geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual, indetetável sem aparelhagem sofisticada.
Quase hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada um com a sua espingarda nos joelhos.
Deviam estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado, percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres, vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.
Era um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.
Meu major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que faço?
O superior hierárquico observou as imagens, por um momento.
Esborracha essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.
Sooter posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo, movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:
Tudo pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis prontos. Aguardo autorização de disparo.
Dá-lhes com tudo o que tens! — gritou o oficial.
Sooter recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene. Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.
Os treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as explosões ofuscaram a imagem de seguida.
Não pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava. Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no Afeganistão, em total segurança.
Duas horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso. Era um grande país! Tinha orgulho nele.

*

Uns dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT GUNS [Dutares não armas].
Dias depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read my stones [Leiam as minhas pedras]!

Joaquim Bispo

Imagem: Henri Rousseau, A Guerra, 1894.

* * *

(Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — edição especial — História, da Elemental Editoração, 2017.)



* * *






sábado, 17 de fevereiro de 2018

Quando a Lua nasce por cima de minha casa









Quando a Lua nasce
por cima de minha casa
o telhado tem cor de passado.














sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Depoimento de uma mulher que apanha




Eu fico olhando ele dormir toda noite. Ele não faz um ruído, sabia? É uma coisa assustadora. Não ronca, não respira alto. Parece alguém em coma; um semimorto. Como é possível? Isso não é justo. Não está certo ele dormir assim enquanto eu passo a noite cuidando do meu corpo cheio de dor. Cada tapa, cada soco, cada pontapé me deixa toda marcada, está vendo? A minha pele está toda roxa. Tem uns lugares em que os hematomas nem saem mais. Está vendo a minha coxa? É o lugar que ele mais chuta. Acho que é porque essa parte do corpo está sempre coberta e ninguém vê as marcas. Eu nunca mais vesti um short. Nunca mais fui à praia, acredita? Mas as coxas não me preocupam. Na hora em que ele começa a bater eu só me lembro de usar as mãos e os braços para proteger a cabeça. Faço uma espécie de redoma, de escudo. Assim, está vendo? Mas tem hora que ele me pega desprevenida. Eu morro de medo que ele machuque os meus olhos. Ou a minha cabeça. Fico imaginando como seria ficar em cima de uma cama. Dependendo dos outros; dependendo dele. Imagina o que mais ele faria comigo. 
Eu ainda choro. Por que será que eu ainda choro? Não é mais choro de revolta nem de medo, sabe? É uma coisa boa. Que me dá alívio. Andei pensando sobre isso. Eu acho que eu choro porque talvez seja a única coisa em mim que ele não pode tocar: as lágrimas. Ele não pode puxar, apertar, sacudir, espancar as minhas lágrimas. Como faz com o meu corpo. Também não pode manipular, nem controlar, nem abusar delas. Como faz com a minha cabeça. Com a minha vida.
Não, isso não é vida. Eu sei. Eu já estive aqui antes. Já conversei com a psicóloga. Foi bom. Ela me fez pensar. E eu já tinha parado de pensar fazia um tempo. Mas pensar não adianta muito, sabe? A gente se sente pra baixo de novo. Pensando em tudo o que não consegue fazer. E sofre outra vez.
Eu nem sei por que é que eu apanho tanto. Só sei que a coisa vem, e quando vem nunca é pouca. Primeiro ele me olha. É um jeito de olhar que fala. Eu não sei explicar direito. Mas é como se ele estivesse sempre me culpando por alguma coisa que eu não fiz. Como se estivesse procurando uma desculpa para me arrebentar toda. Qualquer coisa serve. Qualquer coisa mesmo. O cabelo solto, a saia curta, a calça comprida justa, o riso, a unha grande, o decote, o jeito de pendurar a roupa no varal, a máquina ligada muito cedo, a camisa passada do jeito errado, o banheiro ocupado. 
A psicóloga me disse que ele é um abusador. Que ele faz eu me sentir culpada de propósito. Porque é isso que um abusador faz. É verdade. Toda vez que ele me bate fica repetindo que a culpa é minha, que eu mereço apanhar. Não mereço, não. Já tem tempo que eu sei que não mereço castigo. 
Eu me casei muito cedo. E ele não me deixou trabalhar nem estudar. Tinha ciúme até da minha mãe. No começo, eu achei graça. Não vou negar que eu gostei daquela vida de não trabalhar. Só depois de um tempo é que eu percebi que era tudo uma armadilha. Eu não tinha diploma, não tinha emprego, não tinha mais amigos e me afastei da minha família. Eles nunca entenderam o porquê. Nunca aceitaram eu ter parado de falar com eles: minha mãe, meu pai, meus irmãos. A minha irmã mais nova me disse que é benfeito tudo o que me acontece. Porque eu sou burra, covarde, fraca. Eu entendo. Entendo, sim.
Eu não tenho filhos. Não pude ter. Fiquei triste por muito tempo. Porque eu imaginava que se eu tivesse filhos ele não ia mais me bater. Mas depois eu andei lendo sobre uns casos parecidos com o meu e vi a sorte que eu dei. Eu e essas crianças que nunca nasceram. Só que, por causa disso, ele passou a me bater mais ainda. Batia e me xingava. Sua inútil! Sua vaca! Não presta nem pra me dar um filho! 
Foi nessa época que eu pensei em cair fora pela primeira vez. Sem filhos, ele não tinha como me ameaçar. Sem filhos, eu não me importava de não ter estudo nem emprego. E aí eu vim aqui e prestei queixa. Conversei com a psicóloga e ela me disse para eu parar de pensar no que tinha a perder, e começar a pensar em tudo o que eu tinha a ganhar. Foi uma conversa boa. Imaginei tanta coisa. Cheguei a procurar a minha mãe e perguntar se ela me aceitava de volta em casa. Imagina que ridículo! Mulher feita voltando para a casa da mamãe. Mas ela aceitou feliz. Os meus planos é que duraram pouco. Um dia depois ele foi trazido aqui, nesta delegacia, prestou depoimento e foi mandado de volta para casa. Em 2005, ainda não existia a Lei Maria da Penha. Foi aprovada só no ano seguinte. Tarde demais. Na noite em que ele foi liberado pela polícia, me fez uma ameaça. Que se eu viesse aqui de novo ele matava meus pais e meus irmãos. E logo em seguida me deu uma surra tão grande que me quebrou um dente. Esses nove anos foram um inferno.
Mas as coisas mudam. Por isso eu resolvi prestar queixa de novo. Dessa vez, sem volta. Meu pai morreu tem quatro anos. Mas ainda tinha a minha mãe para o desgraçado ameaçar. Agora, ela também morreu. Faz um mês e meio. Antes, eu dei um jeito de ir até o hospital e ficar um pouco com ela. Pedi perdão. Sabe o que ela me disse? Que eu precisava pedir perdão era a mim mesma. Aquilo doeu. E doeu mais ainda quando eu fiquei sabendo que ela deixou a casa para mim de herança. E que os meus irmãos abriram mão da parte deles por mim. Para que eu pudesse ter para onde ir se eu decidisse me separar. Aí eu pensei: é agora ou nunca; não tem mais pai nem mãe pra esse filho da puta ameaçar. Eu conversei com os meus irmãos. Contei tudo para eles. E eles me disseram para não me preocupar que eles se garantem. Acho que a única covarde sou eu mesma.
Hoje, quando eu estava saindo de casa, ele veio atrás de mim. Adivinhou o que eu ia fazer. E me ameaçou, revólver na mão. Eu continuei caminhando, sem me virar. Pensando que o tiro não podia me matar mais do que eu já estou morta. Mas não era para ser. Não, não era para eu terminar em silêncio. 






segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Coragem pela Liberdade - O Oscar de 2018

Por Lohan Lage Pignone
(Contém spoillers)             

             Quando o herói hesita, o mundo inteiro para à espera de sua decisão.
             A pedra está ali, bem no meio do caminho. E agora, José?
        Assisti a oito dos nove indicados ao Oscar de Melhor Filme este ano. Tentando rascunhar um painel do que a Academia decidiu apresentar ao mundo, percebo algumas nuances sintomáticas dos nossos tempos. E a mais contundente, no meu entender, é a coragem de vivenciar a liberdade.
Nadar contra a maré talvez seja o maior dos desafios. Sobretudo quando a maré está pra peixe. Viver a liberdade é cruzar uma linha invisível em um oceano. Superar a exaustão, as intempéries, o ímpeto das ondas. É Truman em seu veleiro, buscando escapar de sua cela hiper-real. Exige coragem, senhores. Já dizia Ana Cristina César que “virar pelo avesso era uma experiência mortal”. E o que seria a liberdade senão virar pelo avesso, dadas as circunstâncias da nossa realidade?
            Morre-se ou não. Renuncia-se. Ou não. Abre-se mão da reputação, da segurança, das heranças, dos amores, dos hábitos. Not always. O herói vacila ao se aproximar da caverna profunda. Pensa se de fato valerá a pena dar um passo no escuro. A pedra está no caminho, e mais do que nunca é hora de contorná-la.
Em “Darkest hour”, o personagem de Winston Churchill, interpretado por um monstruoso Gary Oldman, renunciou a um acordo de paz com os nazistas e assumiu de peito aberto o risco de uma invasão iminente, apoiando-se nos apelos patrióticos do povo inglês. Já em “The Post”, Kay, vivida pela recordista de indicações ao Oscar, Meryl Streep, renunciou a uma amizade de longa data, ao governo, aos banqueiros; em nome da liberdade de expressão. Em “Lady Bird”, a passarinha vivida por Saoirse Ronan voou para longe do ninho. Em “Three Bilboards”, o desfecho aponta um dilema na trajetória dos personagens de Mildred Hayes (Frances McDormand) e Jason Dixon (Sam Rockwell), também calcado em um ato de coragem em prol da liberdade; todavia, aqui, de uma liberdade que é viver sabendo-se juiz do próprio destino, livre de qualquer martelo de tribunal ou dependência legislativa. Em “Call me by your name” a coragem está no processo da descoberta, que demanda a uma experimentação múltipla, atendendo a uma ebulição inexorável de vida por todos os poros. E ainda, eu diria, que o protagonista Elio (Timothée Chalamet) finca no solo de uma geração a bandeira da liberdade, destituindo um território antes ocupado por personagens como o seu pai, Mr. Perlman (Michael Stuhlbarg), que preferiu não contornar a pedra drummondiana e seguir adiante à caverna profunda.
            Essa dona coragem também permeia a “Dunkirk” de Nolan, quando civis tomam a frente da operação Dínamo – instituída, vejam só, pelo Churchill de outro filme indicado – e tudo funciona como uma corrente eletrificada pela bravura e convicção na tomada de decisões que salvam vidas, modificam o destino de uma nação e impedem uma nova e nefasta configuração do mapa-mundi. Em “The Shape of Water”, Elisa (Sally Hawkins) é a heroína que busca, simplesmente, a liberdade de ser humana. É preciso coragem para se ter humanidade em um mundo repleto de seres monstruosos... em um mundo onde seres devoram-se uns aos outros por conta da etnia, da sexualidade, da religião, da classe social. É preciso ter coragem para assumir a forma informe da liberdade e do amor.


          Por fim, e não menos importante, ressalto a importância de um filme que aparentemente “corre por fora” na disputa; mas que a meu ver, corre mesmo rumo à estatueta dourada. “Get Out” não necessariamente vai à contramão dessa coragem para viver o estado de liberdade, mesmo que ilusório; o filme de Jordan Peele apresenta um dos melhores roteiros dos últimos tempos porque se propõe a expressar o chamado e a força colossal que o sistema impõe sobre nós, meros mortais. É o filme que grita “vá, coragem! Fuja desse sistema que te escraviza!”. Acompanhamos a angustiante trajetória do nosso herói Chris, que busca atender a esse chamado; chamado este que não se restringe ao conflito do filme, mas que reverbera desde os tempos ancestrais, de todos os negros que deram suas vidas em nome da liberdade; e sim, Chris assume essa responsabilidade histórica e combate a hipnótica força de um sistema representado por uma família branca, de elite. É essa mesma hipnose que vivenciamos, dia após dia, capitaneadas por aqueles que detêm as ferramentas que exercem tal poder.
            Ainda não tive a oportunidade de assistir à “Trama Fantasma”, do cultuado Paul Thomas Anderson. Mas não duvido que fuja desse parâmetro. A Academia Cinematográfica, uma convenção tradicional histórica, exclama a coragem para que se viva a liberdade; para que se rompa a teia obscura que entrelaça tantas vidas; para que haja declarações livres de assédios, de preconceitos; para, enfim, poder corroborar que o cinema é o farol que nos guia e encoraja neste oceano, e nos auxilia a cruzar a tal linha invisível.





segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

gênesis


eu passaria três dias
olhando para o teu corpo 
ouvindo da tua boca 
centenas de versos tortos
servindo de água e pão 
para matar tua sede e fome 
girando como um ciclone
no olho do furacão

eu passaria mais três dias 
fazendo massagem tântrica
falando no teu ouvido
canções que viraram mantras 
servindo de céu e chão
para os teus sonhos de criança 
seria o teu par nessa dança
tal qual relâmpago e trovão

já no sétimo dia
a gente apenas gozaria 
o amor





sábado, 3 de fevereiro de 2018

SINGIN´ IN THE SUN

Quem tem a pachorra ou a generosidade de me ler sabe que sou da ficção, com preferência a
histórias de amor, relacionamento e sexo, beirando às vezes o erotismo impropriamente dito. Crônicas são raras nas minhas teclas, embora tenha em Cony, Rubem Braga e Fernando Sabino
as melhores inspirações do estilo, sendo que este último gerou uma obra prima – A Última Crônica – que habita minha cabeceira e faço uso e abuso dela quando tenho ímpetos de chorar para lavar
a alma.

Mas chega de lero lero. O relato que se segue é uma crônica da mais pura realidade, porém seus contornos de absurdo levam a parecer uma ficção delirante.

No início do ano, fui classificado num processo seletivo para dar aulas numa universidade.
Tomei conhecimento da imensidão de documentos necessários e por sorte, tinha quase todos.
Por azar, vi que minha Carteira de Trabalho – que não usava há 12 anos - tinha sumido.
Há os que dizem -  como aprenderam a dizer o que lhes interessa e acreditar no que lhes convém – que “acabaram com a carteira de trabalho!”. Não. Empresas exigem o mesmo documento
azulzinho dos tempos de Getúlio Vargas em seus ternos de linho branco. Mas isso é outro assunto.

Com a documentação verificada pelo sabido Google, fui ao Poupa Tempo de Ipanema.
Burros n´água.  Era preciso agendamento pelo telefone e mais uma lista de providências, já que
a Carteira foi perdida. Fui orientado lá mesmo no Perca Tempo, ops, Poupa Tempo, a fazer o
boletim on line da ocorrência. Assim o fiz. Tanto quanto o agendamento pelo telefone, às 7 horas
da manhã, pois 7:05, conforme dica dos próprios funcionários, o sistema congestiona e só no
dia seguinte seria possível ser atendido. Mesmo assim, consegui: quatro dias depois, 13:42,
no Posto do Ministério do Trabalho em Marechal Hermes.

Na entrada, um cartaz gritante: “Desrespeitar um servidor público é crime previsto pela lei tal e tal”.
Imaginei o quanto de tentativa de estrangulamento deve ter acontecido naquele local. Nem tampa no vaso sanitário do banheiro havia. Mas havia um funcionário público direto e reto:

- Boletim On Line não serve. Tem que ter a assinatura de autoridade policial.

E mais não disse. Na mesma hora, voltei 24 km para a delegacia na otimista intenção de fazer o
BO ao vivo. Impossível. Era uma daquelas tardes de terror com mortes na Rocinha e a delegacia
tinha mais soldados prestando depoimento do que a Inglaterra nas vésperas de 6 de junho de 1944. Voltei no dia seguinte e consegui a assinatura do policial civil. Mas só pude reagendar para uma semana depois. No Centro.

- Estado civil?
- União estável.
- Não serve. Tem que ter certidão de nascimento ou casamento.
- Vivo numa união estável há 25 anos, conforme esta certidão.
- Só serve certidão de nascimento ou de casamento com averbação do divórcio. Original.

E mais a senhora não disse. Por outro golpe de sorte, tinha a tal certidão num daqueles baús que
você acha que só vai ser aberto por um ente querido depois do seu próprio óbito. Parti para o
terceiro agendamento. 7 da manhã no telefone.

- Hoje só tem 11:13.
- Ôpa! Serve! Onde?
- Itaperuna.
- Não tem outro local em outro dia?
- Aqui no sistema, só em março. Amanhã o senhor liga. Vai que dá sorte de alguma desistência. 

E mais a moça não disse. Neste meio tempo, a universidade me convoca para uma aula/prova
com todos os documentos em mãos. Fiz uma declaração de próprio punho, anexei o Boletim de Ocorrência e ainda descrevi os três protocolos dos agendamentos embarreirados. Foram gentis e compreensivos. Dei minha aula para uma banca, mas dependia da Carteira de Trabalho.
Parti para o quarto agendamento, só possível cinco dias depois, dessa vez na Central do Brasil.

- Número da carteira de trabalho.
- Mas não tenho! Foi extraviada, olha aqui o BO.
- Tem que ter o número da carteira.
- A senhora poderia me dar uma orientação sobre como remexer a memória numérica remota? Hipnose? Telepatia? Regressão? 

Ainda bem que ela não entendeu. Lembrei do cartaz de Marechal Hermes.

- Vai no Ministério do Trabalho no Centro. Eles devem ter o seu cadastro com o número da carteira.
- Obrigado.

E mais não disse. Voei de taxi para o Ministério do Trabalho, expliquei o caso a um senhorzinho sentado numa escrivaninha.

- Isso é só com fiscal. E fiscal só trabalha até meio dia. Volta amanhã às 9.

Por outra bafejada da sorte, encontrei no mesmo baú o extrato de retirada do FGTS do meu último empregador. O número estava lá. Eufórico, parti para a Delegacia fazer um novo BO com a
numeração exigida. Feito. E nova tentativa de agendamento:  só primeiro de fevereiro, pelo menos, no próprio Ministério no Centro.

Cheguei uma hora antes e de cinco em cinco minutos, acometido de um tique nervoso, abria e fechava a pasta conferindo os documentos. Tudo lá. Dessa vez, desde 5 de janeiro, vai.
Fui recebido no guichê com a notícia de que o sistema estava fora do ar. No mesmo instante,
recebo um e-mail da universidade exigindo a Carteira naquele mesmo dia, sob risco de desclassificação no processo. Fui soterrado por uma calma inédita, algo como um monge do
Nepal que nunca fui, levitando ou pisando em brasas com um sorriso idiota.
E alguma eternidade depois, o sistema voltou e tudo correu nos conformes da burocracia.

- Olha para a câmera. Aqui na minha mão. 

Click.

- Daqui a uma hora vai naquele guichê e pega a carteira.

Não sei se foram os 60 minutos mais tensos e longos da minha existência, sentidos pelos espasmos
do ponteiro do relógio – não, não há relógios digitais em repartições do Ministério do Trabalho. Também naquele dia não havia Ministro, nem Ministra, que está sub judice, condenada por descumprir as leis trabalhistas. Coisas do Brasil. Mas isso é outro assunto.
Segui parado em pé, observando aquele pelotão de servidores se arrastando malemolentes
para lá e para cá com papéis na mão – sim, papel na mão denota que estão atarefados - e
conjecturei que eles já conheciam a luz elétrica, mas certamente dormiam em camas com
penico embaixo. Estava começando a achar graça das minhas besteiras, quando algo me trouxe
à realidade

- Seu José?
- José de quê?
- José de Tal (não lembro o sobrenome)

Pronto. Não era eu. A paranoia me cochicha que embarreiraram minha Carteira.

- E venha Seu José Guilherme também.

Alívio. Na minha frente, o primeiro José, o tal de Tal, um senhorzinho bem humilde, nordestino,
rosto craquelado pela vida, carregando uma sacola de coisas no braço direito, começou a ser atendido.

- Polegar aqui no sensor.

Ele obedeceu.

- O direito. Esquerdo não serve.

O senhorzinho passou a tremer, gaguejar, balbuciar algo indecifrável em seu dialeto humilhado, enquanto tentava levantar a sacola pesada com a mão direita.

- O polegar direito! O senhor está atrasando a fila!

Foi aí que eu intervi, com elegância limítrofe.

- Senhor, ele não tem o polegar direito!

O servidor olhou com desconfiança para o cotoco, mas se curvou ao óbvio.

Chegou, enfim, a minha vez. Tudo correu rápido e bem, eu tinha polegar direito. Recebi enfim
a Carteira de Trabalho, verifiquei os dados, tudo certo, a não ser minha foto que me lembrou
meus ancestrais em Cro-Magnon. E saí correndo daquele lugar, antes que alguma força maligna pudesse fazer o tempo andar para trás.

Já na rua, por uma surpresa do acaso, a playlist da tecnologia que me embala a vida pelos ouvidos começa a tocar “Singin' In The Rain”. Aos primeiros acordes pan panan pan pan panan panan 
pan percebi que estava happy again. O sol era de rachar, céu de brigadeiro, calor estúpido de
verão no Rio.  Imaginei tirar meu guarda-chuva de dez reais que mora na mochila e sair
dançando, rodopiando em postes, pisando em poças, respingando alegria em transeuntes,
saltitando pelo meio fio até o metrô. Imaginei que algum carrancudo (há tantos nestes tempos patrulheiros) pudesse me fuzilar com um olhar de morte ao ridículo. E imaginei responder
ao chato imaginado, representante de todos que se puseram neste meu caminho de desvarios,
com a única expressão apropriada, legítima e insubstituível, que define sentimentos
momentâneos indescritíveis: foda-se.