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sexta-feira, 28 de maio de 2010

Lançamento: Das Ideias, Caio Rudá de Oliveira



«Das Ideias» é o primeiro livro de Caio Rudá de Oliveira, em cujas páginas está registrado o mundo como vê o autor. Perguntado sobre do que se trata sua obra, não responde «tudo» porque este é um conceito tão impreciso quanto o de perfeição. Opta por dizer que o livro é sobre a vida, não a sua, mas a dos homens, sobre o mundo, enfim. Em verso ou prosa, todo o livro é poesia, a poesia do enigma da (in)existência.  


INFORMAÇÕES
ISBN: 9788579531378
Ano:
2010
Edição:
1
Número de páginas:
80
Acabamento:
Brochura
Formato:
14x20 cm


Contato com o autor: 
http://www.dasideiasdecaioruda.com/
rudax@hotmail.com







segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sempre há uma verdade.... (Final)

Maristela Scheuer Deves

Depois que experimentei o gosto do sangue jorrando da garganta de um animal vivo, sucumbi inteiramente à minha sede. Durante o dia, eu conseguia me controlar, mas à noite escapava pela janela e vagava sem rumo, atacando os gatos e cachorros que incorriam no erro de atravessar o meu caminho. Deixava-os vivos, mas atordoados e exangues, e provavelmente não sobreviviam mais do que um dia ou dois.
A única barreira que eu ainda mantinha, por enquanto, era a de não atacar humanos. Eram meus iguais, pelo menos ainda em parte, e o horror me invadia a cada vez que eu pensava em cravar meus dentes no pescoço alvo de alguém. Esse horror, no entanto, era mesclado com um prazer antecipado, um arrepio de excitação, uma vontade crescente...
Minha mãe ainda me mantinha trancada no quarto, mas, é claro, assim como eu escapava pela janela para me alimentar dos animais eu também o podia fazer para chegar perto de outras pessoas. Uma noite, não resisti, e entrei pela porta da frente de casa. Parei na porta do quarto de meus pais, depois de meus irmãos, mas me obriguei a ir adiante. Quando vi uma réstia de luz vindo por baixo da porta do quarto de visitas, porém, não me contive, e empurrei-a devagarinho.
Sentada na cama, minha avó me observava. Notei seu choque ao ver o quanto eu estava pálida e transfigurada, mas ela manteve a calma e o sorriso sereno.
— Eu sei pelo que você está passando, minha filha — declarou ela, sem alterar o tom de sua voz sempre doce. — Aqui na cidade, todos iriam rir de mim, mas já vi isso acontecer antes, no interior, quando eu era menina.
Ela ficou com o olhar distante, perdida em pensamentos, e eu vi a mim mesma se aproximando passo a passo do seu corpo frágil e indefeso. Eu não queria, eu juro, mas era mais forte do que eu. Minha sede crescia, e eu sabia que o gosto de sangue humano seria mil vezes melhor do que o de um animal...
Eu já estava com a boca a centímetros de seu pescoço quando senti meu rosto queimar. Na sua aparente ingenuidade, minha avó recorrera ao mais básico dos truques para se livrar daquilo que eu estava me tornando: atirara água benta em meu rosto, e agora erguia na mão um punhado de cabeças de alho.
Recuei, apavorada, mas ela conseguiu de alguma forma ser mais rápida. Agarrou-me e, com o alho e a água benta, me fez sair novamente de casa e ir até a garagem. Depois, obrigou-me a dirigir horas e horas, até o lugar em que me encontro agora: o porão úmido e fétido de uma antiga casa de campo.
Não posso sair, pois há alho plantado ao redor de toda a casa. A cada dia, ela me traz água e um bife, a cada dia um pouco mais passado. Vem protegida por um colar de alhos, e diz que vai me curar do meu problema, que não pode deixar sua neta virar uma vampira. Por vezes, penso que já me tranformei; noutras, que estou tendo um pesadelo, um longo e maluco pesadelo. Mas, no fundo, sei que é real. Sei que ainda falta um último ato na minha transformação, que é provar o sangue humano.
O que não sei é quem vencerá essa guerra: se minha sede ancestral ou o colar de alhos da minha avó...





domingo, 23 de maio de 2010

O assassino. Em nome do Criador - Giselle Sato

Enquanto caminhava pelas ruas vazias, ouviu a voz ordenando que fosse mais atento, embora não ousasse desafiar o Mental Superior, desta vez sentiu-se ofendido. Não achou justo: Logo ele, um observador nato, sempre analisando todas as possibilidades e desafios... Considerava-se um privilegiado, amparado por um ser que o tornava mais que especial, quase um anjo. Intocável e acima de todos os comuns, Jonas pensava ser ele o enviado do Supremo. Sorriu deliciado, sob as roupas largas e disformes que ocultavam a magreza e palidez de quem jejuava continuamente, submetendo-se a longas privações e castigos.

A esquina parecia perfeita para um grupo de adolescentes, ali podiam ser o que bem quisessem, não havia censura ou regras.
Uma menina seminua dividia a atenção entre os rapazes, alternando abraços e afagos.
A dor chegou forte, no topo da cabeça de Jonas, como deveriam ser as mensagens verdadeiras, era preciso que beirassem o insuportável. Jonas ajoelhou-se imediatamente, encostado na parede, escutou a ordem para salvar a moça. Ele sentiu a lâmina fria em contato com a pele, sob a atadura apertada em torno do dorso, pronta para fazer cumprir seu papel sagrado.

Levantou-se em passos trôpegos, aproximou-se dos jovens simulando embriaguês, eles não deram atenção ao maltrapilho. Em segundos, Jonas iniciou o massacre, cinco corpos agonizando na calçada fria, alguns ainda gemiam e pediam ajuda. Não houve tempo ou estavam tão drogados que não puderam reagir. Ignorou as súplicas e buscou o foco principal: Agora precisava transmutar e salvar a pequena alma que mantinha desacordada em seus braços.

Alice não tinha família certa, vivia ora na casa das tias, avós ou pelas ruas. Morava onde deixavam e comia o que conseguia pegar. Nunca conheceu a mãe, muito menos sabia quem havia sido o pai, sentia-se fruto do acaso, um ser a mais no mundo, sem compromisso com ninguém. Não conseguiu estudar por muito tempo, logo estava andando com gangues de drogados, estranhamente não gostava de nada que alterasse sua percepção. Com o tempo, aprendeu a fingir-se de bêbada e passava a noite sem tomar um só gole, atenta a tudo e todos. Precisava cuidar de si, por isso mesmo, foi a única que desconfiou de Jonas a tempo e tentou fugir, só não contou em ser o alvo... Quando recebeu a pancada na nuca, perdeu as forças e Jonas arrastou o corpo leve ao beco mais próximo.

Ela não ofereceu resistência alguma, para ele, a moça era dócil como deviam ser os cordeiros. Jonas lembrou as palavras do mentor e viu ali o sinal. Fingindo estar desmaiada e analisando suas possibilidades, Alice concluiu que o seu algoz era um louco, que balbuciava continuamente mantras desconexos em uma eterna canção de ninar: Crianças malvadas, céus e anjos, piedosos senhores do destino... Meninos e meninas em segurança...

O mais assustador era a risadinha e os ruídos que emitia, sibilando, rangendo os dentes, passando a língua nos lábios continuamente. As mãos pegajosas descendo e despindo Alice, que continuou parada e muda. Ele forrou o chão com um pano, fez com que ela deitasse e derramou óleo de um vidrinho escuro. Sacou o facão sujo de sangue, limpou e o colocou ao lado do corpo de Alice. Entre os seios pequenos, ele derramou o sal que tirou do bolso do casacão surrado e recomeçou a murmurar os sons guturais.

Quando Jonas começou a espalhar a mistura com a ponta dos dedos, a jovem viu que era hora de agir e tentar sua salvação. Reuniu todas as forças e flexionou as duas pernas, acertando o abdômen do homem com toda a força. Ele caiu para trás e, imediatamente, ela pegou o facão e enterrou no primeiro lugar que alcançou. Depois disso, saiu correndo como se mil demônios a perseguissem... Não olhou para trás, não quis ver se ele estava em seu encalço, apenas queria fugir o mais rápido possível...

Nua, Alice escorregava na calçada molhada, a chuva fina e gelada fustigava a pele, mas nada a faria parar de correr. Era a segunda vez que encarava a morte, se conseguisse chegar a algum lugar seguro, mudaria de vida, prometeu a si e correu, correu... Sem atinar por onde pisava ou ia, sem conseguir gritar por socorro, completamente apavorada e perdida.

Jonas arrancou a faca da coxa e urrou de ódio, ainda avistou a menina dobrando a esquina, mas não podia corrigir seu erro. Não havia perdão, ele sabia o que tinha a fazer, a voz jamais se repetia. Ele sabia que não faria falta a ninguém, há muito a família o havia abandonado em um sanatório. O Mental Superior o encontrou e o tirou de lá, ordenou a execução dos hereges e nem os parentes mais distantes haviam sido poupados.

Jonas apagou seu rastro na terra dos homens, mudou de cidade e só caminhava nas sombras. Transformou as posses dos mortos em dinheiro vivo e sobreviveu com o essencial. Era um servo, limpava as ruas dos maus e libertava os poucos escolhidos. Mas havia falhado e seria castigado, purificado em sacrifício para merecer a paz e misericórdia. Jonas reviu toda a vida e ensinamentos, os rostos de suas vítimas rodopiavam à sua frente. Alguns tinham as bocas abertas, em um grito mudo e absurdo que apenas ele podia escutar.

Cinco e quinze da manhã, dois policiais estavam parados na esquina de um beco sujo. Havia tantos carros, peritos e curiosos que, a muito custo, conseguiram aproximar-se da cena do crime:

- Cara, em quase vinte anos, nunca vi nada parecido.

- Parceiro, como este maluco conseguiu se mutilar deste jeito?

- Não sei. Dizem que tiram forças de Deus sabe-se lá onde, mas este aí se superou. Ele arrancou o próprio pênis, fez um monte de talhos no rosto e depois cortou o abdômen de fora a fora. Devia estar muito doido, se é que estava sozinho...

- O que a gente não tem que passar por este salário de merda? Muito pouco pra aturar estas coisas... Pior que a investigação nem começou e já tem mil especulações. Viu as tatuagens? Dizem que é de uma seita satânica. Que merda! Odeio estas coisas de religião.

O delegado Valdeci passou pelos detetives com seu sorriso sarcástico de sempre à guisa de cumprimento,
fez uma meneio com a cabeça, e caminhou em direção a viatura parada. Uma mocinha pálida e magrela, de olhos arregalados e vermelhos, os observava:

- Aquela é a sobrevivente. Pegaram vagando nua pelo parque há duas quadras daqui. A única coisa que contou, foi que quando fugiu, o assassino ainda estava vivo. A mídia já começou a festa, preciso de respostas, vocês sabem... Ah sim! Bom dia, meninos!

Torres engoliu o café morno que restava, Borges preferiu o antiácido de sempre, o dia mal começava e tinham certeza de que não haveria hora para terminar.
Seis corpos, uma menina com uma historia pra contar e um quebra-cabeça a ser montado. Deixaram o local apinhado de curiosos cheios de suposições, eles próprios ainda não tinham a ponta da meada e, de qualquer forma, sabiam que não iriam descansar até destrinchar todo o enredo. Eram assim, dois obstinados em apurar a verdade, que não mediam esforços, o que os tornava um estorvo para muita gente. Infelizmente, de ambos os lados da lei, haviam feito amigos e inimigos.

A única certeza: O sentimento de revolta que os unia contra o massacre presenciado. Era preciso resolver a questão, entender o que havia acontecido e apresentar os fatos.

Torres dirigia o carro apressado, mentalmente traçava linhas de conduta do caso, as ruas já não estavam tão vazias, era um domingo bonito de verão. Borges pensou que o tempo estava perfeito para passeios e lazer. Algum programa bem família, sentiu saudades dos filhos e discou para casa. Nem percebeu que era cedo demais.





sábado, 22 de maio de 2010

O que é certo ou errado quando não podemos ser?


 Pessoas se comunicam para sobreviver e para vivenciar o que elas mesmas produzem. A língua portuguesa é propriedade universal, seu registro passou por várias bocas e mãos, e ainda passa. Por ser universal e sujeita a interferência humana, de acordo com uma variedade infinita de contextos, a língua portuguesa não é “língua portuguesa”, e sim, uma identidade própria de cada grupo comunicativo que a compõe.
Irresponsabilidade em determinar toda uma rede de lusófonos como “lusófona”, pois assim se justifica - mesmo imperceptivelmente e de forma a acordar com o mito da imparcialidade – toda a construção irracional pela qual se disseminou a língua portuguesa. Irresponsabilidade em propor um meio alternativo que possa contemplar o lado racional, atual, que seja parte de cada grupo comunicativo, em outra estrutura?
  Uma língua que se espalhou, de uma forma não-automática, pela interação que fomentou seu próprio conceito, ou seja, “língua 'portuguesa'”. A língua de quem venceu. A marca de uma série de interações políticas, culturais, sociais, jurídicas, sobretudo: uma interação de guerra e exploração.
  Tal marca deve ser evidenciada, até o esgotamento surreal das necessidades comunicativas, pois se não é no agora que se edifica a própria realidade das pessoas deste tempo, então não existe nem povo, nem cultura, nem língua, nem um ser identificado com algo.
Se há uma brecha para se induzir ao esclarecimento de que a cada dia que passa, a humanidade produz um tipo diferente de comunicação: os agentes da tal “luz”, hoje, pessoas comuns, locais, sublocais e internacionais – que substituem as poucas vozes do passado – são as responsáveis.





quinta-feira, 20 de maio de 2010

Avaliações

Léo Borges


A mulher de casaco perto da janela dormiu com a boca aberta. Às vezes, seu tronco tomba pra cima da velha ao lado que, tremendo como se estivesse tomando um choque contínuo, tenta acender um cigarro. Acho que não existe nada mais feio que isso, incomodar quem está tentando fazer alguma coisa. Mas o pior é o casaco. Não por ser feio, mas por isso aqui estar uma sauna e ela estar vestida com ele. Se bem que ele também é feio (ou sou eu avaliando mal novamente).


Todos aqui, assim como eu, têm problemas. No meu caso são vários e acho que é por isso que minha memória me sabotou. Não me recordo qual profissional eu procurei. Pode parecer estranho, até mesmo triste (ou cômico, vai saber), mas não lembro se estou na sala de espera do meu advogado, do conselheiro matrimonial ou aguardando o psiquiatra.


O que sei é que estou esperando uma solução para algo que me aflige. E o esquecimento já não é algo que me perturba tanto, pois ele vem me dando tempo para que eu produza minhas versões, curta ou rechace aparências, avalie as circunstâncias e as fisionomias, enfim, pratique mentalmente meu preconceito. O objetivo principal de todos aqui, e isso parece lógico, é retirar os obstáculos que estão bloqueando suas felicidades, os entraves que azedam a vida, mas todos, em última análise, são também avaliadores enquanto esperam. É regra que não admite exceção, válida inclusive para a garota de vestido curto que está folheando uma daquelas revistas fúteis, admirando ou invejando atrizes televisivas. Com as coxas à mostra, ela saiu de casa (claro que com a anuência dos pais) para provocar. Como é deliciosa essa daí. Mas eu tenho de reprimir esse desejo, afinal é nova demais, talvez não mais que quinze anos. Coisa feia (o desejo, não ela).


E aquele gordo que não para de me olhar. Está com raiva de mim, achando que sou pedófilo. Ou não. Seu olhar é meigo, um olhar muito parecido com o meu para a menina, desejoso, julgador, cheio de luxúria. Abrindo meu coração eu digo que sinto raiva de gordos, pois quase todos são irônicos e se acham espertos, mas de homossexuais não, já que eles expõem suas carências com personalidade, sem pudores, sem ritos, até em salas claustrofóbicas como essa, e ninguém pode contrariar, nem mesmo através de um esgar que evidencie tímida desaprovação.


A velha, o isqueiro e o cigarro ainda se digladiam. A tremedeira (que pode ser de angústia, mas em hipótese nenhuma de frio) está claramente atrapalhando suas tentativas de saborear o tabaco. Uma pena, pois a fumaça e o fedor, calmamente espalhados pelo moribundo ventilador de teto, revigorariam estas pessoas desanimadas. Um ou outro, é certo, iria espernear, reclamar. A mulher de casaco acordaria sobressaltada (provavelmente tossindo), e eu veria, enfim, alguém mudar de comportamento, transgredir, argumentar, gritar, "Ei, aqui não é lugar de cigarro!", “Onde está o doutor que vai me atender?”, "Preciso saber se meu processo contra o banco já andou!", "Minha mulher me traiu pela quinta vez, já é o momento do divórcio?", "Aqueles bonecos de mármore ainda estão atacando os meus crocodilos!".


Por falar em gritar, chegou um esquálido sujeito de óculos amparado por um homem que solta uns gritos ocasionais. Eu não me arrisco a dizer qual dos dois indivíduos vai se consultar, porque ambos aparentam estar muito doentes. É... pensando bem, talvez eu esteja mesmo num consultório psiquiátrico, apesar de nunca ter visto tamanduás na minha cama e também de já ter visto muito corno gritar de raiva e ciúmes, além de, em algum momento da vida, ter ouvido os berros que um lesado qualquer deu quando se deparou com a imensa fraude que é este mundo.


O pequeno Cristo de metal, com sua coroa de espinhos, continua ali, crucificado e preso pelas costas a uma parede com negrumes de bolor, muito bem combinada com o semblante opaco dos que esperam. O que me incomoda é que ninguém ainda se impacientou com as discrepâncias desta sala mofada, com o calor absurdo ou a com absurda falta de explicações, com os cacoetes desesperados ou com os esperados desrespeitos, com as feiúras naturais ou com as complacências neuróticas. Nenhum dos presentes ainda questionou o tempo perdido porque ninguém, e essa é a dura verdade, sabe muito bem o que quer. Temem o que está por vir, o modo como virá e, principalmente, o que será feito para minimizar os estragos caso o que venha, venha de maneira hostil; o que se conhece é apenas a ânsia de que o Grande Salvador (que nesse caso não é o Pai do Cristo galvanizado) surja trazendo o conforto das respostas certas.


Meus olhos se mexem e meus pensamentos solidificam opiniões. Vim aqui para ser avaliado, não para avaliar. Vai ver esse é o meu grande defeito, o motivo pelo qual estou nesta sala: por julgar sem conhecimento, por avaliar sem critério ou por supor sem necessidade. Quero abandonar esse vício silencioso, que secretamente me corrói. Mas, para ser sincero, não sei se aqui existe alguém capaz de deixar de lado seus sofrimentos mudos (um paradoxo no caso do que grita) para encarar uma batalha contra seus próprios medos. Um bom começo nesse sentido se daria através de um bate-boca com a cúmplice por toda essa atmosfera envenenada: a secretária – a maldita intermediária entre o problema e a solução, entre o calvário e a alegria, entre o Grande Salvador e o inferiorizado. Ela deve saber bem de sua importância para os enfermos, os prejudicados, e talvez isso justifique sua posição no pedestal da indiferença.


Além de indiferente, ela é bastante vulgar, e também feia, mas se mantém séria (juro que não são avaliações, mas simples constatação). Não está nervosa com a aglomeração no recinto, com os seres que chegam e se escondem atrás de obsoletas revistas de fofoca, de celebridades, de moda outono-inverno. E elas, a feiúra e a vulgaridade (que ali interagem harmonicamente), me incomodam, mas não a calma e a indiferença (que também se confundem), porque é bom ver como as pessoas conseguem se ausentar do teatro em que estão, com que facilidade desprezam responsabilidades e protocolos. É gostoso cheirar essa omissão, toda fantasiada de seriedade, e medir até onde nossa alma pusilânime vai.


Com aquele uniforme decotado ela deve realmente estar pensando que é atraente, que pode se desculpar através de uma descompostura cheia de falsa beleza. Contudo, três segundos de observação bastam para ver que nela tudo é estranho e maléfico, tudo é rude e descolorido, e que ela traduz bem o que essa sala é. Mas sua voz, a doce voz das funcionárias dos Grandes Salvadores, esta, pelo menos, deve prestar.


– Senhora, por favor, não é permitido fumar aqui dentro.


Nem isso.





quarta-feira, 19 de maio de 2010

O Retrato como Género


Joaquim Bispo


Um retrato é entendido como a representação fidedigna, em duas dimensões, do retratado, e vive essencialmente da representação do rosto. É preciso que o desenho do contorno do rosto, e dos seus outros muitos elementos, represente fielmente o rosto vivo, como a luz do sol projecta o perfil de alguém numa parede lisa. Fica, portanto, excluída a caricatura, que faz lembrar o visado, pelo exagero de algumas características mais marcantes, mas não devolve a semelhança com o original. É preciso que pareça tão real como o verdadeiro, que pareça que “só lhe falta falar”. Que pareça vivo. O pintor consegue levar a mudez até à fronteira iminente da fala. «A vida do retrato é, no fundo, a razão última da semelhança com o original». Pretende-se suspender o tempo, manter o retratado no momento escolhido, muitas vezes num tempo que contém os afectos que se querem preservar da morte. Pretende-se construir um tempo que sobreviva à passagem do tempo. A fixidez do retrato constrói esse tempo eterno.



No entanto, essa fixidez inevitável é um obstáculo à representação infinitamente mutável da expressão, sendo esta a comunicação do que realmente é vivente – o espírito.
Então, a semelhança acontece quando a imagem consegue fixar alguma característica representativa do espírito do retratado? Para isso, seria preciso conhecê-lo previamente, quando não, a fidelidade só podia ser legitimada a posteriori.

O retrato pretende conservar a memória da pessoa amada ou admirada, preservar de si algo mais que o nome e a recordação, que não existirá para vindouros que não a conheceram. O nome é o seu sinal puro, o retrato o seu sinal mediado. O que é dado de si ao espectador é o que este traduz, pelas várias tabelas subjectivas que usa, condicionadas pelo fisiológico e pelo social. «Nunca se olha para um rosto com indiferença». O que se apreende é uma tradução tanto mais falsa quanto menos se conhecer do sujeito e do seu mundo, pessoal e de relação.

Ainda que se esteja atento a esta limitação, não se pode esquecer que o retrato é já, ele próprio, uma tradução feita pelo artista. Até que ponto ele conhecia o retratado, e que grau de virtuosismo detém que o apetreche para transmitir esse conhecimento de base, ou intuído aquando do trabalho de pintura? E que faceta apresentou o retratado ao pintor? Qual o verdadeiro retratado: o que se expôs à pose; ou aquele que só a si próprio se revela nos momentos de retiro íntimo?

O retrato, com todas estas limitações de rigor de comunicação, detém, no entanto, muito prestígio no prolongamento da memória e na revelação da personalidade retratada. «A grande dificuldade, qualquer que seja a concepção adoptada, vem da dupla natureza do referente: uma representação de uma representação». O rosto não é uma imagem estática e plena, «apenas um lugar onde tudo se inscreve e de onde tudo foge». Através da imensidão plástica da fisionomia, atravessada permanentemente por uma flutuação de formas, «o rosto esconde, reenviando para uma última instância “interior”». Qual será, então, o modelo autêntico?

A fidelidade à verdade do referente exige copiar o modelo invisível. «O trabalho do artista consistirá em restituir, numa imagem visível, o modelo invisível». Por isso, é preciso uma arte para olhar a superfície de um rosto e captar o invisível ao nível da face. «Retratar não é, afinal, representar uma representação, porque o rosto não é uma imagem, mas um complexo de sinais e de forças em movimento que o puxam ora para fora de si (…) ora para dentro de si, fixando-o numa figura estática, humana, ilusoriamente una». «A representação, (…) como cópia da relação que liga o modelo originário à cópia sensível, não busca a semelhança ou a analogia de formas, mas o lugar topológico da génese da semelhança». O alvo que o pintor aspira atingir não é «o conjunto de sinais expressivos visíveis, nem o fundo informe invisível, mas a curva que desenha o contínuo das pequenas percepções.» «O que dá a ver o retrato é a forma de uma força: a forma invisível, mas extraordinariamente pregnante, da intensidade com que um rosto nos olha e que o nosso olhar acolhe». «Não se trata já, para o pintor, de assemelhar, mas do devir», das forças e intensidades que ele captou e às quais deu forma.

O retrato é uma ferramenta apetecida e utilizada pelas personalidades que gravitam na área do poder ou a isso aspiram. Ajuda a criar uma subjectividade que sirva os intentos do retratado. As alegorias ou os símbolos a que é associado, os objectos que o rodeiam, assim como toda a organização do quadro, induzem a subjectividade pretendida.

O surgimento da forma abstracta, abolindo o referente exterior, não serve as funções de perpetuação de memória da singularidade do homem, nem as funções de engrandecimento e legitimação do homem de poder. A arte abstracta matou o retrato, que foi substituído pela fotografia.

A unicidade de um rosto, com as suas peculiaridades de origem interna e externa, pode verter a sua verdade no retrato, mas «o retrato não é o rosto – é o nome do rosto». O retrato constrói uma singularidade paradoxal: dá ao rosto uma identidade, mas descodifica-o para além do traduzível. Não nos esqueçamos de que se trata da representação de uma representação. O original, não múltiplo, não representação, não existe – a primeira imagem é já uma multidão.


Resenha do ensaio do filósofo José Gil:

«O Retrato» in José Gil, et al, A Arte do Retrato: Quotidiano e Circunstância, Lisboa, FCG – Museu Calouste Gulbenkian, 1999.





terça-feira, 18 de maio de 2010

Geraldo Geraldes – O Sem-Pavor


Joaquim Bispo



Pintura de Carlos Reis (pormenor) – Hotel do Buçaco




Com a morte do emir em Marraquexe em 1106, inicia-se um processo de enfraquecimento almorávida na Península Ibérica. A liderança militar no Garbe não é forte e os reinos cristãos tornam-se cada vez mais agressivos. Em 1147, Afonso Henriques conquista Lisboa, Santarém, Almada, Palmela e Sintra.
Entretanto, os Almóadas derrotam os Almorávidas em Marrocos e entram na Península, tentando unificar as taifas ali criadas e lutar contra os cristãos. São muçulmanos fundamentalistas de origem berbere que lutam por uma pureza maior da religião.
Em 1158, Afonso Henriques, a custo, toma Alcácer e, em 1159, Évora e Beja (esta apenas saqueada e aquela perdida em 1161), aproveitando uma momentânea fraqueza almóada e ignorando o tratado de Sahagún desse ano. Em Sahagún, os reis irmãos de Leão e Castela decidem qual é o espaço de cada um na conquista do território muçulmano: até Sevilha, seria para o rei de Leão; de Sevilha para lá, para o rei de Castela.

Em 1165, Geraldo toma Trujillo, bem para lá da zona de Badajoz.
Quem é Geraldo?: «nobre cavaleiro que serviu D. Afonso Henriques, mas de quem se afastou para se eximir a um castigo severo por actos condenáveis que praticara, indo, por isso, refugiar-se, com o bando de salteadores que formou e capitaneava, em território sob domínio islamita». Os seus homens eram: «moçárabes e moradores de Santarém». Os anos e anos de continuados combates nas zonas de fronteira incerta, produziram naturalmente homens desenfreados, mais habituados a subsistir de rapinas, do que de trabalho. Os bosques dos territórios disputados por cristãos e muçulmanos deviam estar repletos de «bandos de salteadores, provavelmente compostos de indivíduos de uma e outra crença, (...) guerreando indiscriminadamente cristãos e muçulmanos». Assolar campos e aldeias, rapinar e conquistar castelos para el-rei podia ser um modo de vida.

Ainda em 1165, tomou Évora, cidade muito importante e que Afonso Henriques tinha perdido quatro anos antes. «Decidiu empreender uma proeza que o acreditasse no conceito do monarca português para todo o sempre. Para isso planeou conquistar aos Mouros a opulenta cidade de Évora, empresa bem difícil e árdua. Foi um feito extraordinário, especialmente para um bando de homens não ligados a um exército estruturado. O coração de Afonso Henriques abriu-se. Se alguma animosidade tinha para com Geraldo, como conta a lenda, aqui lhe perdoou. Fê-lo alcaide de Évora, que foi povoada por cristãos e nunca mais voltou a mãos muçulmanas.

Em fins de 1165 ou início de 1166, tomou Cáceres e depois, imparavelmente, Montanchez, Serpa, Juromenha, Alconchel e ainda «Mourão, Arronches, Crato, Marvão, Alvito e Barrancos». Em 1167 terá tomado Elvas e Monsaraz e em data incerta: Santa-Cruz e Monfrag, na província de Cáceres.

A estratégia de conquista desenvolvia um plano de surpresa, atacando cidades longe duma linha lógica de progressão: de Trujillo, saltou para Évora, depois para Cáceres e seguiu em ziguezague inesperado, a que se juntava o processo do ataque: «avançava sem ser apercebido na noite chuvosa, escura, tenebrosa e, (insensível) ao vento e à neve, ia contra as cidades (inimigas). Para isso levava escadas de madeira de grande comprimento, de modo que com elas subisse acima das muralhas da cidade que ele procurava surpreender; e, quando a vigia muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o primeiro a subir ao castelo e, empolgando a vigia, dizia-lhe: “Grita, corno tens por costume de noite, que não há novidade”. E então os seus homens de armas subiam acima dos muros da cidade, davam na sua língua um grito imenso e execrando, penetravam na cidade, matavam quantos moradores encontravam, despojavam-nos e levavam todos os cativos e presas que estavam nela».

Olhando para um mapa das conquistas de Geraldo, percebemos que um dos objectivos que ele tinha, era isolar Badajoz, a forte capital da taifa com o mesmo nome, cortando-lhe os abastecimentos e os apoios vizinhos. Mas Geraldo não estava apenas a apoquentar os muçulmanos; as suas conquistas penetravam profundamente no espaço de conquista definido no tratado de Sahagún e eram um perigo fortíssimo de isolar o rei de Leão.
Então, em 1168 «Fernando Rodriguez de Castro, cunhado do rei leonês», dirigiu-se a Marrocos onde passou cinco meses junto do Califa. «Por fim conseguiu uma subvenção mensal e firmou um pacto ofensivo-defensivo, o qual logo foi confirmado por Fernando II. Este comprometeu-se, assim, a que quando tomasse conhecimento de uma expedição de cristãos dirigindo-se a terra muçulmana, saísse a repeli-los sem perda de tempo. Talvez pedisse também o rei leonês o auxílio de tropas muçulmanas».

Em Maio de 1169, Geraldo atacou Badajoz e tomou a cerca, mas a guarnição refugiou-se na alcáçova. Então Geraldo pediu ajuda a Afonso Henriques para sitiar a alcáçova. O perigo era grande para Leão e para os muçulmanos. A notícia chegou célere a todos. Fernando II enviou uma expedição, que chegou a tempo de evitar a conquista da cidade pelos Portugueses. Estes ficaram entre dois fogos: os Almóadas na alcáçova e os Leoneses a cercarem a cidade. Os Portugueses tentaram escapar a esta situação melindrosa, fugindo precipitadamente, mas um pormenor deitou tudo a perder: «E aconteceu que o cabo do ferrolho não ficara bem colhido ao abrir das portas, e o cavalo, assim como ia correndo, topou nele com a ilharga de guisa, (e D. Afonso Henriques) se feriu muito: e quebrou a perna a el-rei (...). Nisto, o cavalo que ia ferido, não podendo mais suster-se, caiu com el-rei sobre a mesma perna, e acabou-lha de quebrar de todo, de maneira que os seus não puderam mais alevantá-lo nem pô-lo a cavalo».

Capturado com Geraldo pelos Leoneses, esteve Afonso Henriques dois meses prisioneiro do rei de Leão, seu genro, numa situação de extrema fragilidade política, mas este, cavalheirescamente apenas terá exigido: «Restitui-me o que me tiraste e guarda o teu reino». Assim, Afonso Henriques teve que devolver os condados galegos de Límia e Toronho e todas as terras da Extremadura espanhola, da margem esquerda do Guadiana. Ficava assim desfeita a atracção da Galiza e, respeitando esse pacto, só restava a Afonso Henriques avançar para Sul, através de território muçulmano, se quisesse aumentar o seu reino.
Também Geraldo, capturado, teve que devolver a Fernando II as terras «da conquista de Leão» e a Fernando Rodriguez de Castro, as terras «castelhanas» de Montanchez, Trujillo, Santa-Cruz e Monfrag.


Fontes:

ASALA, Ibn Sahib. História dos Almóadas in LOPES, David. «O Cid português: Geraldo Sempavor», Revista Portuguesa de História, Tomo 1, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos, 1940.

GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Júlio. História General de España y América, 29 Tomos, Tomo IV, La España de Los Cinco Reinos (1085-1369), 2.ª edición, Madrid, Ediciones RIALP,S. A., 1990.

HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, I, in AMARAL, Diogo Freitas do. D. Afonso Henriques – Biografia, Amadora, Bertrand, 9.ª edição, 2000.

SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal, 6 vols., vol. II, Porto, Iniciativas Editoriais, reed., 1979.





quinta-feira, 13 de maio de 2010

José Guilherme Vereza

Zé Batista era um centro-avante guerreiro.
Acreditava piamente que seu destino estava nas mãos
divinas e tinha uma fé inabalável de que seus gols
não vinham de seus pés, mas dos desígnios lá de cima.

Entrava em campo, três vezes sinal da cruz.
Perdia gols, benzia-se, beijava medalhinha.
Fazia gols, apontava para os céus de olhos fechados,
ajoelhava e levantava a camisa escrita:
Não fui eu, foi Ele.

Uma tarde, final do campeonato,
o jogo matava a torcida num zero a zero eletrizante.
Foram nove gols absurdamente perdidos por Zé Batista.
Bolas na trave, chutes a gol aberto, pênalti para fora,
goleiro defendendo com a ponta dos dedos,
bico da chuteira, sustos à queima roupa.

Zé Batista corria de um lado para o outro na área,
estonteando os zagueiros, procurando a melhor colocação.
Enquanto isso, rezava ofegante e baixinho.

Nos seus lábios, Pai Nossos, Aves Marias, Salves Rainhas.
É agora, meu Deus, é agora, meus santos,
tem que ser agora, minhas nossas.

O tempo vai passando, a paciência se esgotando.
Paciência da torcida, do técnico, do próprio Ze Batista,
que jura, por um misero golzinho providencial, voltar a ser
o coroinha papa hóstia,que nunca deveria ter deixado de ser.

E tome de promessas e gols perdidos. Promete celibato, subir
escadarias de joelhos, jejum de uma semana, churrasco nunca mais.
E nada do jogo sair do zero a zero desclassificante.

Um minuto de desconto. Última volta do ponteiro.
Bola levantada na área, Zé Batista sobe mais que o líbero,
a bola bate na sua nuca, goleiro vencido, toca na trave,
o zagueiro tira em cima da linha,
volta na canela do Zé, que chuta por instinto, meio torto,
meio mascado, o goleiro escorrega e sai catando a maldita,
que entra no gol como uma galinha tonta e fugidia.

Zé Batista em transe salta mais que o próprio corpo,
braços e pernas no ar fazendo um xis.
E desce já de joelhos, olhos cerrados,
dedos apontando para os céus pelo milagre alcançado.
E solta a voz:

- PUTA QUE O PARIU, SENHOR!





quarta-feira, 12 de maio de 2010

Homem com Violão

Cirilo S. Lemos


A música é a única arte que toca de fato o coração das pessoas. O resto é papo furado.
   
     (Escrevo isso no espelho do banheiro com aquele seu batom rosa.)

    O violão já está largado num canto faz tempo, a caneta e o caderno cheio de frases rabiscadas caídos pelo chão, e você aí deitada, tão linda. O corpo moreno se esparrama pelos lençóis úmidos de amor e sangue, me convidando a beber mais de você. Mas não quero acordá-la. O dia foi tão puxado, teve aquela correria toda do seu trabalho, a casa que precisou ser arrumada mil vezes, a comida, a bagunça que não consegui evitar.

     Por isso é melhor que eu fique aqui parado, observando-a agonizar com a pele arrepiada pelo frio, seguindo o desenho sinuoso do seu corpo com os olhos inundados por uma sensação quente que só posso descrever como – como o quê? Não sei como descrever isso. Para falar a verdade, não sei como descrever mais nada nesse mundo. Também não sei mais o que pensar depois de tanta confusão que houve mais cedo. Você mesmo falou que não se importa com o que acontece ao meu coração. Isso eu posso aceitar. Jogar na minha cara que não tenho emprego, que vivo às suas custas, que sou um sonhador inveterado, essas coisas eu até posso agüentar. Mas dizer que não sou capaz de escrever uma letra decente é demais. Deus me fez para a música, querida.

     Olhou-me com desprezo, desafiando-me a escrever uma canção sobre sua nudez, não devia ter feito isso. A caneta parecia pesar toneladas, a folha pautada em branco escondendo o diabo do bloqueio, os acordes que não se acertavam e você debochando, rindo de mim, testando meus limites. Não devia ter feito isso, eu sou um astro da música ainda não descoberto, e nós artistas de verdade temos almas sensíveis e passionais, agimos por impulso. Sem pensar, fui em sua direção, beijei-a, deitei-a sobre nossa cama e, enquanto a penetrava, espetei seu peito com uma faca. Então veio a inspiração, jorrando em torrentes caudalosas.

     Com a caneta de volta entre os dedos, arrisco as primeiras frases.
     Deixa/nossa casa é tão perto / e o meu futuro é incerto / mas ainda arrisco o meu pescoço só para poder te ver / enquanto você nem ao menos olha nos meus olhos / e sorrindo, diz para todo mundo / que eu não sei viver sozinho / justo eu, que sou um cara interessado / mas não estou nem aí / depois do que passei / decidi que não é tão legal ser assim / um conselho: veja o que vai de encontro ao seu orgulho / você não me entende, é o que diz / nem quero entender.

     Fico de pé, o ruído gorgolejante saindo da sua boca me dá uma ótima idéia para um pequeno solo. Apanho o violão e o dedilho suavemente, cantando para você:

     Agora sei que faço parte de algo que importa / quando a única coisa verdadeira é a dor que sinto por você / se pode abrir a porta, abra, não me deixe aqui / sei que posso reagir, mas é bem mais fácil assim / não fui eu quem perdeu o compasso / nem sou o cachorro que mandaram para o espaço.

      O que é que eu sou?

     Não pode duvidar / que a minha alma já me perdoou / sou um porco, mas ao menos sou honesto / gosto de presunto, mas não sou canibal / o que me importa se não pode mais correr? / aqui não pode mais ficar se minha alma já me abandonou / somos dois refugos deste mundo.

     (O seu cabelo está tão lindo).

     O seu câncer é tão sereno / aqui se faz, aqui se paga, são as regras, pode ver. (Não está ficando bom, estou perdendo a inspiração).

     A faca está brilhando tanto, quase como se chorasse. Deve estar com sede, meu bem. Será que ela gostaria de mais um pouco de sangue? Sangue seu? Estou pensando seriamente nisso, mas tenho medo de machucar você, sabe. Eu te amo e não quero que doa.

     Ah, mas eu não contei? Sábado passado uma nuvem me arrastou / fui levado para o Himalaia e só voltou o que restou / foram meus ossos e uma perna quebrada.

     (Noite passada tive um pesadelo: atrás de cada porta tinha vinte espelhos e todos refletiam sobre mim).

     A lâmina da faca é tão fria, não é?

     Agora que sei dos amigos que tenho / fica bem mais fácil alcançar o pé de vento.

    Carne macia a faca corta que é uma beleza, assim pouco acima da coxa. Não vou negar que a quantidade de sangue que brota me assusta. Nesse ponto eu sou um pouco sensível, mas você entende, não entende?

     Se o meu veneno te atrai / o seu atrai a mim também / o sangue arterial não sufocou meu medo.

    (Está pingando sangue no tapete).

    Olhando pela janela percebo que o dia passou e eu nem vi. Agora se aquieta, é verdade, eu não menti. É sempre a mesma história, “o que há com você? Sua caixa de sapato não contém mais o mundo, onde você vai viver?”

    Sim, querida, estou doente e venho de outra dimensão, onde o ódio acaba com as ilusões de que esse planeta ainda vai mudar. Não existe nenhum coração cósmico de bondade para nos amar por aí. Tenho certeza que aquela farsa do remédio não funcionou. O grande vazio ainda está aqui. Quem eu amo está contra mim, todo mundo querendo me encher de remédios, até você, dizendo que era para o meu bem. Mas sou um artista, artista não precisa de remédio.

     Todo dia os meus olhos / encherão de água ao me lembrar de você. O ontem e o amanhã / convergindo para se tornar hoje. Legal isso, não é? Eu sei que é. Tenho muito orgulho de pensar essas coisas sozinho porque sou um poeta. Um poeta da dor. E não somos todos?

     Seus olhos estão meio vítreos, será que é normal? O corte não foi tão fundo assim, não chegou nem a sair um litro de sangue. Mas esses olhos tão perdidos, tão fixos, não sei não. São olhos que fazem sorrir / e que fazem chorar. Suas preces não funcionaram desta vez, querida. Vou tirar da gaveta o meu disco de blues / enquanto o que sobra de nós dois rodopia em meio ao pus (ei, isso meio que rimou, eu não gosto de rimas, prefiro versos brancos). As coisas estão tão confusas agora aqui na minha cabeça. Eu matei você ou você já estava morta quando eu cheguei? Tanto faz. Estou sempre gravitando em volta do desastre, de qualquer forma. Não seria eu se não fosse assim.

     (O dia está terrível. Não, terrível está o ano).

     De terno e gravata, estou pronto para morrer. Isso que vê em mim não nasceu aqui, mas vem de você. Dessas suas tentativas desesperadas de vender o chão para comprar o céu. Ninguém notou a sua dor e isso te incomoda. A vida não é justa, mas quem se importa?

     Apesar de tudo, não é tão ruim assim / o seu coração tem beleza.

     Misturei os antidepressivos com mel para beber sem sentir o gosto.

     Lembra, morena, quando você apareceu para mim? Na primeira vez que eu vi, não senti nada , mas quem me mandou insistir? Isso tudo é confusão / isso é confusão / estou confuso e não vai dar / nasci para você / embora eu não possa entender / como ocupar todo o espaço e o tempo perdido / você está presente aqui / rasgando minha alma / minha deusa fantasma / consumindo meus sonhos / abraçou-me com seu filtro / me abandonou no sol / fiquei tão perdido / buscando seu rosto na multidão. Reencontrei minha dor / reencontrei minha luz / reencontrei minha deusa fantasma / trazendo para mim minha cruz (nada de rimas, versos brancos, versos brancos).

     Seu corpo está gelado, querida. Acho que você está mesmo morta. Você me diria se estivesse morta?Vou enrolar você nesse lençol com cuidado para os vizinhos não acordarem, então te arrasto para o jardim. Você gosta tanto de plantas que acho que ficaria satisfeita em ser enterrada no meio das flores, estou certo ou não? Hein? Fale alguma coisa, querida, está me assustando com esse silêncio. Seu riso impertinente me consumia, abria meu peito, me fazia em pedaços, onde é que ele está agora? Não fui eu que planejei, só aconteceu. Inocência, direi ao senhor delegado, já foi uma virtude. Hoje eu não sei mais o que é. Agulhas não me trazem juventude, estou acorrentado. Com tantos crimes que eu cometi, quem vai me perdoar?

     Vou ter de encarar aquele abismo que fica me olhando tentando me assustar. Eu nunca, nunca mesmo, estive tão seguro assim como hoje. Estou tão feliz. Eu vou saber o que você pensou, vou te fazer falar. São tantas as coisas que sonhei, talvez eu realize algumas delas. Mudar talvez não seja tão ruim.

     (Eu não tenho vontade própria, só uma bateria anti-social).

     Haverá estradas para perdidos como eu? Vou chorar lágrimas de sangue para você saber que meu amor é sincero, enquanto a terra te absorve. Para te salvar sou eu quem tenho de morrer, e se eu morrer vão me esquecer, não quero isso para mim. O que eu quero é dor indolor para sentir sem mentir, e viajar sem sair do lugar. Quero livros escritos por mim / e queimados por mim / me deixa queimar.

     Tive outra visão enquanto vomitava no banheiro e lavava seu sangue do meu rosto: a lua estava sobre mim e me compreendeu, enquanto as árvores mais altas imploravam por atenção. O temporal por um segundo esteve para voltar, mas o vento o afastou para bem longe daqui (ah, se eu soubesse o quanto estava equivocado ao pensar isso!). Pode voltar, pode retornar, mas espero que me deixe aqui. Esse é o final – se for, mas que triste o fim.

     Sua cova está pronta, querida, preparei-a da melhor maneira levando em conta a falta de ferramentas apropriadas. Quando tudo mudou entre nós, precisei me erguer para superar. Eu te vejo ao voltar da prisão, mas agora não posso ver mais nada. Nem quero sentir seu coração. Todos os meus gritos mostram todo o meu desejo de te ver aqui. Enquanto o tempo passa sua mortalha improvisada me aquece e me faz pensar se é possível para mim encontrar o céu (é o mesmo que o inferno, pode ser frio e congelado). Passarei dormindo um dia infinito para descansar.

     Enquanto jogo os primeiros bocados de terra sobre seu túmulo carinhosamente improvisado, evito sujar seus olhos tão belos e amendoados. No fim, só levamos a música que ouvimos.





terça-feira, 11 de maio de 2010

A filha de Crisóstomo

Maria de Fátima
– Teresinha…
Assim chamou Crisóstomo Inácio encostado no balaústre da sacada como se fosse em amurada de um barco.
O pai a querer saber dela, a querer que não se afastasse, chamava-a sempre no diminutivo e, no entanto, se ela estava, quando na hora da ceia se encontravam à mesa, ou fosse qual fosse outra a circunstância, que não por saber por onde andava, mesmo daquela vez em que Maria Teresa teve as febres – dias, e foram mesmo meses, ardendo intermitente – era o pai erguido no seu metro e setenta e oito, magro, os dedos polegares enfiados nos bolsos do colete, a tratá-la como era o costume dele: a Maria Teresa sabe… a menina Teresa compreenda que…
E em término de conversa, tantas vezes: Maria Teresa, eu disse uma vez e basta.
E não havia apelo, como será quando Maria Teresa implorar: Paizinho, eu não posso prometer que nem mais uma letra, e não me mande para o convento.
E Crisóstomo Inácio, implacável: Maria Teresa, eu disse uma vez e faz-se.
Nunca tratava a filha pelo diminutivo.
E isso seria por Crisóstomo ser pai viúvo, que Dona Maria Isabel Benquista, sua amada esposa, se finara mal parida, que nem uma aguadilha Maria Teresa sugou de seu peito, Dona Maria Isabel com as miudezas infectadas e a menina baptizada no mesmo dia em que a terra recebeu os restos de sua mãe: Crisóstomo Inácio a rentabilizar a vinda do padre até à aldeia.
Tratava-a por Maria Teresa, ou Teresa, abreviando, a não ser que a chamasse, e era o caso nesse fim de manhã: Teresinha, tido ele dito, e a filha respondeu, saracoteando uma saia com folhos:
– Estou indo, meu pai.
Maria Teresa longe, saltitando ao longo do riacho, a responder de modo que nem a ouviriam, mesmo que tivessem essa faculdade, as pedras que pisava, quanto mais o pai lá longe, não tanto que, repetindo o chamado, ela não o ouvisse, duas fitas a dançarem nas abas largas do chapéu de palha, e ela respondendo, agora um tudo nada mais alto:
– Estou indo...
E ele sequioso que a filha viesse, clamava, repetindo:
– Teresinha…

A Crisóstomo ficara aquele medo de que Maria Teresa se fosse, que lhe tornasse aquela ideia. Que nem fora há muito, parecia-lhe a ele, Crisóstomo Inácio, e no entanto já Maria Teresa fizera a escola com a mestra, já estava na hora de decidir se a fazia casadoira ou a internava no colégio, as freiras a tratarem de saber-lhe fé suficiente para que professasse.
Mas o medo de Crisóstomo Inácio nem era que a filha repetisse o acto. O medo ainda maior, era que Maria Teresa um dia se desse em levar a publico aquela papelada, que escrevesse outras. Que ele nem contara, em segredo de confissão, quando o padre veio em visita de Páscoa. Vergonha que ele tivera de dizer que a filha tinha escritos, histórias, pensamentos, coisas que diria do demo, se bem que ela invocasse a Deus mesmo os parágrafos onde parecia discorrer dos sentires do corpo.
Uma coisa de loucos, pensava Crisóstomo, a viver no pecado daquele segredo, e a pedir que Deus lhe perdoasse se fosse caso de estar a levantar falso testemunho: que seria coisa do mafarrico aquilo que pressentia nos escritos da filha. Que na cabeça de Maria Teresa borbulhariam ideias desavindas.
Crisóstomo Inácio chamando:
– Teresinha…

***

Naquele Setembro, Maria Teresa sentara-se a olhar a água do regato debaixo do ulmeiro. Ela com os joelhos a tocarem a boca e os dedos enclavinhados uns nos outros em redor das pernitas magras, magicando.
Maria Teresa sem perceber que estava decidindo, num silêncio de segredo, o que seria a sua vida. Um arroubo, um desejo imenso que lhe cresceu de sair dali onde era a casa e, logo a seguir ao caminho, o povoado, e ela desejando mundo.
Era ainda quando andariam as meninas da sua idade a inventar brinquedos, mas, isso, Maria Teresa nem sabia.
Encontraria o jeito de ludibriar os que havia por perto: seu pai e Gertrudes, a rapariga que fazia a lida e lhe ouvia os contos: Gertrudes despercebida, que o tanto que seria atenta o era medrosa do que ouvia, folhas e mais folhas cheiinhas de rabiscos, que a menina lhe lia rogando: que o meu pai nunca desconfie.
Mas foi Gertrudes quem disse a Crisóstomo: a menina inventa coisas, e a mostrar ao pai o esconderijo dos papéis.
Mas isso foi só depois de Maria Teresa ter sumido, a subir o relevo do pequeno morro que abrigava as casas dos ventos de norte.
Um dia inteiro caminhando, e nem o som, que se ia esfumando – as vozes a chamarem-na – e nem a fome a demover Maria Teresa de buscar abrigo onde ficasse, onde fizesse descanso para depois ir um tanto mais longe: assim como se me comandassem vozes, dirá Maria Teresa quando contar de como foi galgando o monte, um dia e depois o outro.
Começaram por buscá-la pelo ribeiro, que o morro não era local de suas brincadeiras: não era costume. Andaram nisso os homens, a calcorrearem as margens de cá e de lá do fio de água. Poucos, que a aldeia era mais um sítio: seis casas, a de Crisóstomo Inácio um nadinha distante do aglomerado porque fosse a mais rica, porque fosse de herança.
Nada de alguém ter visto a menina, diziam uns e outros ao fim do primeiro dia, e repetiu-se até ao terceiro depois das Ave Marias.
Ao cair da noite, eram os homens com archotes, as luzes a formarem fila vasculhando, e depois a dispersarem-se na subida do pequeno serro, que semelhava íngreme. Fora o pai quem dissera:
– Tentaremos também daquele lado.
Vivalma.
Que na noite de lua em minguante, mal se enxergava além do redondo de luz que enviava o archote, ainda mais bruxuleando, que soprava vento de norte.
A cada compasso de espera que faziam, como se fora fim de busca, os homens ruminavam azedos a quem não sabe criar filha sem mãe que a eduque: que é preciso pulso forte e Crisóstomo é manso, ruminavam no temor de lhe ir dizendo.
E no entretanto de esperá-los, eram as mulheres a afirmarem o que até ali tinham calado, o que nem tinham dito a não ser na alcova, e agora conversavam de uma a outra: que aquela menina sofria de um mal, que a louca da casa a atacara.
As vizinhas a desabafarem o que traziam escondido: que seria de lhe ter cuidado, que a menina era dada a artes, que ela imaginava coisas. Que sim, sabe… diziam como se enregeladas de um medo de outro mundo, como se, propalando, exorcizassem o pavor de que viesse ter com elas o mal de que sofria a filha de Crisóstomo Inácio, um mal que raramente dava e atingira Maria Teresa, como já sofrera dele, contavam de uma a cada outra, a falar ainda mais baixo: a sua avó materna, Dona Aninhas, que Deus guarde no seu seio, também escrevia folhas e mais folhas de inventados.
E, como se contando de um pecado grave, de um mal que pega, persignavam-se a dizerem: a menina do Crisóstomo escreve, ela enche folhas.
Coisas do demo, rematavam, de novo a persignarem-se.
No entretanto em que a iam procurando, Maria Teresa nem rezava e nem adormecia, que a noite lhe trouxera o arrepio do medo a afugentar para um firmamento, que nem as estrelas alumiavam, a fé dela em Deus, e o desejo de mundo. Uns anos muito verdes enroscados sobre si, o vento a parecer falar-lhe, ora tonitruante, ora a soprar-lhe segredos, de um modo e outro, assustador. Maria Teresa dormitou mais de cansaço que de sono, tapada pela brisa quente, que era ainda sobras do ar de Verão aconchegando Setembro.
E ao dia seguinte, marchou-se adiante, que houve uma segunda noite antes que a encontrassem: Maria Teresa no cimo do morro e eles a rodearem-na.
E ao olharem-lhe os olhos, veio-lhes à mente o que cada um ouvira de sua mulher ou, em dia de ocasião, teria sido a menina Dores que fazia os serviços a solteiros e viúvos: podes crer, homem, a menina sofre, como hei-de dizer, do mal da louca da casa, uma enfermidade grave.
E foi de terem sabido pelas mulheres que, a descerem a encosta e a trazerem numa mula a filha de Crisóstomo, os homens se iam benzendo: em nome do Pai e do Espírito Santo, a ver se lhes fugia aquele calafrio de terem olhado os olhos transparentes de Maria Teresa como que a mostrarem mundos nunca deles sequer apercebidos.
E depois que desceram, diziam as mulheres, que assim tinham ouvido dos maridos: nem um choro, nem um pedir de perdão.
E faziam cruzes pela testa e pelo rosto, e dobravam-nas sobre o peito, como se assim fazendo, fossem sendo perdoadas de pecados que estivessem cometendo.
Foi nesse ínterim de buscarem-lhe a filha, que Crisóstomo soube que Maria Teresa era possuída do poder de inventar pela palavra, o poder de dizer o que nem lhe estava em roda, o que ninguém vira e só ela pensava.
Ficou Crisóstomo ciente que a louca da casa tomara em seus braços a filha.
Doença incurável.


***
– Chamou, Senhor meu pai?
E dizendo assim, Maria Teresa fez menção de uma vénia, a baloiçar os caracóis que soltara do chapéu de palha.
E Crisóstomo Inácio, a sentir o coração a dizer-lhe de outro modo, falava-lhe:
– Amanhã partes para o convento e não tornas.
Foi o início de uma estrada íngreme, a louca da casa imbuindo Maria Teresa, a ser-lhe alento e companhia para o resto dos seus dias.
E nas noites sem lua, ainda o povo da aldeia ouviria Crisóstomo Inácio:
– Teresinha…







segunda-feira, 10 de maio de 2010

A Vingança de Bento Julião

Ô, moço, até onde eu saiba, esta briga vem de muito tempo. O que falam é que tudo começou por causa dum bocado de terra, ali perto do ribeirão: algum pelintra vendeu o terreno pro avô do cabo Pires e pro avô do Bento Julião ao mesmo tempo.
Os dois eram fazendeiros e, mesmo que a terra fosse ruim — só dava pra pasto —, nenhum deles iria abrir mão.
O antepassado do Bento ergueu uma cerca pra indicar a divisão, mas o outro foi lá e derrubou. Daí, ele foi e ergueu outra cerca, que também foi derrubada. Ergueu uma terceira e, desta vez, deixou uns capangas de tocaia.
Quando os filhos e empregados do avô do cabo Pires foram pôr a cerca abaixo de novo, os capangas do Julião abriram fogo e encheram a rapaziada de chumbo. Foi uma correria, um chororô, mulher berrando por causa do marido morto, criança gritando porque o papai ‘tava no Céu, uma comoção na cidade.
A guerra se instaurou. O avô do Pires chamou uns primos, que haviam lutado no Paraguai contra Solano López, e foi uma carnificina. Todas as noites, um invadia o terreno do outro, tocava fogo nas casas, degolava os bois, e trocavam tiros até o sol nascer.
A população da cidade estava aterrorizada, tanto que o governador enviou um destacamento de soldados pra apaziguar os ânimos. E mesmo que não houvesse novos ataques, as duas famílias continuaram se odiando por todos estes anos.
Se um Julião se encontrasse com um Pires na rua, eles mudavam de rumo; se um entrasse numa casa, o outro saía; se um se casasse com uma guria, nenhum homem da família rival podia se casar com achegados dela. E toda a cidade se dividia: havia os partidários dos Julião, e os dos Pires; ninguém se manifestava publicamente, mas cada um tinha sua predileção.

O cabo Pires e Bento Julião eram pessoas completamente diferentes.
Todo mundo gostava do cabo Pires — crianças, velhos, coroinhas e principalmente as meninas. Era um rapaz bom, daqueles que só sabe fazer o bem e falar a verdade.
Já Bento Julião era o cão feito gente. Dava petelecos na piazada, roubava as vendas, deflorava cabras e havia rumores de que ele tinha um pacto c’o diabo. Era tanta maldade numa só criatura que as pessoas até sussurravam quando mencionavam o nome dele.
E não é que o filho-da-mãe do Bento Julião se engraçou com a caboclinha do cabo Pires?
Era o papo nos botecos e nas vendas, cada um cochichando sobre isto, mortos de pena do bondoso cabo Pires:
— É uma pouca vergonha, um homem tão bom carregando este par de galhadas!
Mas o cabo Pires, ingênuo, nunca desconfiava de nada. Tinham dó dele, mas onde estava a coragem pra falar?
Um dia, seu Zé do bazar se cansou:
— Ô, cabo Pires, se eu fosse ‘ocê, corria pra casa agorinha mesmo.
— Por que, seu Zé?
— “Quem avisa, amigo é”, cabo Pires, e eu levava também a garrucha.
Isto bastou pro moço, que, co’a espingarda na mão, chegou em casa num piscar de olhos. Pegou Bento Julião e a caboclinha com as calças nas mãos, ou melhor, com as calças no chão.
Cabo Pires deu tiro pra todo lado, matou a caboclinha e acertou os fundilhos do Bento Julião, que fugiu, sangrando e berrando, pela janela.
O cabo se tornou herói na cidade, além de bom moço, ele também honrava o que tinha no meio das pernas. Ele se amasiou com uma polaquinha formosa e teve dois pimpolhos.
Foi então que o convocaram pro Contestado e, por um par de meses, ele lutou contra os revoltosos. Quando voltou pra casa, os amigos o avisaram:
— Cuidado que o Bento Julião voltou querendo vingança.
O coitado do cabo Pires quase borrou as cuecas, morria de medo que este dia chegasse. Ele não conseguia mais dormir, pra não ser pego desprevenido; sempre mudava de rota, pra não ser emboscado; e não se separava mais do bacamarte.
Especulava-se o que Bento Julião tinha feito neste tempo em que ficou desaparecido. Dizia-se que ele tinha vagado pelos Campos Gerais, pilhando, matando e estuprando, mas também havia histórias de que ele tinha virado tropeiro, ou matador por contrato e que carregava quinze mortes nas costas. A única certeza era que, na luta de faca, ninguém melhor que ele havia, e Bento andava alardeando aos quatro ventos que ia arrancar com seu punhal o coração do cabo Pires.
Numa manhã, a polaquinha foi chorando contar pro cabo Pires que tinha visto o malvado rondando a casa. Ele tomou, então, uma resolução importante: mandou a polaquinha e os barrigudinhos pra morar com os pais dela e ele rumou pro interior, pra fugir da morte.
Bento Julião ficou puto ao saber da fuga do inimigo. Foi atrás. Cruzou os Campos Gerais e chegou até o Paraguai, depois desceu até a Argentina e voltou pro Paraná. Descobriu que o fujão estava entocado numa vila ali perto e rumou pr’aquela direção.
O cabo Pires estava cansado de rodar o mundo, por mais que tentasse, não conseguia se livrar do bicho-homem que o perseguia.
— Basta! Vou me bater c’o desgraçado — o cabo Pires carregou a espingarda — Ele é bom co’a faca? Mas quero ver como ele se sai contra o meu trabuco! — e ria sozinho, meio enlouquecido.
O sol estava nascendo. Bento Julião chegou junto com o vento da manhã. Veio andando pelas ruas, procurando um canto pra se enfiar e descansar, mas, no fim da única rua da vila, avistou um homem.
Era o cabo Pires.
— Acabou, Bento, é agora ou nunca! — cabo Pires urrou, parecia até um animal selvagem.
Bento Julião se assustou com a transformação que tinha ocorrido com seu inimigo, parecia mais brabo, mais duro, mais corajoso. Bento teve até dúvidas de quem ganharia o duelo. C’uma das mãos tocou o cabo da faca.
Ele se aproximou do cabo Pires, este, por sua vez, ergueu a espingarda, mirando no inimigo. Bento Julião andou devargazinho, esperando o tiro. Cabo Pires tremia, suor lhe escorria pelo sobrolho, atrapalhava a visão.
Atirou. A bala passou arranhando a cara de Bento Julião que, primeiro pensou ter morrido, mas, ao perceber que tinha sido apenas de raspão, ele sacou a faca da bainha e avançou como uma onça.
Desesperado, cabo Pires tirou outro projétil da bolsa e tentava recarregar. A bala escorregou de seus dedos, catou outra, rapidinho, mas Bento Julião estava chegando perto, faca brilhando na mão e ódio saltando dos olhos. Cabo Pires enfiou a bala na culatra da arma, engatilhou e mirou. Mas Bento já estava a um palmo de distância, faca cravada até o punho no bucho do rival.
— Por que tanto ódio? — cabo Pires gemeu, perdendo as forças e caindo, olhos esbugalhados, fiozinho de sangue saindo da boca, estrebuchando igual porco no abate.
Bento Julião limpou o punhal na calça, se ajoelhou ao lado do moribundo, segurou a cabeça dele e lhe fez um cafuné nos cabelos.
— Todo mundo gosta de você, cabo Pires. Te odeio porque não posso ser igual.
E dizem até que ele chorava quando arrancou o coração do cabo Pires, como havia prometido.





domingo, 9 de maio de 2010

A morte do Temerário


Corria tranqüilo o ano do Senhor de 1488. Na residência do arquiduque Maximiliano de Áustria em Bruges, os ares da primavera começavam a espantar o frio dos grandes salões. As lareiras ainda permaneciam acesas, mas a sensação de enregelamento já passara. Olivier de La Marche seguia em silêncio pelos amplos corredores, com o cuidado de quem já vivera por anos a mais do que o esperado.

Ao ouvir passos leves e apressados atrás de si, parou e virou-se. Mesmo com sua idade avançada, o treinamento de soldado que recebera em sua juventude não havia perdido efeito. Reconhecera com acerto o andar do seu jovem príncipe, filho e herdeiro do arquiduque. Ele não tinha o mau costume de correr dessa forma tão pouco adequada, muito menos atrás de seu preceptor e mestre de cerimônias de seu pai.

- Meu senhor e príncipe. Pergunto-me o que poderá ter acontecido, para provocar tanta pressa?

Ele parou, ofegante, olhando para La Marche. Quando finalmente recuperou o fôlego, fez o velho nobre francês ficar sem respirar.

- Mestre, como morreu meu avô?

Antes de responder, o velho servidor fixou o olhar nos traços delicados de seu pupilo. Tinha muito da beleza da falecida mãe, suavizando a herança facial tão marcante dos Habsburgos. A boca era ligeiramente entreaberta, o queixo também era típico da família paterna, mas não tinha a aparência de gárgula do pai e do avô, o imperador Frederico.

- Meu príncipe, não consigo entender a sua pergunta. Pois sabe muito bem que seu avô materno, Carlos da Borgonha, que Deus guarde sua alma, morreu ao tentar recuperar a cidade de Nancy que caira nas mãos de seus inimigos, os lorenos.

Ele balançou vigorosamente a cabeça.

- Sei disso, mestre. O senhor mesmo já me contou. Mas Luís de Cléves falou-me da história que corre na corte do rei de França. Entre os franceses, diz-se que meu avô morreu ao tentar fugir do campo de batalha, depois de ter sido abandonado por seus soldados. Ficou estendido no chão como se fosse um qualquer, o rosto devorado pelos lobos. E que o senhor, junto com outros de nossa Casa, só o reconheceram por uma cicatriz no flanco.

A cólera acendeu-se no coração plácido do velho servidor borgonhês.

- Que o Inferno carregue o degenerado e traidor que lança essas infâmias ao vento. Pois, por minha honra, o único ser sujo o suficiente para espalhar tais mentiras é Phelipe, que antes era de Commynes. Foi conselheiro do duque, seu mais leal servidor e abandonou a causa do nosso príncipe durante a noite, comprado que foi pelo infernal rei, pai do que está agora no trono. Traidores e perjuros, os dois, rei e servo. E agora, buscando as graças dos frívolos e sem honra, Commynes mancha a memória daquele que foi o seu legítimo senhor!

Acenando com a cabeça, o jovem indicou o acerto de suas palavras. La Marche pensou. Havia verdade no que haviam contado ao seu jovem pupilo. Todas as noites, ainda tinha pesadelos com a batalha de Nancy, o cativeiro depois da derrota e a humilhação de ser levado a reconhecer um corpo gelado e endurecido. Mas em momento algum Carlos havia sido abandonado por seus soldados, que lutaram por ele e por sua casa até o fim. Felipe sorriu.

- Eu sabia que era mentira. E que o senhor iria me contar toda a verdade, para que eu possa ensiná-la aos demais.

O que ele poderia fazer? Desmanchar as ilusões do menino, que tinha no avô materno, que não conhecera, um ídolo, em grande parte por influência do próprio La Marche?

- Venha comigo, meu príncipe.

Caminharam em silêncio até a biblioteca. Ali eram guardados os ainda ricos remanescentes da fabulosa coleção de livros dos duques da Borgonha, que antes ficava em Dijon. Nos áureos tempos do duque Felipe, bisavô do menino, quando La Marche ainda era jovem, dezenas de escribas copiavam manuscritos, que depois eram levados para as mais famosas oficinas de iluminadores flamengos, nas quais eram adornados com cores vivas e filigranas douradas. As obras que compunham a biblioteca refletiam o vasto conhecimento humano: os grandes autores clássicos, tanto em sua língua original, quanto em traduções ricamente comentadas, os poetas, os trovadores, os cronistas... um códice com os versos do duque de Orléans, escrito pelo mesmo. O nobre poeta era lembrado com carinho por La Marche, em memória dos tempos em que o então jovem escudeiro passara horas agradáveis conversando sobre a arte da escrita. Mesmo alguns volumes impressos nas prensas dos países do Norte já ocupavam lugar de destaque na biblioteca ducal.

Na sala pouco iluminada, La Marche vagueou entre os livros. Muitos eram de escritores seus conhecidos, autores que estiveram um dia a serviço da mais brilhante casa nobre de toda a cristandade. Seus olhos pousaram na tradução dos “Feitos de Alexandre o Grande”, do romano Quintus Curtius. Vasco de Lucena, o letrado português que traduzira e comentara a obra, em homenagem a Carlos, então herdeiro do ducado, havia sido um grande amigo do mestre de cerimônias.



- Mas também o tempo levou-te, Vasco. E só restei eu... – sussurrou, a voz embargada.

- Falou alguma coisa, mestre?

Acenou negativamente. Sentou-se perto da lareira e indicou uma cadeira ao jovem príncipe. Antes de começar, levantou os olhos para as pinturas penduradas. Deteve-se no retrato de Carlos, pintado antes de assumir o título ducal. Era tão jovem, deixara a vida tão cedo e de forma tão injusta. Prometera jamais mentir ao seu pupilo, e o senso de lealdade à memória de seu senhor falava alto. Respirou fundo e começou.

- Saiba, meu jovem senhor, que das armas da guerra, a mais desonrosa é a calúnia. E dentre as injúrias infundadas, o pior tipo é o que ofende os que já faleceram. Mas a verdade deve sempre aparecer, e irei contá-la a você. Naquele dia frio e desolado em Nancy, no inverno de 1477, fui levado perante um cadáver. Na minha frente, um corpo devorado por lobos, o rosto em farrapos, congelado, com cicatrizes recentes e uma mais antiga no abdomen. Eu disse aos franceses que aquele era o meu senhor e príncipe, o duque Carlos, o Ousado, a quem os franceses chamam até os nossos dias de “Temerário”. No entanto, o corpo que reconheci não era o do seu avô, pai de minha senhora e princesa, a falecida Maria, que Deus a guarde. Pois Carlos estava a muitos dias de viagem de Nancy, em peregrinação, na busca por um tesouro que o transformaria de direito no maior dos príncipes, o que ele já era de fato.

Os olhos do jovem arregalaram-se de espanto.

- Difícil de acreditar, não, meu jovem? Mas foi o que aconteceu. Meses antes da batalha de Nancy, o duque reuniu o seu conselho. Estavam presentes, além de minha pessoa, o chanceler da Borgonha Nicolas Rolin, o sábio português Vasco de Lucena, a duquesa Margarida e a jovem filha de meu senhor, ‘madame’ Maria, sua falecida mãe. Reunidos em um amplo salão, muito semelhante ao do castelo d senhor arquiduque, seu pai, ouvimos meu duque nos contar que havia achado entre os livros da grande biblioteca uma obra rara, que tratava das propriedades de todos animais. Como o grande caçador que era, interessou-se pelo livro e começou a ler. Nas páginas ricamente iluminadas, meu príncipe achou a solução para o problema que há muito o afligia. De todos os nobres cristãos, de todas as qualidades, ele era o mais poderoso, com cinco títulos ducais e inúmeras senhorias, mas ainda faltava a maior das honrarias, o título real. E a solução seria encontrar a fênix, ave miraculosa, e apresentá-la ao Santo Padre em Roma, que não poderia negar mais o seu pedido.

Não precisou sequer olhar para seu pupilo para saber que ele não tinha entendido.

- A fênix é raríssima, tendo sido avistada poucas vezes. Quando esta ave fantástica, de penas de ouro e cobre, olhos de rubi. sente a hora da morte chegar, constrói um ninho e se expõe ao sol. Em poucas horas, ela queima totalmente, não sobrando nada além de cinzas. E dessas cinzas, surge um único ovo, de onde sai outra de sua espécie. Ela é símbolo de Cristo, pois é o único animal capaz do milagre da ressurreição. E Cristo é o Rei dos reis, portanto ter uma pena dessa ave é levar consigo um estandarte do próprio filho de Deus. Assim, seu avô seria finalmente considerado digno da coroa real.

- E onde ela vive, mestre?

- Uma das páginas do livro continha as indicações para encontrar o pássaro. Nas terras distantes do Egito, perto do mítico reino do Preste João, há um jardim que guarda dois exemplares de tudo o que Deus já criou. Desde o simples rato até os mais exóticos animais das Índias. Dos tigres ferozes ao manso cordeiro. Pois lá também existiria a única fênix de todo o mundo.

- Mas lá não haveria dois exemplares de cada criação divina?

- Sim, meu jovem. Mas a fênix é especial, pois só pode haver uma. Seu avô estava decidido. Partiria em busca dessa ave, para finalmente poder ser chamado de rei. Há muito reivindicava tal direito, mas apesar de todas as suas terras, títulos e honrarias, seus pedidos foram negados pelo Papa e pelo Imperador, temerosos do seu poder. Com a mais rara das criaturas de Deus em mãos, não haveria como continuarem a negar o seu real valor. Nenhum de nós concordou com o plano. Era arriscado demais, homem algum havia ido ao Jardim das Delícias e retornado. O duque estava irredutível, não aceitou nosso conselho contrário, e tampouco outra companhia, além de um jovem escudeiro. Beijou a sua filha na testa, enxugando as lágrimas que corriam pelo rosto da princesa, e recomendou que seguisse o seu coração. Recomendou-nos cautela e disse que voltaria em breve, para retomar tudo o que lhe pertencia. Ao cair daquela noite, partiu.

Disfarçado como mercador, em poucos dias chegou ao porto de Marselha. Com o vento a seu favor, meu senhor e duque pouco demorou no mar Mediterrâneo. Apesar dos inúmeros perigos da viagem no mar infestado de piratas, nada aconteceu. Um bom sinal, sua viagem estava protegida pelos anjos. Então, ele desembarcou nas costas do misterioso Egito. As noites estreladas sobre o deserto o acolheram enquanto ele atravessava resoluto o imenso mar de areia. Segundo o livro que lera, o lugar maravilhoso habitado pela fênix era onde o grande rio, o Pai do Egito, surgia, nas proximidades do Éden. Semanas e mais semanas se passaram, enquanto seguiam incólumes por estranhas construções na areia, e por bandos de infiéis.

- Como eram essas construções?

- Existiam várias. Uma representava um animal maravilhoso, corpo de leão, asas de águia e rosto humano. Era uma esfinge, que guardava a passagem de um tesouro. Aquele que o quisesse, deveria responder certo a um enigma. Os séculos passaram-se e nenhum homem acertou, e o castigo era ser devorado pelo monstro. Pois bem, um jovem príncipe, muito sábio, dizem que um antepassado de senhor arquiduque, respondeu corretamente. No mesmo instante, a esfinge tornou-se pedra.

- Ainda existem esfinges guardando tesouros?

- Quem sabe, jovem amo? Não conheço as terras do outro lado do ‘Mare Nostrum’. O mais longe que fui na vida foi Londres...não passei da Ilha Bretã e dos portos franceses. Deixe-me continuar, lembrando que o que estou contando foi relatado a mim pelo jovem escudeiro que acompanhava o duque. Acabou a comida, e a água escasseava... mesmo os estranhos animais que os homens do deserto montam, chamados ‘camelos’, já estavam exaustos.

Há muito que as cidades e as estranhas construções ficaram para trás. Conforme iam seguindo o grande rio, o mundo ia se modificando. Mais plantas surgiam aqui e ali, o vento soprava mais fresco. E súbito encontraram, surgindo por trás de uma coluna de areia, um jardim maravilhoso. As árvores brilhavam ao sol com folhas verdes de esmeraldas e frutos vermelhos feitos de rubis. Havia duas de cada espécie de planta criada por Deus.

Debaixo das copas frondosas das árvores, mesas cobertas com os mais diversos tipos de iguarias exóticas e deliciosas pareciam aguardar o início de um grande banquete ou festival. Ricos adornos de pedras preciosas enfeitavam cada um dos serviços. As criaturas fantásticas das lendas serviam-se, entre sorrisos e cumprimentos.

- Quais?

- Fadas, gnomos , duendes... E muitas outras, que não conhecemos. Por entre as árvores, todos os tipos de animais podiam ser vistos. Sempre em dupla, não mais do que dois de cada espécie, indo daqueles que vemos em nossos pátios até aqueles cuja descrição conhecemos apenas por meio dos livros dos antigos sábios. Em uma clareira, dois unicórnios descansavam ao sol, enquanto um casal de seus parentes alados, da família do famoso Pegasus, alçava vôo. Um par de grifos alisava as penas das asas com os bicos aduncos. Nos caminhos que cortavam o lugar, serpentes com torsos humanos limpavam o chão cantando uma estranha melodia. Duas esfinges, animais maravilhosos, leões com faces humanas e asas de águia, foram em direção do meu senhor.

- Eram parentes da que fora transformada em pedra?

La Marche havia esquecido que havia descrito a construção egípcia.

- Bem lembrado, meu caro jovem. Não sei, mas é provável que sim, já que estes seres nunca foram comuns. A mais velha, de cabelos grisalhos e expressão absolutamente serena, se dirigiu ao duque.

“Quem é você e o que quer de nós? Porque invade o Portal da Criação?”

“Sou Carlos, duque de Borgonha, de Luxemburgo e do Brabante, conde de Flandres, senhor de muitas terras, descendente de reis e príncipes das mais nobres casas. Vim em busca da ave fênix, para poder me tornar rei!”

Quando o último eco da palavra rei sumiu no ar, uma sombra obscureceu o sol por alguns instantes, e na frente do meu senhor, surgiram as duas criaturas mais assustadoras que ele jamais vira. Também possuíam corpos como os do leão, mas seus rostos eram como o de demônios, com olhos rasgados, negros como a noite e bocarras com duas fileiras de dentes, afiados como lanças, rabos iguais aos do escorpião. Voavam graças a duas asas horrendas, como as de um morcego. Meu senhor lembrou-se das gravuras do livro, e concluiu que eram mantícoras, bestas das mais perigosas e das mais detestáveis que Deus colocou no mundo. Não deixaram que as esfinges respondessem.

“Pouco nos importa teu nome e tuas senhorias, humano. Somos todos aqui filhos diletos de Deus. Não como vocês, traidores! Repare que em nosso Jardim há um par de toda a criação, menos de vocês, filhos de Adão! Não são bem-vindos aqui!”

Arreganharam os dentes e avançaram em direção ao meu senhor, que não recuou um passo. Ficou olhando sereno enquanto aquelas horrendas criaturas de pesadelo aproximavam-se. Podia sentir o hálito quente e pestilento em sua face, e não retrocedeu. A mantícora que antes falara começou a rir. Parou de mover-se e encarou o duque.

“É corajoso para um humano, príncipe da Borgonha. Pode ir procurar a fênix. Porém, depois não reclame se conseguir.”

E assim aqueles dois seres de infâmia abriram caminho para meu senhor. Com a segurança daqueles que possuem a verdadeira nobreza, ele avançou. Nesse momento, separou-se do escudeiro, que iria assistir a grande aventura de seu amo ao longe. Pois Carlos respeitava seus servidores e não iria arriscá-lo. Daquele local em diante, sua trilha não poderia ser a de outro homem, mesmo um servo leal. O que contarei a seguir foi visto por esse jovem a grande distância, por meio de um espelho trazido por uma das mantícoras. A besta aconselhou-o a observar com atenção para que pudesse narrar tudo exatamente como havia ocorrido.

Depois de separar-se do escudeiro, um pequeno caminho abriu-se na frente do meu príncipe. Estreito e cercado, no seu início, por arbustos espinhosos que rasgaram a sua carne. No entanto, mesmo a dor aguda não o fez esmorecer. Ao contrário, fortaleceu seu espírito e ele prosseguiu. Sua roupa virou um farrapo indigno de cobrir tão majestoso homem. Quando pouco restava do pano que o vestia, a trilha alargou-se.

Essa senda larga atravessava um pântano no qual vapores pestilentos subiam do chão. Qualquer homem deixar-se-ia vencer pela náusea e ficaria prostrado no caminho. Mas meu senhor não se abateu. O pouco que sobrara de sua rica túnica de seda ele colocou sobre a boca e o nariz, impedindo que seu corpo fosse invadido pelos miasmas da podridão que o cercava. Porém, isso não evitou que insetos saíssem daquela lama pútrida e cobrissem o seu corpo, causando coceiras terríveis. Mesmo assim o duque continuava seu caminho.

Conforme andava, o pântano tornava-se menos inóspito, até que por fim todo o chão ficou novamente firme e seco. O duque Carlos, nu, o corpo rasgado em inúmeros pequenos cortes, estava defronte a uma imensa montanha. Sua pele latejava e ardia devido às mordidas de insetos. Os olhos ainda estavam enevoados dos vapores pantanosos. Com ar de desânimo, avaliou o seu próximo desafio. Era como se a imensa pedra gargalhasse de sua impotência e fragilidade. As laterais eram escarpadas, íngremes e não havia outro caminho. Ele pensava em voltar quando ouviu o grito de uma ave de rapina. Ergueu os olhos e seu coração encheu-se de alegria. O som rouco fora emitido pela mais mítica das aves, aquela que buscava: a fênix, que fazia seu ninho em uma reentrância na rocha, no ponto mais alto. Suas penas brilhavam ao sol, como o maior dos tesouros.

Não hesitou mais um instante sequer e colocou-se a caminho. Os muitos anos de guerra e de sofrimentos fortaleceram meu senhor, que começou a subir a montanha, vagarosamente. As pontas das pedras rasgavam sua pele, suas mãos sangravam em rios, porém isso não o deteve. Fixou seu olhar e seu pensamento no ninho. Neste momento, o duque provou que valia por mil reis. Jamais nenhum senhor havia tentado tal proeza, nem mesmo os mais lendários soberanos. A dor não existia para o príncipe da Borgonha. Somente sua vontade contava, e ela o levou ao seu destino.

Ao chegar ao topo, meu senhor sorriu para si mesmo. Finalmente. Depois de tantas guerras travadas, de tantas batalhas perdidas, seu sonho, que também fora o do seu pai, iria realizar-se. A ave apenas olhava, curiosa. Não se moveu, nem mesmo quando ele aproximou-se. Carlos pegou uma das penas, agradecendo ao majestoso ser, que reluzia com suas longas plumas douradas.

Ele preparava-se para descer, quando ouviu novamente o mesmo grito rouco. Lembre-se, jovem, que a fênix só faz o ninho quando está pronta para morrer e dar origem à outra. Carlos sentiu um calor crescente no instante em que a ave começou a consumir-se. Em suas mãos, a pena também estava em chamas. Tentou jogá-la longe, mas foi inútil. O vento fez com que o fogo se alastrasse por todo o cume, incendiando o ninho, a sua ocupante... e Carlos, duque da Borgonha.

Assim morreu meu jovem senhor, queimado com a fênix. Porém, esta ave é eterna, e ao ressurgir, trouxe consigo também o espírito de meu senhor, que não virou rei. Tornou-se imortal. Os nobres filósofos afirmam que os defeitos humanos são expurgados da alma pelo fogo. Consumido nas chamas da mais nobre das aves, qualquer mácula da carne foi limpa de meu amo. É este o peregrino de sangue nobre do qual descende, meu jovem amo. Ninguém em corte alguma, muito menos na corte de França, pode difamá-lo. Transcendeu a miséria da corrupção humana e agora vive em eterno deleite no Jardim das Delícias, junto com outras criaturas amadas por Deus. Mas peço que não conte isso a ninguém. Não queremos que o maldito rei da França vá tentar destruir tão belo jardim por inveja do duque.

Felipe sorriu para seu tutor, e fez a promessa, satisfeito. Agradeceu e saiu correndo, para retomar a atividade que interrompera. O velho Olivier de La Marche, descendente de um pequeno nobre, criado na casa mais poderosa da França e que a serviço de seus senhores, os duques da Borgonha, percorrera parte da Europa, sentiu lágrimas arderem em seus olhos. Onze longos anos haviam passado desde o cerco a Nancy e sua captura. Maria morrera poucos anos depois, deixando dois filhos ao cuidado de um marido semi-destruído por uma combinação de luto e vingança. Ao velho servidor, ele mesmo um viúvo, sobrara a educação de um jovem que jamais herdaria as terras borgonhesas.

Novamente La Marche percorreu com o olhar o recinto, que recendia a saber e a tempos melhores. Percebeu um volume aberto em cima da mesa do escriba. Era o final de um dos trechos de suas próprias Memórias, que estivera ditando. Ironia do Destino, ou aviso da Providência, era justamente a parte em que Carlos tinha seu corpo reconhecido de forma tão vil. O velho serviçal, homem de inúmeras batalhas, que debatera inúmeras vezes com inimigos ferrenhos de sua casa, com mãos trêmulas procurou a sua pena preferida, de um metal avermelhado que parecia faiscar com a luz das muitas velas acesas na biblioteca. Escreveu uma frase, logo abaixo da cena em que descrevia o corpo encontrado pelos franceses em Nancy e retirou-se da biblioteca enquanto a tinta ainda estava fresca no dito anexado ao seu trabalho.

“Assim reconheci naquele corpo o meu senhor Carlos, grande duque do Ocidente. Mas onde quer que esteja sua alma, que Deus seja piedoso.”