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domingo, 26 de julho de 2009

O Homem Pós-Histórico



O mundo, tal qual conhecemos, não mais existe.
Há apenas um ­homem diante de uma assombrosa descoberta, ­enveredando-se na intrigante busca pelo conhecimento. Um sujeito ­solitário, desenraigado e oprimido por sua condição humana: este é o ­Homem Pós-Histórico.

(...) Sem dificuldades, ele deduz que coisas inanimadas não lhe podem dizer como se chamam, então, ele seria obrigado a dar-lhe nomes convenientes. Dá um nome às pedras, mas são tantas espalhadas pelo caminho que ele percebe que não pode dar nome diferente a cada uma delas, precisava de um título genérico, que servisse para designar todas, independentemente do formato, posição espacial e tamanho. Estabelece a primeira regra de aposição de nomes: para objetos, ele pode conceber um nome coletivo, como para pedras, árvores, montes, rios, flores, nuvens, animais, etc. Porém, ele não pode chamar a Mulher de qualquer coisa, pois ela é especial, individual, ela tem de ter um nome só dela, pelo qual nenhuma outra mulher no mundo, caso haja outra, possa ser chamada. (...)

Ficha Técnica:

Autor:
Henry Alfred Bugalho

Ano:
2009
Edição:
1
Número de páginas:
113

Download Gratuito - Oficina Editora





sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Admirador - Final: O Enterro

(Maristela Scheuer Deves)
Chegou ao cemitério às 17h em ponto, e estranhou que não houvesse ninguém lá para o seu enterro. Mesmo assim, caminhou entre os túmulos – que mais pareciam um labirinto – tentando decidir o que fazer. Que local teria ele escolhido para sua cova, perguntou-se, relanceando um olhar ao redor e ainda estranhando a ausência de parentes e amigos. "Apareça", chamou em voz alta, "eu sei que você está aí".

Com um sorriso maquiavélico e um olhar zombeteiro, ele finalmente surgiu no corredor entre as sepulturas, alguns metros adiante. "Bem-vinda, que bom que você veio ao nosso encontro", saudou, num arremedo de cumprimento. Sem responder, ela ficou a olhá-lo, observando cada detalhe. Assim, sem o uniforme, até que ele não era feio, forçou-se a admitir, apesar da crescente aversão. "Então, era você mesmo", disse simplesmente, sem nenhuma emoção.

Ele sorriu novamente. "Demorou a descobrir, heim? Mas, também, quem sou eu para você reparar em mim – seja como homem ou como suspeito? Simplesmente o novo porteiro, aquele que lhe abria a porta do prédio, entregava a correspondência, às vezes ajudava com as compras... Achei que as coisas iam mudar com as flores, mas você continuou a sair com aquele seu namoradinho sem sal! E eu tendo de avisar-lhe toda vez que ele chegava, tendo de ser educado com ele..."

Ela tentou falar, replicar sobre o absurdo disso tudo, mas ele ergueu a mão, interrompendo-a. "Eu jurei que você seria minha, e que, se não fosse, não seria de mais ninguém." Desnorteada, sentindo-se impotente perante a loucura do que ele dizia, sentiu toda a raiva e a coragem anterior abandonando-a. Enquanto lágrimas começavam a vir-lhe aos olhos, deu as costas ao seu tétrico admirador e começou a se afastar em direção à saída do cemitério. Queria ir embora, e só. E foi seu erro.

Mal sentiu quando algo pesado caiu com força sobre sua cabeça, enquanto ouvia-o dizer: "Você acha que eu seria tolo de marcar com você no horário exato? Alterei a hora no jornal que deixei sob a sua porta, os outros só chegam para o enterro daqui a uma meia hora..." Depois, não ouviu nem sentiu mais nada. Se não estivesse desacordada e sedada dentro do caixão que desceu à sepultura às 18h, veria o quanto era querida: enquanto o padre rezava e dizia palavras de consolo, amigos, parentes, colegas de trabalho, namorado, ex-namorado, vizinhos e até mesmo o porteiro do prédio choravam a sua morte.





quinta-feira, 23 de julho de 2009

A menina e as doze badaladas- Giselle Sato

Doze badaladas

Foram doze badaladas, o som repercutiu através dos salões imensos e vazios. Quem ousaria enfrentar o medo e espiar, ainda que pela fresta da fechadura, a quem pertenciam os passos cadenciados. Um...dois...três...

Uma lufada de vento forte, arrancou as cortinas diáfanas e a lua penetrou toda senhora de si o aposento sombrio. Iluminando e evidenciando os cantos escuros. A última esperança era o circulo de luz, no chão do quarto de brinquedos. Ainda podiam tentar... Mas quem iria se arriscar? Espreitando na escuridão eles aguardavam.

O que antes era motivo de alegria, agora só trazia pânico e horror. Bonecas rotas e caolhas pareciam acompanhar seus movimentos, bailarinas tortas pendiam pelas prateleiras, caixas de lembranças em papel desbotado. Caixas de brinquedos , papeis e giz de cera espalhados pelo chão.

Houve uma vez uma menina que só queria ser feliz. Ela cresceu em uma casa linda, com pais que se amavam muito, tanto que não tinham tempo para mais nada alem de si.
Restavam os jardins com muitas flores e balanços, empregadas e babás. Correndo pelas alamedas ela sonhava que era uma fada e pintava as mais lindas cores. Cantava e bailava e assim eram os dias de sol. Dias de luz.

Algumas vezes a doçura perdia o encanto. Prendendo laços negros nas pontas das longas tranças, ela transformava-se na bruxa má e desejava afogar todos no grande lago. Todos sem exceção, mesmo os que deveria obedecer e respeitar. Nestes dias em que o céu cingia as nuvens em chumbo de puro rancor... Ela partia-se em mil pedaços e não sabia o que era ou o que fazia. Destruía o que atravessasse seu caminho, maltratava os bichos e as pessoas tinham verdadeiro pavor.

Quando tudo se acalmava ele repetia baixinho: Não estou sozinha. Foi ela quem fez estas coisas ruins. Somos duas irmãs em almas costuradas a ferro e brasa. Talvez seja um castigo... Talvez... Mas não estou sozinha. Ela está comigo.
Como a canção de ninar jamais entoada. Ela ou elas adormeciam. Almas siamesas tão diversas, brincavam por trás do espelho do salão de chá.

Esgueirando sob tapetes vivia o tormento, oculto sob camadas de espessa lã e tramas bem amarradas. Prisioneiros e cúmplices aguardando o momento propício da salvação, eles se apegaram. Agora eram três.
Algumas vezes deitada em frente a lareira, ouvia historias de um tempo em que não havia nada.
O vazio e o inexplicável, caminharam juntos e criaram vida. Foi assim que ela iniciou seu aprendizado com o mestre dos sonhos. Ele repetia cada lição, dia após dia... Incansável em sua doutrina. E todo ensinamento tem um custo muito alto. Talvez insuportável ou além dos limites.

Certo dia os pais perceberam, que não tinham uma criança que se contentava com doces e afagos. Era uma aberração que precisavam destruir o quanto antes, temiam o dedo acusador e os risos de escárnio. A menina encarou os pais : Dentro dos olhos da família feliz, viu medo e ódio. O cutelo firme destruiu cada pedacinho daquelas vidas.



-- A décima terceira hora ---



Urros animalescos, sons guturais, gritos agudo e graves. Ópera dos desalmados, incompreendidos e fracassados. Música.
O cheiro acre crescia e os animais rondavam a fazenda. Todas as portas e janelas foram abertas. Era o convite final! Que viessem e compartilhassem o banquete...

A menina percorreu cada cômodo e fingiu não perceber os poucos sobreviventes. O ar gelado da noite envolveu o ambiente. Eles chegaram aos poucos, vinham deslizando pelo caminho da escuridão, ainda temiam o casulo, mas sabiam que precisavam obedecer.

Finalmente a menina deixou-se levar pelo destino, sentiu quando partes de seu corpo eram arrancadas e engolidas às pressas. Precisava ser devorada e destruída, era parte do todo e ela agora compreendia. A agonia final veio arrebatada de um contentamento indescritível. Abriu os braços e foi recebida pela Mãe.

A lua negra ofertou o fio condutor.
Formando um ponto único nas trevas.
Surgiu uma centelha criada pelo medo
Partiu-se em duas fagulhas ínfimas.
Tênues e pálidas... Mas vívidas!

A Morte soprou e deu vida ao que seria sua criação derradeira. Partiu gloriosa do seu feito, mais uma vez havia triunfado. Os seres divinos sempre apostavam e perdiam.

Ninguém conhecia mais o homem...
Tão temida e odiada... Para ela não havia segredo, perdão, compaixão ou misericórdia. Apenas justiça.
O pequeno milagre acontecia e todos os seres observavam em silencio.

Das duas forças abriu-se um vórtice e de lá surgiram sete mistérios.
Eles iriam engolir o mundo, tomar o fel da taça e trazer a ruína à humanidade torpe.





quarta-feira, 22 de julho de 2009

A caligrafia

Por Barbara Duffles


Aconteceu num inverno qualquer da primeira década de 2000. Veio de repente no meio da penumbra, jogou-me contra a parede e perfurou minha alma com seus olhos distantes. Olhos de passado, de quem já foi e não estava mais ali. Parecia que o conhecia, mas forcei a memória e não encontrei nada parecido com ele. Tirou uma carta amassada do bolso, esfregou-a na minha cara. Sua expressão era de dor e pavor, ele tinha medo de mim, e ao mesmo tempo uma raiva contida prestes a explodir.

“Quem é você?”, perguntei, mas ele disse que não tinha muito tempo. “Assim que eu sair, você lê”. A carta pressionada contra meu corpo, as lágrimas dele começando a rolar. “Quem é você?”, eu perguntava, tentando encontrar a resposta naqueles olhos familiares, malditos olhos, de onde vem? Ele me abraçou forte, aconchegou-se em meu colo como se sempre o tivesse feito, e esse ato me pareceu corriqueiro como acordar todos os dias e escovar os dentes.

Num rompante ele se separou de mim, saiu de repente como havia chegado e desapareceu na penumbra. Na mesma hora abri o envelope amassado, era uma carta velha, mas estranhamente datava de 2032. Era de despedida, e dizia “Meus filhos, não me vejo mais neste mundo. Perdoem-me”. A caligrafia suicida era conhecida, as letras, apesar de tremidas, eram familiares. Fiquei completamente sem ar. Afinal, eu conhecia muito bem a pessoa que escreveu a carta... Era eu mesma.

Alguns anos depois do dia em que ele me perfurou com seus olhos de passado, tenho-o novamente em meus braços. É um bebê, recostado em meu colo, olhando-me com olhos familiares. Entendi que não eram olhos de passado, eram olhos de futuro, de quem seria e ainda não estava lá. Mas, ainda assim, na penumbra, ele me salvou de mim mesma.

Texto publicado originalmente no blog "Não Clique"





terça-feira, 21 de julho de 2009

Ciúme


por Marcia Szajnbok
à memória de Edgar Allan Poe




A noite estava muito fria. A chuva era forte e os trovões estremeciam todos os vidros. O vento enchia o ar de sons que pareciam vir de outro mundo. Na cama, encolhido, o pequeno puxava as cobertas para cima da cabeça e apertava os olhos. Não queria ouvir, não queria ver nada, tremia. Tremia de frio e de medo.
Há tempos era assim. No momento exato em que a luz se apagava, e o corpinho cansado das estripulias diurnas perscrutava o leito à busca do nicho ideal para acalentar-se em sono, o horror começava. Eram arrepios, sensações de que vaga mão lhe percorria o cabelo, o rosto. Por vezes, sentia um beijo. Abria os olhos, já tendo como vã a esperança de lá encontrar a tia e, de fato, não via ninguém. Noutras noites, já no umbral do adormecer, sobressaltava-se com a impressão de que lhe sussurravam o nome ao ouvido, um chamado longínquo e saudoso, que sempre o deixava com os cabelos em pé. Havia ainda as formas. Não era possível descrevê-las de outro modo, eram assim, apenas formas esgazeadas, quase transparentes, brancas ou um pouco azuladas, que atravessavam o quarto quase junto ao teto, ou pairavam sobre a cama como que esperando o melhor momento para lhe invadir os sonhos. O garoto despertava, então, num grito de pavor que acordava toda a casa. Os tios vinham, algumas vezes com paciência para acalmá-lo, outras nem tanto. Já havia tentado lhes explicar várias vezes o que sucedia nas madrugadas, mas não acreditavam. Ofereceram-lhe chás de vários sabores, tintura de maracujá, melissa. Até mesmo uma colherada de conhaque no copo de leite quente, o tio havia tentado para prevenir o mau sono. Nada havia funcionado.
Chamaram um padre. Os santinhos enfileirados no criado-mudo haviam de velar seu sono, trazer tranquilidade às noites infantis. Foi nessa época que aprendeu o pai-nosso e, durante algumas semanas, rezava baixinho, horas a fio, no escuro. Inútil providência. Por fim, tiraram do quarto as imagens, pois aqueles olhos imóveis, arregalados no gesso, tinham se transformado em mais uma fonte de pavor para o menino. Uma das cozinheiras da casa, uma negra sexagenária de carnes fartas, se propôs a passar as noites com ele. Suas rezas eram outras, ditas numa língua estranha que o garoto não compreendia. Encheu o quarto de ervas, jogou no ar umas águas perfumadas misturadas aos cantos vindos da África. Em vão.
Assim, iam-se os dias. Noites mal-dormidas, pesadelos, assombrações. Semanas de angústia, meses de terror. Passados alguns anos, o menino já púbere deixou de reclamar e de gritar. Os tios sossegaram: acabou-se, nada além de temores de criança. Ledo engano. A diferença estava apenas na reação provocada pelas noites espectrais. Na infância, inseguro e frágil, o menino se desesperara. Agora, jovem introspectivo, tímido e um tanto solitário, tinha criado uma espécie de apego à figura alucinada. Já não temia. Pelo contrário, esperava-a. Sim, ela. Agora, depois de todos esses anos de convivência, tinha certeza que se tratava de um espectro de mulher. Seu toque era suave, embalava-o em cafunés e sussurros, envolvia-o no calor da transparência azulada onde, aqui e ali, o jovem antevia uma forma arredondada, um seio talvez, ou um pedaço de anca feminina.
Garoto ainda imberbe, magro demais para seus um metro e noventa e oito de altura, a pele excessivamente branca e cheia de espinhas, não agradava muito as meninas da escola. Também não tinha muito em comum com os outros garotos. Jogava mal bola, quase não tinha músculos, vexava-se diante das brincadeiras maliciosas. Todos riam dele, de sua aparência incomum, de sua timidez que o fazia corar ou gaguejar sempre que era alvo dos olhares. Cada vez mais distante dos colegas e das moças de carne e osso ia, por outro lado, mais e mais se aproximando da fantasmagórica acompanhante noturna. Muitas vezes assustava-se quando algum professor o chamava em voz mais alta – preste atenção na aula, está sonhando? Sim, sonhava. Devaneava horas a fio, imaginando possíveis contornos para seu rosto, a cor dos seus cabelos, seu nome... Quem seria ela, afinal?
Houve a fase da pesquisa. Passou dias inteiros nas bibliotecas públicas, mergulhado em livros e jornais antigos que traziam a história da cidade. Esperava encontrar alguma tragédia, um assassinato, um drama familiar. Talvez uma linda jovem que, diante de um amor proibido, houvesse posto fim à vida bem ali, onde hoje era o seu quarto. Pesquisou, leu, investigou, mas não havia tal personagem. Onde foi construída a casa dos tios, em tempos idos não havia nada, apenas um terreno vazio. A frustração dessa fantasia, entretanto, não diminuiu sua curiosidade nem seu apego, antes até os fomentou.
O jantar era servido sempre por volta das oito e meia. Um pouco de conversa, notícias do dia, novidades da escola, amenidades feitas para facilitar a digestão. Ansioso, o rapazinho checava repetidamente o relógio à espera da permissão tácita para se retirar. Subia ao quarto cada vez mais cedo. Decerto iria estudar, pensavam os tios, equivocados. Expectante da noturna visita, punha-se logo entre os lençóis, vedava todas as luzes e esperava.
Fiel e constante, ela sempre vinha. O garoto fechava os olhos e imaginava-se a conversar com ela, a contar-lhe sua vida, seus segredos. Compreensiva, ela respondia com seu toque imaterial, com carinhos sutis que mal roçavam a pele. Por vezes, emocionado, sentia um fio de lágrima escorrer-lhe. Ela, então, muito doce, secava seu rosto com um beijo delicado. E assim, noite após noite, cada vez mais o jovem abria seu íntimo à mulher fantasma que lhe acompanhava as noites desde a mais tenra infância.
Essa companhia, agora, trazia efeitos que se faziam visíveis no jovem. Pouco a pouco, deixava para trás os traços de menino mal púbere, ganhava ares de homem feito. Ganhara barba, os braços e o tórax se tornavam repentinamente fortes, todo ele adquirira um aspecto másculo. A tia estranhava. O tio, com uma piscadela cúmplice, sugeria – arrumou aí uma namorada, hein? O moço disfarçava e nada respondia. Na escola também a mudança se fizera notar. Já não zombavam, e a possível paixão secreta do rapaz era assunto das rodinhas femininas. Divertido com o mistério, ele apenas sorria, maroto, deixando que a dúvida crescesse.
Os problemas começaram à época do baile de formatura. Era preciso escolher uma das mocinhas da classe para ser seu par. Há dois anos, teria sobrado. Hoje, era alvo de disputa, e logo lhe definiram como parceira de valsa a mais bonita da sala. Gozava intimamente da sua vitória quando sentiu pela primeira vez a dor. Como um aperto no alto da cabeça, teve a sensação de que o crânio estava prestes a ser esmagado. Sem poder se controlar, soltou um grito. Todos se viraram para ele, e foi novamente tomado pelo antigo rubor, afastando-se logo daquela cena pública. No caminho para casa, tinha sensações desagradáveis, arrepios, náuseas. Uma espécie de febre e torpor lhe borravam a visão e um ruído áspero parecia vir de dentro da cabeça para os ouvidos. Suando frio e tremendo, correu logo para o quarto. Bastou que se jogasse sobre a cama para que todo o mal estar desaparecesse. Logo cessaram as palpitações, sentia todos os músculos do corpo relaxados, o tumulto que lhe preenchera a mente sossegava. Dormiu serenamente naquela noite e acordou refeito.
A calmaria, entretanto, não durou muito. Novas crises semelhantes se repetiram. Em geral, acometiam-no quando estava na escola, sobretudo nos ensaios para o baile. Sempre que tomava a mão da parceira de valsa, a dor recomeçava. Um dos colegas percebeu sua expressão constrita e, cruelmente, disparou – ah, bem sabia que no fundo, no fundo, seu problema era medo de mulher! Pronto, já se tornara novamente alvo da zombaria. Tentava se controlar, disfarçar, mas ficava cada vez mais difícil. À medida que a festa se aproximava, as crises vinham mais frequentes e mais intensas. Preocupados, os tios chamaram um médico. Depois de muito examinar e conversar, o veredicto: o rapaz não tinha nada. Provavelmente estava apenas ansioso pela festa, emocionado por ter que se apresentar em público dançando com uma jovem tão cobiçada. Coisas da idade. Talvez fosse bom fazer uns exercícios, praticar alguma luta marcial...
Mas ele bem conhecia o remédio para seu mal: ir para casa, fechar-se no quarto, apagar as luzes. Era mágico. Assim que se deitava, ela vinha, a fantasmagórica namorada. Na verdade, nas últimas semanas algo havia mudado nessas visitas. Transformada em amante espectral, seus carinhos já não se limitavam aos toques sutis e aos beijos delicados. Nos últimos tempos, sentia que todo seu corpo era envolvido por aquele ectoplasma azulado, e que uma sensualidade insuspeita o invadia. Os beijos vinham agora misturados a mordidas, e por vezes parecia que a língua lhe seria arrancada da boca, tal a ferocidade da carícia. Tomado por aquele transbordamento erótico, todo seu corpo se crispava, sacudido até o gozo e, ao invés de sussurros, o que lhe vinham ao ouvido eram gemidos de uma mulher enlouquecida de luxúria. Algo nela voltara a lhe dar medo. Mas, muito diferente dos tempos de menino, o medo atual também exercia alguma sedução. Quanto mais a tinha, mais a temia; mas, quanto mais temor, mais a queria.
Assim terminava-se o ano letivo. Finalmente, chegou o dia do baile. Vestindo pela primeira vez um smoking, toda a família presente, lá estava o rapaz, muito compenetrado de seu papel ao lado da jovenzinha com quem ia dançar a valsa. Já se ouviam os primeiros acordes e os pares já se dispunham no centro do salão, quando aconteceu.
No mesmo instante, todas as luzes começaram a piscar. Os lustres imensos balançavam, estilhaçando pouco a pouco os cristais de que eram feitos. As janelas, os espelhos, os copos, tudo o que era vítreo naquele ambiente, se partia e os cacos enlouquecidos voavam para todo lado. Todos gritavam, as moças corriam. Em meio àquela histeria, nem todos puderam notar que uma única jovem fora atingida pelos estilhaços. Sua parceira de valsa estava caída, no meio do salão, o corpo cravado de pedaços de vidro, o rosto disforme, o vestido todo manchado de sangue, os olhos esbugalhados em expressão de pavor.
Um vento gelado cortava agora o salão, batendo portas, derrubando mesas e cadeiras. Aos gritos, os convidados procuravam as saídas. Em meio ao turbilhão, o rapaz sentiu-se subitamente jogado ao chão. Teve certeza da presença inesperada: era ela que, em público, em meio ao caos que havia provocado, o queria. Quis resistir, em vão tentou se levantar. Com mais força e desejo do que nunca, ela o possuiu, ali mesmo, no chão, diante do olhar aparvalhado dos que ainda não tinham conseguido deixar o local. Ninguém a podia ver, mas ouviam-lhe os gemidos cada vez mais altos, e a voz rouca que, mesclada ao assobio do vento, parecia repetir: meu, meu, só meu...
Toda a cena não durou mais que alguns minutos. De súbito, tudo se aquietou. No lugar da ventania, vinha agora uma brisa leve que atravessava a sala deixando em seu rastro um vago perfume de rosas. O socorro médico foi chamado, mas já era tarde demais para a pobre moça que jazia em meio à poça de seu próprio sangue. E, para aumentar ainda mais a perplexidade geral, notaram que num canto do salão estava largado um smoking, como se alguém tivesse se despido e esquecido ali as roupas. Os tios o reconheceram como sendo a vestimenta do sobrinho.
Ele, no entanto, nunca mais foi visto.





segunda-feira, 20 de julho de 2009

As engrenagens da felicidade

Léo Borges

O cardiologista do Heitor disse que ele precisava correr pelo menos duas vezes na semana para baixar suas taxas de triglicerídeos e, assim, ter uma vida mais longa. Deveria ficar longe das gorduras saturadas, das novas e ameaçadoras gorduras trans, dos condimentos, das frituras, massas, doces e alimentos industrializados. Heitor sabia que aquele era um bom médico e suas palavras passavam segurança quando afirmavam que “a longevidade é reservada a quem pratica esportes e se alimenta bem”. Segundo o doutor, “as engrenagens da felicidade estão montadas sobre a boa saúde”.

Tendo seu norte nas palavras de um profissional da medicina, que preconiza como as pessoas devem se comportar para terem uma vida feliz, Heitor viu que era hora de dar um basta no sedentarismo. Então, nem a ameaça de chuva daquela noite dissuadiu sua vontade de iniciar um exercício leve no calçadão da praia. Calçou o tênis, entrou no carro e foi para a praia correr, criar o hábito que, segundo o cardiologista, manter-lhe-ia vivo por mais tempo. Procurava contar com a ajuda do estimulante aparelhinho MP3 que, nesta ocasião, apresentava o Lulu Santos dizendo, colado ao seu tímpano, que via um novo começo de era. Assim como acreditava no médico, Heitor também nunca desconfiou que o Lulu pudesse estar mentindo, apesar de saber que artistas, muitas vezes, se enganam, ou, até de propósito, enganam os outros, quase sempre com a melhor das intenções, como a de agora, em que o cantor tinha a missão de vivificar um preguiçoso.

Um atraente out door na avenida principal era imperativo na promoção do carro sofisticado: “Seja feliz hoje!”. Hoje, obviamente, já estava tarde para ser, mas Heitor vinha juntando uma grana fazia algum tempo para comprar aquela máquina de design arrojado. Faria parte da tal engrenagem da felicidade ter um carro como o do anúncio? Heitor sabia que sim. A mensagem era clara: não devemos deixar aquisições que nos farão felizes para amanhã, principalmente se você for um sedentário, pois pode acabar morrendo com uma veia entupida e vai perder a oportunidade de dirigir um belo veículo. Bom, Heitor estava ali, fazendo a parte dele, fazendo as coisas que lhe mandavam para criar sua poupança de dias, semanas, anos, e, assim, poder desfrutar por mais tempo do conforto que o dinheiro, quando existisse, proporcionaria.

A garoa se confirmou e os primeiros pingos surgiram no pára-brisa. Mas, Heitor estava determinado a iniciar sua jornada atlética sob qualquer clima. No sinal do último cruzamento para praia uma pedinte veio intimidar seus felizes pensamentos batendo com os nós dos dedos no vidro lateral. “Um trocado pelo amor do bom Deus...”. As gotas deixavam turva a imagem da mulher, como se ela estivesse desmanchando juntamente com a chuva. Era uma mendiga com um pano roto amarrado à cabeça que, não obstante não livrá-la de ter os cabelos molhados, ainda lhe conferia uma aparência melancólica. Ela não tinha um head phone onde pudesse ouvir o Lulu prevendo um futuro com gente fina elegante e sincera e não parecia estar disposta a dar uma corridinha para entrar em forma. “Estou sem comer desde ontem”. Também teria ela de se alimentar com saladas e sucos diet conforme determinava o senso saudável? Sim, com certeza, pensou Heitor. Entretanto, logo após abaixar o vidro e dar algumas moedas, ele ponderou sobre a vida e as misteriosas taxas glicêmicas daquela mulher e, com algum constrangimento, concluiu que ela poderia ter uma licença para ficar de fora do rol dos que consomem uma alimentação balanceada, dita ideal.

O calçadão da praia estava deserto. Um vento frio procurava inibir a intenção atlética do ex-sedentário Heitor. Corpos inertes refugiados em seus apartamentos apreciavam as televisões aparentemente sintonizadas em um mesmo canal. Um aposento destoante no cenário concentrava um grupo de amigos festejando algo. No poste adjacente, um cartaz atraiu a atenção de Heitor. Mostrava a foto de um garoto de seus vinte anos, sorriso estático e olhar pacífico. Fazia um sinal positivo com a mão. Letras negras e grandes apareciam sobre a foto revelando seu nome: “Marcelo Zanetti”. Abaixo, um pequeno texto dizia: “O homicídio não pode ser banalizado! Amanhã poderá ser seu filho. Confiamos na Justiça”. Triste era perceber que mesmo com uma alimentação adequada, Marcelo não garantiu sua longevidade.

Aquele rapaz engrossava as estatísticas de assassinatos na cidade e a família agora parecia querer incomodar os atletas da orla, longevos ou não, com o assunto. E o objetivo estava sendo alcançado. Pelo menos com Heitor, que para não ficar impressionado, desviou novamente os olhos para os prédios e casas ao redor. Notou que o carro de seus sonhos, o mesmo do out door, passava agora pela televisão de um porteiro do edifício de bela fachada. E a festa solitária continuava rolando no apartamento, com animadas pessoas emitindo o ruído característico de ambientes felizes. Desta vez com o Tim Maia pedindo um motivo para ir embora. Marcelo não precisou de nenhum, foi embora sem motivo mesmo.

Heitor mexeu no relógio para acertar o cronômetro. Respirou fundo e tentou criar boas vibrações na mente para a corrida fluir numa boa. No calçadão não havia ninguém além dele e de um cachorro revirando o lixo junto ao poste do cartaz que se descolava com a chuva. Para viver muito você tem que priorizar o lado bom da vida, tem que buscar ser feliz de todo jeito. Esse era o ditado de Soraia, uma vizinha com quem Heitor chegou a trocar olhares mais demorados numa determinada época de sua vida, mas que, por causa da timidez de ambos, nunca chegou a namorar. Ela morreu atropelada numa noite de garoa como aquela, num acidente em que um carro invadiu a calçada e o motorista não parou para socorrê-la. Certamente quem o dirigia não o fazia dentro daquele possante de 16 válvulas da propaganda. Pessoas daquela estirpe costumam ser solidárias, têm classe, entendem o sofrimento alheio, pensou Heitor. Sendo o condutor de um carro como aquele uma pessoa feliz, por que não iria ajudar alguém a quem causou tamanha dor? Não fazia nenhum sentido. Mesmo assim, apesar da indelével felicidade de Soraia ter sido ceifada de modo brutal, essa mulher viveu o suficiente para acreditar no que pregava, no sorriso que cedia às pessoas e na crença em um mundo sem injustiças.

Heitor iniciou uma corrida nervosa, como se quisesse fugir dos fantasmas de todas aquelas tragédias e fixar os pensamentos apenas nas mensagens de alegria que a vizinha deixara. Quanto mais o rapaz corria, mas o som alto do apartamento festivo perdia a briga com o do seu MP3, que agora passava a tocar um rock americano pesado, impossível de se entender a letra.

Pode ser que a luta por mais tempo no mundo, a alimentação saudável, o prazer instantâneo e a busca pelo conforto imediato é que mova a humanidade e se mostre como o combustível para a longevidade. Talvez seja este o motivo da vida: tentar conquistar algo que nos mostre as reais engrenagens da felicidade. Porém, naquela noite chuvosa, parecida com a da morte de Soraia, o olhar congelado e sem vida de Marcelo estava incomodando bastante Heitor.





domingo, 19 de julho de 2009

O bicentenário de Edgar Allan Poe, a vida e a criação de um mito literário



A vida do escritor


Há exatos duzentos anos, em 1809, nascia, na cidade de Boston, Edgar Poe. Filho de David Poe, Jr. e Elizabeth Arnold Hopkins Poe, ambos atores, Edgar perdeu os pais ainda muito criança; David Poe abandonou filhos e esposa em 1810, enquanto que Elizabeth Poe morreu de tuberculose em 1811.

Apesar de nunca ter sido adotado formalmente, Edgar foi acolhido na casa de John Allan, um rico comerciante de Richmond, e passaria a ser conhecido como Edgar Allan Poe.

Ele viajou com a família de John Allan à Inglaterra em 1815, onde morou por cinco anos. De volta aos Estados Unidos, Edgar Allan Poe se inscreveu na Universidade de Virginia em 1826. Envolvido em dívidas de jogos e com pouco apoio financeiro do pai adotivo, Edgar se viu obrigado a abandonar a carreira universitária e se alistou no exército. Nesta época, já se interessava pela Literatura e, em 1827, lançou sua primeira coletânea de poemas — “Tamerlane e outros poemas” —, que teve repercussão praticamente nula.

Após servir por dois anos, Edgar conseguiu a dispensa com o auxílio de John Allan, caso prometesse se matricular na Academia Militar de West Point. Neste meio tempo, em 1829, ele se mudou para Baltimore e foi acolhido na casa de uma tia e da prima, Virginia Clemm, com quem se casaria alguns anos depois. Foi nesta época que publicou seu segundo livro de poemas.

Em 1830, matriculou-se em West Point, mas foi expulso de lá um ano depois, voluntariamente forçando a corte marcial por mau comportamento. Também havia sido deserdado pelo pai adotivo, por pressões da mais recente esposa dele.

Foi para Nova York, onde lançou um terceiro livro de poemas, financiado com a contribuição de seus colegas de West Point, mas logo retornou a Baltimore, para a casa da tia, por causa de seu irmão, seriamente doente devido a problemas relacionados a alcoolismo.

Ao morrer o irmão, Edgar Allan Poe tentou se dedicar exclusivamente à carreira literária, tornado-se o primeiro autor norte-americano a viver apenas da escrita. No entanto, longe de representar fortuna e sucesso, esta escolha significou para Edgar uma vida repleta de dificuldades e privações. Começou a se dedicar também ao gênero da prosa, publicando alguns contos em periódicos da Filadélfia e Baltimore.

Casou-se, em segredo, com Virginia Clemm em 1835; ela tinha apenas 13 anos, mas declarou ter 21.

Publicou o romance “A Narrativa de Arthur Gordon Pym” em 1838, que foi bem recebido pela crítica. Aquela que é provavelmente sua obra em prosa mais importante, “Contos do Grotesco e do Arabesco”, foi publicada em 1839, mas a recepção foi contraditória.

Virginia, sua esposa, apresentou os primeiros sintomas de tuberculose em 1842, e nunca conseguiu se recuperar totalmente. A doença da esposa acentuou os problemas de Edgar com o álcool. Após ter trabalhado em vários jornais, ele retornou a Nova York e se tornou editor do “Broadway Journal” e, posteriormente, proprietário.

Sou poema mais famoso, “O Corvo”, foi publicado em 1845. Apesar da enorme repercussão, Edgar Allan Poe recebeu apenas 9 dólares pela publicação. Seu jornal faliu um ano depois, quando Poe se mudou para um casebre no Bronx, onde Virginia morreria.
Voltou a Richmond e começou um relacionamento com uma paixão da juventude, Sarah Royster.

Edgar Allan Poe morreu em 1849, vagando pelas ruas de Baltimore, delirante. Apesar de seu falecimento estar evidentemente relacionado ao abuso de álcool, as causas ainda são questionadas.

Influência de Poe

A árdua e trágica vida de Poe, que cedo perdeu os pais, viu o irmão e o amor de sua vida morrerem, teve de superar a pobreza e a inclemente crítica de seus contemporâneos, dificilmente poderia prenunciar a relevância futura de suas obras.

Na verdade, imediatamente após seu falecimento, as controvérsias ao redor de sua personalidade e obras já começaram; primeiro com o obituário do reverendo Rufus W. Griswold, assinado com o pseudônimo de “Ludwig”

“Edgar Allan Poe está morto. Morreu em Baltimore anteontem. Este anúncio poderá sobressaltar muitos, mas poucos se lamentarão. O poeta era bem conhecido pessoalmente ou por reputação, em todo o país. Ele tinha leitores na Inglaterra e em vários países da Europa Continental. Mas ele tinha poucos ou nenhum amigos. Os pesares por sua morte poderão ser induzidos principalmente pela consideração que a arte literária perdeu uma de suas mais brilhantes, porém erráticas, estrelas (...)”. Apesar de vários críticos e escritores se erguerem contra as acusações de Griswold, parecia ser um consenso o fato de que Edgar Allan Poe não era uma pessoa de fácil convivência, adepto de polêmicas e que havia criado muitos desafetos no mundo literário.

Estranhamente, o próprio Griswold foi incumbindo de editar e publicar o espólio de Poe, alegando ter sido este o pedido do autor. Não há nenhum documento que comprove esta afirmação, mas muitos teóricos argumentam que a caracterização de Poe feita por Griswold — de um homem diabólico, sem amigos, bêbado, drogado, problemático em sua vida social e pessoal — foi a principal responsável pelo sucesso póstumo do escritor. A aura demoníaca criada em torno de Poe foi o fator de atração do público leitor norte-americano, que se aproximava da obra de Poe com reverência e temor.

Griswold também redigiu a primeira biografia oficial de Edgar Allan Poe, quando da publicação das obras completas dele. Tal biografia é repleta de inverdades e adulterações, e foi repudiada por quem conhecia o autor, mesmo tendo servido de fundamento para boa parte das biografias subsequentes.

A história de Poe é um dos casos nos quais uma campanha difamatória, ao invés de prejudicá-lo, atuou em seu favor.

Todavia, enquanto o debate era acalorado nos EUA, na Europa, graças às traduções feitas por Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe já era acolhido como um autor engenhoso e de grande qualidade. Baudelaire encontrava na obra de Poe muitas de suas próprias características, como o misticismo, o fantástico, o macabro e grotesco, e a busca por respostas filosóficas para questões estéticas e literárias. Foi através das traduções de Baudelaire que a obra de Poe pode ser recebida e influenciar os autores simbolistas e surrealistas.

Na obra “Sobre a Modernidade”, Baudelaire não poupa elogios a Poe, e não hesita em incluí-lo no rol dos grandes artistas da modernidade:

“Lembram-se de um quadro (e um quadro, na verdade!) escrito pelo mais poderoso autor desta época e que se intitula “L’Homme des Foules” (“O Homem das Multidões”)? Atrás das vidraças de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado há pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipita-se no meio da multidão à procura de um desconhecido cuja fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numa paixão fatal, irresistível!”
No mundo lusófono, a obra de Poe se refletiria e influenciaria os trabalhos de Machado de Assis, que definitivamente buscou no autor norte-americano sua inspiração para a estruturação e para algumas temáticas de seus contos. Por sua vez, em Portugal, Fernando Pessoa afirmava que Edgar Allan Poe “era uma das figuras literárias mais notáveis da América Inglesa”. Ambos, Machado de Assis e Pessoa, traduziram poemas de Poe para o português.

Enfim, Jorge Luis Borges, um dos autores hispano-americanos mais influentes do século XX, renovou o gênero conto ao ressuscitar questionamentos, técnicas, ambientações, sutilezas já utilizadas ou levadas à perfeição por Poe, como o embuste, o raciocínio lógico, o macabro e fantástico, o enigmático, a criptografia, a antiguidade histórica e povos exóticos ou desaparecidos.

A controversa figura de Edgar Allan Poe, que sofreu para poder viver de sua pena, converteu-se numa das mais ricas fontes de inspiração para a literatura vindoura. E o grande segredo disto residiu, principalmente, na transformação de um atormentado indivíduo real em um personagem bizarro e assustador, que toma vida todas as vezes que um leitor entra em contato com sua obra.

A obra de Poe

Em vida, Edgar Allan Poe era conhecido como um competente, porém cáustico, crítico e ensaísta. Publicou resenhas e críticas literárias em inúmeros periódicos. Participou de polêmicas e embates com grandes autores e ensaístas, atacava ferozmente o “Transcendentalismo” de Emerson e Thoreau. Também viveu para presenciar, alguns anos antes de seu falecimento, o arrebatador sucesso de poemas como “O Corvo” e “Annabel Lee”.
Mas, sem dúvida, a principal contribuição de Poe está na sua obra prosaica, em seus contos e em seu único romance “A Narrativa de Arthur Gordon Pym”.

A obra de Poe tende a gravitar ao redor de alguns temas bastante específicos, como:
- a Morte (“A Queda da Casa de Usher”, “A Máscara da Morte Vermelha”, “O Gato Preto”, “O Enterro Prematuro”, “Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar”, “Uma Revelação Mesmérica”, entre outros;

- investigações policiais (“Os Assassinatos da Rua Morgue”, “O Mistério de Marie Rôget”, “O Coração Delator”, “Tu és o Homem”, “A Carta Roubada”)

- eventos marítimos bizarros ou fantásticos (“A Narrativa de Arthur Gordon Pym”, “Mensagem numa Garrafa”, “Descida ao Maelström”)


Além disto, há vários outros textos satíricos, de humor, enigmáticos (como “O Escaravelho de Ouro”) e profundamente metafísicos. Edgar Allan Poe é considerado como um dos precursores da Ficção Científica, por causa de contos como “O Embuste do Balão”, “A Aventura sem par de um tal Hans Pfaall”. Poe é também considerado como o primeiro autor de ficção policial, ao conceber o antológico personagem Auguste Dupin. Tornou-se um ícone da literatura de Terror e Gótica.

Paralelamente aos mestres russos e franceses, como Pushkin, Tchekov e Maupassant, Edgar Allan Poe instaurou as bases do conto moderno, produzindo alguns dos textos mais perfeitos e emblemáticos do gênero.

No campo da poesia, Poe foi considerado como cerebral demais, apesar de ainda ser tomado como um autor do Romantismo. Para o ele, era muito mais importante a forma e a sonoridade dos versos do que o conteúdo, no entanto, isto nunca significou um desequilíbrio entre forma e mensagem na obra poética de Poe.

Pessoalmente, acredito que no corpus literário de Poe existem algumas das mais fundamentais obras-primas da escrita, mas há uma qualidade díspar entre os textos. Quem se aventurar a ler a obra completa do autor se deparará com obras incomparáveis, mas também com outras de difícil acesso, ou até desinteressantes.

Definitivamente, Edgar Allan Poe é leitura obrigatória para qualquer um interessado em Literatura. Uma obrigação repleta de prazeres, surpresas e assombro.

A comemoração do bicentenário de nascimento de Poe

Durante todo o ano de 2009, em várias cidades do leste dos EUA, comemora-se o bicentenário de nascimento e o centésimo sexagésimo aniversário de morte de Edgar Allan Poe. Por todo o lugar que o escritor viveu, estão sendo organizados eventos, como palestras, recitação de poemas e debates em sua homenagem, mas principalmente em Richmond, Boston e Baltimore, cidades nas quais ele passou a maior parte da vida.

Inclusive, em Baltimore, no dia 10 de outubro de 2009, está sendo preparado um funeral em homenagem a Poe, que contará com atores representando os papéis de amigos e rivais do autor.

Nas ligações abaixo, há parte da programação das comemorações do bicentenário de nascimento de Edgar Allan Poe.

Poe Bicentennial - Baltimore - http://www.poebicentennial.com/index.html
Poe Revealed 1809-2009 – Richmond - http://www.poe200th.com/index.php
The New York Times – Edgar Allan Poe at 200 (Slideshow)
http://www.nytimes.com/slideshow/2009/01/16/books/eapoe-SLIDE-SHOW-01-17-2009_index.html

Para saber mais:
- BAUDELAIRE, Charles, Sobre a Modernidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.
- Baudelaire and the Arts, Translations: Baudelaire, translator of Edgar Allan Poe
http://dl.lib.brown.edu/baudelaire/translations1.html
- The Literature Network – Edgar Allan Poe
http://www.online-literature.com/poe/
- PEEPLES, Scott, The Afterlife of Edgar Allan Poe. Boydell & Brewer, 2007.
http://books.google.com/books?id=NyEumvZL1QMC&printsec=frontcover
- Poe Museum
http://www.poemuseum.org/poes_life/index.html
- Wikipédia – Edgar Allan Poe
http://en.wikipedia.org/wiki/Edgar_Allan_Poe
- Wikipédia – Poe’s obituary
http://en.wikisource.org/wiki/Death_of_Edgar_Allan_Poe
- Wikipédia – Rufus Wilmot Griswold
http://en.wikipedia.org/wiki/Rufus_Wilmot_Griswold
- The works of Edgar Allan Poe, in four volumes. Vol I, with Memoirs by R. W. Griswold. New York: W. J. Widdleton, Publisher, 1865.
http://books.google.com/books?id=Cy4CAAAAQAAJ&printsec=titlepage





Publicação independente ontem e hoje

(Este é o primeiro artigo de uma série sobre publicação independente na era digital)

A legitimação do mercado literário


Todo mundo, ao começar a escrever seu primeiro livro, tem em mente o esquema clássico de publicação: autor => editora => livraria => leitor.

Quase ninguém questiona este modelo ao tentar ingressar na carreira literária e, para muitos, um autor que não seja publicado por uma editora comercial — ou uma “editora de verdade” — não merece ser lido.

O processo de concluir um livro, enviá-lo para ser avaliado por uma editora, ser aceito, assinar o contrato e chegar às livrarias é a primeira legitimação dum autor, é o primeiro grande funil entre os escritores. Entre os pretendentes a escritores e os poucos que fazem parte do catálogo de uma editora, há um cruel processo de triagem que nem de longe contempla o valor artístico ou o mérito literário dum livro.

O que estes autores, e os leitores também, parecem se esquecer é que as editoras e livrarias são empresas como outras quaisquer. Concordo que no interior dos bens materiais (os livros) estejam contidos valores imateriais (o que está escrito, os ideais, as teses, a concepção de mundo do autor), no entanto, o importante é que este bem material seja vendido; o objetivo principal do mercado editorial é vender livros, gerar lucro.

Por isto, pouco importa o valor literário duma obra, se ela não apresentar perspectivas de lucro.

Podemos dizer, então, que ser publicado por uma editora é, de fato, uma legitimação?

Sim, evidentemente: é a legitimação de que alguém dentro duma editora considerou seu livro vendável.
Nada mais do que isto.


É óbvio que passar por esta etapa inicial conduz a outros patamares de legitimação. A União Brasileira de Escritores – UBE só considera, por exemplo, escritor aquele que possui pelo menos um livro publicado. Neste sentido, escritores talentosíssimos que publicam na internet ou mesmo para si próprios não passam de meros diletantes.

Também é muito improvável que uma publicação de renome, como jornais ou revistas, dedique alguma atenção a autores não publicados. E não podemos nos esquecer dos grandes prêmios literários, que geralmente são concedidos aos melhores livros do ano, ou a autores com algum tempo de estrada e que já possuem vasto currículo literário.

Isto nos leva a concluir que apenas após passar no quesito vendável um livro pode ser considerado literário.

A publicação independente

Apesar do domínio que exerce, a existência do mercado editorial é algo relativamente recente, se analisarmos a História da escrita e da publicação. As primeiras evidências de escrita datam de 3500 antes de Cristo, enquanto que a forma do livro como códice ocorreu por volta do século I a.C.

Durante muito tempo, a escrita e o acesso a pergaminhos, manuscritos ou livros se restringia à classe sacerdotal e a alguns monarcas. O processo de produção de um livro era lento e dispendioso, isto até o advento da imprensa, invenção de Johann Gutenberg, em 1450. Esta foi a grande revolução na escrita e tornou o livro, se não acessível ao público, pelo menos viável comercialmente.

No entanto, apenas no século XIX, auge da era industrial, que a publicação de livros conseguiu reduzir drasticamente os custos de produção e abrir as portas para a cultura de massas.
O controle da cultura deixou as mãos do clero e de patronos aristocratas para pequenos editores ou grandes associações que impulsionaram a publicação de livros rumo ao mercado de consumo.

Então, a figura do autor publicado por uma editora (como Victor Hugo) dividiu espaço, pela primeira vez, com o autor independente, ou seja, aquele que custeia do próprio bolso a publicação de seu livro (como quase todas as obras de Friedrich Nietzsche), e com o autor-editor, aquele escritor que assume também o papel de editor de seus próprios livros e periódicos (como Balzac, Dickens e Edgar Allan Poe).

Estes três modelos ainda vigoram hoje em dia, mas as editoras comerciais acabaram se sobressaindo e obscurecendo os outros dois.

E como se caracteriza o autor independente hoje?

Assim como predominou no século XX, a publicação independente é tida como a via de acesso a uma editora comercial, ou apenas como publicação por vaidade.

No primeiro caso, o autor custeia a primeira tiragem de seu livro, na expectativa de chegar a alguns leitores, mas, principalmente, de atrair a atenção de editores. Este foi o percurso realizado por quase todos os grandes autores contemporâneos, os quais através de pequenas tiragens iniciais provaram a qualidade e a viabilidade comercial de suas obras.

No segundo caso, temos o escritor amador que encontra na publicação independente a possibilidade de suprir o desejo de ver seu livro impresso e vendido (ou distribuído gratuitamente) para amigos e parentes. Não há grandes pretensões comerciais ou literárias, apenas a necessidade de ter em mãos o resultado de meses de trabalho.

Todavia, ainda há um terceiro caso, e que resgata uma das propostas do século XIX, do autor-editor, que encontra na publicação independente uma via alternativa para consolidar sua carreira.

O autor-editor no mundo digital

A informatização se caracteriza como a maior inovação na publicação de livros desde Gutenberg. Nunca antes foi tão fácil, barato e rápido de se produzir e distribuir informação. A internet rompeu todas as barreiras geográficas e materiais do processo de publicação.

Por um lado, tem sido possível armazenar todo o tipo de obras, de todas as épocas, em todos os idiomas. Obras raras existentes apenas em bibliotecas pessoais ou livros pouco conhecidos podem ser encontrados sem dificuldades. O critério mercadológico deixa de predominar, e o valor histórico ou literário volta a ser mais importante. Sítios como os do Projeto Gutenberg (www. gutenberg.org), do Internet Sacred Texts Archive (http://www.sacred-texts.com/), do Perseus Digital Library (http://www.perseus.tufts.edu/hopper/), do Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br/), entre vários outros, disponibilizam obras de domínio público, muitas que não são reeditadas há décadas por causa da pouca demanda.

Por outro lado, a internet permitiu, primordialmente através dos blogs, o nascimento e a divulgação de novos escritores, que encontraram na publicação virtual um acesso imediato a seus leitores, pulando o longo e excludente percurso que passa pelas editoras e livrarias. O autor da era digital fala diretamente para seu público e é, deste modo, igualmente autor e editor de seus textos, já que está sob seu poder determinar qual conteúdo será apresentado.

Além disto, a impressão digital tornou possível a publicação de livros em pequenas tiragens, o que facilitou a vida do autor independente na hora de distribuir seus livros em menor escala.
Contudo, mesmo com o surgimento de alguns autores de renome através da publicação e divulgação pela internet, o autor independente ou não publicado ainda é recebido com desconfiança em comparação àqueles publicados por editoras comerciais.

A falsa legitimação de qualidade das editoras ainda continua sendo a principal legitimação literária, mas que talvez esteja em vias de extinção. Mais do que nunca, a internet tem representado uma forte ameaça à onipresente cultura de massas.

Ir para o próximo artigo: Os Desafios da Autopublicação





sábado, 18 de julho de 2009

Pouco racistas

Joaquim Bispo

A capacidade de miscigenação dos Portugueses foi talvez o grande trunfo para terem conseguido manter possessões coloniais no séc. XVII, atacadas por Holandeses, Ingleses e Franceses. Ao contrário dos Holandeses, por exemplo, que eram de “má boca” e por isso tinham de mandar vir da Europa quase todos os mantimentos, nos 24 anos que permaneceram em Pernambuco, os Portugueses adaptaram-se bem, quer climática, quer gastronómica, quer sexualmente.

São famosos os casos de João Ramalho e António Rodrigues que “foram os pioneiros da miscigenação no planalto de Piratininga (S. Paulo). O primeiro casou com Bartira, filha do morubixaba Tibiriçá e o segundo com uma filha do chefe Piquerobi. Estas ligações entre portugueses e índias encontram-se na origem de alguns dos mais importantes troncos paulistas.”

“Outro exemplo paradigmático é fornecido por Diogo Álvares, o Caramuru, que teve uma larga prole da sua relação com a índia Paraguaçu – que, após o baptismo, se passou a chamar Catarina Álvares – tendo todas as suas filhas casado com europeus de posição, enquanto três dos seus filhos foram armados cavaleiros pelo 1º governador-geral do Brasil. As primeiras famílias baianas resultam, tal como as paulistas, da miscigenação entre portugueses e índias.”

“Na capitania de Pernambuco, o exemplo foi dado por Jerónimo de Albuquerque, que se relacionou com a filha do chefe Arcoverde, bem como com outras indígenas de quem teve 24 filhos, facto que lhe valeu o epíteto de Adão Pernambucano.”

A miscigenação tinha a vantagem de assegurar imunidade genética aos descendentes das índias, face a diversas enfermidades e epidemias.

Depois destes cruzamentos de primeira geração, onde entravam Brancos europeus colonizadores, Índios autóctones e, a partir de meados do séc. XVI, Negros africanos, chegados como escravos, muitos outros de segunda e terceira se seguiram, criando uma enorme multiplicidade racial. No séc. XVII, para tentar distinguir as várias variedades que foram brotando de todos aqueles cruzamentos, usavam-se – para os nascidos no Brasil – as seguintes designações:

Branco + Branca = Mazombo
Branco + Índia = Mameluco
Branco + Negra = Mulato
Branco + Mulata = Pardo
Negro + Negra = Crioulo
Negro + Mulata = Cabra
Negro + Índia = Cafuso
Índio + Mameluca = Curiboca

Esta miscigenação em larga escala criou extensas e complexas redes familiares, com o seu cortejo de costumes, crenças e língua, o que formava uma barreira dificilmente quebrável pelo invasor, e terá sido um dos principais factores que travaram as tentativas de instalação de Holandeses e outros.
As forças militares do conglomerado pró português que combateram nas duas batalhas de Guararapes (1648, 1649) integravam muitos autóctones, de todos os estratos e matizes, alguns dos quais em posição de liderança de blocos combatentes. Os quatro comandantes militares exaltados pela História foram:

“João Fernandes Vieira – senhor de engenho de origem portuguesa;

André Vidal de Negreiros – brasileiro de origem portuguesa (mazombo) – mobilizou recursos e gentes do sertão nordestino;

Felipe Camarão – indígena brasileiro da tribo potiguar – liderou as forças da sua tribo;

Henrique Dias – brasileiro filho de escravos africanos libertos – foi o ‘governador da gente preta’ (negros, crioulos e mulatos), oriunda dos engenhos assolados pelo conflito.”

O empenhamento coordenado de todo este heterogéneo conjunto foi decisivo na derrota e subsequente expulsão, como corpo estranho, das forças holandesas e determinou aspectos importantes do viver brasileiro futuro.


Nota: O post onde, pela primeira vez, publiquei o essencial desta informação é um dos mais visitados do meu blog, o que denuncia o grande interesse que a sociedade brasileira tem por este aspecto da sua identidade.

Fontes principais: http://www.republica.pt/jornal2.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_dos_Guararapes





A Idade da Velhice?

Quando Caetano Veloso completou sessenta anos, deu uma entrevista dizendo que, aos vinte anos, ele considerava que alguém de sessenta anos era velho, mas, que agora que tinha esta idade, percebeu que ainda se considerava novo.

Um professor meu de faculdade, numa aula sobre Heráclito, levantou a seguinte questão: onde está a criança que um dia fomos? Ela deixou de existir, ou ainda continua em nós? Ou o adulto que somos já estava presente na criança?
Acredito que ele defendia as mudanças, de que algo deixa de ser o que era de maneira espontânea, que tudo estava em constante mudança, como já havia pensado o filósofo de Éfeso.
Minha esposa é, por outro lado, da opinião que nós, seres humanos, somos todos crianças. Nosso corpo cresce, envelhece, somos moldados por nossas experiências, pelas responsabilidades, mas, no fundo, somos as mesmas crianças de sempre. Recentemente, um psicólogo na TV disse algo semelhante: "a idade mental de todos os adultos é de 12 anos".

Tais exemplos me ocorreram hoje após ter recebido um e-mail de uma leitora que me chamava de "senhor". Não é a primeira vez que isto ocorre, nos últimos tempos. Tenho ouvido alguns "sirs" por aí, vindo de crianças americanas e, na última vez que entrei para jogar xadrez online, uma garota perguntou por minha idade e, ao responder, ela disse: "ah, eu ainda sou um bebê. Só tenho dezoito anos".

Isto porque nem cheguei à casa dos trinta anos, e estou bem longe de me sentir velho. Se eu parar para pensar, devo ainda ter a mentalidade de doze anos: jogo videogame, como chocolate, hambúrguer, salgadinho, pizza o tempo todo, gosto de acordar tarde e, às vezes, sinto que ainda vejo o mundo com o olhar de uma criança, deslumbrado.
No entanto, lembro-me com muita clareza de quando minha mãe, já separada de meu pai, saía nas noites de sábado para ir dançar e eu, um menino com cinco ou seis anos de idade, achava um absurdo que uma velha pudesse querer se divertir. À época, ela tinha pouco mais da minha idade hoje.
Também me recordo de como um ou dois anos faziam enorme diferença da hora de escolhermos nossos amigos, na juventude. Um rapaz de 16 anos não andava com um de 13, já possuíam interesses completamente diferentes, uns ainda brincavam enquanto os outros já estavam namorando, bebendo ou fumando. Hoje, ter um amigo cinco (ou até dez) anos mais velho não seria problema algum, os interesses não mudam muito, há uma certa homogeneização.

Então, ainda sem ter muita certeza da resposta, e com o comentário de Caetano Veloso diante de mim, indago-me: qual é a idade da velhice?
Chegará um dia no qual eu realmente poderei dizer - "estou velho" -, que ficarei confortável com o título de "senhor", que não terei mais a cabeça de um meninote de 12 anos e que não salivarei toda a vez que passar na frente de um McDonald's?

Algum tempo atrás, atravessando a rua para ir almoçar, vi uma senhora de andador, devia ter uns 80 anos, sendo amparada por uma enfermeira. Ela mal conseguia andar, mas havia dado uma acelerada para atravessar a rua. A enfermeira dizia à senhora: "Calma! Calma! Já vamos chegar lá".
A senhora estava indo para o mesmo lugar que eu: uma lanchonete. Ela entrou "correndo", compraram o sanduíche e a velhinha tacou ketchup na batata-frita.

Definitivamente, não envelhecemos. A nossa pele fica enrugada, ficamos mais cansados, mais desgastados, talvez até mais desiludidos, mas a criança está e estará sempre lá, esgueirando-se através das areias do tempo, rindo e pulando, pronta para alguma traquinagem.





sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Máscara da Morte Vermelha

Edgar Allan Poe
tradução: Henry Alfred Bugalho

A “Morte Vermelha” há muito devastara o país. Nenhuma pestilência jamais fora tão fatal, ou tão hedionda. Sangue era o seu avatar e seu selo — o rubor e o horror do sangue. Havia dores agudas e tontura súbita, e então sangramento profuso pelos poros, com decesso. As manchas escarlates sobre o corpo e especialmente sobre o rosto da vítima eram a execração da peste que lhe vetavam a ajuda e a simpatia de seus próximos. E toda a infecção, progresso e término da doença eram incidentes de meia hora.

Mas o Príncipe Prospero era alegre, destemido e sagaz. Quando seus domínios estavam despopulados pela metade, ele convocou à sua presença um milhar de amigos saudáveis e joviais dentre os cavaleiros e damas de sua corte, e com estes se recolheu à profunda reclusão de uma de suas abadias fortificadas. Ela era de uma extensa e magnífica estrutura, a criação do gosto excêntrico, porém augusto, do príncipe. Uma muralha forte e altiva a circundava. Esta muralha tinha portões de ferro. Após entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e maciços martelos e soldaram as travas. Eles decidiram por não deixar nenhum meio de ingresso ou egresso pelos impulsos súbitos de desespero ou de frenesi daqueles desde o interior. A abadia estava vastamente abastecida. Com tais precauções, os cortesãos poderiam desafiar o contágio. O mundo exterior deveria tomar conta de si. No entremeio, era tolice se lamentar ou ponderar. O príncipe havia providenciado toda a sorte de prazeres. Havia bufões, havia improvisatori, havia bailarinas, havia músicos, havia o Belo, havia vinho. Lá dentro, havia tudo isto e segurança. Fora, havia a "Morte Vermelha".

Foi em torno do final do quinto ou sexto mês de reclusão que, enquanto a pestilência assolava enfurecidamente afora, o Príncipe Prospero entretinha seu milhar de amigos num baile de máscara da mais incomum magnificência.

Era uma cena voluptuosa aquela mascarada. Mas, primeiro, deixe-me falar das salas na qual ela ocorria. Eram sete — uma suíte imperial. Em muitos palácios, contudo, tais suítes compõem um panorama longo e retilíneo, quando as portas articuladas deslizam até as paredes em ambos os lados, de modo que a visão de toda sua extensão é escassamente impedida. Aqui o caso era muito diferente; como se poderia esperar do amor do duque pelo bizarro. Os apartamentos eram tão irregularmente dispostos que a visão embarcava nada mais do que um por vez. Havia uma aguda curva a cada vinte ou trinta jardas, e a cada curva um efeito diferente. À direita e à esquerda, no meio de cada corredor, uma alta e estreita janela gótica vislumbrava sobre um corredor cerrado que perseguia as angulosidades da suíte. Estas janelas eram vitrais cujas cores variavam de acordo com o matiz prevalecente da câmara para a qual se abria. A da extremidade oriental era, por exemplo, em azul — e de azul vívido eram suas janelas. A segunda câmara era púrpura em seus ornamentos e tapeçarias, e aqui as vidraças eram púrpuras. A terceira era totalmente verde, e assim eram seus caixilhos. A quarta era mobiliada e iluminada em laranja — a quinta em branco — a sexta em violeta. O sétimo apartamento estava intimamente revestido com tapeçarias de veludo negro que eram suspensas desde o teto, descendo pelas paredes e tombando em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e matiz. Mas, nesta câmara apenas, a cor das janelas falhava em corresponder à sua decoração. As vidraças eram escarlates — uma profunda cor de sangue. Agora em nenhum dos sete apartamentos havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos dourados que jaziam dispersos para lá e para cá, ou dependurados no teto. Não havia luz alguma emanando de lâmpada ou vela desde o interior da suíte de câmaras. Mas, nos corredores que deixavam a suíte, ali havia, oposto a cada janela, um pesado tripé, sustentando um braseiro de fogo, que projetava seus raios através dos vitrais e assim cintilantemente iluminava a sala. E assim se produziam uma multidão de reluzentes e fantásticas aparições. Mas na sala ocidental, ou negra, o efeito da tocha que luzia sobre as janelas negras através dos vitrais cor de sangue era fantasmagórico ao extremo, e produzia uma visão tão selvagem sobre o temperamento daqueles que nela entravam, que eram poucos os da companhia corajosos o suficiente para porem o pé dentro do recinto.

Era neste apartamento que também havia, contra a parede ocidental, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo balançava de um lado a outro com um surdo, pesado, monótono retumbo; e quando o ponteiro dos minutos percorria o circuito, e estava para soar a hora, provinha dos pulmões acobreados do relógio um som que era nítido, sonoro, profundo e excessivamente musical, mas de uma nota e ênfase tão peculiares que, a cada lapso de hora, os músicos da orquestra eram constrangidos a pararem momentaneamente sua interpretação, para ouvirem o som; e assim os bailarinos obrigatoriamente cessavam suas evoluções; e havia um breve desconcerto coletivo na alegre companhia; e, enquanto os sinos do relógio ainda soavam, observava-se que os mais instáveis empalideciam, e os mais velhos e sedados passavam as mãos pelas sobrancelhas como se em confusa reverência ou meditação. Mas quando os ecos cessavam totalmente, uma risada leve de súbito traspassava a assembleia; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam como se para seu próprio nervosismo e tolice, e faziam sussurrantes votos, cada um para o outro, que a próxima badalada do relógio não produziria neles semelhante emoção; e, então, após o lapso de sessenta minutos (que abarca três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), vinha ainda outra badalada do relógio, e então era o mesmo desconcerto, tremulação e meditação como antes.

Mas, a despeito de estas coisas, era uma festividade alegre e magnificente. Os gostos do duque eram peculiares. Ele tinha um olho apurado para cores e efeitos. Ele desprezava a decoração de mera moda. Seus planos eram ousados e fogosos, e suas concepções reluziam com lume bárbaro. Havia alguns que o tomariam por louco. Seus seguidores sentiam que ele não o era. Era necessário ouvir, ver e tocá-lo para se certificar de que ele não era.

Ele havia dirigido, em grande parte, os ornamentos móveis das sete câmaras para a ocasião desta grande festa; e foi seu próprio gosto indicador que havia dado personalidade aos mascarados. Tenha certeza de que elas eram grotescas. Havia muito resplendor, brilho, licenciosidade e fantasia — muito do costumaz desde em "Hernani". Havia figuras arabescas com membros e posições inapropriadas. Havia delirantes extravagâncias tais quais na moda de um louco. Havia muito do belo, muito de afronta, muito do bizarro, algo de terrível, e nem um pouco daquilo que poderia excitar repulsa. Para cá e para lá, nas sete câmaras, esgueiravam-se, na verdade, uma multidão de sonhos. E estes — os sonhos — se debatiam, assumindo os matizes das salas, e causando a selvagem música da orquestra se assemelhar ao eco de seus passos. E, subitamente, vêm badaladas no relógio de ébano que fica no salão de veludo. E, então, por um momento, tudo está em suspensão, e tudo está silêncio com exceção da voz do relógio. Os sonhos estão rigidamente congelados em seus lugares. Mas os ecos das badaladas se extinguem — eles haviam durado apenas um instante — e uma gargalhada leve, meio subjugada, flana atrás deles enquanto eles partem. E agora novamente a música se eleva, e os sonhos vivem, debatem-se de um lado para o outro ainda mais alegremente do que antes, assumindo os tons dos muitos vitrais através dos quais são refletidos os feixes dos tripés. Mas para a câmara que jaz mais para o ocidente das sete, agora não há nenhum dos mascarados que se aventure; pois a noite está acabando; e há fluxos de uma luz enrubescida através das janelas cor de sangue; e a negritude das tapeçarias escuras aterroriza; e para aquele cujo pé cai sobre o carpete negro, surge desde o próximo relógio de ébano um abafado tilintar mais solenemente enfático do que qualquer outro que alcança os ouvidos daqueles que se engajam em divertimentos mais remotos dos outros apartamentos.

Mas estes outros apartamentos estavam densamente populados, e neles batia fervorosamente o coração da vida. E a festividade prosseguiu freneticamente, até que, em certo momento, começou a soar meia-noite no relógio. E então a música cessou, como eu havia dito; e as evoluções dos dançarinos se silenciaram; e havia uma desconfortável interrupção em todas as coisas como antes. Mas agora doze badaladas soavam no sino do relógio; e assim isto ocorreu, talvez mais pensamentos se embrenharam, com o passar do tempo, nas meditações dos pensativos dentre aqueles que festejavam. E assim também ocorreu, talvez, que antes de o último eco da última badalada ter imergido completamente no silêncio, havia muitos indivíduos na multidão que encontraram prazer em se tornar ciente da presença de uma figura mascarada que não havia capturado a atenção de ninguém anteriormente. E o rumor desta nova presença havia se espalhado, aos sussurros, ao redor, a certa altura, ergueu-se de toda a companhia um buchicho, ou murmúrio, expressão de desaprovação e surpresa — então, finalmente, de terror, horror e repulsa.

Numa assembleia de fantasias tais quais retratei, poderia bem se supor que nenhuma aparência ordinária teria excitado tal sensação. Na verdade, a licença da mascarada da noite era quase ilimitada; mas a figura em questão extrapolava todos os limites, e havia ultrapassado as fronteiras até mesmo do indefinito decoro do príncide. Há acordes nos corações dos mais descuidados que não podem ser tocados sem emoção. Mesmo com aquele completamente perdido, para quem vida e morte são igualmente zombarias, há assuntos sobre as quais nenhuma zombaria pode ser feita. Na verdade, toda a companhia parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no comportamento do estranho não existia sabedoria nem propriedade. A figura era alta e esquelética, e encoberta da cabeça aos pés com as vestes da cova. A máscara que escondia as feições era feita de modo a se assemelhar à aparência de um cadáver enrijecido, que mesmo o escrutínio mais detalhado teria dificuldade em detectar a farsa. E tudo isto ainda poderia ter sido suportado, até aprovado, pelos insanos festeiros. Mas o mímico havia ido longe demais ao assumir o tipo da Morte Vermelha. Suas vestes manchadas de sangue — e sua ampla fronte, com todas as feições do rosto, estava espargida com o horror escarlate.

Quando os olhos do Príncipe Prospero pousaram sobre esta imagem espectral (que com um movimento lento e solene, como se para mais completamente manter seu papel, vagava de um lado a outro entre os dançarinos), ele pareceu ter convulsões, num primeiro momento com um forte tremor tanto de terror quanto de repulsa; mas, em seguida, sua testa enrubesceu de raiva.

— Quem ousa? — ele roucamente indagou os cortesão que estavam próximos dele — quem ousa nos insultar com esta pilhéria blasfematória? Agarrem-no e o desmascarem — para que saibamos a quem devemos enforcar ao nascer do sol, desde os parapeitos!

Era na câmara oriental, ou a azul, na qual estava o Príncipe Prospero quando ele pronunciou estas palavras. Elas retumbaram alto e claramente através das sete salas —pois o príncipe era um homem destemido e robusto, e a música havia sido suspensa com um movimento de sua mão.

Era na sala azul que estava o príncipe, com um grupo de pálidos cortesão a seu lado. A princípio, enquanto ele falava, houve um ligeiro movimento apressado deste grupo em direção ao intruso, que, naquele momento também estava ao alcance, e agora, com passo deliberado e imponente, se aproximou ainda mais do falante. A despeito de certo fascínio inominável com que as aparências insanas do mímico haviam inspirado todo o grupo, não havia ninguém que estendesse a mão para agarrá-lo; então assim, desimpedido, ele ficou a uma jarda da pessoa do príncipe; e enquanto a vasta assembleia, como se num único impulso, encolheu desde os centros das salas para as paredes, ele percorreu seu caminho ininterruptamente, mas com o mesmo passo solene e calculado que o havia distinguido desde o começo, através da câmara azul para a púrpura — através da púrpura para a verde — através da verde para a laranja — através desta também para a branca — e até desta para a violeta, antes que um movimento decidido houvesse sido feito para capturá-lo. Foi então, contudo, que o Príncipe Prospero, enlouquecido com fúria e vergonha por sua própria covardice momentânea, correu apressadamente através das seis câmaras, enquanto ninguém o seguiu por causa do terror mortal que os havia tomado a todos. Ele ergueu alto uma adaga desembainhada e havia se aproximado, com rápida impetuosidade, para três ou quatro pés da figura que recuava, quando o último, tendo atingido a extremidade do apartamento de veludo, virou-se subitamente e confrontou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo — e a adaga caiu resplandecente sobre o carpete negro, sobre o qual, instantaneamente em seguida, caiu prostrado morto o Príncipe Prospero. Então, convocando a coragem selvagem do desespero, uma horda dos festejadores, de uma vez só, precipitou-se para dentro do apartamento negro e, agarrando o mímico, cuja alta figura permaneceu ereta e imóvel sob a sombra do relógio de ébano, engasgou-se em horror inefável ao descobrir as mortalhas fúnebres e a máscara cadavérica, que eles sustinham com tão violenta rudeza, desabitadas por qualquer forma tangível.

E agora foi constatada a presença da Morte Vermelha. Ela havia vindo como um ladrão na noite. E, um por um caíram, os festejadores nas paredes cor de sangue dos saguões de sua festividade, e morreu cada qual na desesperadora posição de sua queda. E a vida do relógio de ébano se foi com aquela do último dos joviais. E as chamas dos tripés se extinguiram. E as Trevas, Decadência e a Morte Vermelha mantiveram ilimitado domínio sobre tudo.


Fonte: http://poestories.com/stories.php





Annabel Lee

Edgar Allan Poe
Tradução: Fernando Pessoa

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

***

Annabel Lee
Edgar Allan Poe

It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.
I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea;
But we loved with a love that was more than love-
I and my Annabel Lee;
With a love that the winged seraphs of heaven
Coveted her and me.

And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of a cloud, chilling
My beautiful Annabel Lee;
So that her highborn kinsman came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulchre
In this kingdom by the sea.

The angels, not half so happy in heaven,
Went envying her and me-
Yes!- that was the reason (as all men know, In this kingdom by the sea)
That the wind came out of the cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.

But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we-
Of many far wiser than we-
And neither the angels in heaven above,
Nor the demons down under the sea,
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.

For the moon never beams without bringing me dreams
Of the beautiful Annabel Lee;
And the stars never rise but I feel the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so,all the night-tide, I lie down by the side
Of my darling, my darling, my life and my bride,
In the sepulchre there by the sea,
In her tomb by the sounding sea.

Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/pessoaepoe.htm





quinta-feira, 16 de julho de 2009

Na rua


Quero te comer na rua,
com raiva,
na pressa.
Não dá tempo de ficar nua.
Vamos logo
ao que interessa.
Não quero romantismo,
quero desejo puro e simples,
quero a força do tesão.
Não preciso do teu cinismo,
preciso de tua paixão.
Anseio sentir tua carne
e tua veia pulsando em mim
meu mar te molha e esquenta
e eu fico louca te tendo assim.

Para ler mais textos da autora, clique aqui.





quarta-feira, 15 de julho de 2009

REVISTA SAMIZDAT entrevista ISIDRO ITURAT





O indriso pode ter variantes, como duplos e triplos? O senhor aceita esta possibilidade de criação?
O único limite no indriso está na associação dos dois tercetos e das duas estrofes de verso único duplicados, pois é isso o que o define. Em relação a outras particularidades textuais (medida nos versos, rima, temática, estilo, associações de vários indrisos, etc.) o autor tem total liberdade criativa.
Sobre as composições formadas com mais de um indriso, posso dizer que eu mesmo venho ensaiando isso desde que comecei a escrevê-los. Até agora, testei associações que vão de 2 até 5 poemas, com diferentes graus de ligação semântica e formal. Cito alguns exemplos próprios: I. [Cada vez de Eco menos queda.], II. [Narciso del lago se enamora:], Zwangsneurose (La obsesión), Algunos descendientes de Caín, Los sentidos corporales.


Apesar da liberdade, concorda que é extremamente difícil compor um indriso com conteúdo e forma em perfeita harmonia?
Realmente, não é fácil compor qualquer poema com conteúdo e forma em perfeita harmonia, mas esse não é pelo menos um dos papéis do poeta?


Atualmente como o senhor vê o crescimento do indriso entre os poetas jovens?
Primeiro, está acontecendo entre eles um jogo de rejeições e atrações. Porém, este jogo é vital porque se o indriso vai oferecer alguma coisa de interessante para a literatura, não pode ser simplesmente aceito de mãos abertas. O indriso tem que ser criticado, tão testado quanto seja possível e, se depois disso representa algo valioso para os outros, aí sim, realmente será pertinente a sua consolidação. Acho que os poetas jovens estão ajudando especialmente nesse processo de “temperado na frágua”, porque naturalmente questionam mais. Mas tenho que dizer que, pelo menos por enquanto, esse jogo está resultando no crescimento do número de autores, coisa que, logicamente, gosto de ver e agradeço.


De onde surgiu o desejo de criar a forma poética dos indrisos?
Na verdade, não houve desejo consciente. O indriso é uma imagem que a minha cabeça criou de forma espontânea. Às vezes, faço o exercício de visualizar a estrutura dos poemas mentalmente. O indriso surgiu em um momento em que meditava sobre o soneto e em um determinado instante, vi as estrofes da figura clássica se condensando desde o padrão 4-4-3-3 para o 3-3-1-1.


Tenho feito algumas leituras teóricas a respeito de poesia. Na maior parte delas, pelo menos das contemporâneas, é dito que a poesia não está na forma, nem há "conteúdos" mais ou menos poéticos, mas que se trata de uma tênue e complexa relação entre as duas coisas. Para você, que pratica-a tanto na teoria quanto na prática, é possível afirmar objetivamente sobre um texto: "aqui há poesia"?
Existem inumeráveis estudos que tentaram definir a poeticidade de um texto desde um ponto de vista objetivo e científico, mas perante cada tese aparece sempre uma antítese que, se não mostra a inviabilidade da primeira, mostra sim um determinado grau de insuficiência. Acho que isso acontece simplesmente porque um objeto como a poesia é uma plasmação artística de tudo aquilo que o ser humano é e capta do mundo. Por isso, tentar percebê-la só através da função intelectual é impossível, porque o ser humano não percebe as coisas apenas através dela. Até onde sei, os especialistas no funcionamento da nossa mente identificam, pelo menos, outras três funções que permitem obter interpretações eficazes sobre a nossa realidade, que seriam a intuição, a emoção e a sensorialidade. Eu penso, intuo, sinto e percebo que quando, além do intelecto usamos estas outras funções, ou inclusive todas elas ao mesmo tempo (a própria poesia estimula fortemente este processo de integração), podemos chegar sim a ter aquela firme e inequívoca percepção de que no texto, que está diante do nosso nariz, há poesia.


Por causa da aparente facilidade - todo mundo crê ser capaz de escrever poemas -, há uma total descrença, do mercado editorial e dos leitores, em relação à poesia e aos poetas. Como você percebe esta situação e o que há para ser feito para modificá-la?
Eu não acho que essa descrença exista porque um grande número de autores não consegue atingir altos padrões artísticos. O fato de existir uma maioria assim e um pequeno número de indivíduos que realmente se destacam acontece em qualquer atividade. Em minha opinião, os motivos da rejeição social à poesia são bem maiores e até mais complexos do que isso. Posso enumerar alguns elementos que tenho percebido e os considero nucleares: a poesia apela a fatos como a expressão do mundo interior das pessoas; pode incentivar o que se chama “processo de individuação” (pelo qual a pessoa passa de ser “massa” a ser “indivíduo diferenciado”); e é intrinsecamente subversiva pelo simples fato de dizer as coisas de outro jeito, além de funcionar à margem da mentalidade mercantil. Tais motivos já são suficientes para que a poesia não seja muito aceita por uma sociedade cuja maioria é educada segundo padrões opostos.
As figuras com maior responsabilidade direta na hora de mudar todo isso seriam os governantes que gerem a educação e as artes, as editoras, os professores e, logicamente, os poetas. Hoje, o conhecimento necessário para fazer um grupo ou sociedade prósperos (ou para afundá-los) já existe. Isso inclui uma tradição literária de milhares de anos que permitiria fazer as melhores obras da história. Para que as coisas melhorassem, apenas seria necessário que cada uma destas figuras quisesse fazer a sua parte.


Desde sua origem, a poesia possui um forte apelo pedagógico: basta nos lembrarmos dos poemas de Homero, Hesíodo, Dante, Shakespeare e Heine, por exemplo. Qual é a função da poesia no século XXI, na sua opinião? Este propósito educacional ainda está presente, ou ainda possui razão de ser?
Como já mencionei anteriormente, para mim a função mais importante da poesia consiste em que ela expresse com a sua linguagem particular tudo aquilo que o ser humano é. Isso inclui, é claro, a função de educar, que é uma necessidade insubstituível. Falando especificamente do século XXI, penso que pode influir muito sobre as funções da poesia o fato de que - isto é uma opinião muito pessoal – provavelmente em toda a história da humanidade o ser humano nunca esteve tão perdido, ferido e narcotizado em relação ao seu caminho vital. A maneira mais simples de comprovar isto é olhar uma enciclopédia ilustrada de arte. Qualquer pessoa (que queira ver) vai perceber imediatamente que os artistas nunca expressaram um grau de desintegração mental e espiritual tão intenso, em época nem cultura alguma.
Pelo menos por agora, sinto que a principal causa disso é o fato de que o nosso medo está tomando a forma de mentira de uma maneira especialmente intensa em relação às coisas essenciais: o alimento apresenta-se como veneno, a narcose como lucidez, a escravidão como liberdade, a ignorância como conhecimento, as relações egoístas como modelos de amor, Deus é apresentado como diabo, os diabos como Deuses... E muitos de nós não queremos nem ver quando, pelo menos uma vez na vida, as coisas aparecem na nossa frente como realmente são.
Não sei se encarar hoje esta situação já é ou será uma função importante da poesia, mas acho que não estaria nada mal que assim fosse.

O que representa a Internet para o seu ofício literário? Em que ponto ela presta um favor aos novos escritores? Em que ponto ela os atrapalha?
Bom, através da Internet tenho acesso a leituras às quais seria quase impossível acessar desde um país com uma língua diferente da minha; atualmente, o que eu escrevo depende por inteiro da rede para ser divulgado; e o computador é o único instrumento que me comunica com outros autores e leitores. Veja quanta liberdade e quanta dependência ao mesmo tempo!...
Para citar mais alguns “favores”, lembrarei que ela permite aquela independência em relação às editoras tradicionais e aos júris, quem em muitos casos até agora publicaram e premiaram o que eles queriam que o leitor considerasse literatura de prestígio. Também permite divulgação massiva e instantânea, além de uma fácil atualização das informações.
Quanto ao que pode atrapalhar, penso em assuntos como a volatilidade dos dados (eles são apenas pulsos elétricos), a pressa do leitor, que perante a enorme oferta acessível em segundos tende a não ficar muito tempo em um mesmo lugar, ou o que as pessoas podem fazer com as informações, pois o conjunto daquilo que você coloca na Internet é de fácil acesso a simpatizantes ou não, pessoas próximas e alheias, individuais ou ligadas a órgãos públicos e privados, sendo também extremamente manipulável.

Geralmente, os poetas possuem temas recorrentes, que perpassam a totalidade de suas obras e pelos quais eles podem ser reconhecidos. Ao analisar sua própria obra, você identifica quais são seus temas recorrentes?
Na verdade, não sei se a minha obra poderia ser reconhecida simplesmente por isso, porque realmente os que aparecem nela são dos mais comuns na literatura. Em primeiro lugar, direi que eu gosto de visualizar o conjunto da minha obra como uma roda em movimento. O eixo dela seria a noção de Eros no seu sentido integral de “instinto de vida”. A partir deste eixo, se projetariam uma série de rádios entre os quais considero de maior significação, e por isso mais recorrentes: a definição dos diferentes arquétipos do homem e da mulher; a relação entre eles nos aspectos erótico, sentimental e espiritual; as reflexões sobre o caminho vital humano e as relações de tudo isso com a divinidade.


Quais são os poetas consagrados que você lê? E quais são os novos poetas que você lê?
Os poetas consagrados que me marcaram mais e que leio recorrentemente são dois: o nicaraguense Rubén Darío, do século XX e o espanhol do século XVII don Luis de Góngora.
Quanto aos poetas novos, também procuro acompanhar as últimas fornadas de autores com a esperança de que algum deles consiga atrair minha fidelidade como leitor, mas infelizmente hoje não acontece isso com ninguém. Sei que este fato pode provir de um gosto pessoal restringido demais, ou de uma simples falta de pesquisa, não sei. Mas é o que acontece atualmente comigo.


Além do indriso, a que projetos você têm se dedicado, no campo da poesia?
Antes do indriso passei pelo que poderíamos definir como duas etapas poéticas. Na primeira, produzi uma série de poemas em verso livre de tom predominantemente niilista, depois veio uma segunda, na qual já comecei a experimentar com a métrica regular e com os poemas amorosos. Mas joguei fora quase tudo. A poesia que eu quero mostrar começa com o indriso e é o único projeto com o qual trabalho hoje, não porque me sinta obrigado, mas, simplesmente, porque é o que pede a minha voz poética.


Como é a receptividade da literatura brasileira na Espanha?
Na Espanha a literatura brasileira é praticamente desconhecida. É muito difícil encontrar livros brasileiros nas prateleiras das livrarias espanholas. Esse fato é verdadeiramente lamentável, porque considero que a literatura brasileira tem uma grande riqueza e singularidade. Na Europa a presença do Brasil é bem mais mais forte na França.
Vale a pena mencionar alguns nomes evidentes que podem ser encontrados: Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Machado de Assis...


Quando você teve contato com a nossa literatura?
A partir de 2004, quando já estava preparando a minha viagem para o Brasil, que se concretizou em 2005. Juntamente com o estudo da língua portuguesa, comecei a procurar nomes de autores brasileiros consagrados e a tentar ler alguns deles. As primeiras obras da literatura brasileira que li, foram os contos de Machado de Assis e uma pequena antologia de poetas que achei na biblioteca da Casa do Brasil, em Madri.


Entre os brasileiros, que poetas você aprecia?
Bom, em relação à poesia brasileira estou apenas começando a ler. Até agora captaram mais a minha atenção os gratamente inevitáveis Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves e Vinicius de Morais.
Com Vinicius tenho um vínculo afetivo mais forte porque foi meu “mestre de português”. Na Espanha, para fixar a prosódia (e porque sentia um enorme prazer com a vibração daqueles versos na boca e no ouvido) eu recitava incessantemente o Soneto de fidelidade.


Tem acontecido alguns episódios bem desagradáveis nos aeroportos, envolvendo brasileiros que viajam para a Espanha. A que você atribui esse mal-estar?
Não tenho nenhum conhecimento especializado em relação às questões políticas e minha opinião não deve ter mais valor do que a de qualquer outro cidadão comum. Pelo que vi até agora, duvido que a opinião pública (seja brasileira ou espanhola) chegue a conhecer o verdadeiro motivo destas ações nos aeroportos da Espanha. Se os funcionários envolvidos, por exemplo, não forem claros e corretos na aplicação das normas, isso significa que existem outros motivos além dos que aparecem na mídia, motivos que só conhecem as autoridades que dão as ordens. Por isso, seja como cidadão espanhol ou como cidadão brasileiro, só me resta ver essa situação com muito pesar.


Seu site mostra que, além de poesias, você também tem alguns artigos e ensaios escritos. Dentro dessas experiências, o que te traz maior retorno: a prosa ou a poesia?
Basicamente, vejo a relação entre a minha poesia e o meu ensaio como a que poderia existir entre uma irmã mais velha com o irmão menor. Cada um deles tem o seu próprio tamanho (a poesia é bem maior), mas trata-se de uma relação amorosa na qual um incentiva o outro. Por exemplo, a minha poesia não apresentaria a mesma diversidade de matizes se não fosse pelo estudo, a meditação e o trabalho de ordenação mental que exige o ensaio; no entanto, ele permite tratar de assuntos literários além do verso que me interessam. Também acontece que a afetividade e recursos que a poesia mobiliza, permite que o ensaio fique mais rico em detalhes expressivos, ritmo e emocionalidade.




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Para mais informações sobre Isidro Iturat e sobre o indriso, leia:


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Coordenação da Entrevista: Volmar Camargo Junior
Perguntas elaboradas por: Carlos Barros, Giselle Sato, Henry Alfred Bugalho e Volmar Camargo Junior.