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terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Para Um Bem Maior



“Bastião” estava desesperado.
A vida não lhe corria nada bem e o pouco que ganhara, de “carrejão” durante vindima, fora-se em cartas e copos na taberna do Barnabé. Não queria “ouvir” a Maria a “chagar-lhe” a paciência por causa do dinheiro uma vez mais.
Olhou para as calças remendadas e puídas, que terminavam quatro dedos acima dos socos de madeira. Precisava de comprar umas calças, ou muito em breve ficaria com as ceroulas à mostra.
Já há muito que congeminava um plano, para dar a volta à sua situação financeira, mas não se atrevia a executá-lo: a capela do São Salvador, no alto da pequena colina sobranceira à aldeia, tinha sempre uma boa maquia na caixa de esmolas. Ainda por cima, com a festa do Santo na próxima semana. Já se viam muitos crentes a levar as velas e as moeditas que podiam dispensar, para pedir uma bênção, ou ajudar os pobres… quem mais pobre do que ele? Ficavam os cobres melhor para si, do que com o “papa-hóstias” do padre Figueira, que só sabia beber tinto e “larpar” os salpicões a que deitasse a mão.
De resto, quem é que alguma vez tinha recebido algum tostão dos que lá se punham para os pobres? Ele é que não! Pelo menos até hoje… Sorriu de si para si enquanto deitava nova olhada pela rua de terra batida que atravessava a aldeia, onde não se via vivalma.
Era noite e as nuvens de trovoada acumulavam-se sobre o vale desde o fim da tarde, o ribombar distante anunciava a possibilidade de uma forte chuvada para breve e todos na povoação se recolheram cedo para a ceia e para dormir, que amanhã seria um novo dia de duro trabalho.
Disfarçadamente, caminhou pela rua escura, sem acender candeia ou luminária, não fosse verem-no por lá. Fracos fios de luz escoavam-se pelas generosas frestas das portas das casas e aqui ou ali, ouviam-se as vozes dos adultos que se não haviam ainda deitado.
Passou em frente à pequena igreja e benzeu-se rapidamente, feliz por perceber que, nem o “Manel maluquinho”, que andava sempre pela praça, estava à vista naquele dia. Não apareceria de repente com a sua voz distorcida e gutural a pedir “Tostãozinho, pelas almas!”
Apressou o passo e lançou-se no caminho processional que subia ao santuário, oculto pela sombra das árvores, esperando não sujar os socos nalgum “presente” deixado por cavalo ou vaca.
Chegado ao alto do monte, a visão era ainda mais impressionante: os céus refulgiam com o luar que brilhava em volta das nuvens negras que pairavam sobre o vale. A espaços, vibravam clarões, brevemente respondidos por um retumbar longínquo.
A pequena capela estava obviamente fechada e Bastião abanou a porta com força, fazendo-a estremecer, mas não ceder. Resmungou baixinho… não tinha pensado bem naquilo, devia ter trazido um ferro…
Deu a volta ao edifício, espreitando pelos buracos de introdução das esmolas; a luz bruxuleante das velas, no interior, prometia-lhe um pouco de luz sem levantar suspeitas… pelo menos assim que entrasse. Tornou à entrada e avaliou a enorme fechadura de ferro, comida pelos anos…
Ergueu o pé e desfechou uma “patada” bem no meio da porta, sendo recompensado com a sua abertura de par em par, sem mais resistência. Felicíssimo saltou para o interior e fechou-se rapidamente.
O exíguo espaço que pouco mais daria do que para umas dez pessoas em pé, estava iluminado por uns quantos cotos de velas, ardendo nos suportes dedicados às promessas. A luz tremia ainda, perturbada pelo rompante da invasão, dando ao local um aspeto ainda mais fantasmagórico.
Na parede fundeira, uma espécie de altar e a cruz com O Crucificado em agonia, que era usada com muita devoção nas procissões, ocupavam quase todo o espaço. Dos lados, prateleiras com imagens de santos de vários tamanhos, velavam. Entre elas, uma imagem de São Pedro, olhava-o acusadoramente, empunhando a chave com uma mão e apontando o céu com a outra.
Ajoelhou-se frente ao altar e pediu perdão por aquilo que estava prestes a fazer:
"Senhor Jesus perdoe-me pelos meus pecados e pelos maus tratos que dou à minha mulher, que é uma santa… às vezes… outras vezes, torna-se o diabo em forma de gente e eu tenha de lhe “arriar” para a “pôr nos eixos”. Prometo que não volto a beber… tanto e que só vou jogar… uma vez por semana… ou duas."
Usou os seus melhores argumentos, para justificar que o facto de se ir apoderar das esmolas, mais não era do que encaminhá-las para quem realmente precisa e para um bem maior, que não o engrandecimento da já enorme “pança” do padre Figueira, "Que o Senhor Jesus bem sabia como ele era."
Assim que achou suficiente, agradeceu diversas vezes, benzeu-se e beijou os pés da sacra imagem, após o dedicou a atenção ao aloquete da caixa das esmolas. As letras ingenuamente escritas "Esmola para as Almas", tremeluziam como que recordando o sacrilégio que ia cometer.
Estacou com um ruído que lhe pareceu ouvir… gotas de chuva começavam a cantar no telhado. Recomeçou a avaliação e tentou abrir o fecho com a faca cheia de bocas, sem sucesso.
Agarrou nas imagens dos santos e pousou-as cuidadosamente no chão, em seguida, apoderou-se da prateleira onde elas estavam e bateu com ela sobre o aloquete. À segunda pancada partiu-se a tábua, mas o fecho também cedeu e uma torrente de moedas negras, algumas muito maltratadas, choveu aos pés do salteador. Rapidamente iniciou a recolha para o saco de lona que trouxera. Eram basicamente moedas de dez e vinte reis, mas demorou-se uns segundos a mirar uma ou outra de cinquenta reis e os olhos brilharam, quando achou dois tostões, duas de cem reis e mais três meias patacas, de cento e sessenta reis cada.
Encolheu-se. Pareceu-lhe ouvir alguém lá fora e ficou em silêncio. Uma moeda retardatária tilintou em cima das outras. Empunhou a faca e espreitou para a escuridão no exterior… a chuva caía copiosa, o vento soprava e relâmpagos longínquos rasgavam o céu. Não era possível ver a mais de três ou quatro metros de distância. Regressou e apressou-se a recolher o saque.
Deitou um último olhar aos santos; São Pedro continuava a olhá-lo acusadoramente, ameaçando-o com a justiça divina. Voltou a imagem para a parede e pôs o saco às costas. Benzeu-se para o enorme crucifixo. Uma forte rabanada de vento escancarou as portas e todas as velas se apagaram. O rosto de Cristo parecia refulgir com a luz dos relâmpagos.
"Perdão, meu Deus", gemeu estarrecido, antes de sair para a intempérie.
Mal deu dez passos, quando deparou com uma aparição, coberta da cabeça aos pés, que lhe barrava o caminho e estendia as mãos.
Soltou um grito estrangulado e caiu para trás, petrificado, tilintando centenas de moedas pelo chão empedrado. O seu rosto numa máscara de terror, focou o céu iluminado pela trovoada, enquanto a assombração se debruçava sobre ele. Com os olhos esbugalhados, inspirou atabalhoadamente três vezes e depois, parou para sempre…
A sinistra e andrajosa aparição, coberta com uma grosseira lona, inclinou-se para o corpo sem vida e exclamou:
"Tostãozinho pelas Almas"





sábado, 25 de dezembro de 2021

Quarta-feira na luta de classes

 

A meio da tarde, D. Matilde pediu a Ramiro:

Prepare o carro e leve-me a Cascais, a casa da Tatá Menezes, se faz favor.

Durante a viagem, a senhora parecia apreensiva, ao contrário de outras ocasiões em que se encontrara com a amiga, e quase não falou. Já nas alamedas do bairro chique da Gandarinha, alterou:

A Tatá mandou-me agora uma mensagem a dizer que está no bar do Hotel do Cabo. Vamos para lá, está bem?

Perto do hotel, Ramiro ouviu um sinal de chegada de mensagem. Entraram no estacionamento subterrâneo, mas D. Matilde manteve-se sentada. Pelo espelho, Ramiro percebeu alguma perturbação no rosto da patroa. Parecia claramente abatida. Após uns momentos que lhe pareceram longos, quebrou o silêncio.

Esperamos um pouco, Sra. D. Matilde?

Sim, deixe-me descansar cinco minutos.

A passageira cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Mantinha o telemóvel na mão, como se se tivesse esquecido dele. Por pudor profissional, Ramiro passou a olhar ostensivamente para fora, após perceber um esgar ténue no rosto da patroa. Uns dez minutos depois, D. Matilde abriu a porta do carro:

Ajude-me a levar a minha nécessaire, Ramiro, se faz favor. Preciso de me estender um pouco.

Tomaram o elevador para o segundo andar e, aí, D. Matilde entregou a Ramiro uma chave eletrónica marcada 202. Da janela larga da suíte avistava-se uma ampla mancha verde de pinhal. Ao fundo, o azul profundo do Atlântico. D. Matilde tirou o elegante bolero de cetim e sentou-se no sofá da zona de convívio.

Sente-se aqui, Ramiro; faça-me um pouco de companhia! Traga um martini para mim, aí do bar, e uma bebida para si.

O motorista escolheu um maple fronteiro ao sofá, receoso de impor familiaridade não desejada.

Há quanto tempo está connosco, Ramiro?

Vai fazer treze anos em outubro, minha senhora. Foi pouco antes de o Sr. Conselheiro ter comprado os vinhos de Bucelas. Eu era motorista do dono daquelas caves, o Dr. Valadares. O Sr. Galhardo encontrou-me lá, fez-me uma festa e convidou-me a trabalhar para os senhores. Já me conhecia de Angola.

Ah, eu lembro-me de si, muito jovem, ainda com o cabelo todo preto.

Sim, a idade não perdoa.

Bons tempos! Naquela altura, eu ainda nem tinha cinquenta, ainda estava bem viçosa. Agora, é o que se vê!

Ó Sra. D. Matilde, por amor de Deus, a senhora está igual! — protestou Ramiro. — Parece que os anos não passam pela senhora.

Não diga isso, Ramiro, que eu tenho espelhos. E o espelho mais cruel são os olhos dos outros. Dantes, os homens comiam-me com o olhar; agora… Se soubesse o que me aconteceu hoje!

A sério, minha senhora. Acho-a muito bonita; sempre achei.

Nesta idade ganha-se muita insegurança. Gasto fortunas em tratamentos para a pele. Mas, é quase só massagens e cremes. Só fiz um lifting e pus um pouco de silicone no peito. O rosto tem este aspeto, que engana, mas o corpo… nem tudo está bem. — Levantou-se e rodou lentamente à frente de Ramiro. — Acha que ainda sou atraente? Sinceramente!

D. Matilde era alta e um pouco magra. Tinha olhos azulados e pescoço esguio. Usava cabelo louro sempre bem armado, toaletes caras e, quase sempre, delicados perfumes florais. As suas formas mostravam alguma alteração pela idade, que as roupas disfarçavam. As ancas estavam um pouco menos arredondadas e a cintura um pouco mais cheia, mas o rosto apresentava-se bastante liso e os seios eram mantidos no ponto correto. Ramiro lembrava-se dela como uma mulher deslumbrante e ainda era fácil reconhecer o seu aspeto de então.

Acho-a muito atraente, Sra. D. Matilde. Sempre achei.

Ah! Ó Ramiro, você é tão cavalheiro. Eu pedi que fosse sincero!

A sério, minha senhora; acho-a muito… desejável, se me permite.

O que lhe agrada em mim?

A elegância, os olhos, o rosto. Os lábios.

Só?!

Ramiro não respondeu logo.

Os seios. Sempre gostei dos seus seios. Não leve a mal.

Sempre?

Sempre. Às vezes, tinha que fazer um grande esforço para conter o meu olhar de fugir para eles.

D. Matilde manteve-se silenciosa a fitar Ramiro, como que a certificar-se da sua sinceridade. No passado, embora suspeitasse que ele a admirava furtivamente, nunca lhe notara o menor sinal desrespeitoso. O rosto dele denotava uma genuína dedicação pessoal que ultrapassava o mero empenho profissional. Naquele momento, D. Matilde experimentou um sentimento de reconhecimento e um apelo de generosidade.

Gostava de vê-los, Ramiro?

Este levantou-se surpreendido e visivelmente pouco à vontade:

Ó minha senhora, de maneira nenhuma; quero dizer, não me atrevo a dizer que sim.

D. Matilde desapertou lentamente os botões da blusa de seda branca sem mangas que trazia e deixou-a solta. Pela abertura generosa, o volume bojudo e sedoso dos seios revelou-se saliente por sobre as copas alvas e delicadas do sutiã. Ramiro, apesar de ser homem de muitas mulheres, não pôde evitar uma aceleração cardíaca que a respiração denunciava. D. Matilde aproximou-se:

Toque-os! Pode tocá-los.

Ramiro estendeu devagar a mão direita aberta, enchendo-a de seio e copa. Apertou delicadamente, enquanto semicerrava os olhos. D. Matilde rodou o corpo, oferecendo as costas e o fecho da peça íntima. Ramiro abraçou-a por detrás. Os seus braços cruzaram-se no peito de D. Matilde, penetrando por sob a base do sutiã e enchendo ambas as mãos com os frutos desejados. Manteve-se uns momentos a desfrutar a suavidade tensa das carnes, até que D. Matilde abriu o fecho do sutiã e o retirou. Ficou de frente para Ramiro, que parecia aparvalhado de desejo a mirar o par de seios, relativamente pequenos, suspensos do tronco estreito da sua senhora.

Quer que tire mais alguma coisa, Ramiro? — incitou D. Matilde, inclinando a cabeça em trejeito insinuante.

Deixe só a gargantilha, minha senhora! — pediu Ramiro, num sussurro rouco.

A azáfama que se seguiu podia presumir-se de sexo louco e desvairado, mas o corpo de Ramiro, que num primeiro momento parecia ir rebentar, mostrava-se preguiçoso e refratário.

Desculpe, minha senhora, deve ter sido da cerveja do almoço.

Deixa lá o “minha senhora”, Ramiro, pelo menos agora sorria-se D. Matilde. — E olha que eu não sou de cristal; podes ser mais bruto, se quiseres.

E dava o exemplo com palmadas rijas no rabo de Ramiro. Este incremento de intimidade pareceu desinibi-lo. Seguiu o conselho e retaliou longamente, o que pareceu restaurar o seu desempenho e resultou em nádegas vermelhas em D. Matilde. Mais tarde, reconheceu para si próprio que grande parte do prazer adveio dos açoites dados. Além da alegria da sua parte solar por fornicar uma mulher ainda bonita, a sua parte escura, até aí inibida, rejubilara também por espancar a patroa. A gratificação era completa. D. Matilde parecia também muito distendida. Os gritos que dera tinham sido a consequência inevitável da mistura sofisticada de prazer e dor. Acendeu um cigarro longo e fino e contou:

Uma vez fiquei assim com as nádegas por ter dito ao meu pai que era um assassino sem coração. Eu devia ter uns treze anos quando começaram os massacres de colonos em Angola. Nós tínhamos uma roça de café. Vieram os turras e mataram três empregados brancos nossos. Os meus pais tinham ido levar-me a Nova Lisboa, para a escola. Estava num colégio interno. Quando voltaram e o meu pai se deparou com aqueles corpos mutilados, juntou um grupo de homens, foram a uma aldeia que diziam que apoiava os turras, e enforcaram nove homens, pretos, claro. Foi muito falado o caso dos nove corpos pendurados dum embondeiro. Durante muito tempo tive medo que os amigos e familiares retaliassem, que entrassem pela roça adentro e nos matassem a todos. Talvez por isso, casei cedo.

O meu marido — continuou — nunca me tocou com um dedo. Sempre nos demos bem. Talvez porque sempre fomos muito independentes. Sabes que até dormimos em quartos separados? — gracejou — mas é mais por causa dos ressonos. Quando ele andou metido naquela coisa dos negócios com a UITA — armas para lá, diamantes para cá — passava meses sem o ver. Depois, as idas à Lunda ficaram muito perigosas e ele optou por ficar cá definitivamente e investir em vinhos e bancos. Agora tramou-se com o BPN. Também não nos metemos muito na vida um do outro. Eu vou sabendo de um ou outro encantamento dele, mas vale a pena proibir as ondas de enrolar na areia? Isso também me deixa à vontade para algum devaneio que me apeteça. Não sei se ele já soube de algum, mas prefiro que não saiba. Apesar de sermos um casal mais ou menos aberto, não sei como iria reagir. A propósito, sabes o que me fez hoje o… — tu conheces — tinha combinado encontrar-me aqui com ele, mas sabes o que o sabujo me fez?: mandou uma mensagem — uma mensagem, vê bem! — a dizer que não conseguia trair o amigo e que, de qualquer modo, tinha uma reunião de trabalho. Detesto sedutores mal assumidos.

Para D. Matilde, este episódio que começara mal, acabara por ter um desfecho gratificante. Já vestidos, D. Matilde, num impulso de mulher abastada, e em gesto teatral, desapertou a gargantilha de pedras azuis e estendeu-a a Ramiro.

Ramiro, quero que fique com esta gargantilha. Tome!

Oh, Sra. D. Matilde, por amor de Deus; não posso aceitar.

Aceite! Quando a olhar, lembre-se de mim só com ela em cima do corpo. Espero que seja uma recordação aprazível.

Claro que é, minha senhora! Sem dúvida! Não a vou esquecer nunca mais. Mas, esta joia não foi uma prenda do Sr. Galhardo?

Foi, mas era melhor que não ma tivesse dado. Acho que ele a comprou para a amante do Estoril e ma deu porque ela não gostou. Soou-me. Ele devia saber que a pedra do signo dela é a esmeralda! Bem, vamos embora. Não é preciso dizer que este é um segredo nosso; que não seria bom para mim se alguém o soubesse, muito menos para o Ramiro!


Joaquim Bispo

*

Imagem: Lucian Freud, E o noivo, 1993.

Coleção privada.

* * *






quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O PEDIDO DE NATAL

 

 




 

O PEDIDO DE NATAL


         Na fila do correio, a menina aguardava. Na vez, deu a carta ao atendente. Era para o Papai Noel. 

         − O prazo já acabou. – diz o servidor.

         Desapontada, olhou para a mãe. Saíram caladas.

         Na escada, um senhor a abordou:

         − Sou mecânico, tô indo consertar o trenó do velhinho. Quer que eu leve a carta? 

        

...

 

         No Natal, a boneca chegou.

 

                                                 


                                                  Regina Ruth Rincon Caires

                 Araçatuba – Brasil





domingo, 19 de dezembro de 2021

Quando não tem jeito

 



Uma perua parou a duas quadras da minha casa. Lógico, tenho uma boa vista para o lixão clandestino e percebi tudo. Não parecia, de cara, ser algo comum. Liguei o alerta. Estou acostumada a pilhas e pilhas de detritos, destroços de construções e bichos mortos; restos de matadouros. O carro entrou sorrateiro, em zigue-zague, para se esconder por detrás dos monturos. Mas, ainda assim, captei a bendita imagem. Estava adesivado com frases do tipo: “Frete já!”, e telefones. Poderia ser o carro do Cildo, um senhorzinho caquético que derruba blocos inúteis, refugo de obras, quase todo santo dia. Não era ele, eu vi. Não podia ser, também, pelo porte. Ainda que estivesse mascarado, percebiam-se os músculos salientes. Quando o cara retirou o embrulho de talvez um metro em meio, pesado, num saco preto, notei que os urubus se agitaram; davam-se bicadas, tentando afastar a premente concorrência. Qual o porquê disso? Certamente liberava gases e salmoura. Eu não conseguiria discernir a diferença de fedores – o lixão sempre é podre –, porém os bichos sim. Também cachorros e gatos espreitavam ao longe, brotando em artimanhas para se chegarem. O homem se aperreou e quis terminar logo o serviço; pegou o embrulho com as mãos (com luvas) e saiu arrastando por uns dez metros. Mais estranho foi o fato de ele afastar os lixos já existentes e, com cuidado, colocar montinhos em cima do seu. Sim, repito, nunca vi nada igual a isso. A minha primeira intenção foi sair, ir à casa do Lucas, meu vizinho, e chamá-lo para pegar umas cenas com o celular dele. O meu está uma bosta, e já não servia para tirar fotos. Estive por dois segundos na porta, quando me deu uma perturbação para não perder nenhum lance. Eu podia descrever tintim por tintim para a polícia. Mas ela iria acreditar em mim? Poderia ser eu enquadrado como um sujeito que inventou uma história ou sendo o próprio praticante do crime? Meu Deus do céu, fiquei desesperada. Seria a minha história contra a da polícia. Não quero conversa com a polícia, para completar. Meu filho morreu numa troca de tiros, em 1998, e até agora nada. Desisti do processo, porque não tenho tempo nem dinheiro. Sofri muito por todos esses anos. De tanto eu pedir, Deus já deve ter feito justiça, trucidado o canalha que matou meu filho. Bom, melhor não entrar nessa história; me faz mal, muito mal, só de pensar. Jairo morreu de graça. Eu não poderia morrer por ser cúmplice de uma tragédia dessa? Deixei para lá, não valia a pena continuar com isso. Fechei a janela e entreguei nas mãos de Deus. Continuo na sina de ser invisível.






sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

A última noite no Serra

 













         





























 
                                                                             




                                                                                      
                                                                               


                                                                                                                                          








segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

O Presente

 

Aquele fim de tarde, tingido em tons de um vermelho laranja, caminhava em direcção ao zénite. Quem ali tivesse à mão uma máquina fotográfica facilmente teria conseguido um feito raro: aprisionar aquele momento mágico que, com toda a certeza, seria digno de figurar nos anais da fotografia.

Porém, sem que nada o fizesse prever, o tempo sofreu uma repentina alteração. Uma nuvem negra, mais negra que a noite mais negra, pairou alguns metros acima do solo e ofuscou por completo aquele artístico momento. Contudo, pode-se considerar normal o dito fenómeno, tanto mais que todos os que por ali passaram naquela altura não acharam estranho o que aconteceu. Aliás, o comportamento desses passeantes perante a ocorrência de tão negro fenómeno manteve-se dentro da normalidade.

 O sucedido deveu-se tão só a uma alteração de alguns factores climatéricos, a mudança do vento, um anticiclone, um centro de baixas pressões ou de altas pressões, sabe-se lá, a natureza é fértil em tantas coisas.

Contudo o que se passou a seguir bem poderia vir a dar um caso de estudo. Todas aquelas pessoas que antes se passeavam despreocupadamente, alheias às alterações climatéricas, foram assaltadas por alguns presságios perturbadores, face a este novo fenómeno. Foi vê-las a olharem para o ar com a angústia e a perplexidade estampadas nos rostos e de bocas abertas. De facto, aquela negra nuvem de repente tinha ganhado vida, tinha-se elevado até chegar à frente de uma janela dum dado apartamento e tinha desaparecido sem deixar ponta de rasto.

− Talvez tivesse entrado pela janela. − alvitraram uns.

− Mas como se ela estava fechada. – desenganaram logo outros.

Um mistério!

 

Afinal, essa negra nuvem desfez-se em noite e entrou pela janela aguardando às escuras na sala de estar. Um pouco mais tarde, o luar veio fazer-lhe companhia. O breu da escuridão deu então lugar a uma claridade prateada que deixou ver um embrulho no centro da mesa.

Então, no silêncio que se fazia ouvir, ecoou o som de uns saltos altos a percorrerem o corredor e a pararem em frente da porta. A seguir ouviu-se a chave a rodar da fechadura e de imediato a porta abriu-se.

À contra luz destacaram-se os contornos esbeltos do corpo de uma jovem mulher que, antes de entrar, se deteve expectante durante alguns momentos à entrada da sala, até se decidir dar alguns passos em frente e fechar a porta. Depois de entrar, tacteou na parede e pressionou o interruptor para acender a luz. Mas nenhuma lâmpada se acendeu. A sala continuava envolta entre as sombras da noite e a luz da lua.

«Que coisa estranha não haver luz. Logo hoje. Parece que as sombras do passado vieram para me tentar». 

Pressionou outra vez, mas agora com mais força o interruptor, mas nada. A falha de luz não tinha nada a ver com força. Eram provavelmente outros os desígnios, outras vontades, insondáveis.

Desolada, deixou cair a mala no chão, despiu o casaco, lançou-o para as costas de uma cadeira e atirou-se indolentemente para cima do sofá.

À sua frente, o presente esperava que os laços que o prendiam fossem enfim desfeitos.

«Eu bem sabia que a falha de luz não era um mero acaso, há muito que eu esperava por este momento.»

Cansada fechou os olhos, libertou a memória e deixou correr à solta as terríveis imagens daquele fatídico dia. Pareciam tão reais como se o passado tivesse voltado e fosse agora o presente: o carro voa pelo asfalto e ela alheia à estrada, à velocidade, ao destino. Está concentrada apenas naqueles acordes musicais que a fascinam. De repente, aquela música que a embala dá lugar ao ensurdecedor barulho de chapa a retorcer e a esmagar-se. Soube mais tarde que ele tinha partido, enquanto ela tinha resistido ao violento embate provocado por aquele camião desgovernado saído do fundo da noite. 

Como no passado, sente agora o mesmo impacto do choque que lhe volta a dilacerar o corpo e a alma, mas sabe que não são só as recordações. Sabe também que ele voltou no primeiro aniversário, para a levar. Ele era o seu presente. Agora tem a certeza de que não é capaz de resistir àquele encontro.

Decidida, levantou-se, ligou a aparelhagem de som, escolheu aquela música que não acabara de ouvir e encaminhou-se em direcção à mesa. Carinhosamente agarrou no embrulho, desatou os laços e abriu a caixa.

Uma luz intensa soltou-se e milhares de partículas cósmicas ficaram a pairar por toda a sala.

 





quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Uma Ocasião Especial


 

Desde muito novo que se habituara a ouvir elogios constantes. Descendia de uma das melhores famílias do País e nascera num bom ano. Num excelente ano, até! A sua infância e juventude foram cuidadosamente controladas e acompanhadas, não fosse sofrer alguma má influência que  prejudicasse as suas boas qualidades e o seu pleno desenvolvimento. Ao fim de alguns anos de conforto e carinho contínuos e de uma educação esmerada, foi finalmente considerado apto a deixar a casa paterna: tornara-se um bom vinho tinto, que não envergonhava em nada a marca famosa que ostentava. Esperavam, até, que se tornasse um dos seus mais famosos membros, trazendo-lhe um acréscimo bem merecido de honra e glória.

Das imensas caves da família transitou para uma outra, bem mais pequena, é claro, mas igualmente confortável e completamente apropriada à sua alta categoria. Como não podia deixar de ser, as condições ambientais e os cuidados recebidos eram os mesmos a que fora habituado, pelo que mal deu pela mudança.

Sob certos aspetos, estava até melhor aqui. Os seus companheiros eram todos adultos, uns mais do que outros, é certo, mas todos tinham ultrapassado a necessidade de tagarelice da infância, ou os caprichos, amuos e inconsistências da juventude. Como vinham de locais e países bem diversos, era interessante escutar a narração das suas experiências, por vezes bem diferentes das suas. Havia, até, entre eles, veneráveis anciães, carregados de experiência e de anos, cujas memórias remontavam a um passado extremamente nebuloso e quase esquecido. Por isso não sentia grandes saudades da casa de família ou dos seus companheiros de então. Limitava-se a recordar esse período crucial da sua vida com uma certa afeição distante e uma melancolia quase convencional.

E os anos seguintes foram passando suavemente entre longos sonos  repousantes e doutas conversas com alguns colegas de eleição, todos eles membros de famílias igualmente respeitadas e famosas. A cave continha, até, alguns dos seus parentes, embora nem todos da mesma elevada categoria. Alguns eram mesmo o que se poderia chamar de ‘parentes pobres’. Mas estes sabiam bem a fraca posição que ocupavam e portavam-se com a humildade e o respeito apropriados.

De vez em quando abria-se a porta da cave e um dos membros daquela tão insigne sociedade era retirado com a solenidade e o aparato adequados a tão augusta ocasião. Era sempre um dia de excitação mal contida para todos, em particular para os mais antigos. Quem seria o feliz escolhido? Seria desta? Caber-lhes-ia, finalmente, a vez? Bem sabiam que os cuidados e tratamentos recebidos desde a infância e juventude e os longos anos passados na escuridão e sossego da cave apenas serviam para os preparar para a prova suprema: o momento em que seriam julgados no Tribunal da Mesa.

Para isso viviam, era isso que aguardavam desde sempre. A única razão para a sua existência era o instante final da Prova. Saberiam, então, se havia justificação para a sua existência ou se todas as provações do passado tinham sido em vão. O seu nome e o das suas famílias dependiam do resultado desse exame. A responsabilidade era tremenda e a ideia de tudo jogar num só momento, terrível, medonha, até, mas incrivelmente aliciante. Era a atração do abismo, o pavor de falharem e de serem reduzidos a nada, que os fazia discutir o assunto em murmúrios deliciosamente conspiratórios. Embora todos aparentassem confiança no bom resultado da experiência, lá bem no íntimo residia um núcleo de dúvida e ansiedade, cuidadosamente ignorado e negado para bem da sua sanidade mental.

O nosso herói mal podia esperar pela sua vez. Continuava a preparar-se intensa e conscienciosamente, executando diariamente os exercícios que lhe tinham sido aconselhados pelos seus educadores e tendo o máximo cuidado com as emoções, que só o podiam prejudicar. Nas suas conversas mantinha um tom de voz cordato e comedido, fugindo de qualquer assunto que o pudesse excitar ou enervar. Era sempre bem educado, respondendo polidamente aos que com ele falavam, nem que o interlocutor fosse desagradável, ofensivo ou decididamente detestável. Na sua posição não se podia dar ao luxo de ter ódios ou discussões que lhe poderiam ser fatais! Tinha de manter a qualidade, de fazer jus ao seu nome e às expectativas da família!

Chegou, finalmente, o tão ansiado dia. Retirado do seu canto, foi limpo e cuidadosamente transportado para fora da cave. Não olhou para trás e nem mesmo pensou em despedir-se dos outros. Embora com alguns deles tivesse o que se poderia considerar uma franca amizade, faziam parte do passado, e o que lhe interessava agora era a provação que se aproximava e o futuro glorioso que o aguardava. Além disso, precisava de fazer os últimos preparativos, de executar os exercícios prescritos, indispensáveis para a ocasião. Era um momento solene, e como tal devia ser acompanhado do estado de espírito apropriado.

A luz crua do dia feriu-lhe os olhos demasiado habituados à escuridão confortável da cave, desorientando-o e incomodando-o por instantes. Mas os exercícios de descontração aprendidos na juventude em breve deram o seu fruto, permitindo-lhe um rápido retomar do seu já famoso domínio sobre si mesmo. Sentia-se confiante e apto a enfrentar qualquer Tribunal, qualquer Prova!

Mas a sua expectativa saiu gorada. Ainda não chegara o momento, tão esperado e tão temido, de se apresentar ao Tribunal da Mesa. Não era a sua vez de enfrentar a Grande Pergunta, de saber a resposta à Questão da Vida. Não fora para isso que o tinham ido buscar, mas sim para o oferecerem.

Por instantes sentiu uma leve irritação, logo prontamente reprimida. Preparar-se com todo o cuidado e afinal para nada! Mas um sentimento de orgulho em breve se sobrepôs. Devia ser realmente muito especial para ser escolhido entre tantos outros como dádiva! Que honra para a sua família, para o seu nome! E que responsabilidade acrescida! Esperava não desmerecer de semelhante prova de confiança.

As condições de transporte foram as adequadas, embora se pudesse desejar melhor. Mas as viagens implicavam sempre um certo desconforto, facilmente ultrapassado uma vez atingido o conforto do destino. Havia mesmo alguns exercícios mentais que ajudavam a superar as possíveis más consequências da mudança, evitando o aparecimento de perturbações que poderiam vir a ser fatais a organismos tão delicados. Suportou, pois, com paciência, as atribulações passageiras, sabendo que as esqueceria assim que se instalasse.

Ao chegar à sua nova casa, porém, sofreu um profundo choque que quase o matou. Sem qualquer respeito pelo seu nome e categoria foi enfiado de qualquer maneira num vulgaríssimo armário de madeira, já quase cheio com outras garrafas de vários formatos e tamanhos. Ainda por cima colocaram-no em pé, o que sempre lhe provocava um grande mal-estar. Ao fecharem a porta do armário ouviu alguém dizer:

— Este é bom de mais para todos os dias. Ficará para uma ocasião especial.

Ainda sentiu um bocadinho de orgulho ao ver-se assim classificado e colocado à parte, mas a sua situação atual era demasiado má para que esse sentimento durasse muito. Deixou-se, pois, cair numa melancolia profunda, ficando durante muito tempo totalmente alheado do que o rodeava. Passadas algumas horas, porém, a sua disciplina interior foi mais forte do que as péssimas condições ambientais e o nosso herói conseguiu dominar a má disposição física provocada pelo choque moral sofrido e pela posição totalmente imprópria em que o tinham colocado. Olhou, então, pela primeira vez em torno de si, para estudar melhor o local onde teria de passar algum tempo, possivelmente o resto da sua vida.

O armário era bastante pequeno e estava sufocantemente quente e abafado. Nada que se comparasse à frescura repousantemente constante das caves que conhecera anteriormente. A porta tinha pequenas fendas irregulares e vedava muito mal, deixando passar grandes laivos de luz. Estes eram frequentemente interrompidos por rápidas sombras, e com a continuação este cintilar aleatório tornava-se bastante incómodo. O teto era baixo, pouco distando do topo da sua cabeça, o que, aliado à grande quantidade de garrafas ali existentes, lhe dava uma certa sensação de claustrofobia. Que péssimas condições de habitação, muito em particular para seres habituados a um certo conforto e bem-estar!

Como a iluminação ambiente era suficientemente boa para isso — demasiadamente boa, até — pensou em identificar os seus companheiros de desgraça. Seria agradável ter uma boa conversa, trocar dados e experiências pessoais, ficar a conhecer melhor o local, as condições gerais e o que poderia esperar do futuro. Poderiam, mesmo, lamentar-se juntos, recordando com nostalgia os bons velhos tempos passados em locais bem mais apropriados.

Foi quando teve um segundo choque, talvez ainda maior que o primeiro: não havia um único nome decente entre eles, nem mesmo o de um daqueles parentes pobres e vagamente desclassificados que todas as grandes famílias possuem, embora raras vezes o reconheçam. Tudo plebeus e, a avaliar pelas poucas frases que escutou, plebeus da pior qualidade. Autênticos vagabundos! Verdadeiro lixo! Nunca se vira ou sequer imaginara em tal companhia! Era totalmente inadmissível que o colocassem ali, entre semelhante gente!

Foi de mais. Os incómodos da viagem, a má posição em que ficara e os dois tremendos choques morais que sofrera provocaram-lhe um estado de inconsciência total, quase de coma, que durou vários dias, talvez até vários meses.

Ao fim desse tempo, que lhe pareceu imenso, mas talvez o não fosse, a consciência voltou-lhe pouco a pouco, ténue, a princípio, depois clara e bem precisa. Antes o não fosse. Nas condições em que se encontrava, uma certa diminuição das suas faculdades seria desejável, indispensável até para a preservação da sua sanidade mental. Mas o treino que lhe fora dado na juventude tinha sido demasiado bom, o seu autodomínio excessivamente aperfeiçoado por anos seguidos de trabalho persistente e consciencioso. Quer o quisesse, quer não, o seu espírito estava bem desperto e tão acutilante como sempre o fora.

A maior parte dos seus companheiros fora substituída durante esse intervalo, embora mal se desse por isso. Os novos eram da mesma qualidade, ou completa falta dela, dos antigos. O armário, esse, continuava tão desconfortável como dantes, talvez um pouco pior com a habituação. Tudo estava na mesma. A sua situação era verdadeiramente horrível, catastrófica, trágica mesmo. Infelizmente, nada podia fazer a esse respeito, exceto desejar que a tal ‘ocasião especial’ chegasse o mais depressa possível, salvando-o daquela vida infernal. Era uma razão suplementar, talvez a mais importante, para ansiar pelo momento supremo da sua vida.

Com a passagem do tempo, e para aliviar a monotonia dos dias sempre iguais e desagradáveis, decidiu tentar tirar o melhor partido possível da situação horrível em que se encontrava. Mas poucos resultados conseguiu obter. Os seus diversos companheiros eram realmente seres tremendamente incultos, que tagarelavam e se querelavam sem parar sobre as maiores insignificâncias. Não havia um pensamento mais original, uma ideia mais profunda, uma opinião mais abalizada! E que balbúrdia permanente, que vozearia constante!

Que saudades sentia das longas, estudadas conversas a que se habituara na sua anterior residência. Das calmas discussões filosóficas, da troca de experiências ou de histórias. Lembrou-se, até, com pena, do balbuciar dos novos e das contínuas quezílias dos jovens instáveis, que tanto o tinham irritado na casa paterna. Tudo era preferível à inanidade intelectual dos seus atuais parceiros.

Aos poucos foi-se fechando em si mesmo, recusando qualquer contacto com os outros. Quando algum novato tentava inclui-lo na conversação geral, fazia-lhe imediatamente notar que considerava isso como uma grande falta de respeito. Era um ser de qualidade para uma ocasião especial, e não um desclassificado como eles. Ao fim de algum tempo deixaram-no em paz, passando palavra aos recém-chegados. Não o compreendiam, mas acatavam as suas manias e necessidade de isolamento. Até certo ponto, era mesmo respeitado, sendo olhado como um ser estranho e exótico que ali aparecera sem se saber como. Mas esse respeito não o consolava da tragédia atual, pois era dado por quem tudo ignorava sobre o seu nome e categoria.

Tentava não escutar o que se passava à sua volta, dedicando o seu tempo a especular sobre questões que sempre o tinham interessado: o sentido da vida e a resposta à Grande Pergunta. Apesar do perigo que isso representava para a sua sanidade mental, chegou mesmo a entrar no campo proibido das especulações sobre o Depois, o que estava Para Além da Prova. Em suma, a questão da sobrevivência de algo pessoal, de uma essência indetetável que estaria acima de meras classificações de qualidade ou categoria. Mas por pouco tempo o fez, pois o seu sentido de autopreservação era demasiado forte para continuar num caminho que só lhe prejudicaria a saúde. Pelo menos, assim fora ensinado.

A porta do armário era aberta com muita frequência para retirar um dos outros, o que contribuía para agravar as más condições do ambiente. Os seus companheiros iam sendo substituídos com grande regularidade, mas sempre por outros com a mesma fraca qualidade física e intelectual. Inicialmente aguardara essas substituições com uma certa dose de expectativa. Podia ser que um dia aparecesse alguém com quem pudesse conversar, mesmo que não fosse um gigante intelectual. Bastar-lhe-ia um único companheiro que tivesse uma pequena inteligência e alguns, mesmo poucos, conhecimentos. Sempre seria melhor que o habitual. Mas as desilusões foram tantas, que ao fim de algum tempo já nem reparava nos recém-chegados, embora estes lhe fossem imediatamente apresentados com uma certa cerimónia.

Aos poucos entrou numa certa modorra melancólica, bastante agravada pelas péssimas condições em que vivia. A temperatura variava continuamente durante o dia e ao longo do ano, sendo umas vezes mais baixa e outras mais alta, mas nunca a ideal. Sentia uma dor contínua no estômago, devido à sua incómoda posição e tonturas provocadas pelo cintilar da luz através das fendas. E isto para já não falar na claustrofobia provocada pelo excesso de moradores, que por momentos se tornava de tal modo intolerável que só lhe apetecia acabar com aquela existência ignóbil, mesmo que isto significasse a vergonha de faltar ao exame final.

Por vezes era deslocado sem quaisquer cuidados, para facilitar a arrumação de outros, ou, o que era ainda pior, para limpeza do armário. Nessas ocasiões tinha de aguentar a luz forte do exterior e grandes abanões e solavancos. De uma das vezes foi mesmo agitado com tal violência, que perdeu os sentidos durante várias horas. Acordou muito enjoado e só se sentiu normal, ou quase normal, passados muitos dias.

O desespero atacou-o com força. Deixou as especulações filosóficas e passava os dias a remoer o seu passado e as suas mágoas. Para ali estava ele, sozinho a um canto, em condições que não desejaria a uma mera garrafa de vinagre sintético. Sonhava com os confortos das suas anteriores caves e com os seus antigos companheiros, a maior parte dos quais estaria já, talvez, no Grande Além. Clamava contra a pouca sorte que o trouxera até ali e lamentava os muitos anos de trabalho e de preparação, que se estavam a perder nas condições atuais. Assustava-se com os danos que a péssima situação em que se encontrava poderia estar a provocar no seu delicado organismo. Acima de tudo sentia uma imensa pena de si próprio e do ruir de tudo o que lhe fora prometido: uma vida confortável e agradável, durante a qual se poderia preparar adequadamente para o seu destino final.

Tentava, ainda, desesperadamente manter uma certa equanimidade de espírito, mas era difícil, muito difícil. Tudo lhe parecia em vão. Só com grande dificuldade se decidia a executar o mínimo de exercícios de manutenção, e nem sempre com a atenção e o cuidado devidos. A noção de que desleixava as suas obrigações essenciais ainda agravava mais o seu já pobre estado de espírito. Enfim, sentia-se completamente infeliz e desesperava da vida.

Ansiava cada vez mais pelo momento de enfrentar a Prova Suprema. Era uma maneira de acabar com a degradação corrente e não só. Estava convencido de que nessa altura seria, então, devidamente apreciado e elogiado e a sua qualidade amplamente reconhecida. Ao imaginar os comentários e elogios que ouviria, sentia uma alegria fugaz que por vezes até lhe permitia esquecer um pouco a realidade. Mas não por muito tempo.

Chegou finalmente a tal ocasião especial. Quando o retiraram do armário, ainda pensou que fosse para a limpeza do costume. Pelo menos os abanões e a falta de cuidado foram os habituais. Mas todos os outros permaneceram dentro do armário, o que deveria queria dizer que estava por fim a caminho do Tribunal da Mesa. A emoção que sentiu nesse momento foi de tal modo grande, que, embora desde há muito os ignorasse, não resistiu em dizer aos companheiros de armário, à laia de despedida:

- Agora, sim, vão ver o que é a verdadeira qualidade. Depois de me provarem, ninguém mais vos tocará.

Levaram-no para um local demasiado iluminado e sentiu que lhe retiravam a rolha, embora com muitas hesitações e recomeços. Apesar das inúmeras provações porque passara até então e do sentimento de profundo desespero que há muito o invadira, o profissionalismo que lhe fora inculcado na infância veio ao de cima. Apressou-se, pois, a dar início à meditação prescrita para a ocasião. Não foi fácil concentrar-se, no meio de tanto solavanco e abanão. Mas conseguiu-o, o que muito o orgulhou.

Já na mesa executou os vários exercícios de respiração e descontração aprendidos num passado que sentia cada vez mais remoto, destinados a trazerem ao de cima o melhor das suas numerosas e variadas qualidades. Era um momento de grande solenidade e havia muitos rituais a cumprir. Teve, no entanto, de apressar-se, pois não lhe deram tempo suficiente para o poder fazer com a calma e o método desejáveis.

Ouviu uma grande algazarra, que lhe cortou ainda mais a frágil concentração, seguida de aplausos gerais. A garrafa foi erguida com brusquidão e, sem mais delongas, o vinho especial foi atabalhoadamente distribuído pelos inúmeros copos que avidamente se estendiam.

Infelizmente, o Grande Momento acabou aí. As más condições em que vivera desde a mudança, os profundos choques mentais que sofrera, o grande isolamento dos últimos tempos e a depressão em que soçobrara tinham-no azedado, tornando-o intragável.

Foi despejado sem cerimónias pelo cano abaixo.

Luísa Lopes

Foto de Markus Spiske no Pexels





sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

TEXTO AO FILHO HIPOTÉTICO

 

            Um filho hipotético nasceu de mim como um resíduo. Um destes fragmentos que incorporo à minha verdade diária de construir uma vida autêntica diretamente proporcional ao espaço concedido/conquistado. Um resíduo, não muito, daquilo que em mim é o mais permanente. Uma parte que ainda se resguarda e que a sociedade não corrompeu, por ser imune a tudo.

            Não lhe dou um nome pois ele não carece de um signo que o faça distinguível entre os seus. Todo o espaço que ele ocupa está cá dentro e não existe senão aqui, onde o sinto e ouço. Uma substância não de todo discernível, alguma coisa como que matéria neutra dotada de impulso vital que lhe forneço em nível de emoções diversas.

            E diante da possibilidade de este filho nunca se constituir como um ser real, de existência visível e concreta como esses seres de braços pernas cabelos e dentes, a quem chamamos homens e que circulam pelas ruas identificáveis por um nome, é que lhe conto. Para que ele saia de mim e se concretize em palavras.

            Ou então seria preciso que alguém me ajudasse a completar o esboço que na solidão chamei de filho. Mas é tarde e decerto ninguém viria até mim sabendo que o meu filho já nasceu do nada e existe sem existir e que, além disso, eu não quero tirar sua existência de anjo para trazê-lo ao palco de nossa cotidiana tragédia.

            Chamo-o de filho sem saber de seu sexo. Aliás eu o sinto e criei assexuado e hermafrodita ao mesmo tempo e com ele converso em sonhos. Diálogos de sonhos que não transcrevo pois os sonhos não se transcrevem e sinto que se fossem transcritos perderiam a sua substância de sonho, além de não terem importância para os outros por serem específicos.

            Certo dia, conversando com meu protótipo de filho, ele (contrariando minhas determinações de criador e se libertando da esfera mínima em que o permito autônomo) perguntou-me o que eu achava de mim e dos motivos pelos quais o criei. Se minha vida não bastava a mim mesmo a ponto de o chamar a coexistir comigo num espaço unicamente meu. Se a vida humana era mesmo esse desconhecimento primário da vida, com tudo o que ela tem de implicações intrínsecas.

            Atingido assim em um ponto tão vulnerável e crucial, respondi, contrafeito, que não sabia de nada e que também não queria pensar demasiadamente sobre isso. Mesmo porque eu não tinha meios para tal avaliação. Apenas me foi dado viver e conseqüentemente eu habitava esse verbo sem nenhuma estrutura lógica ou transcendente.

            Depois disso, eu e meu estereotipado filho entramos assim numa espécie de comunhão silenciosa, onde as perguntas não eram feitas e nem respondidas. Mas nem por isso deixavam de ser formuladas no íntimo secreto de mim para mim, através dele. E daquela sintonia inicial de quando o criei, fez-se o estranhamento inevitável entre o criador e o objeto criado. Daí para o divórcio total não demorou muito.

            Nosso afastamento não foi uma ruptura inesperada e muito menos unilateral. Veio de uma sequência de desencontros em que sabíamos levar ao aniquilamento total em termos de comunicação. Foi assim e sempre será assim entre os homens e talvez justamente por causa disso que eu o tenha criado, na ilusão de que ele, não sendo um ser real, pudesse manter um diálogo fraterno para comigo que me achava só e único em minhas ideias que eram, no isolamento, concebidas exclusivamente para mim mesmo.

            Aconteceu, porém, fato inesperado, que meu filho foi-se libertando de mim e de meus conceitos, criando para si próprio uma nova escala de valores que naturalmente divergia da minha sob alguns aspectos. E eu não contava com isso. Na verdade, somos todos despreparados para uma possível vida, tal como imaginamos e que não nos basta quando se concretiza.

            Assim, a cada dia, fomos percebendo que nossa convivência estava se tornando impossível. Estabeleceu-se um abismo e nele nos perdemos em nossa ânsia de tanto querer e que só nos afastava ainda mais do outro enquanto objeto de desejo. Eu e meu filho hipotético, no qual eu vislumbrava um desdobramento de mim e que, uma vez concretizado, era estranho a mim. Não nos entendíamos mais.

            Então eu o expulsei de mim trazendo-o a mim, de onde ele afinal tinha vindo. E ele em mim e eu nele absorvemo-nos num único ser que era o resultado de duas partes que naquele momento voltava à unidade aparente de um todo que já não mais se questionava. Não havia mais desavenças e passamos a nos entender muito bem no ser insípido que surgiu de nós dessa fusão e que, sem constrangimentos, contemplava a fumaça do cigarro em espirais de sono.