domingo, 28 de março de 2021
Os Anjos Têm Olhos Azuis
sexta-feira, 26 de março de 2021
Sem condições
Desde pequena ela ouvia
o pai
o avô
o tio
o irmão
o vizinho
com aquelas condições esfarrapadas deles
“Quando eu voltar, eu faço”
“Se eu melhorar, conserto”
“Quando eu chegar, eu lavo”
“Se eu animar, ajeito”
“Quando eu sair, eu busco”
Tão essenciais
em seus sérios serviços
viris em seus não-me-toques
inquilinos da preguiça
curtindo e emporcalhando a casa
prometendo só de fachada
Sua Mãe
A Avó
Sua Tia
A Irmã
A Vizinha
sempre forçadas ao “e”
sem condicional nem escolha
o banheiro e as panelas e os quartos e as crianças e as roupas e as tarefas e as compras e a segunda e as contas e o domingo e o janeiro e o marido e o dezembro e o choro
mesmo sem tempo areavam e coziam e limpavam e cuidavam e lavavam e faziam e pensavam e pagavam e se davam mesmo doentes não paravam
(e odiavam também, o tempo todo, porque ninguém pode com tanto amor)
Pra não repetir tanto “e”,
Sara casou com Murilo,
que não botava condição.
Tão sensível o professor.
Mas também não dividia.
A ajudinha minguando dia a dia.
Ela, que só queria usar um “se” e um “quando” ao menos de vez em quando,
tá igualzinha
À Mãe
À Avó
À Irmã
À Tia
À Vizinha.
Sem condições.
O que será da filha?
Maria Amélia Elói
Imagem: "A leiteira", óleo sobre tela, de Johannes Vermeer
quinta-feira, 25 de março de 2021
A genética prática dos pastores
Abençoado! Um sentimento de bem-aventurança cintilava-lhe no íntimo. Desfrutar dos bens necessários, do respeito dos outros, de felicidade. Tudo isto Deus e a Igreja Dele trouxeram e providenciavam continuamente a Rúben, o atual nome de Amadeu Rodrigues.
Antes, tinha sido vendedor de seguros; depois, de apartamentos. Finalmente, um bendito dia, acompanhara um colega a uma sessão daquela Igreja. O amigo não o enganara: aquele meio prometia possibilidades imensas e não imediatamente percetíveis. Havia no entanto que aprender a Bíblia a fundo. O Livro sagrado era a origem, a ferramenta e o objetivo. Seguindo a Bíblia, tinha-se acesso a conhecimentos de todo o tipo, desde as grandes revelações das origens, às verdades da vida; desde a mediação transcendente do saber cósmico, ao domínio das pequenas atividades quotidianas. Rúben empenhou-se a fundo. Leu-a em poucos meses, em jornadas pela noite adentro. Frequentou sessões de aprofundamento, apanhou cada argumento a aplicar a cada questão mais polémica.
A ascensão na hierarquia foi rápida e prometedora. Habituado a interpretar sinais faciais e conhecedor de outras atividades que lhe tinham exigido capacidades de argumentação e de persuasão, em breve integrava a elite da Igreja. Fazia pregações memoráveis, citava partes da Bíblia, mostrava como ela continha, já há milhares de anos, grandes conhecimentos que, só mais tarde, os Homens pensaram descobrir, e já predizia muitas das descobertas atuais: a Bíblia indicava onde estavam localizados os poços de petróleo, chamando-lhe betume; antecipava claramente o submarino, com Jonas a viajar no ventre de uma baleia; e o avião, com Enoch a ser levado para os céus por um carro de fogo; profetizava as missões humanitárias, com o lançamento do maná; e os bombardeamentos, com a destruição de Sodoma e Gomorra. A seguir às predicas, Rúben incitava os doentes e os mal-amados a pedirem a cura ao Senhor, em paroxismos de aflição coletiva e algumas curas milagrosas. Por fim, pedia o dízimo, tão justo e necessário que até Moisés o colocara na Lei.
Se em tempos mosaicos o dízimo era dado em géneros, no século XXI mais valia que os aflitos da cidade não andassem carregados com verduras ou criação. O dinheiro transporta-se com muita facilidade e também com prontidão se separa nas quantias necessárias. Era o dinheiro que fazia viver e melhorar a Igreja do Senhor. E os seus ministros. Nem em tempos de especulação imobiliária o então Amadeu vivera com tal bênção económica. Habituou-se a boas refeições, primeiro, e depois a boa roupa e bons carros. De bem-aventurado era o seu estado de espírito.
Rúben nunca deu guarida a qualquer pensamento de remorso. Sentia-se a prestar um serviço — o mais importante —, trazer esperança ao coração dos desesperados. Pela vontade do Senhor. E como ele o fazia bem!
Como primeira prioridade, o Homem procura alimentar-se, sobreviver. Por vezes, consegue-o, em tal quantidade e com tal facilidade, que a anterior necessidade começa a ser soterrada pelos apelos do estado de abundância. Então, acumular, esbanjar, experimentar o exagero do luxo e da luxúria ganham foros de estilo de vida. A luxúria, ah, a vertigem dos sentidos!
Cedo, Rúben percebeu que seria fácil obter sexo naquela mole de mulheres carentes e sugestionáveis. E bem percebia como era fácil estender o clima coletivo de carências individuais a um estado de espírito de ajuda mútua. “Temos de ser uns para os outros, neste mundo tão cruel.” “Temos de ver o que cada um dos nossos irmãos precisa.” “Eu preciso que o Senhor me ajude, mas, e eu posso ajudar alguém?” “Será que posso ajudar o meu irmão?” “O que é que ele precisa?” “O que é que eu posso dar, eu que recebo tanto do Senhor?” E, se não se via a aceitar intimidades com a maior parte daquelas mulheres, outras havia a quem podia abrir exceções e, solenemente sonso, aceitar o dízimo em géneros…
“Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.” Dinheiro a rodos, sexo até à exaustão, o que faltava? Nada, ou quase nada.
A dica para o patamar seguinte veio de um simples programa de televisão sobre a vida selvagem. Naquela noite, mostravam-se técnicas de manha e embuste usadas por vários animais, para que os seus genes chegassem em maior quantidade e segurança à geração seguinte. Sentiu uma iluminação ao perceber como uma simples ave desenvolveu procedimentos de dissimulação e parasitismo, para que ingénuos casais de minúsculas carriças chocassem os ovos e alimentassem as crias de uma espécie bem maior: o manhoso cuco.
Hum, espalhar o seu sangue pela população, olhar a multidão de fiéis na sala da sua assembleia e saber que inúmeros deles eram seus filhos secretos, a crescer felizes e saudáveis, sem ter ele de se sacrificar nas prosaicas tarefas de levar bebés à vida adulta! Muitos bebés; muitos adultos, também eles a propagar o seu sangue. Era, sem dúvida, um patamar apetecível. Um cúmulo de vida.
Um pormenor, no entanto, parecia poder complicar esse intento: Rúben era o único ruivo, numa comunidade maioritariamente de cabelo escuro. Nada a que o Senhor e a sua palavra não pudessem fornecer solução. Pois não explica a Bíblia, no capítulo 30 do Génesis, como procedeu Jacó, certamente com a inspiração do Senhor, para obter vantagem na divisão dos rebanhos, quando quis terminar o contrato com o sogro, Labão, e afastar-se para terras mais a ocidente com mulheres, filhos, escravos e rebanhos?
Combinou com o sogro que ficaria com o gado malhado, enquanto o pai das suas mulheres, Lia e Raquel, ficaria com o de uma só cor — ovelhas brancas, cabras negras. Aceite o trato, Jacó colocou varas nos bebedouros, às quais tirara partes da casca. Quando os rebanhos vinham beber e as fêmeas eram aí cobertas pelos machos, ao emprenharem com os olhos postos nas varas às manchas vinham a ter crias malhadas. Pelo contrário, quando Labão quis um trato inverso, Jacó colocou nos bebedouros varas de uma só cor; e as crias passaram a nascer, maioritariamente, de uma só cor. Com este estratagema, obteve Jacó um rebanho muito maior do que o do seu sogro, para glória do Senhor.
Assim também Rúben esperava vir a ter um rebanho de filhos apreciável e não lhe era difícil imaginar-se um patriarca bíblico. Se Jacó, com duas mulheres e duas escravas tivera doze, quantos poderia Rúben vir a ter, com tanta mulher na comunidade? A Bíblia continha todo o saber do mundo, todas as soluções, para glória do Senhor e dos que O seguiam. Aí vinha ela de novo em auxílio do abençoado servo do Senhor.
A pregação de Rúben alterou-se subtilmente; passou a enaltecer a vida de família, a bênção de uma prole, a excelsa graça de continuar-se nos filhos. Passou a ser mais permeável a aproximações de irmãs menos apetecíveis, desde que em idade fértil. Só tinha dois preceitos incontornáveis: não usar preservativo, ou furá-lo previamente; e colocar sempre uma peruca negra, argumentando que queria imitar o Senhor, tanto quanto possível. Se a técnica resultava com as ovelhas e as cabras de Jacó, com certeza que também resultava com o rebanho do Senhor.
Muitas gravidezes depois, algumas das quais tinham constituído autênticas impossibilidades nas contas de cabeça das neo-grávidas, mas que Rúben se encarregava de encorajar, por serem certamente a vontade do Senhor, começou a perceber-se que estavam a nascer vários bebés ruivos. Surgiram dúvidas, interrogações, tentativas de explicação: Influxo transcendente trazido pelo inspirador pastor? Sinais de algum evento miraculoso? Alteração somática induzida pelo estado de beatitude alcançado no local santo da igreja?
«Não devem ter conseguido tirar da ideia a cor forte do meu cabelo», presumia Rúben, surpreendido.
Quando já se tornava difícil atribuir a singularidade capilar a causas metafísicas e antes que o seu rebanho em disparada o dizimasse, Rúben pediu à hierarquia transferência para a Escócia, terra de ruivos, onde certamente seria mais fácil continuar a espalhar a palavra do Senhor e a aumentar a Sua Igreja.
Joaquim Bispo
*
Imagem: Bartolomé Murillo, Jacó põe as varas ao gado de Labão, c. 1660–1665.
Museu Meadows, Dallas, EUA.
* * *
terça-feira, 23 de março de 2021
DORES E AMORES
Ajeitada na velha
cadeira colocada na calçada da pequena hospedaria que administra, Carminda observa
a noite que cai. O costumeiro xale a lhe cobrir os ombros, os pés metidos em
sapatos de pano, aspecto que em nada lembra a menina cheia de ideias que foi um
dia. Desolada, de cabelos brancos, opacos, olha o movimento rotineiro das
pessoas da vila. Em intervalos longos, os carros passam. Lentos. Mas, mesmo
assim, a poeira da rua pouco cascalhada incomoda os olhos. Acende um cigarro,
contrariando a ordem médica. Não quer saber. Atingiu uma idade em que apenas
atende as próprias vontades. As mais simples. Para as outras, já não há espaço.
Sonhou tão alto. Não
foi infeliz, mas deveria ter nascido num mundo mais avançado. Sentia-se adiante
no tempo. Aquele lugarejo tolhera seus horizontes. Traz tanta coisa no peito,
tanta fala engolida, mas, ali, nem as opiniões podiam ser externadas. Ela sempre
foi diferente, ninguém compreenderia. Só o marido, companheiro dos voos
sonhados. Voaram, ainda que só em pensamento.
Pensa nos pais. Estrangeiros,
fascinados pela promessa de conquistas aqui, nesta terra, cruzaram o oceano a
bordo de um navio apinhado de esperançosos, desembarcando em Santos, no ano de
1918. Na bagagem, força de trabalho e sonhos. Prosperaram. E testemunharam que conquistas
não são apenas riquezas. Foram felizes, ainda que por pouco tempo, mas foram.
Tiveram duas filhas: Angelita e Carminda. Lindas, saudáveis. Certamente, as
maiores vitórias.
Época de grandes
epidemias, a mãe, de início, resistiu a um acometimento, mas não teve a mesma
sorte quando enfrentou a escarlatina. Dias e dias de delírio, febre insana. Não
resistiu. As meninas entravam na fase da adolescência. O pai, caixeiro-viajante,
sem alternativa, internou as meninas num famoso colégio que ficava na Capital.
Instituição renomada e dirigida por religiosas.
De início, tudo foi
assustador. A falta da mãe, do quarto, da casa, das refeições alegres, das
brincadeiras, das histórias contadas antes de dormir. Mudança difícil para ser
assimilada assim, bruscamente. De repente, tudo passou a ter horário fixo,
inflexível. Diferente da complacência da mãe. Não havia possibilidade de
alterar nada, absolutamente nada, apenas seguir em frente.
Adaptaram-se ao
internato. O requinte do ensino era prioridade da instituição. Era oferecido,
além do estudo acadêmico, um leque de atividades. Aprenderam: costura, bordado,
pintura, culinária, boas maneiras. Inteiraram-se da literatura, eram leitoras
vorazes. Dedicadas, interessadas, exemplares, não foi difícil conseguirem uma
convivência amistosa.
Aos domingos, quando
não estava viajando, o pai sempre as visitava. Conversavam, ganhavam docinhos,
balas. Alegria nas chegadas, tristeza nas partidas. E os anos se passavam. Para
as meninas, o internato era de janeiro a janeiro. Não iam para casa nem mesmo
nas festas de final de ano. Aliás, não havia casa. Com o tempo, o pai decidiu
vender o imóvel. Morava em uma pensão. Além de menos oneroso, era muito menos
solitário. A casa era povoada de recordações, ele não conseguia lidar e
conviver apenas com lembranças. Queria a vida, lutaria até seus últimos dias
pela educação das meninas.
E lutou. Mas o velho
coração, num ataque fulminante, interrompeu a batalha. As meninas ficaram
chocadas quando um parente distante apareceu no internato. Sem meias palavras,
a verdade foi contada. E a dor foi infinita. Choraram, silenciosamente.
Angelita era a mais velha, mas ainda não era adulta. E assim, por determinação
do tio, que mal conheciam, foram obrigadas a deixar o internato. Foram morar numa
vila do interior. Distante, muito distante da Capital. Viajaram quase dois dias
para chegar à nova morada. O tio era comerciante
de calçados, casado com uma senhora muito refinada, prima de Santos Dumont. Não
tinham filhos. A esposa, inconformada de morar naquele fim de mundo, vivia em
constante litígio com o tio. Não demorou muito, a vontade da mulher venceu a
demanda e se mudaram para Minas Gerais. Mas deixaram para trás as duas meninas.
Elas nunca souberam o
que foi feito do dinheiro do pai. Foram deixadas ali, sem eira nem beira.
Sozinhas. Através de ajuda de um e de outro, Angelita conseguiu uma sala para
dar aulas, espaço cedido pela prefeitura. Ganhava uns trocados. Carminda
bordava enxovais. O serviço era de tamanha perfeição que em pouco tempo
conseguiu encomendas até mesmo das grandes cidades. Um primor.
Ainda procurando
adaptação, receberam a notícia de que precisariam desocupar a edícula da casa
do tio, onde viviam. Os novos proprietários iriam utilizar aquela área. E então
foram acolhidas por uma prostituta. Passaram a viver em dois cômodos locados a
preço simbólico e as duas continuaram trabalhando.
Angelita conheceu Samir.
Apaixonaram-se. Depois de vários meses, ficaram noivos. Havia muitos planos
para um futuro próximo, preparavam o casamento. Então, apareceu na cidade um
engenheiro mecânico alemão, homem bonito, loiro e de misteriosos olhos azuis.
Chegara para programar o serviço de abastecimento de água na cidade, expandir a
área de distribuição. Assim que botou os olhos nele, Angelita perdeu a paz. Foi
um amor tão arrebatador que não havia como controlar. De ambos os lados.
O noivado com Samir
acabou. O forasteiro era casado, morava na Capital. Não escondeu, não mentiu. Angelita
sabia que havia outra família, mas não se importava. Não demorou nada,
engravidou. Para os moradores, foi um flagelo. Os alunos, aos poucos, foram se
afastando até que a prefeitura não mais permitiu o uso da sala. Passou, então,
a ajudar a irmã nos bordados.
Com a gravidez, o
engenheiro abandonou a outra família, o casamento acabou. Quando a criança
nasceu, Angelita estava muito debilitada. Quase não conseguia amamentar a
filha. Era visível o esmorecimento do corpo, a prostração que acometia a mãe.
Começaram as febres noturnas, o suor abundante, a inapetência, a tosse. A
tuberculose foi diagnosticada. As poucas pessoas da cidade que falavam com ela,
afastaram-se. Até mesmo o pai da criança deixou de visitá-la. E partiu...
Angelita era cuidada
pela irmã e pela prostituta. Revezavam-se nos cuidados com a mãe e com a filha.
A menina recebeu o nome de Lenita, e quando completou um ano, a mãe sucumbiu.
Não resistiu ao mal.
Carminda ficou com a
menina e cuidava dela como se fosse sua filha. Era tanto amor, tanto carinho,
tanto desvelo. Quando a tomava nos braços, sentia que o coração que batia ali
era também de Angelita.
Samir assistira a tudo,
distante. Como sofreu com a morte de Angelita! E não escondeu. Conversava
longas horas sobre isso com Carminda. Afeiçoou-se à menina, sentia-se próximo.
E a criança retribuía. A convivência, intensificada dia a dia, foi trazendo uma
sensação de família, de aconchego. Não seria possível dizer que entre eles
havia um sentimento arrebatador, mas havia amor, algum tipo de amor. E assim,
os dois passaram a viver juntos. Os três. Na casa, os móveis eram de caixotes.
Os vestidos da menina, mesmo feitos de sacos de farinha, eram lindamente
bordados. Lenita tinha beleza angelical. Amada, muito amada.
A mãe de Samir,
comerciante de roupas e calçados, ofereceu parceria em uma filial que seria
aberta numa cidade próxima. E foi um sucesso. Os dois, numa união serena, cheia
de carinho, de respeito, conceberam um casal de filhos. Eram três riquezas.
Lenita herdou o amor pelos livros, lembrava a mãe. Aliás, era a figura da mãe.
A mesma beleza, a mesma altivez, a mesma força. Meiga, agradecida. Casou-se e
foi imensamente feliz... Assim como os outros filhos.
Samir e Carminda
mudaram de ramo. Adquiriram a hospedaria e moravam ao lado, parede-meia. Ela
continuou com o trabalho das agulhas, uma artista. Lia vorazmente.
Era serena...
− Já é tarde, a noite
está fria, vamos entrar... – Sente a mão delicada de Samir pousar em seu rosto,
com a mesma suavidade da vida toda. Foi feliz, é feliz...
Amparada pelos braços do
parceiro, caminha em direção à porta. A noite está realmente fria. Sente-se
exausta. Sabe que é chegada a hora de descansar...
Regina Ruth Rincon Caires
sábado, 20 de março de 2021
METADES
Somos Thales e Tadeu. Digo “somos” porque viemos gêmeos univitelinos
e assim percorremos os primeiros anos com as mesmas feições, o mesmo andar,
as mesmas roupinhas, o mesmo terninho, as mesmas meias três quartos,
as mesmas gravatinhas borboleta. O mesmos topetes de Gumex.
Ainda crianças, levamos a mesma porrada. Perdemos nossa mãe,
nosso pai endoidou e deu um tiro na boca, e nos dividimos na vida.
Eu fui pra Barbacena para casa de uns tios, onde mais crescidinho entrei
para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, enquanto meu irmão ensaiava
no Rio, morando com primos distantes, os primeiros estudos de Medicina.
Nunca mais nos vimos. Pouco nos sabíamos.
Até que apareci para assistir à final Brasil e Uruguai da Copa de 50 no Maracanã.
Fiz questão de convidar meu irmão para ir comigo. E fomos. Depois de tantas vidas
dispersas, não nos reconhecíamos mais como gemelares crianças que fomos,
sem identificação alguma que houvesse perdurado. Ele ainda usava Gumex. Eu não.
Quando Ghiggia fez o segundo gol do Uruguai, colocando a alma brasileira na lona,
houve um silêncio de doer os ouvidos como se tivessem enfiado um cotonete de arame.
Soluços explodiram ao nosso redor. Acabou o jogo, o povo foi saindo devagarinho.
Lembrou o cortejo da mamãe.
Foi neste momento que meu irmão, impassível, tirou um limão do bolso, descascou
com os dentes e começou a chupar. Chupou, chupou, chupou, até chegarmos sem trocar
palavra na casa do primo distante onde ele morava, perto do Maracanã.
Um trauma. Mas não tão aflitivo quanto à curiosidade que começou a me perseguir
e nunca tive coragem de perguntar: por que chupar limão?
Eu virei piloto de avião, larguei a caserna e fui para os Estados Unidos
treinar em Constellations – voltei direto para a cabine de um deles da Panair.
Meu irmão formou-se em Médico Legista. Mesmo à distância, sabia por fontes
confiáveis que ao chegar em casa depois de uma jornada dissecando defuntos,
danava a chupar limão.
Enquanto eu flanava mundo afora, conferindo de fato o mapa mundi da parede
da escola, não tinha tempo para conviver com ele. Na verdade, não tinha
tempo para ele. Mas sabia de seu casamento, do casal de filhos e do casarão
na Tijuca, que comprou de tanto escarafunchar os mortos com extrema habilidade.
Virou diretor do IML. Mas nunca deixou de chupar limão.
Quando a filha deu desgosto, se enrabichando com um sujeito de cabelo crespo,
meu irmão passou a chupar limão no café da manhã. Quando as brigas com a mulher
atingiam os píncaros da insanidade, trancava-se no banheiro e chupava limão.
Quem me contava essas coisas era uma amante que tinha no Rio, uma psicóloga
bem mais nova que eu, a tal fonte confiável, por acaso do destino, vizinha
do casarão do meu irmão. E como vizinha, amiga da família dele, sem que nunca
revelasse a nossa clandestinidade. Nunca falou de mim para meu irmão, mas
sobre ele, dizia que vivia chupando limão.
Minha formação militar, objetiva, técnica, metódica e cartesiana não me deu
margens a pensamentos profundos. Mas minha amante defendia que meu irmão
compensava as agruras da vida chupando limão. A acidez cítrica extrema lhe
provocava um alívio, por encontrar entre a língua e o céu da boca algo mais
ácido do que os piores momentos que a vida oferecia. E assim ia vivendo.
Talvez fosse isso, não sei. Sou bom em aterrissagens, decolagens e não em
interpretações, subjetividades e diagnósticos de psicólogos.
Numa manhã cheguei de Paris e, como de costume, fui para o Hotel Novo Mundo
no Flamengo encontrar minha amante. Ela chegou muito atrasada, esbaforida e
me veio como uma notícia: “seu irmão acabou de morrer de infarto, debruçado
em cima de um cadáver no Instituto Médico Legal”. Horrível.
Imaginei um corpo sobre o outro.
No velório não consegui chorar. Olhei o rosto céreo do meu irmão, vi minha
cara com algodão no nariz. Mas nem a lembrança de nós meninos de gravatinha
e meia três quartos mexeu com minhas entranhas. Cumprindo protocolo, abracei
os filhos e consolei a viúva, agradecendo seu último esmero em pentear o cabelo
do marido morto com Gumex. Nem uma lágrima me veio. Nem nó na garganta.
Nem quando o caixão baixou sepultura.
Saí do cemitério do Catumbi sozinho, minha amante achou por bem não me acompanhar.
Peguei um taxi que me deixou numa feira. E comprei uma dúzia de limões.
sexta-feira, 19 de março de 2021
Ela
Ela, nem bem se sentou, pediu uma água com gás.
Absolutamente, não sou capaz de adivinhar as suas vontades. Cheguei a desistir
em tantas oportunidades… Quando me chamou para o bar do Silva, tentando prever
as consequências, tomei logo um protetor para o fígado, já que nos últimos dias
não venho me sentindo bem; enjoo com facilidade. Na mesma toada, confuso, pedi
uma água com gás. Então, ela me interrompeu e jogou a interjeição: “Ué, uma
água com gás? Tão previsível”. Tive de me rebolar para expressar que não era
uma mera repetição. “Parece que você percebeu que não posso beber. Estou ruim
do estômago”. “Ah, Fagner, lá vem você com coitadismo. É isso, quer me chantagear,
de cara?!”. Nada. Falava ingênuo, até de certo modo abobalhado. Estava, sim, surpreso
em encontrá-la, frente a frente, depois de tantos percalços. “Você devia ser
mais honesto consigo mesmo”. Enquanto eu elaborava o encontro, ela soltou, como
sempre, a provocação. “Não, por favor! Não queira levar a conversa para outro
lado. Se estou aqui, é para resolvermos nossa situação”, falei. “Pois, para
mim, está resolvido. Você que entende tudo errado. Gosto de você. Mas é aí que
mora o perigo; se não declarar milimetricamente a palavra certa, você me
interpreta mal e tudo desanda para o amor infantil. Carinho, entende? É isso”.
Ela havia me salvado, como em outros momentos, do enfado do horário de almoço,
quando deveria estar com o grupelho de gananciosos da firma. Por isso, pensei
que o fato de mudar, alterar o roteiro, e estar com ela, já valia muito, e não
persisti em questionamentos baldados. “Bom, é o seguinte: te chamei aqui para
dizer que vou voltar para a minha terra (Que terra? O local que nunca revelou).
São Paulo é uma cilada; um engano para mim. Já era!”. Não. Não era possível. “Como
assim? Você mora aqui há, sei lá, uns dez anos, tem emprego estável, casa e
tudo mais. Por que essa decisão precipitada, agora?”. A verdade é que, desde
que nos separamos, nutria um desejo incontido, velado, de reatar o relacionamento.
Brigamos por bobeira, coisa pouca; não era motivo para a partição definitiva. “Fagner,
vou ser bem sincera…” – virou o rosto; deixou-o pender sobre o tronco, olhando
para a mesa. “Saber que você está por perto é a dificuldade com a qual não sei
lidar. Você não se resolve; não se emenda; o trabalho é um fiasco; a sua vida é
um caos. E fico pensando: será que tenho parte nisso? Não posso ser atormentada
pela dúvida. Devemos seguir!”. No imediato instante, respondi que não. “Não!
Você não tem nada a ver com as minhas questões pessoais. Se estou aqui; se
estou inundado em dilemas, foi culpa minha. Não se sinta responsável por isso.
Pelo contrário, você me ajudou em muitos pontos a ser melhor; a enxergar a
desolação que me compromete. Eu que não fui capaz de superá-la. Se for embora,
que seja por outra razão, por favor!”. Ela pegou um bilhete amarrotado da calça
e me entregou; deixou uma nota de cinquenta na mesa e saiu. Ela tem uns ímpetos
que não sei distinguir para que lado devo ir. Com o volume de gente, focado na
minha descomunal timidez, não consegui interromper o curso. Ela se foi
deslizando, muito segura, por entre as pessoas, e se misturou até não ser mais abrangida
por minha visão míope. Gerson, o garçom que invariavelmente nos atende – claro,
só havia dois; e Gerson era responsável por aquela mesa –, perguntou se queria
algo, se não iria almoçar. Pedi um café e um pão na chapa, para ludibriar os
espaços vazios. Comecei a debulhar o conteúdo da carta. Nela, há um começo
peculiar, que me dobrou os sentidos: “Você é uma pessoa especial, saiba disso.
Mas eu não tenho forças para continuar no papel de mãe, de protetora, que, nos
aperreios, vem lhe socorrer. Estando aqui, mesmo que distante, ficaria
preocupada, arranjando meios para lhe salvar. É preciso cortar o cordão umbilical,
entende? Você já é grande o suficiente para dar conta disso tudo que fez. Eu,
onde estiver, rezarei por você; para que vença o que não pode ser. Procure
ajuda. Procure se tratar…”. Ela, felizmente, acionou o gatilho: preciso ajustar
as conexões, que me confinam no lugar da inépcia, da paralisia abstrusa. De uma
vez por todas, por ela, vou procurar ajuda… Talvez ela esteja blefando e não voltará
para a sua “terra”. Não tem para onde ir… É isso. Ela me ama! Ela vai encontrar
um novo homem, o Fagner de cabeça erguida, são e salvo. Serei para sempre dela.
Que seja, vou procurá-la nos confins da existência.
quarta-feira, 17 de março de 2021
Janela aberta - um conto de Fátima Brito
JANELA ABERTA
“Ele tinha o sol em suas entranhas.” (Pablo Picasso)
Um choro escapou pela janela do quarto. Eu era então muito jovem, ainda nem tinha dezoito. Era do bebê que encantava a vizinhança quando saíamos a passear pela rua. Era o meu bebê, sempre rechonchudo e macio desde o primeiro dia quando escorregou do meu ventre, aninhando-se em meus braços e eu pude sentir aqueles fiapos loiros acarinhando as ideias que ele um dia viria a ter.
Um choro escapou pela janela do quarto. E eu de novo o olhei e apanhei seu choro e o fiz riso e cantei-lhe a mesma música de ninar e sorri com ele imaginando o dia em que ouviria sua voz cantar. Desde o primeiro dia em que nos vimos, sempre o aninhei. E ele falava comigo. Falava mudo, sem dizer palavra, com a boca cheirando puro leite. Seus olhos brilhavam muito mais que todos meus sonhos juntos e diziam-me só beleza.
Braços estranhos aos meus nunca tinha experimentado. Ele dormia com o narizinho afundado em meus cabelos e eu ouvia sua respiração leve dizendo nana nana nana. Eu passei a dormir em paz.
Pela janela daquele quarto só eu aparecia, sempre acompanhada por ele, que foi se tornando um menininho alegre, magrinho como eu. Não tínhamos pai. Ambos os pais tinham morrido pra nós. Eu e ele formávamos aquela família e os dias iam correndo como corria meu menino pelos cômodos da casa grande em que me deixaram abandonada, achando que não resistiria. Resisti. Por ele. Pelas palavras que um dia ele me diria, algumas em sagrado segredo. Por nossos sonhos. Ele também sonhava por mim.
Me fiz mãe e irmã e pai e irmão e vó e vô e também me fiz primos e o fiz feliz, plantando o sol em suas entranhas e expelindo de minha vida a escuridão. Ele era minha lembrança e minha esperança e tudo foi fluindo até que.
Ele voltou e se instalou ali. Ele voltou e se instalou ali, desestruturando nosso território com seus cheiros, chacoalhando nosso ninho com seus passos de gigante desorientado.
Eu não queria e chorei e gritei pra vizinhança toda ouvir, mas todos se fizeram surdos, afundados na indiferença, preocupados com suas próprias e mesquinhas lutas. E o meu menino não dormia mais com o narizinho em meus cabelos e ele foi parando de correr alegre pela casa e quase não mais aparecia na janela, que agora permanecia fechada.
A casa foi mofando, parecia tão velha com aquelas teias se formando mais rápido que minha habilidade em exterminá-las. Um cheiro inconfundível foi tomando o ar e até aquela rachadura que eu nunca tinha visto apareceu, enfeiando a parede do berço que nunca tinha abrigado seu corpinho, sempre alojado ora em meus braços, ora em minha cama, ou correndo com o vento pela casa, espalhando a fina poeira. Eu temia que o sol em suas entranhas deixasse de brilhar. Então me fiz muda e, em uma das tantas noites de insônia, tramei meu plano.
Quando o vi nocauteado pela cocaína misturada com o conhaque que parecia inebriar o pequenino, fazendo-o dormir sem sonho em um colchãozinho ao lado da cama de casal, ousei abrir a janela. E a imagem do revólver invadiu-me como a luz do sol. Há muito não via nada mais claro em minha mente.
A arma repousava inútil, aninhada entre os livros da biblioteca. Ela era muito grande, tão grande que eu não conseguiria segurar. Mas poderíamos os dois carregá-la. Suas mãos macias, ainda que só acostumadas aos carinhos, bem poderiam me ajudar. Então, eu faria o resto. Miraria bem no centro. E apertaria com gosto. E o sangue escorrendo quente seria minha senha e me faria voltar a cantar canções de ninar e a nanar. E eu lhe diria: meu pequeno e corajoso guerreiro.
Fiscalizei o céu sem estrelas e olhei com ódio as janelas fechadas que cercavam nossa casa. Cuspi com gosto e minha saliva grossa deve ter atingido alguma flor.
Dormi e sonhei. No dia seguinte, saí bem cedo pra comprar as balas. Uma só bastaria, mas eu preferia me precaver. Ele merecia pelo menos quatro, uma pra cada ano de abandono.
O sol estava firme. E as janelas dos vizinhos já estavam todas escancaradas. O cheiro de manhã me alegrou e consegui sentir o cheiro de nossa casa sem mofo. Antes de voltar, compraria uma tinta bem alegre e contrataria os serviços de um pintor. Não queria o mofo nem a rachadura. Passo apressado do tamanho de minha agitação. Tropecei em alguns vizinhos e não lhes dei bom dia. Minha magreza ocupava todos os espaços da rua onde só havia olhos pra mim. Eu antegozava o prazer do sangue rolando até o corpo restar pálido e ser examinado pela polícia.
A dose de cocaína seria mais alta que a de costume, a de conhaque também. E eu, chorando, contaria “tentei evitar, tentei, gritei, pedi socorro, mas nenhum vizinho me ouviu!”. Eles me olhariam penalizados com minha dor. Cobiçariam minha magreza e juventude e a cor dos meus olhos. E eu os faria vermelhos de vergonha pela indiferença indesculpável com que haviam tratado meu desespero. “Ele não tinha mais como pagar, estava consumindo muito e os conhecidos não queriam mais esperar pra receber; eles não acreditavam que ele teria como acertar o que devia... Eu avisei, desde o começo eu avisei, avisei que o amava e que aquilo não era certo com a gente... Não era certo com nosso filho... Tão pequenininho, tadinho...” E choraria mais, choraria com verdade e, quase sem conseguir conter os soluços: “Ele não quis me ouvir...”
Então, eles olhariam entristecidos, mas conformados, meu menino dormindo no berço. Pela primeira e última vez, ele dormiria ali, alheio a tudo, sem sonhos, embalado por aquele comprimidinho que eu dissolveria em seu leite. Suas mãos limpas no dia seguinte voltariam a brincar com carrinhos, correndo pela casa com o sol entranhado nas entranhas. Eu carregaria a arma sozinha. Minha raiva era bastante para. Não sujaria suas mãos com pólvora. Suas mãos destinavam-se para o sol e isso eu já tinha visto nas cartas muito antes de ele nascer.
O sol, o mago, a força, o mundo. XIX, I, XI, XXI. Aquelas cartas lindas, postas sobre a mesa com toalha e velas brancas na tarde em que sonhei com ele antes mesmo de concebê-lo. O vento era fraco e suave, cantando uma certeza. Eu sabia que conceberia o que de mais lindo estava destinada a conceber. E foi como se o universo todo caminhasse em mim, cada átomo entrando devagar como se pedindo licença até que não havia nada mais fora de mim. Assim o concebi. Só eu.
Quase feliz apressei ainda mais o passo mais firme que meus pés já tinham visto. Munição. Tinta. Pintor. Sonífero. O mesmo caminho de volta, mas sem tropeçar em vizinhos.
No jardim, minha saliva grossa parecia borbulhar sobre uma margarida.
Manuseei a chave com cuidado. Não queria acordá-los. Antes prepararia um café e me mostraria diferente. “Eu tive um sonho em que alguém me dizia pra te perdoar. Acho que era Deus. Era Deus que me pedia pra te perdoar, que você precisa de nós. Que você vai melhorar. Pronto. Vou te perdoar. Vamos selar nosso reencontro com esse café. Eu, você e o menino.” E, ele, com aqueles olhos agressivos e ao mesmo tempo distantes como se eu fosse uma ameba tentando uma comunicação impossível com um ser superior. Mas eles não me incomodariam porque eu sabia que a vida para ele, a partir daquele momento, não passava de uma contagem regressiva. Não duraria mais que vinte horas. Para mim, longas vinte horas.
Café pelando na chaleira, frios e pães sobre a mesa, subi eufórica. Era verdade, eu nunca tinha concebido um plano assim tão bom.
Contive a alegria e abri devagar a porta do quarto.
Caí ajoelhada. Contive o grito, mas não a convulsão de meu corpo que se manchou com o sangue ainda quente que escorria.
Seu corpo perdia a cor, que escapava pelos buracos da testa e do peito. Quem chegara antes de mim pra me furtar o prazer de uma última vingança? Rápido, percebi o risco. O medo tomou-me como uma chicotada impiedosa fazendo tremer toda minha espinha, arrepiando todos meus pelos, tirando-me o chão para nunca mais repô-lo. Desesperada, desviei meus olhos e vi o colchãozinho vazio! Temia encarar a verdade. Então, a porta fechou-se! Uma rajada de vento entrava pela janela que eu tinha esquecido aberta. Olhei na direção contrária e certifiquei-me daquilo que já imaginava: o berço também estava vazio. Completamente vazio.
Em desespero, levantei-me. Meu corpo liberava descargas como se entrando em transe, mas eu segui até a janela. Apoiei-me no parapeito e gritei com uma força que não imaginava ter. E continuei gritando pra que todos – e também o sol o mago a força o mundo o doido - sentissem minha dor. Mas de nada adiantou. Eles não fizeram nada a não ser chamar a ambulância. Mesmo anestesiada, debati-me o quanto pude até sentir o poder da roupa estranha com que me vestiram. Sem qualquer alternativa, segui para uma clínica. Apenas um consolo: no jardim a margarida crescia monstruosa.
Não sei bem quanto tempo passei naquele lugar. Nem quero saber. Só sei que meus passos nunca mais foram firmes, o medo os faz cada dia mais inseguros. Minha voz nunca mais foi capaz de gritar, nem de entoar canções de ninar e eu tenho passado cada um dos anos de minha vida a perseguir o enigma daquele início de manhã, a tentar descobrir o itinerário do destino de meu menino magrinho e ensolarado. E, ainda hoje, ainda órfã, com os cabelos embranquecidos, imagino que sua cabeça tenha acarinhado ideias brilhantes, que um dia chegarão a mim por meio de sua voz de homem.
Quase todo dia vejo reflexos nos espelhos da casa e algumas luzes que surgem de repente. Cenas de sua vida chegam até mim e agradeço ao universo por esses presentes. Mas quero mais, quero o desenho todo, quero a cena completa, aspiro à história inteira. Recorro ao tarô e espero, cada vez menos, sua voz pra me ninar e reafirmar aquelas palavras mudas, vivas, ressoando no passado. Penso que estou morrendo.
Do livro "Segredos e Prazeres", Editora Patuá, 2018.