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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Os autores da SAMIZDAT fazendo barulho por aí - agosto/2012


Cinthia Kriemler tomou posse, no dia 23 de agosto, de uma cadeira na Academia de Letras do Brasil - DF, tornando-se assim a primeira imortal a compor a equipe da Revista SAMIZDAT.

Em setembro, Maristela Deves, jornalista e editora-assistente da seção Variedades do jornal O Pioneiro, receberá o prêmio "Sou mais eu", da Associação Criança Feliz, por seu trabalho em prol das crianças de Caxias do Sul, particularmente na área de literatura infanto-juvenil.

Maria de Fátima Santos obteve o primeiro lugar, em votação popular, no concurso "Novos Talentos FNAC" de Portugal, com seu instigante e poderoso conto "José Augusto", que pode ser lido aqui.

Edweine Loureiro continua arrebatando sua coleção de prêmios literários ao redor do globo, como o segundo lugar no VII Concurso GPL e Concurso Sul Info de Minicontos, além de integrar uma Antologia em homenagem a Jorge Amado, da Fliporto e do 2º Concurso de Poesia "Pague Menos".

Rodrigo Domit também está fazendo bonito nos concursos literários e foi convidado a integrado o projeto Poemas no Ônibus e no Trem, promovido pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Ele também tem rodado o Brasil nestes últimos meses divulgando seu livro de contos "Colcha de Retalhos" (que pode ser adquirido aqui).

Mariana Valle, nossa editora de poesia, tem participado de vários eventos poéticos no Rio de Janeiro e, em 17/08, compôs o Painel em Debate: POESIA da Rádio Roquette Pinto FM (ouça aqui). Confiram também a entrevista que ela concedeu a Selmo Vasconcellos, na qual conta um pouco de sua trajetória como escritora.
http://orebate-selmovasconcellos.blogspot.com.br/2012/06/mariana-valle-entrevista.html 

Por fim, vocês podem conferir uma entrevista com Henry Alfred Bugalho, criador e editor da Revista SAMIZDAT, dada ao portal Ligados FM, falando sobre literatura, era digital, não-ficção e sobre sua produção literária.
http://www.ligadosfm.com/2012/08/12-entrevista-literaria-henry-bugalho.html





Poesias ao vento

Após uma postagem com dicas e outra com prosa, seguem agora duas pequenas poesias:

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Curiosa


Durante todo o outono

folheava displicente

todas as ruas do bairro



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Abafado


Quando vem a brisa

mesmo que se arrastando


as folhinhas comemoram

dando cambalhotas

pelo amplo calçadão



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domingo, 26 de agosto de 2012

Aprendizagens

Joana ria, os dentes certinhos à mostra. Tinha descoberto muito cedo, na face menos severa do pai e nos lábios menos descaídos da mãe, que aquela alegria desorientava quem a via e levava as pessoas a serem amáveis.
Portanto, Joana ria. Mesmo quando dentro de si tudo se encolhia e chorava, Joana ria; tinha aprendido muito bem a lição e nem tinha demorado muito tempo – aos quatro anos já Joana ria aquele seu riso especial.
Foi por causa disso que mesmo nos tempos difíceis e sem dinheiro para nada Joana tinha sempre preferido passar pior do que faltar ao dentista – os dentes tinham de ser brancos e certos se não o riso, em vez de atrair, repelia. Não há pior que dentes amarelos ou tortos a olharem para nós, cogitava ela.
A par do domínio exímio e cada vez mais fácil da técnica, Joana tinha também aprendido a reconhecer aqueles que dominavam outras técnicas de manipulação pessoal, como um sorriso quente com palavras agradáveis e inconsequentes; ela ia à luta e retribuía com o riso aberto e gargalhante que normalmente empatava a situação.
É muito difícil cortar sem piedade um riso aberto, com os dentes todos à mostra. Ela sabia, toda a vida batalhara dessa forma... Mesmo quando perdia, as perdas eram controladas pois quem ganhava tinha tendência a deixar uma pequena porta onde o riso podia ainda existir – é realmente muito difícil ao Homem aniquilar um riso aberto.
Joana não via o que o seu riso traía a honestidade, a franqueza de uma alegria genuína. Também não reparava no que ficava para trás quando ganhava alguma coisa; acreditava sinceramente que todas as pessoas o fariam, se pudessem – acreditava que só quem não pode não faz, seja o que for, desde que pessoalmente vantajoso. E Joana, com aquele riso especial, podia.
Na noite em que foi assaltada, Joana defendeu-se; disse isto e aquilo, riu-se com todos os dentes brancos e certinhos à mostra, tentou por todos os meios que conhecia trazer o ladrão à Humanidade que dominava.
Mas o homem estava demasiado sofrido, demasiado pisado, demasiado triste. Mesmo sem nunca ter conhecido a Joana, os olhos do homem reconheceram o riso de dentes brancos e os ouvidos do homem reconheceram o riso cristalino; toda uma fúria incontrolável tomou posse dele, o sofrimento a uivar por vingança, o homem cambaleou ao recordar os tempos em que tinha acreditado na vida, nuns olhos semiabertos e num riso largo e cheio; e a dor que o percorria era demasiada – o assalto era por um dinheirito para o jantar mas agora já só queria aniquilar a dor que lhe apertava o peito. A Humanidade em que Joana nunca pensara revoltou-se.
Joana morreu.
A polícia estranhou o riso aberto que o cadáver ostentava; isso mais o facto da carteira conter os 50€ que o registo do Multibanco demonstrava ter sido levantado à saída do emprego provava que o crime não fora por dinheiro.
Na morte, o riso de Joana traiu-a; continuam à procura de alguém que ela conhecesse.





sábado, 25 de agosto de 2012

Fado de Coimbra

Joaquim Bispo

Rosália tinha dezoito anos quando foi violada. Andava a apanhar lenha para casa num pinhal perto de Coimbra, quando um resineiro a agarrou. Mesmo que gritasse, de nada serviria, no ermo onde andava. Nunca contou a ninguém; guardou a mágoa para si.

Fernanda, filha de Rosália, tinha vinte anos quando foi violada. Era camareira num hotel de Coimbra; o patrão encurralou-a num dos quartos do terceiro andar, ameaçando-a de morte se gritasse. Não fez queixa dele, com receio da exposição pública. Guardou a revolta para si.

Vanessa, filha de Fernanda, tinha vinte e um anos quando foi violada. Era estudante universitária em Coimbra; foi atacada por um colega do mesmo curso, ao anoitecer, e obrigada a entrar numa casa em obras sob a ameaça de uma faca. Não teve oportunidade de denunciar o atacante porque ele cortou-lhe a garganta no estertor final da violação.

O acontecimento comoveu toda a cidade e milhares de pessoas acompanharam a rapariga à última morada. Há muito que não se via tão deslumbrante mar de lenços brancos a acenar. Na hora da despedida, Coimbra tem sempre mais encanto.





sexta-feira, 24 de agosto de 2012

MICROCONTOS TEMÁTICOS DE EDWEINE LOUREIRO – PARTE II

Olá, amigos! Dando continuidade a nossos microcontos temáticos, trago, hoje, mais três narrativas, baseadas no seguinte provérbio árabe:
Lar, doce lar... que escondes todos os meus defeitos!

Boa leitura!
Edweine Loureiro
*
DESPEDIDA

Sobre o caixão do cunhado, depositou as flores e as lembranças de um amor adolescente.
***

O CLÃ

Olhou o copo contendo o veneno, e lembrou-se, repentinamente, dos momentos com a família: o pai trazendo-lhe um presente; a mãe velando-lhe o sono; o pai embriagado, quebrando o presente; a mãe, num ataque de nervos, espancando os dois filhos; o pai, preso; a mãe, internada num hospital psiquiátrico…
E, suspirando, bebeu o veneno.
***

SEGREDO

Disse-lhe ao ouvido: Te amarei para sempre. És e sempre serás o único homem de minha vida, papai…    
***





quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Andar de bicicleta


Eu queria escrever uma crônica que emocionasse as pessoas, que falasse de amor, falasse de sonhos, mas eu não sei falar de amor. Um dia escreverei sobre relacionamentos, sobre o amor, mas não será hoje. Hoje falarei sober andar de bicicleta.

Eu não lembro a idade que eu tinha quando ganhei a minha primeira bicicleta, mas lembro perfeitamente dela. Era uma caloi cross azul, com uma placa branca na frente, como se fosse placa de competidor; tinha o guidon torto e uma proteção com espoja para proteger de acidentes. Nunca adiantou de nada aquela proteção. Hoje sei que a utilidade daquela esponja é a mesma de um para-quedas estragado. Mas eu gostava da minha caloi. Ela significou muito para mim. Aprendi muito com a minha velha Caloi.

Antes de andar de bicicleta eu cai muitos tombos e algumas vezes cheguei mesmo a desistir de andar de bicleta porque eu achava que nunca conseguiria. Naquela época meu irmão tinha uma moto e eu adorava andar de moto. Um dia, quando eu já tinha colocado a bicicleta em um canto da casa e desisitido de aprender a andar ele me disse 'se você quiser andar de moto precisa aprender andar de bicicleta'.

Eu queria muito aprender a andar de moto e então eu resolvi tentar aprender a andar de bicicleta novamente. Eu não sabia o porquê, ms eu precisava aprender. Em cada tombo eu lembrava das palavras do meu irmão e tentava novamente. Aprendi a cair e a levantar, muito antes de aprender a andar. E sem perceber eu aprendia o que era persistência, o que significava seguir em frente. Eu tinha uma motivação maior. E continuava tentando.

Mais do que andar de bicleta eu aprendi a cair. E mesmo que eu ouvisse meu pai ou meu irmão dizendo 'não foi nada'. Era canela arranhada, joelho esfolado. E eles sempre dizendo que não era nada, para mim significava dor, mas eu engolia o choro e tentava. Hoje eu acho que eles sabiam o que diziam. Aquele nada, não era que não era realmente nada. Era mais como se eles tentasse me dizer com poucas palavras que diante de algo grande, algo que você realmente queira, um obstáculo aparentemente intransponível, um tombo não significam nada. Você precisa levantar e tentar novamente.

Mas por que continuar com algo que dói? Não sei, mas a gente continua insistindo em algumas coisas. Acho que quando a gente realmente quer algo, precisa superar a dor e seguir em frente. No final, as dores e os tombos lhe tarão a coragem e o aprendizado para você superar os seus desafios e alcançar o que realmente desejamos.

Eu continuava caindo, mas não foi só a motivação de um dia andar de moto. Começou a crescer algo em mim, algo mais forte, uma teimosia. Era como se a bicicleta e mundo dissesem para mim 'você não vai aprender, não vai conseguir andar de bicicleta'. Aquele pensamento começou a me revoltar. E então só porque eu não conseguia, só porque eu não tinha, eu queria. E eu tentava mais.

Começei a andar com as rodinhas. Primeiro com as duas, depois com uma, mas eu continuava caindo. Mas agora eu andava mais do que caia. Um dia tiramos a outra rodinha. E fui tentar a andar. Dei duas pedaladas e fui ao chão, os olhos encheram de lágrimas, mas eu enguli. Tinha vontade de jogar a bicleta longe. Tinha raíva dela, tinha raíva de mim por não conseguir andar. Não lembro se foi o meu pai ou o meu irmão, mas um deles disse para eu tentar novamente e que seguraria a bicicleta para que eu não caisse. Subi novamente com medo de cair novamente, mas aquela mão atrás dáva-me segurança, pedalei mais forte e lembrando que a mão estava lá. Então tomei coragem e pedalei maiis rápido, avançei alguns metros e parei. E quando olhei para trás, ouvi aquelas palavras Você conseguiu.

Não tinha mais a mão por uns bons metros, mas eu sentinha como se ela estivesse lá, me apoiando, dando me suporte para continuar.

Depois disso eu continuei caindo, mas não era porque eu não sabia andar. Eu caia porque queria ser mais rápido, porque queria pular na rampa; porque queria dar cavalhinho de pau. Eu cai porque queria mais. E percebi que o medo de cair que um dia eu tivera, ficara para trás. Agora era algo do tipo, o chão não é nada.

Eu não tenho mais a minha Caloi e poucas vezes eu penso nela. Poucas vezes eu penso como era andar de bicicleta na minha infância, mas lembro muito dos tombos e daquela tarde que andei os primeiros metros sem as rodinhas, apenas eu e a bicicleta. Mais do que andar de bicicleta, eu percebi que durante a jornada em busca desse aprendizado eu aprendi outras coisas, mas a que ficou mais eraizada na minha alma foi descobrir que eu tinha a persistência ou teimosia para seguir em frente.

E embora hoje eu não consiga falar de amor como os poetas eu guardo em mim, eu guardo em mim essa vondade de continuar tentando, de continuar aprendendo e talvez um dia eu escreva sobre o amor, mas não foi hoje. Hoje era o dia da bicicleta. 





segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Um homem forte

Altas horas night adentro. Átila dança no meio da pista com recém conhecida Paloma, 
que levanta os braços, joga a cabeça pra lá e pra cá, seus cabelos dourados esvoaçam,
formando esculturas estroboscópias que piscam ensandecidas. Paloma atraca em Átila
de costas. Sobem, descem, descem, sobem, esfregam-se glúteos, dorsos e lombares.
Braços tentam se encontrar em reverso, quase se tangem produzindo centelhas. 
O DJ liga o turbo. Paloma gira de repente, Átila acusa o golpe, que delícia mais doida,
tocam-se mãos ao alto, ela roça seu corpo contra o dele, ele oferece a cara máscula,
ela aceita, caminha com os lábios pelo rosto grego do homem forte e sarado,  mordisca
um lóbulo da orelha direita, desce a ponta da língua em riste percorrendo o contorno de
uma barba rente e bem feita.  O baticum contagia. Os narizes colidem levemente, ensaiam
um beijo, que desacontece: ela afasta a boca, sorri carrasca, olhos sádicos contra olhos
mendigos, ela finge que vai mas não vai, faz tremer o epicentro do rapaz, e cai na dança
novamente, deixando Átila um cachorro curvado que copula o ar em plena pista de luzes
lisérgicas. O som alto rege os instintos. Tudo cresce no corpo e na alma dos dois, até que
Paloma sonsa volta à carga e passeia suas mãos bem feitas pelas costas de Átila, como
se trouxesse para si a propriedade que acabara de tomar posse. Ele retribui o carinho
com mesmo passeio pelas suas coxas, quadris e  polpas, verso e frente, ousando levantar
o vestido justo e imiscuindo os dedos pelos entrepernas aveludado, que se entrega úmido,
morno e receptivo. Dane-se se alguém parou para ver. O que cabe neste momento é um
beijo explosivo, devido, entranhado. Nada os detém. Paloma dedilha a perna de Átila
e encontra algo volumoso abaixo da cintura, caindo enviesado e rijo pela esquerda. 
E esfrega a mão excitada, olhos fechados, bocas com bocas, até que de repente,
para e se afasta no meio da pista. "Que é isso, meu tigre?" Ele a traz para mais perto,
pega pelos braços e cochicha no seu ouvido. "Isso se chama tesão." Ela segue passando
a mão no volume. "Tesão que me dá tesão." Ele sorri maroto. "Você gosta disso?
Tem medo não?" Ela se derrete: "Não. Adoro. Isso me enlouquece."
Ruazinha bucólica, apartamento charmoso de Paloma. Adentra o casal sôfrego e
agarrado, uma matéria só, átomos em fusão. Ele tira a camisa, ela tira o vestido por
cima, fica só de calcinha, já que o sutiã foi junto. O minueto frenético ficou na boate.
O som imaginário agora é um "Je t'aime, moi nos plus", calmo e pulsante, que dita uma
câmera lenta eterna de gestos e tremores.  Ela se ajoelha de frente para ele, abre o cinto
e vê o que quer ver. Na cintura, entre o jeans e a cueca Calvin Klein, emerge uma
pistola Glock 9mm preta e provocante. Paloma geme. Segura no cano
como se fosse uma guloseima. Alisa, alisa, fecha os olhos, leva aos lábios e chupa.
"Tesão, tesão, tesão." Átila pega a arma e afasta de sua boca. "Tem coisa melhor para
você, isso é muito perigoso." Ela treme. "Quero tudo... duas armas... que homem é esse,
meu deus?" Os dois se jogam no sofá. Átila passeia a pistola pelos meandros secretos do
corpo de Paloma. Rasga a calcinha com a alça de mira, ela morde os lábios. Ele se coloca
entre suas pernas receptivas, que bailam em movimentos ondulantes, sincronizados, crescentes,
vigorosos, meigos e ferozes ao mesmo tempo. Ela goza com a pistola no rosto, passando
a língua na coronha, beijando Átila e dando graças aos deuses por acoitar um macho tão
forte, de calibre duplo e sensações múltiplas.
Nus na cama, pausa para repouso. Ela molenga refestelada sobre o peitoral atlético
do parceiro, que aponta a pistola para o alto e admira o brinquedo: "Glock 9mm automática
de repetição. Se quiser tem silenciador." Ela é debochada:  "Vai me matar sem ninguém ouvir?"
Ele é fofo: "Que é isso, gata? Isso aqui nunca matou ninguém, só defesa. Às vezes, um
sustinho em quem se mete a besta comigo. No trânsito, na night, na vizinhança."  Ela é
curiosa: "Você tem porte de arma?"  Ele explica:  "É do meu pai. Quando saio, ele me
empresta. Ninguém tira onda pra cima de mim." Ela monta súbita sobre ele. Vai cavalgar.
E ronrona gostoso: "Você disse que é Glock 9mm de repetição... então, tá na hora de repetir."
Fim do intervalo. Os dois riem, se grudam e partem para o segundo, terceiro, quarto atos.
Átila deixa o apartamento sozinho antes do sol raiar. Sonolento, exaurido, cheirando
à Paloma entre os dedos, caminha levitando em direção ao seu Cherokee. Aperta o
controle da chave do jipão e não se dá conta que tem companhia. "Perdeu, playboy!" 
"Entra no banco de trás sem chilique." "Mas antes, vamos apalpar esse corpinho macho."
Três vozes sinistras. Três armas apontadas a uma mesma cabeça. Três rostos escondidos
sob bonés e óculos escuros em pleno breu. Átila petrificado com as mãos sobre o carro
se deixa revistar. Um dos bandidos tira tudo dos seus bolsos: carteira, celular, dinheiro,
chave e um surpreendente e maravilhoso bônus. "Olha isso aqui, mano!"." Uma Glock
novinha, chefia!"  Átila leva um cachação. "Você é policial ou é otário mesmo?"
Átila nada diz. "Só pode ser federal, mano. Filhinho de papai não anda com uma dessas."
A ruazinha bucólica deserta e a escuridão favorecem à movimentação relâmpago. Átila
apaga com um cruzado de direita e duas coronhadas.  É jogado no porta malas,
dois dos bandidos montam com os joelhos sobre ele. O terceiro zarpa com o carro
pelas ruas fantasmas. Sem serem incomodados pelas patrulhas indolentes, chegam,
enfim, a um descampado baldio. Nem um grilo, nem um sapo, nem um barulho de vento. 
"Tá vivo, mano?"  "Tá respirando, chefia." No chão, entre duas árvores secas, Átila é
despido de bruços, com solenidade e requinte. A camisa Armani amarra seus braços
pelas costas. O jeans e o cintos Diesel prendem seu pés, um em cada tronco, fazendo
da vítima um Y em decúbito dorsal. A cueca Calvin Klein é embolada garganta a dentro,
vai que ele acorda e grita. O chefe manda. "Traz o kit felicidade." Átila ameaça gemer.
Tenta levantar a cabeça, abre uma fresta de olhar e vê o mundo invertido. O chefe é
compreensivo. "Tá vivo, federal? Então presta atenção. Isso aqui é um negócio.
Você trocou sua Glock 9mm das Forças Armadas por esta arma aqui, ó, ó, olha o
que está escrito: Manufatura de Brinquedos Estrela." Um comparsa é piedoso:
"Repara só, fedegoso, raspamos a alça de mira para não machucar você."
O outro comparsa é benevolente:  "A gente é legal com policial." O chefe prossegue:
"E vamos botar essa camisinha lubrificada com KY no cano também
pra não machucar você. Não vai doer nada, são só 12 centímetros até o tambor."
A providência divina faz Átila desmaiar. 
O sol já está a pino, a brisa sopra quente, as varejeiras rodeiam assanhadas e
os urubus revoam em tocaia, quando Átila começa recobrar os sentidos.
Confuso, atordoado, sedento, imobilizado, com a cara grega na terra batida,
gosto de sangue seco na boca, dormente, doído, ardido. Ouve um burburinho
de vozes curiosas, histéricas, apavoradas, perplexas em sua volta. Tenta gritar
por água e socorro, mas só consegue um choro fino e baixinho.
Pensa em Paloma. Pensa que ela nunca pode saber disso.





sábado, 18 de agosto de 2012

A ARTE QUE VEM DA RUA


Otávio Martins

Quando entrei no Café Aquarius, juro, senti cheiro de arte no ar. Como num passe de mágica, o balcão, em forma de ferradura, recebia várias xícaras (devidamente limpas e escaldadas) para que fosse servido o maravilhoso cafezinho. Depois dessa exibição, a outra mulher, com dois bules, um em cada mão, delicadamente... Não, artisticamente, a perguntar:

- Puro?

Num dos bules, naturalmente, o café; no outro, água quente. Respondi:

- Puro.

Quase a voz não saiu. A sua simpatia e presteza, por pouco não me emudeceram.

Ao transpor a porta de vai-e-vem, que dava para a rua, já na calçada, meus olhos pousaram sobre o casal que dançava, em pleno calçadão, uma música cantada pelo Raul Seixas. Uns passavam olhando e sorriam, assim como quem quisesse “dizer” que desculpavam, ou entendiam aquela atitude. Outros passavam e, somente, olhavam, tentando demonstrar indiferença. Alguns, sem o menor prurido, inclusive eu, paravam para apreciar a arte da dança, vindo, podendo-se dizer, do meio da rua. Todos, morrendo de inveja. Quem não desejaria estar em seus lugares? Dançando em plena tarde ensolarada, de inverno, requebrando, ora pra lá, ora pra cá, como a Dora, de Dorival Caymmi? Só louco!

Pelotas/Junho de 2012.





quinta-feira, 16 de agosto de 2012

E eu que escrevo tanto

O mundo insiste nos pequenos textos e isso me incomoda. Tenho tanto a dizer... E se ninguém me lê, me escuta, ainda assim tenho muito a dizer. Sou isso, intensa, desordenada com as palavras. E com a vida. Amo, odeio, adoro. Nunca aprendi a gostar ou desgostar com olhos baixos, traços inertes, voz de falsete. Preciso da intensidade dos verbos, da sonoridade da fala, do avolumado das linhas completadas por letras que junto ou separo como me compraz.
Não sou mini. Não sei me conter em caracteres. Nem quero. Quero des-conter tudo o que se chamar emoção, tudo o que puder ser praticado com volúpia.
O tamanho de um texto é como o tamanho de um falo: em excesso, machuca; em escassez, frustra. Escrever um texto mais longo é como prolongar o sexo. Há que se ter beijo na boca, preliminares, arrepios na nuca, língua no ouvido. Que se ir descendo com calma e tesão até o umbigo, e passear as unhas nas costas, e sentir o pulsar gradativo das veias, do coração, do membro cheio de desejo. Até que tudo jorre em final. E se faça o silêncio. Silêncio de aconchego.
Mas me dizem os senhores da razão que um texto, um texto bom precisa começar já num impacto, sem os preâmbulos do crescendo. Dizem que o escrever moderno precisa ser assim: chocar o leitor na primeira frase e só depois contar a história. Sem explicar, sem introduzir. Curto, letal, total.
Eles dizem. Eu ouço. Mas não creio que escute. Talvez eles falem muito rapidamente, como os textos que propõem. Talvez eu escute muito lentamente, e não assimile o que me dizem.
Gosto de caminhar e de correr. Mas reservo às letras os passos. À vida, velocidade. E que ninguém se iluda sobre inverter essa fórmula. Nada acontece sem preço.
Se me deixo colher pelas poucas palavras, ou pelos textos diretos, ainda assim corro riscos. Se caminho lentamente pela vida, ainda assim corro riscos. Num caso, o de não dizer tudo o que quero, o de esquecer-me de coisas importantes. No outro, o de pensar que o tempo me sobra, ou que na lentidão serei melhor aceita, melhor compreendida, melhor amada, melhor avaliada.
Da façanha em dizer tudo com pouco resta-me a conclusão de que não tenho mesmo vocação para tamanha elegância. Sou mulher de cais, de taverna. Sou massa de moldagem. Estico-me nas palavras, tomo cores e formas; todas as cores, todas as formas e, ainda, todos os cheiros.
Sou as palavras que escrevo. Muitas, amplas, tolas, desconexas. E, no entanto, repletas de começo, meio e fins variados.
Um dia, ainda pretendo ser como eles, que comandam os modismos e as razões. Quero ser séria, contida, inteligente. Quero fazer referências sutis, jamais ser um dedo que aponta. Quero ser um olhar que diz tanto, ao invés de palavras que se multiplicam assanhadas. Um dia, preciso aprender a ter mistérios, a ser mistérios.
Só não sei ainda o que farei com as emoções engolidas, com os argumentos imergidos, com os pensamentos mutilados. Os senhores da razão ainda não me contaram essa parte da história.





quarta-feira, 15 de agosto de 2012

os teus meninos



Como um nó que te apertasse, ou como se estivesses a ser entaipada, as pás de cimento e pedra a acumularem-se em frente do teu rosto, e tu sabendo que era para nunca mais.
O definitivo a dar-se de modo muito angustiante.
Muito mais intenso e dolorido, e diga-se mesmo que mais asqueroso, do que no último sábado deste Agosto, meio dia a pique, e a urna sem caber no buraco. A mulher lá dentro e o coveiro a buscar uma picareta com que retirasse aquele bocado de terra dura na parede da cova, e a urna descesse, e em definitivo terminasse a função que era devida de enterrar quem estava morto.
E o sol ardendo.
Que o que tu sentiste a olhar o retrato nem era angustia, nem medo, nem um simples receio. Longe disso. Seria antes um sentimento novo que tivesse surgido no preciso instante em que, vá-se lá saber por que sinapse inopinada que tivesse acontecido, tivesses finalmente a certeza de que era irreversível, que tinhas perdido cada um deles na voragem da vida.
Os teus dois filhos já crescidos, saudáveis e felizes, uns homens feitos, e tu naquele despropósito de nem mais poderes apertar nos braços um e outro, assim tal e qual como tinham sido, e isso decorrente de os teres alimentado, dado remédio a tempo e horas, muita fruta e muitos líquidos, e carne o quanto baste para suprir nutrientes, e o peixe, e os ovos. Tudo isso com esmero e tento, desde que tinham nascido, e enquanto foram passando as diferentes fases: o sorriso, o bater palminhas, o enviar beijinhos, a primeira frase, e aquele abraço quando um deles terminou a prova de natação em primeiro lugar. E as confissões de um e do outro, a primeira namorada e o primeiro desgosto.
Nunca mais.
O teu corpo num esgar de quem esgravata terra com as unhas e nada que venha em socorro, nem um grão que alimente, ou água que mate o seco dos lábios, da garganta, dos olhos a olharem impossíveis ali no retrato, o definitivo a fazer garrote e aquela sensação que tu tinhas sempre, intensa, controlável à força de fazer-se em hábito, ou porque nunca tinha sido efectivamente uma fobia e tão sòmente a mania de sentires-te apertada em espaços fechados: se entravas numa casa de banho sem janela ou se o elevador demorava mais do que a conta entre os vários andares.
Aquele aperto a dar-se, um nó corredio em cima da tua epiglote, o nó a apertar-te, e tu quase a chorar pelo que deixaras que eles crescessem, que se tornassem nos homens que eram. Nunca mais o menino que levavas ao colégio ou que acordava pelas noites num imenso choro, ou te dizia ao ouvido, declaração de amor que não esqueceste: quando for grande, caso contigo, mãe.
Tinham ficado onde?
Nos insterstícios que a vida faz de cada um da gente? Nas malhas do tempo? Onde?
Perdida tu deles e nunca mais a não ser que o tempo revertesse e tu pudesses colocar os muitos que cada um tinha sido, do berço, aos bancos do liceu, todos sentados por ali a conversarem contigo e a conversarem entre eles, meninos que, tendo sido, desapareceram a dar lugar a estes homens.
Onde? onde? onde?
Onde os teus meninos, Maria do Rosário?
Onde podes ainda encontrar cada um deles sem que seja no papel morto e frio das fotografias ou na animação doentia da luz dos filmes que fizeram apenas naquele ano em que estiveram na praia?
Talvez seja possível, mas tu não acreditas, e é o renovar da angústia, e chamas-lhe isso por não teres outro nome para o sentir daquela tarde, fim de manhã, mais propriamente, o sol intenso que era o mês de Agosto.
E a partir daí, os instantes fizeram corrente, juntaram-se em segundos e foram fazendo outras manhãs e outras tardes, mas primeiro que todas foi a noite daquele dia e o sonho: os teus meninos a fazerem falas de passados que tu nem sabias porque lá não estavas.
Distraida deles, andarias cirandando por futuros









segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Imagem de Barro | Segundo Quarto



Conto, por Wellington Souza.


Parte II - Segundo quarto.

"Abdiquei do amor não pela presunção de crer que, em mim, nada falta; mas sim pela convicção um tanto zen-budista de que, como nada quero ter, nada me falta."


Acordo e fico quieta, sem saber ao certo quem está comigo. Nesses momentos relembro que a saudade é melhor que a presença. Não frustra. Após a batalha, sempre me amparo no inimigo talvez na esperança (ingênua) do êxtase homeopático ser eterno, e me esqueço de mandar o corpo varão (armadura, apenas?) retirar-se da campanha.

Ergo-me ele está sentado ao meu lado na cama, de livro aberto, mas me observando.

“Sei o que é isso”, falo. “O que? Olhar um anjo dormir?”, responde. Sorrio: “Não. Não conseguir dormir em camas estranhas.”

Ele para o olhar e perde-se, pensativo.

Deve estar tentando adivinhar em quantas camas eu já me postei insone. Tenta disfarçar a sua ida e a sua volta largando o livro de lado e deitando-se um pouco, se ‘aconchegando’ em mim mas ainda encostado na cabeceira da cama.

Em sinal de compreensão, me endireito um pouco para melhor vê-lo e sorrio novamente, deixando-me ser amparada. Posto minha cabeça em seu ombro e com o dedo indicador fico brincando com uma pinta que lhe tinge o peito. Ouço as ondas do seu coração sereno.

Assim ficamos, com o silêncio da madrugada que entra pela janela aberta. Perigosa solidão essa, acompanhada. Solidão de noivos em lua de mel; de monges perante um ídolo. Ainda não descobri o que é o amor; esse sentimento que brota de mim em momentos assim, acalentados, faz parte de um itinerário percorrido em noites que passo acompanhada. “Sente saudade de algum amor” pergunto a mim mesma, mas em voz alta.

As palavras impressas no ar logo desbotam-se, mas ficam ecoando em mim. Acompanho o ritmo da pulsação dele tornar-se frenética. Ajeita-se na cama e responde.

“Sinto a saudade como se ela tivesse se desvanecido da morte. É freqüente aparecer em sonhos mas, ainda hoje, me assombra mesmo acordado. No almoço, no cooper, no escritório, durante leituras sobre finanças ou poetas marginais. Me acostumei, dizem que nunca passa. Aos poucos vai perdendo a dor e fica somente o carinho. Desculpe o clichê, mas vira uma cicatriz.” “De lâmpada fluorescente?”, pergunto. “O quê?” Antes conversávamos sem nos olharmos, mas agora ergo-me a ele para explicar. “Lâmpada fluorescente... Sabe aquelas lâmpadas que são um tubo grande e delgado... que tem nas escolas e lugares assim? Então, minha mãe e meu pai sempre diziam que se eu me cortasse com os cacos dela a ferida nunca cicatrizaria devido ao gás de mercúrio. Na verdade nunca atribuíram ao gás, mas acrescentei esse detalhe ao mito.” “Pode ser”, responde-me, apenas. E desvia o olhar.

Volto ao seu ombro e ao sinalzinho em seu peito. Os detalhes pertencem somente a ele. Serão todos os homens assim: ilhas em que pisamos, mas nas quais continuamos a naufragar? Será o amor colonizar essa terra e receber dela frutos e multiplicarmo-nos?

Se ele perguntasse sobre a minha saudade, mentiria. Sinto que não é normal viver sem amor. Mas se existem pessoas que não conseguem chorar, outras que não sentem dor alguma, porque uma mulher não pode viver sem ser Mulher e sem amar, sem chorar, sem ser generosa e sem sentir dor? Tem sempre que ser a costela de alguém?

Lembro-me da minha casa infantil, meu quarto imaculado onde ouvia estórias de bruxas e princesas nas quais o  máximo do sexo se dava no final, com o beijo de júbilo. Tão avesso a esse meu quarto maduro, onde as estórias começam com o beijo...

Diria que amei muito um homem, mas que ele embrenhou-se na selva que brota a cada manhã... e que eu também embrenhei nessa mesma selva, mas em sentido oposto... para tornar impossível o reencontro. Essa estória seria uma meia-verdade, pois realmente estou sozinha e fujo de alguém – mas nunca conheci esse alguém.

“Por que parou? Estava bom”.

Agora é ele quem me grita da selva. “Continue acariciando meu peito, estava bom. É confortante o tato.” Imersa, nem havia percebido a interrupção do movimento.

Um instante depois, ergo-me olho séria e fixa em seus olhos. Ele também se posta sério e não desvia o olhar. Instintivamente, apostamos que quem rir (ou esquiva o olhar) primeiro perde. Ele faz uma careta com a boca e eu tento ficar vesga; ele empurra a ponta do nariz para trás, exibindo as fossas nasais e eu, ainda vesga, inflo as bochechas. Ele balança randomicamente a cabeça e eu fico “bombando” o ar da minha boca. Duas crianças na tentativa de emular o paraíso.

Mas logo enjôo e rio, para dar um final lúdico à brincadeira.

“Independente de quem ganhasse, o prêmio e o castigo seria sexo.” “Cumpramos!”

Começa a beijar o meu pescoço. Preciso de paz, de aconchego, de harmonia, mas temo a pessoa, o provável cavaleiro, que me trará essa luz. Dizem que o amor nasce da admiração, quando projetamos no outro o que acreditamos não ter e essa personificação de nossas lacunas se torna inseparável. Abdiquei do amor não pela presunção de crer que, em mim, nada falta; mas sim pela convicção um tanto zen-budista de que, como nada quero ter, nada me falta.

Talvez me cause verdadeira admiração encontrar outro alguém que nada queira, ou melhor, que nada espere. Talvez nessa superfície tão despreparada ao amor eu consiga me projetar e encontre, enfim, o remédio para a dor de existir.

Passou lentamente pelos meus seios e abdômen. Sempre, nessas horas, sinto-me um ídolo e, como tal, procuro não pensar em nada. Agora, ajoelhado como um mulçumano em direção à Meca me umedece e ateia fogo.


*
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Créditos da Imagem:
na cama dos sonhos II, por Sónia Cristina Carvalho.





sábado, 11 de agosto de 2012

Finitude

 
 
 
Maldita!

Pelos deuses!!!

da vida subtraída, esvaída

Em sua surdez...


Nãooo!!! Pela não louvação à vida!



E o coro em uníssono lamenta

"Ai de nós, sem conta, são nossos sofrimentos

Despojada dos seus filhos, a natureza humana perece

Zeus! envia-nos tua proteção!

Maldita Finitude
Queremos a atemporalidade e o Renascer!! "


Minhas condolências, meu pesar por você, sua finitude!

       "Não sou nada, nunca serei nada..."

                 dá-lhe Fernando!!!


Fortuita, Maldita!

Eu não a quero mais!
Suma, desapareça!

Indesejada, mal amada,
Vives na penúria de desgostos alheios...
te odeio!

Libertina, Indecorosa,
Irresponsável, Maldita!

Apelas às incongruências sanguinárias,

Eu não a quero mais em meu jardim de rosas
coração de bronze, braços de ferro, lágrimas de aço!

Esconde-se no pseudo, no pueril escabroso
Despede-se de todos com um sorriso cínico, fetichista

Nazista!

Impõe-se sem louvor,
com horror!
aos apelos indecorosos
e indesejosos da vida!

Não me venham com conversinhas,

de aqui, agora!  Fora!!!!

Fonte amarga do desespero humano!


Não me venham com conversinhas


Eu quero o abandono no ad eternum

Envergar-me na sua luxúria e vigor,

saborear os venenos de sua eternidade!

Sem essa de saudades! Chega!!!




Aqui, Agora, Fora!!!

com suas limitações, limites em finitudes,

Quero o futuro
ainda que em pesares

não quero o passado partido, ferido, em cacos



"Tenho  frio da vida. Tudo é caves húmidas e catacumbas sem luz na minha existência.

Qualquer coisa em mim pede eternamente compaixão...

Só no ar morto dos quartos fechados respiro a normalidade da minha vida".



The end





sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O mito do bestseller brasileiro



Henry Alfred Bugalho

Não ousarei generalizar e afirmar que todos os escritores sonham em se tornarem bestsellers, venderem milhões de exemplares, ficarem famosos e ricos, pois sempre existem as ovelhas negras...

Mesmo assim, acredito que internamente todos almejam a aprovação e o reconhecimento dos leitores, a apreciação de suas obras e, neste ponto, vender bem é uma prova disto: de que há gente que gostou do seu trabalho, indicou aos outros, que por sua vez indicaram aos outros, num círculo virtuoso.

O que é um bestseller?

As definições do que é um bestseller, isto é, de um autor que pertença ao rol dos mais vendidos, variam geograficamente. Em alguns países, é preciso vender muito mais livros do que em outros.

Basicamente, qualquer listagem dos mais vendidos parte de uma premissa básica: a compilação dos dados de vendas entre várias livrarias espalhadas pelo país, e isto vale para o Brasil, para os EUA, ou para a Suíça.

Um livro mais vendido não é aquele que vendeu 1 milhão de cópias somente na amazon.com, mas sim aquele que vendeu bastante na somatória de todas as livrarias pesquisadas.

Nos EUA e Canadá, vender 5 mil exemplares por semana pode ser o bastante para catapultá-lo ao status de bestseller, enquanto que, no Reino Unido, esta margem varia de 4 mil a 25 mil exemplares por semana.

E no Brasil?

Não é tão fácil determinar estes dados para o Brasil, primeiro porque há um certo hermetismo por parte das editoras quanto aos dados das vendagens, como se elas estivessem lidando com documentos ultrassecretos da CIA, depois, porque as tiragens e as vendagens médias de livros de ficção chegam a ser ridículas para um país enorme como o nosso, com mais de 200 milhões de habitantes.

Atualmente, a tiragem inicial média de um livro por uma grande editora é em torno de 3 mil exemplares, sem garantia alguma que será vendida a quantidade mínima de livros para se pagar o investimento.

Segundo os dados da Publishnews, um livro que venda 600 exemplares por semana já poderia se enquadrar como um bestseller. Além disto, uma rápida olhada nas listagems de mais vendidos em ficção basta para percebermos que a maioria dos sucessos é de obras de autores estrangeiros, constando apenas 1 ou 2 autores nacionais.

Para todos os fins, podemos dizer que uns mil livros vendidos por semana é o suficiente para considerar uma obra como um bestseller, enquanto que 5 mil por semana já estaria quase no topo desta listagem.

Quem são os bestsellers brasileiros?


É impossível falarmos de mais vendidos no Brasil e não mencionarmos o nosso maior fenômeno editorial dos últimos anos: Paulo Coelho.

Somando as estatísticas de todas suas obras, Paulo Coelho já vendeu mais de 100 milhões de livros em todo o mundo, quase o dobro do segundo colocado, Jorge Amado, com 55 milhões de livros vendidos.

Depois destes dois óbvios primeiros lugares, não há nenhuma informação conclusiva sobre quem ocuparia o terceiro posto entre os bestsellers brasileiros, mas nomes frequentes são Jô Soares, André Vianco e Augusto Cury, este último que transita, às vezes, entre auto-ajuda e ficção.

A verdade é que Literatura nunca foi um grande negócio entre os brasileiros, ou melhor, a Literatura nacional nunca foi um bom negócio, pois bestsellers estrangeiros geralmente causam mais furor em terras tupiniquins, como a histeria que pudemos presenciar em torno dos últimos volumes de Harry Potter ou da série "Crepúsculo".

Via de regra, um bestseller internacional fará muito mais sucesso e venderá muito mais livros no Brasil do que um bestseller nacional.

Bestseller e longseller, qual é a diferença?

Quando falamos em bestsellers, estamos nos referindo a um grande volume de livros vendidos num curto espaço de tempo.
No entanto, isto não quer dizer que um autor não possa vender muitos livros num longo intervalo de tempo, e isto é conhecido como longseller.

Quando se trata de Literatura, o Brasil possui muito mais longsellers do que bestsellers.
Muitos autores, e seus respectivos livros, podem demorar décadas até emplacarem o primeiro bestseller, se é que um dia conseguem esta proeza. Vários deles possuem vendagens relativamente pequenas, mas constantes, durante anos e anos.
Frequentemente, o segredo por detrás de um longseller são as compras governamentais, ou que os livros sejam adotados por escolas, universidades ou para vestibulares.
Alguns longsellers brasileiros são: Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, entre incontáveis outros nomes conhecidos, que às vezes até podem dar as caras nas listagens de mais vendidos, principalmente se ganharem algum prêmio importante ou se adaptarem algum livro deles para uma novela ou minissérie da Globo.
Mas a longevidade de suas obras não depende necessariamente de algum escândalo ou de um tema da moda, mas da qualidade da escrita e de muitos anos dedicados à carreira literária.

Os bestsellers nascem e morrem com uma rapidez incrível, os longsellers vieram para ficar (ou não).

Quem quer ser um bestseller?

Repito, Literatura nacional quase nunca é um bom negócio. Estima-se que aproximadamente 70% do que se publica em ficção no Brasil sejam traduções de obras estrangeiras. Nos EUA, apenas 3% dos livros publicados são traduções, a maioria das obras é de autores americanos, ou, pelo menos, de autores de língua inglesa.

Estamos diante de um mercado que não valoriza a prata da casa, que não dá a mínima para a produção literária nacional e que está interessado em obter o máximo de lucro no menor tempo possível.

Bem, ninguém disse que as editoras eram instituições filantrópicas! São empresas que oferecem produtos para atender à demanda de seus clientes.

São as editoras que tem aversão aos autores nacionais, ou são os brasileiros que não compram livros de escritores brasileiros?

Não há uma fórmula para o sucesso, assim como não há uma fórmula para conseguir publicar seu primeiro livro.
Cair nas graças do público e tornar-se um bestseller, ainda mais se você escrever ficção, é uma loteria: a cada milhões de apostadores, somente alguns tem o bilhete premiado.

Agora, para converter-se num longseller, é necessário muitíssima paciência e trabalho. Talvez demore anos para você começar a ver resultados, é preciso cativar leitor por leitor, mas, quem sabe um dia, sua carreira se estabilizará e perceberá que, de grãozinho em grãozinho, você realizou o seu sonho.

Pode não ser a trajetória mais gloriosa, mas será suada e honrada. Então, você se orgulhará de suas pequenas conquistas.

Fontes:
Publishnews
http://www.publishnews.com.br/telas/mais-vendidos/Default.aspx?cat=9
http://www.publishnews.com.br/telas/noticias/detalhes.aspx?id=67243

Gazeta do Povo
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=971058

Wikipedia: Bestseller
http://en.wikipedia.org/wiki/Bestseller


Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/





quarta-feira, 8 de agosto de 2012

a liberdade possível num labirinto de paredes de vidro



às vezes você se vê num labirinto de insignificâncias
está lá um meandro de paredes de vidro
erguidas em silêncio cada vez que você virava as costas
então você se dá conta
quando tenta andar
até acertar o lado para onde ir
ou aprender a fazer isso tateando
dá com o nariz em paredes que não vê
sangra
ou os dentes da frente amolecem
um corte no lábio
que vai ser preciso encontrar a saída 

essa é a liberdade possível 

mover-se é transpor divisórias
sem significado
[tão reais quanto as palavras que lhes dão nome, todavia]

talvez os labirintos estejam uns dentro dos outros
e as maiores probabilidades indicam
que não há nenhuma recompensa no final






publicado originalmente em http://poeticaipsisverbis.blogspot.com.br/2012/07/76-um-mal-de-ausencias.html#!/2012/07/84-liberdade-possivel-num-labirinto-de.html









um mal de ausências

ouvi falar de uma doença qualquer nos nervos
dessas que vêm no pacote
tem uns contratempos mais ortodoxos
náuseas
vômitos
convulsões
coisas assim

diferente das outras, que se sente dores por possuí-las,
o mal dessa é o indivíduo não sentir dor alguma

por sua causa 
ou melhor
por causa de uma
ausência da outra
há efeitos ainda mais adversos e escusos

não se chora com lágrimas
não se cresce direito
o sangue não circula como deveria
e se diz de quem a tem não sentir prazer com o paladar

[e se é coisa de nervos talvez não se sinta prazer com nada que afete o corpo
mas essa é uma suposição minha, nada científica]

não se morre disso
o comentário é que os que morrem com ela
morrem de coisas estúpidas
como ferir-se severamente sem nem perceber
ou ir dormir e não acordar porque o coração perde o estímulo

[pudera
isento de tudo o que há nos outros muito
o coração vai bater por quê?]

        publicado originalmente em http://poeticaipsisverbis.blogspot.com.br/2012/07/76-um-mal-de-ausencias.html#!/2012/07/76-um-mal-de-ausencias.html





A Mosca no Tetraplégico



A Mosca no Tetraplégico

João Vereza



O Tetraplégico já havia aceitado que lhe restara apenas o livre arbítrio e a opinião. Pisque uma vez para sim, duas para não.
No dia da mosca, a janela do quarto aberta. Flores ao lado da cama, as pétalas tremelicam, a brisa e sua liberdade. Vamos, o sopro murmura na pele e levanta o Tetraplégico pelo ar.
Piscou uma vez para sim.
A mosca preta, a mosca zombeteira, entra pelo campo de visão, asas erráticas, asas robóticas. Pousa sua sujeira nas flores, mexe as patinhas na água, na sonda, no soro.
Piscou duas vezes para não.
A enfermeira entra no quarto, gigante de branco, e a mosca zune se afastando. A mulher gira a manivela da cama e levanta o colchão aos trancos. O Tetraplégico e o céu da janela, vejam como é azul, as nuvens caldosas e rechonchudas.    
Uma vez para sim.
Sai a enfermeira. A noite agarra o dia para a caverna. A mosca e seu vulto pontiagudo, verruga voadora. Gira pela cabeça do Tetraplégico. Sai de mim, inseto de abutre, passa daí, avião espião.
Duas vezes para não.
A lâmpada se acende e afugenta o bicho pulguento. A enfermeira de volta para cuidar do paciente, lhe dar banho e alimentar a boca murcha. Coloca-o para dormir, para os sonhos onde pode correr. Puxa a coberta e lê em voz alta um novo capítulo – o herói, sua mocinha, seus corpos se mexendo um para o outro.
Sim.
Ela se retira e apaga a luz, o quarto estala na escuridão. A mosca cruza seu ouvido como moto-serra, socorro!, alguém?, ninguém. O Tetraplégico esperneia em silêncio, os membros molengas e imóveis. Aqui, ali, cadê ela?, fecha os olhos, a mosca, o Tetraplégico, ele a sente, jura, jura que sim. As pernas cabeludas na boca aberta, cócegas nos lábios, um ninho na língua. Até o fim ele se esforça, mas o grito não passa do piscar dos olhos. 





terça-feira, 7 de agosto de 2012

Coração de mãe

Por Ju Blasina
Andavam pela rua, pela primeira vez, sozinhos. Era um passeio feito de improviso, motivado pela beleza do dia, pela tentativa frustrada de conseguir um taxi no retorno para casa e pela saída obrigatória a um dressas obrigações referentes à saúde dos neonatos ─ vacina, revisão, testes disso e daquilo.  A tarde estava quente, o pequeno dormia tranquilo e sorridente curtindo o balançar dos passos de sua mãe que o levava onde antes havia uma barriga das maiores que se pode conceber. Para ele, o primeiro passeio, para ela, um dia perfeito: passado um mês desde que se tornara mãe e as coisas pareciam, enfim, estar voltando aos seus lugares, ainda que fossem novos tais lugares, era o início do fim do caos dos primeiros dias.

Seu bebê estava bem, suas calças ameaçavam cair, seus pés doíam um pouco sobre os saltos que só agora podia voltar a calçar e desconfiava que sua blusa estivesse molhada de leite ─ novamente!  Era um dia perfeito! Viviam um momento perfeito! Ela sorria ao ouvir os suspiros dele sobre seu peito ou seria ele que suspirava ao ouvir as batidas ritmadas do coração dela?Um som que ele conhecia tão bem... Tinham agora um ao outro numa proximidade tão grande quanto a da gestação, numa união talvez maior que a antes proporcionada pelo enorme cordão que prendia ele a ela ─ em cinco perigosas voltas.

Enquanto ele parecia sonhar com mamadas, ela pensava na família inusitada que tinha, na qual pensava ser ela o único o laço que os unia, mas não era dela a força que mantinha o nó. Pensava no quanto os laços de sangue são supervalorizados e no quanto desejava que o que a unisse àquele pequeno ser que carregava nos braços fosse feito de bem mais que isso.Pensava e seguia perdida em pensamentos, até que uma voz a arrebatou ao dobrar a esquina. Era uma voz feminina forte o suficiente para atravessava a janela da casa onde dizia:

"os filhos não nos pertencem, 
eles são transitórios, assim como somos nós...".
A casa era espírita, a voz, encarnada ─ ao menos, parecia!

Olhou para si mesma, naquele primeiro passeio com o filho no colo, enrolado numa manta, dentro de um saco de dormir, encostado em sua barriga, a cabeça sobre o peito da mãe, o corpo envolto firmemente pelos dois braços dela... "Meu bebê, tão meu!" ─ dizia aquela mesma mulher que, antes de ter um filho pregava aquele mesmo discurso da voz que fugia da casa espírita. É tão mais fácil dar ao mundo filhos que não são seus!

Sentia-se um pouco mal pelo sentimento de posse que a agarrava ao menino ─ sentimento esse que a fazia subir escadas com ele nos braços, mesmo sobre altos saltos, apenas por não suportar a distância que os separaria, caso deixasse que outro colo o levasse... Da mesma forma que se sentia mal quando torcia para que ele não acordasse na rua, temendo ter que expor o peito a estranhos para lhe saciar a fome... Ou quando acordava irritada pela noite mal dormida ou quando se olhava no espelho e não mais enxergava a mulher englobada pela mãe... Desde que se tornara mãe, sentia-se mal, várias vezes ao dia e em alguns dias, sentia-se péssima. E naquele dia, em que tudo parecia perfeito, eis que vem aquela voz desagradável a criticar o que, até então, parecia a melhor sensação do mundo: a de ter alguém para chamar de seu! E reciprocamente, dar-se de todo a ele.

Se há algo que a maternidade ensina rapidamente é a generosidade. Doa-se as noites de sono, doa-se espaço nos armários, doa-se tempo, doa-se a própria forma, doa-se inteira ─ e só uma vaidosa "da pior laia" sabe o quão custoso é pôr a vaidade num saco por amor a outro ser. Doa-se sem esperar nada em troca. Quer altruísmo maior que esse? Doar-se por amor, pelo bem de alguém que só se quer bem. E não era por tamanha doação que ela se sentia mal, mas por não alcançar de todo a abnegação. Por manter-se humana na imperfeição, por ser a mesma, apesar da maternidade.

Gerar, parir, criar... São verbos mais difíceis de vivenciar que de conjugar, mas ainda mais difícil é adquirir o desapego necessário para deixar a roda girar seguindo o inevitável ciclo do nascer, crescer, reproduzir e... pior ainda, aceitar que não se pode livrar os filhos do mesmo destino, que não se pode livrar-lhes de qualquer destino!  E que eles seguirão seu próprio rumo, a despeito de quantas voltas se dê em torno de seus pés, pescoço ou corpo inteiro.Bom enquanto o som do bater do coração de mãe pode impedir-lhes de se preocupar com o que as vozes do mundo sussurram ao dobrar a esquina... Bom para este mesmo coração é tê-los nos braços enquanto se pode andar com eles por aí ─ duas vidas sobre um mesmo par de pernas. 

Ainda que as pernas cansem logo e que as vozes tenham toda a razão.