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sábado, 26 de setembro de 2009

E-zine SunShine - Primavera



Acompanhando a translação da Terra ao redor do Sol, o e-zine SunShine chega a sua terceira edição celebrando a primavera.
Com projeto gráfico e editoração de Rubens Medeyros e com colaboração de diversos escritores, seu conteúdo é bastante diversificado. Afloram ensaios fotográficos, muitos poemas, prosas poéticas e artigos cujos ventos sopram desde cinema e seriados de TV a mitologia e cotidiano. Isso tudo em total simbiose com a exuberante arte gráfica do seu idealizador!
E toda essa flora está disponível para download gratuito através do site http://rubensmedeyros.blogspot.com/.
Desejo a todos um ótimo passeio por estas páginas!

Wellington Souza





Diário do Federal - Capítulo 1 - O 1° Plantão

Meu primeiro plantão nesta Delegacia de Polícia Federal foi do dia 24 ao dia 25 de janeiro de 2009.

Recebi, registrei e encaminhei uma denuncia de roubo e extração ilegal de madeira em terras de terceiro. Comuniquei ao Delegado Moreira e acionei uma equipe de seis agentes para interceptar os caminhões ao anoitecer na saida para a estrada que vai para a cidade de Canarana. Sondei os investigados e alertei meus colegas para ter cuidado com os guachebas de um tal de Paulinho Polícia, contratados para dar cobertura armada aos crimes. Ficou um vai e vem de viaturas me apurrinhando até de madrugada. Os caras dos caminhões abandonaram os mesmos e entraram no mato. Um dos caminhões sem as chaves e outro sem freios. Os colegas arrancaram cabos e secaram os pneus do sem chave e conduziram o sem freios até o Posto São Cristovão no Trevo que liga Paranatinga à Canarana.

Às 21:40 o colega Eráclito pede reforços, água mineral, esparadrapo e algodão. Aciono a força Nacional e entrego a submetralhadora HK do Plantão ao colega Rosemberg para reforçar a equipe. Às 1:50 toda a equipe retorna e me entrega alguns documentos e materiais apreendidos, bem como a HK.

Às 2:00, depois que todos vazam, deixo os dois vigilantes em alerta e vou dormir na salinha que fica ao lado da recepção do plantão. Acordo com um tiro sobre algo metálico. Pelo arrastar do portão de ferro da frente da delegacia, concluo que arrombaram o cadeado. Me levanto já com a Glock empunhada na posição três. Deslizo rapidamente o indicador da mão fraca sobre o chanfro do check alimentação e confirmo que a belezinha está municiada na agulha. Ouço outros disparos e o barulho da porta de vidro da entrada se despedaçando. Os vigilantes ainda respondem com uns 4 disparos, mas escuto seus passos em fuga correndo para os fundos da delegacia. Enquanto me abaixo e seguro na bandoleira da HK e no carregador reserva, outro tiro acerta a porta do quartinho onde estou, atravessa-a e se aloja na tampa do quadro telefõnico logo acima da minha cabeça que só pensa numa coisa: -Fudeu!

Havia trancado a porta do quartinho com duas voltas na chave. Eles teriam trabalho para entrar, mas os tiros não. Ouço muitos passos. Devem ser uns três ou quatro. Abaixado, abro a porta secreta que liga o quartinho do plantão à sala dos computadores, entro na sala e tranco na trava. Corro em direção à porta do Núcleo de Tecnologia para escapar pelo corredor mais além. Mais tiros, um estrondo de pesada na porta do quartinho e outro da sua madeira estralando no chão. Eu corro pelo corredor em direção à sala 321, é minha única chance. Na sala do Núcleo de Operações eu teria todas as munições e granadas que precisasse. Porta trancada por fora. E agora?...

Escuto ser estilhaçada por uma rajada de tiros a porta de vidro entre o corredor e o sagão da Delegacia.
Com a Glock, disparo nervosamente um monte de tiros no trinco da porta e enfio-lhe o pé até escancará-la. Após me abrigar na sala, meto cegamente a HK no corredor e dou três rajadas. Ato contínuo, abro o armário de granadas e retiro uma de gás lacrimogênio e outra de luz e som. Com uma olhada rápida no corredor, vejo que pelo menos um cara gemia sangrando no chão. Outros dois corriam tresloucados em minha direção. Lanço uma após outra pelo corredor e dou mais umas rajadas com a HK até descarregá-la. Corro para o cabide dos coletes, pego todos eles, derrubo o birô e com eles faço uma barricada. Municio uma Spas 15. Um dos caras mete uma pistola pra dentro da sala e atira à esmo. Os coletes protegem muitos, mas um dos tiros pega minha perna direita de raspão antes que um tiro de minha calibre 12 arranque o braço do cara fora. Bendita Spas 15...

Retiro o celular do bolço e ligo para o Agente Beretas. Conto-lhe a situação e ele diz que em minutos estará na delegacia com todo o resto da equipe. Ouço estilhaços de vidro da janela sobre minha cabeça e uma granada militar rolando no chão... Seus biscoitos verdes e metálicos quicando na cerâmica... Tão distante para fustigá-la, mas tão próxima pra...
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Depois um clarão cegante e eu, sobressaltado, me levanto ofegante da pequena cama. O Suor corre pelo meu rosto. Ligo a luz do quartinho, meto minha Glock na cintura, confiro a HK devidamente municiada e com o carregador reserva do lado. Abro a porta e fatio lentamente com a vista o balcão do Plantão. Sons de televisão e do ar-condicionado. Os vigilantes assistiam um filme de ação na TV da recepção. Ufa! Volto pra cama e continuo a dormir tranqüilo até amanhecer o dia.





quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Jack , o estripador. A primeira vítima- Giselle Sato

Alice apertou as faixas em volta do abdome inchado,tentando esconder a barriga de quase oito meses de gravidez, mal podia respirar. Temia a sociedade londrina, austera e impiedosa.
A mulher vivia em um cortiço no bairro pobre de Whitechapel, área de prostitutas e bandidos.

Se a senhoria desconfiasse de qualquer deslize seria expulsa e jamais conseguiria outra vaga. Planejava trabalhar mais uma semana e ter a criança, cujo destino seria a roda dos enjeitados.
Por mais dura que fosse a vida em Londres, não queria terminar os dias arando terra e cuidando de porcos no interior da Inglaterra.

As jarras pesadas de cerveja preta eram um tormento. Enchia as canecas, servia os fregueses, recolhia os vasilhames sujos e passava ligeiramente em uma tina de água encardida. As mãos doloridas e esfoladas. O patrão, do alto do balcão, gritava com as moças e exigia mais rapidez nas tarefas.
No velho Pub Ten Tells, os homens bebiam sem parar. Aos poucos as vozes aumentavam. Algumas discussões começavam do nada e sempre acabavam em briga. Piadas sujas eram repetidas inúmeras vezes. Mãos atrevidas tentavam tocar as ajudantes de salão.
Sarah recebia as melhores gorjetas. Ela não se importava de sentar no colo dos bêbados ou exibir os peitos caídos, Alice recusava. Algumas vezes, Sarah ia para o beco dos fundos e por alguns xelins recebia vários homens. O patrão fingia não perceber em troca de favores gratuitos no final da noite.

Três horas da madrugada e Alice ainda varria o chão e limpava as mesas. Dois relutantes bêbados urinavam na calçada e riam descontrolados. Um vizinho irritado, atirou uma garrafa de um prédio próximo. Silêncio.
Chovia e a temperatura havia caído muito. Os pés de Alice estavam dormentes e o corpo doía. Mal acreditou quando atravessou a porta da rua e respirou aliviada por haver cumprido mais um longo dia.

O bairro escuro e mal freqüentado estava vazio. Não tinha medo, preferia voltar sozinha à companhia das colegas de trabalho. Uma viela fedorenta, mais dois quarteirões e estaria em casa.
Mãos surgiram das sombras. Pesadas, em torno do pescoço e da boca. Apertavam com força obrigando a entrega. O som das roupas sendo cortadas pela lâmina afiada,o sobretudo de lã roçando a pele exposta, o cheiro da colônia cara, os sentidos captando cada detalhe.

O homem parou quando as últimas faixas foram arrancadas. Surpreso, tocou a barriga da mulher com a ponta dos dedos. O corpo frágil foi atirado ao chão:-Falsa! Pecadora imunda! Como se atreve a tentar me enganar? Ainda serás castigada!
Foram as únicas palavras. Os passos afastando-se na madrugada, deram-lhe forças para se arrastar até a parede úmida.
Mal embrulhada no velho xale, conseguiu chegar ao quartinho acanhado e juntar os poucos pertences.

O dia amanhecia quando Alice chegou à estação de trem. Precisava embarcar e tentar esquecer todo o horror sofrido. Ir para bem longe da cidade que abrigava o monstro.
O cheiro almiscarado jamais seria esquecido. O toque das luvas macias, a dicção perfeita, marca inconfundível da nobreza.Tudo naquele homem indicava poder.
Alice sentia que se procurasse a polícia em busca de proteção, seria uma mulher morta. Ele a encontraria onde quer que fosse, atribuía ao desconhecido poderes sobrenaturais.

Quando sentiu o trem deslizando nos trilhos, respirou aliviada, afastando-se cada vez mais rápido, para bem longe do mal.
Londres iniciou um ciclo violento de crimes bárbaros naquela noite. Um conhecido maníaco de nome Jack assombraria por algum tempo cada beco mal iluminado, transformando o pesadelo mais temido em realidade macabra.





domingo, 20 de setembro de 2009

Pela morte de um estigma

Léo Borges


– Não posso crer que nos perdemos de novo – disse Ygor, franzindo as sobrancelhas no intuito de suas feições parecerem tão sérias quanto a situação em que ele e Logan estavam.

– Sim, é o que parece. Esta localidade não se confunde com Melgraste, ainda que o gorjear dos rouxinóis muito se assemelhe.

– Quando foi a última vez que estiveste lá?

– Não me recordo. No penúltimo inverno, penso. Quando fui contratado para uma emboscada nos montes. O coitado caiu de um penhasco.

– Caiu ou derrubaste?

– Sabes que nenhum assassino de aluguel confessa seu método.

– Isso agora tanto faz. Importa agora que esqueceres as formas urbanas do lugarejo, o que muito nos atrasa – asseverou Ygor. – Bem, pelo menos ainda conservas a memória para o essencial, mesmo que com desfaçatez. Já a mim não podes acusar de negligenciar lembranças. Dei cabo de algumas pessoas na cidade para qual vamos, é bem verdade, mas lá se vai mais de uma década.

– Matar de graça definitivamente não me apetece. Ainda bem que a contratante em questão é a rainha de Melgraste. Embora pessoa de índole ruim, não é sovina.

– Concordo. Dizem que essa mulher é extremamente perversa, mas tem palavra. Chegou ao poder através de esquemas escusos, perfídias e, sim, muitas mortes. Algo parecido com aquela desvairada mulher de um guerreiro escocês.

– Macbeth? – perguntou Logan, lembrando do caso que se tornou um clássico.

– Acho que é esse mesmo. Contam que sua mulher era tão impregnada de ganância que enlouqueceu num cenário sanguinolento criado por ela própria. Não sem antes gerar uma tragédia sem precedentes na Escócia.

– Também ouvi essa história. Mas Lady Loffertie parece-me ainda mais cruel, além de leviana. Não à toa sua alcunha é "a Rainha do Inferno".

– Não participei em nenhuma das mortes encomendadas por Lady Loffertie – revelou Ygor –, mas soube de colegas que exterminaram figurais reais que facilitaram o acesso dela ao trono.

– Ora, Ygor, estás sentado ao lado de um que participou de algumas dessas mortes. Apesar de esquizofrênica, a Rainha do Inferno investe bem quando o assunto é massacre.

Lady Loffertie esperava a dupla ao lado da única capela periférica de Melgraste. Sentia-se mal perto de tantas imagens angelicais, mas melhor o incômodo passageiro do que não resolver o que verdadeiramente a afligia. Tapava o rosto com um xale e não trajava as vestes reais justamente para não levantar atenção para o encontro que marcaria o início do fim de sua fama.

O horário vencido fazia a mulher refletir sobre o possível erro de ter chamado aquela dupla. Sabia que eram efetivos no serviço, mas a logística sempre fora precária. Soube que Ygor fora ferido por um touro quando foi matar um fazendeiro. E Logan quase fora preso na última empreitada a mando real. O serviço na época era até bem simples: alguns golpes de estilete em Dorknson, então namorado da filha da rainha, um sujeito altamente prepotente e ambicioso. O matador profissional executou o trabalho, mas sujou-se tanto de sangue que o rastro possibilitou à polícia levantar suspeitas sobre a mentora. O néscio foi até a casa real receber a paga sem nem ao menos trocar as vestes. Subornos à parte, verificou-se que o rapaz fora morto em legítima defesa, o que dispensava procedimentos criminais de maior envergadura.

A rainha agora não pretendia matar mais ninguém. Na realidade, nunca pretendeu. Foram as circunstâncias, por vezes alheias a sua vontade, que a impeliram ao assassínio – ou ao mando. Acreditava ferrenhamente que não era criminosa e nem nunca fora na acepção do termo. O problema residia justamente nessa fama de rainha infernal, fama esta que se propagava ultrapassando as fronteiras de Melgraste, mas que não encontrava lastro, segundo seu entendimento.

Esta morte – a derradeira – mesmo dando azo à maldita fama, vislumbrava-se como o único remédio para pôr fim ao que de fato incomodava aquela mulher: a esquisita e odiosa reputação de assassina. Não queria mais os famigerados olhares de medo e desconfiança seguindo-a quando desfilava pelas ruas. Seu ar nobre era incompatível com o perfil de uma assassina.

“Matar a fama?”, era a pergunta que não saía da cabeça de Thebiane, sua empregada de maior confiança. “Será que minha rainha estaria tendo outra crise? Parecida com aquelas em que se torna incapaz de identificar o que é certo e o que não é?”. Thebiane sempre sentiu o ranço da morte na realeza, mas, nunca acreditou nas histórias que lhe contavam sobre matanças covardes por parte de seus empregadores. Sabia da existência da fama, apesar de refutá-la, até mesmo pela conveniência da manutenção do emprego – e da vida. Nunca, porém, a morte e a rainha entraram em tamanha interseção a ponto de uma estar perto de aniquilar a outra. Isso era loucura plena!

– Sim, Thebiane, quero, literalmente, acabar com este estigma que me persegue. Mortes e mortes. Muitos sucumbiram? Sim. Mas, sem tais mortes, tragédias maiores teriam ocorrido e você não estaria aqui empregada neste castelo, ouvindo meu lamento. Todas as autópsias rechaçaram as invencionices perversas dos ociosos. É tétrico ter de conviver com a imunda fama de genocida quando na verdade sou a mais benevolente das pessoas. Certo que desejei a morte de alguns, como o rei Komelaw. Mas seu fim se deu pela queda acidental em um despenhadeiro, longe da minha presença. Herdamos o reino, mas esses fatos não possuem nexo causal. Se algum dia possuí ímpeto mortal, este logo foi dissipado. Quero deixar minha inocência marcada na história e para isso preciso matar. Matar o que me destrói perante o povo: matar esse labéu!

A empregada achou muito estranha tal decisão, contratar matadores para liquidar um rótulo, um espectro que vivia visceralmente atrelado à rainha. Afinal, mortes por espada ou por veneno só ocorrem entre vivos, não entre estigmas. De qualquer modo, apoiava a decisão que, em todo caso, era soberana por essência.

– Ei-los! – exclamou a rainha ao avistá-los.

Logan foi o primeiro a apresentar desculpa pela demora:

– Perdoe-nos. Perdemo-nos no caminho.

– Penso que escolhi as pessoas erradas para resolver a problemática. Se não conseguem nem mesmo lembrar-se do caminho que conduz a Melgraste. Estão cada vez piores.

– Não pergunte se somos capazes. Passe-nos a missão.

– O que quero pode parecer estranho e de fato o é. Espero que façam e façam com rapidez. Estou cansada de carregar uma fama que não possuo em caráter legítimo. Quero minha aura de rainha generosa de volta, ou instituída, se pensarmos que ela nunca existiu. Que minha fama de matadora seja morta! Oitenta moedas de ouro e títulos de nobreza para os dois. Terei a prova quando mais ninguém intimidar meus passeios com ares de pavor ou de insulto latente.

Logan e Ygor entreolharam-se, espantados. Já haviam recebidos muitos pedidos, muitas encomendas macabras. Bispo pedindo para matar a madre, duque pedindo para matar a duquesa, pessoas de família abastada requisitando extermínios em geral. Mas, matar a fama?! Olharam para os parcos símbolos religiosos expostos na capela e se benzeram. Mas o prêmio era bom e o pagamento superou a falta de lucidez da proposta.

– Sim... iremos matar a fama de Lady Loffertie – Ygor falou e saiu puxando Logan.

– Quero o serviço completo em no máximo uma semana! – arvorou-se, gesticulando como se sua característica fosse mais relacionada à loucura do que à realeza.

Logan não tinha a menor ideia de como poderia começar o trabalho. Ygor menos ainda. Pensaram até que Lady Loffertie estivesse satirizando seu ofício. Mas ela parecia decidida e não voltou atrás, despedindo-se de ambos com um sorriso carregado de escuridão.

Nos primeiros dias cogitaram que para acabar com o estranho pedido, deveriam acabar com quem acolhia essa opinião. Como na localidade praticamente todos consideravam a rainha uma mulher vil, pensaram, de início, que teriam de promover uma carnificina. Mas não era isso o que Lady Loffertie queria. Era justamente o contrário: queria que todos a respeitassem por seu temperamento amistoso.

Acreditaram que todo aquele mistério era um código. A fama de uma pessoa, concluíram, é coisa muito próxima: é a sua alma, espírito que ganha forma e que se agiganta tomando proporções tais que eliminá-la se torna uma tarefa impossível. Mas para tão complexo intento a rainha, certamente, iria convocar matadores com maior capacidade de planejamento. Por isso, acreditaram que a tarefa seria fácil. Com a simplicidade com que desenvolviam sua labuta, enxergaram que este poderia ser, de verdade, o serviço mais simples para o qual já haviam sido contratados. Desta maneira concluíram que o estigma em questão deveria ser elemento representado por figura única e não a coletividade ou algo abstrato.

Ao analisarem o histórico de Lady Loffertie viram que se tratava de uma mulher solitária, pois o marido morrera antes mesmo de se tornar rei. Alguns disseram que foi picada de cobra, outros que fora a própria Rainha do Inferno que o asfixiara durante o sono. Certo é que Lady Loffertie era quem mandava em Melgraste e apenas uma pessoa era fiel e estava permanentemente ao seu lado: a empregada Thebiane. Seria ela, portanto, a chave para se desvendar o mistério.

Thebiane raramente saía do castelo, mas num determinado dia em que foi visitar sua tia Jividain, foi abordada pela dupla, que já a espreitava.

– Tu sabes! Vives com ela! Como podemos matar a fama de má de Lady Loffertie? Diga-nos e serás poupada da morte!

Thebiane assombrou-se como nunca antes na vida. O ranço de morte parecia perseguir não apenas sua patroa como ela própria. A rainha querer acabar com a fama de assassina era algo bom e justo, mas aquela coerção animalesca, certamente, não parecia a melhor maneira de trabalho de pessoas tão experientes quando o assunto era óbito. Com uma faca apontada para si, a empregada que sempre jurou fidelidade agora deveria dizer o impossível, o impensável.

– N-não sei... ela quer muito acabar com tudo isso, mas sou a pessoa menos indicada para prestar-lhes auxílio nessa busca!

– Anda! Diga logo se não quiseres morrer como todos os que cercam sua patroa!

Thebiane não pretendia ser infiel logo agora, quando havia de provar seu amor, quando era a única a desconsiderar o lado ruim de sua patroa. A empregada viu que uma resposta coerente deveria ser dada para escapar da morte na mãos dos chacais e, num lampejo, percebeu que se Lady Loffertie queria tanto acabar com sua fama, nada mais restava que sua existência fosse levada ao ocaso, como ocorrera com o rei Komelaw, que após a morte na colina viu sua reputação ser alterada, tendo, inclusive, praça inaugurada com seu nome.

– Não há como acabar com a fama de criminosa da Rainha a não ser acabando com a fonte – disse áspera e séria, e com um tom meio maldoso, a empregada.

– Como assim?

– Liquidando a própria rainha. Matando Lady Loffertie! – Thebiane revestiu-se com um purificador sentimento de salvação, tanto de sua pele quanto da fama de sua patroa. – Ao matarem Anne Loffertie, a Rainha do Inferno, esta morrerá da maneira com que sempre sonhou: amada pelo povo, com direito a estátuas e homenagens.

Logan e Ygor surpreenderam-se com tamanha inteligência e chatearam-se por não alcançarem essa resposta logo que a proposta foi feita. A Rainha do Inferno foi morta pela dupla e, como a filha desta já havia sido assassinada em circunstâncias não explicadas, Thebiane, a empregada, assumiu como nova titular da realeza. Mas o que importava é que a fama mortuária de Lady Loffertie mudou. De pessoa má e traiçoeira passou a ser a mais caridosa das rainhas póstumas.





quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Revista

Não acredita?
Vai, pode revistar.
Toca. Apalpa.
Não me importo com teu bafo no meu cangote.
Aperta.
Tá sentindo?
Palpitando?
Ofegante?
Vasculha meus bolsos.
Pode meter a mão.
Sente o volume...
E o côncavo.
Cheira.
Assim.
Mais pro meio.
Sente a textura.
Olha bem, olha.
Eu deixo. Fico quietinha.
Ainda não se convenceu? Vasculha mais!
Quer uma dica?
Sobe um pouco.
Isso. Aqui, ó, sente...
bem do lado esquerdo do peito.


Mariana Valle

*foto de Alexandre Grand

Para ler os textos anteriores da autora, clique aqui





terça-feira, 15 de setembro de 2009

Entrevista com Luis Dill

Gaúcho de Porto Alegre, o jornalista e escritor Luis Dill, 44 anos, tem 21 livros publicados, principalmente de literatura infanto-juvenil (classificação que ele rejeita, por acreditar que classificações são sempre excludentes, como se outro público não pudesse ler tais livros).
Foi vencedor do prêmio Açorianos de 2008 com o livro de contos policiais Tocata e Fuga, publicado pela Bertrand Brasil. Também foi indicado várias outras vezes para esse mesmo prêmio, o principal do Rio Grande do Sul.
Tem livros, entre outras editoras, pela Edições SM, Cia das Letras e Artes & Ofícios. Um fato interessante é o primeiro livro que ele publicou foi escrito em apenas um mês. Ele tinha batido (literalmente) na porta de uma editora em Porto Alegre para oferecer um livro, que era um romance policial voltado ao público adulto. Eles disseram que gostaram do seu estilo de texto, porém naquele momento não estavam publicando o gênero; se ele topasse, poderia apresentar um original infanto-juvenil. Ele nunca tinha escrito nada para esse público, mas saiu dali e começou a escrever. Um mês depois, o livro estava sendo enviado à editora.
Passados 20 anos, ele segue se dividindo entre a escrita e o jornalismo (trabalha na FM Cultura), mas já conseguiu deixar um dos dois empregos que tinha antes para dedicar parte do seu tempo à escrita. É muito lido em escolas, onde também dá palestras com frequência.
O site do escritor é www.luisdill.com.br. Confira aqui a entrevista que ele concedeu à Samizdat.

Samizdat: Sua inserção no mundo da literatura infanto-juvenil foi incidental, dadas as exigências do mercado editorial. Quais são as especificidades deste gênero? O que é necessário ter em mente ao se escrever para o público infanto-juvenil?
Luis Dill:
Não vejo grandes diferenças entre literatura juvenil e literatura adulta. Sequer gosto dessas segmentações. Para mim é tudo literatura. O que tomo como regra para mim é evitar palavrões e cenas muito explícitas em termos de sexo e de violência quando escrevo livros destinados aos jovens. Penso que o gênero requer ritmo, boa estrutura narrativa, ação e, sobretudo, qualidade.

Samizdat: A literatura policial costuma retratar os problemas sociais e, mais do que isto, características dos povos de seus países de origem. Como você percebe isto na literatura policial do Brasil? Quais são as nossas características (qualidades ou defeitos) que tendem a transparecer no desenrolar de uma trama?
Luis Dill:
Na literatura policial feita no Brasil, a cara do nosso país fica evidente. Por exemplo, quando se fala em crimes de colarinho branco ou crimes de bandidos "comuns". Literatura tem disso: é espelho.

Samizdat: Quais são os elementos de uma boa história policial?
Luis Dill:
Bons personagens, boa trama e respostas convincentes para solucionar o livro. Pontas soltas ou soluções fáceis "matam" o livro.

Samizdat: Como escritor de policial, você consegue perceber os "bastidores" da narrativa de outros autores? Você tomou algum autor de romance policial como referência?
Luis Dill:
É difícil perceber isso, a menos que se conheça bem o autor e suas motivações. Minhas referências são as mais variadas. No gênero policial, comecei com Hammett e Chandler. No Brasil admiro muito o Marçal Aquino.

Samizdat: Nos EUA, o gênero policial é um segmento muito importante do mercado editorial, com vendas impressionantes e grandes autores consagrados. Qual é o bloqueio brasileiro em relação ao gênero, na sua opinião? Está do lado das editoras, dos autores ou dos leitores? Ou teria algo a ver com uma descrença generalizada dos brasileiros em relação ao aparelho repressor do Estado - polícia, sistema penal e carcerário - , isto é, como acreditar em romances policiais se vemos tanta impunidade por aí?
Luis Dill:
Não sei ao certo se existe um bloqueio em relação ao gênero. Talvez faltem mais autores de qualidade. Não temos tradição no policial, mas acho que isso está mudando. E penso que a questão da impunidade pode muito bem aparecer em romances policiais. Acreditar ou não vai do leitor. Se entrarmos por esse lado, não leríamos ficção científica nem histórias de fantasia.

Samizdat: Seu conto O carteiro nunca chama duas vezes fala de um "assassino profissional". Matadores de aluguel existem, ou são arquétipos de personagens de ficção (como os detetives de filmes noir)?
Luis Dill:
Matadores de aluguel existem. Claro. Há inúmeras reportagens a respeito. Em alguns cantos do país, é quase uma profissão respeitada.

Samizdat: Como foi a experiência de reescrever Machado de Assis? Qual (ou quais) histórias você "recontou" em Machado de Assis - Conto e Reconto?
Luis Dill:
Recontei Pai contra Mãe. Foi uma tremenda responsabilidade, mas me diverti muito trazendo aquela história para um morro de Porto Alegre nos dias de hoje. O livro ficou tão bom que foi adquirido em grande quantidade pela prefeitura de São Paulo.

Samizdat: Hoje é possível encontrar obras inteiras na internet, que podem ser "baixadas" de sites especializados sem pagar nada por isso. Como você vê a questão do mercado editorial? As editoras terão o mesmo destino das gravadoras?
Luis Dill:
Acho que não. Sou a favor de todas as novas tecnologias. Não se pode deter o futuro. Só que acho insuportável ler no computador. Jamais trocaria um livro tradicional por algo "baixado" da inter net.

Samizdat: Você conseguiu publicar seu primeiro livro após bater, literalmente, na porta das editoras. Atualmente, esse expediente ainda é válido para o escritor iniciante?
Luis Dill:
Claro que sim. Hoje ficou mais fácil publicar, mas ainda acho saudável bater de porta em porta, conversar com gente do ramo, aprender. Isso ajuda a não cometermos erros por pressa em publicar.

Samizdat: Seu primeiro livro publicado foi escrito em cerca de um mês, e em um gênero, juvenil, que você não dominava. Diante disso, qual o seu conselho aos aspirantes a escritor que não conseguem terminar suas histórias?
Luis Dill:
Ler constantemente. Reescrever constantemente. Planejar também ajuda.

Samizdat: No Brasil, dá para viver de literatura?
Luis Dill:
Tem gente que consegue. Eu ainda estou trabalhando para atingir esse patamar.

Samizdat: Em que sua formação e o exercício da profissão de jornalista influenciou sua produção como escritor de ficção?
Luis Dill:
Um pouco não muito. São atividades de certa forma antagonônicas. Um trabalha com ficção e o outro com a realidade. Se eu fosse veterinário, por certo um pouco da profissão entraria nos meus livros.

Samizdat: Estamos no meio de uma polêmica bastante recente: a decisão do STF sobre o fim da exigência de diploma para exercer o jornalismo. Você, que é jornalista e escritor, que pensa a respeito?
Luis Dill:
Sou contra. E espero que as empresas de comunicação deem preferência aos profissionais formados.

Perguntas feitas por: Volmar Camargo Jr, Henry Alfred Bugalho e Maristela Scheuer Deves
Coordenação da entrevista: Maristela Scheuer Deves





domingo, 13 de setembro de 2009

O menino de Tribiguá

José Guilherme Vereza

Tribiguá não é nada. Aliás, nunca foi coisa alguma. Mesmo em tempos de duvidosa prosperidade, quando ainda existiam algumas chácaras preguiçosas e gente em volta de uma estação de bonde, muito antes de ser carcomida pelo mau planejamento urbano que rompeu os limites da capital e da dignidade humana, Tribiguá só era reconhecida pelos seus próprios moradores na hora de preencher ficha. Nada que aquele passadouro infame, ponto de troca de mulas exaustas de puxar bondes, pudesse ser motivo de orgulho pátrio. Mas mesmo assim, ainda foi capaz de gerar uma história onde a vida tinha reles importância.

*****
- Esse menino não é de nada, Marieta. Culpa sua.
- Culpa minha, Jurandir? De onde ele tirou essa mania de não querer nada com a vida?

*****
Cantídio, de Marieta e Jurandir, tinha estranho interesse, que aflorou com o trágico esmigalhamento de Farrapo pelas patas de uma mula descontrolada, desengatada do seu bonde. Cantídio recolheu as sobras do vira-lata, jogou tudo dentro de um saco, cavou um buraco no quintal e procedeu a um rito funerário, muito menos por alguma afetividade pelo cachorro, muito mais por gosto pela celebração. A partir de então, cuidava da cova como quem zela por um jardim de crisântemos.

*****
Morreu D. Margarida. De tanto tossir seu coração desistiu. Tribiguá fez fila porta do sobrado. Cantídio dormiu na escada noite adentro, até que a família abriu as portas da sala para o velório. Como primeiro a chegar, apossou-se da cabeceira do esquife. Recusou croquetes, coxinhas, suco de groselha. Ficou horas de sentinela, a passear os olhos pelos restos magros de D. Margarida, por uma ótica inversa e curiosa, fitando a morta de cabeça para baixo, fixando-se no revoar das mosquinhas de banana sobre seu rosto pálido, sereno, inócuo. Quando a tampa do caixão decretou o fim da festa – da vida e do rega-bofe de D. Margarida – , Cantídio, teve, enfim, um arroubo. Coordenou como um maestro o aperto de cada tarraxa e organizou a disputa pelas alças.
- Na frente, os filhos, por favor. Genros e cunhados pelos lados e atrás.
E vida que segue.

*****
Salvo pelo interesse repentino pelos funerais de Farrapo, pouco se conhecia de alguma iniciativa normal ou gesto marcante de Cantídio, ao longo de seus 11 anos. Nunca foi visto jogando bola, roubando manga, saindo para comprar pão, essas coisas. Já nos tempos dos bondes elétricos, nunca se arriscou a pular num deles andando. Na escola era um mequetrefe. Aprendeu a ler, escrever, somar, subtrair, dividir e, com muito esforço, multiplicar. Sabia dos afluentes do Amazonas, das preposições acidentais e da gloriosa participação de Tribiguá na Guerra do Paraguai, na figura do ajudante de sapateiro Arlindo Ventura, cujo busto em plena praça disfarçava de herói um ordinário engraxate de botas de oficiais que voltavam dos charcos. Enfim, de matemática, linguagem, geografia e história, era tudo que Cantídio dominava. E mais nada. A conta do chá para levar a vida, sem vontade e sem presença. Mas diante de um corpo estendido, aí sim, revelava-se o barão das providências.

*****
- Raulino! Avisa para D. Juracy que o marido dela acabou de ser atropelado pela carroça leiteira. Bateu com a cabeça no dormente do bonde e até já parou de estrebuchar. Que traga velas e muita choradeira, como bem merece o coitado.
- Clementino!!!! Clementino!!!! Que fizeram com você?!, Clementino!!!
Chegou D. Juracy destrambelhada, atendendo ao alarmes de Cantídio, que não largou o defunto um minuto sequer. Cobriu-lhe de jornal e a viúva de abraços. Acendeu as velas, relatou o ocorrido aos entes, curiosos e transeuntes, e esperou até o sol raiar o furgão da delegacia levar Clementino para um bom banho e uma muda de roupa digna. Cantídio acompanhou tudo. Enrolou atadura na testa magoada, entrelaçou o terço nos dedos e deu nó na gravata. Meio troncho, mas para o que servia, servia. Comandou os funerais com a desenvoltura de um papa-defunto de alta patente, mas diante da estupidez da morte, ninguém teria a sensibilidade para perceber que ali, bem ali, atrás de um menino esquálido, cara de idiota entre duas orelhas de abano, se escondia uma vocação, um talento, um prodígio. À última pá de cal, à dispersão dos suspiros e soluços, Cantídio retornava à sua pasmaceira.

*****
Esparramado na rede da varanda, olhos atentos ao nada de uma madrugada sem lua, Cantídio mal ouviu palmas no portão.
- Ô menino... levanta daí. É com tu mesmo com que quero falar.
- É comigo? A essa hora?
- É menino! Preciso que venhas logo!
Nunca na vida Cantídio tinha ouvido que alguém pudesse estar precisando dele. Por isso demorou mais um tanto para se desvencilhar do cordame da rede e se colocar de pé, a ponto de enxergar ao longe um vulto magro e aflito.
- Sou eu, Cantídio! O professor Bonaparte!

*****
Bonaparte de Alves Gusmão, diretor do Grupo Escolar, sujeito estranho de vestes soturnas, poucos sorrisos e cavanhaque de bode, que com olhares rígidos governava anos a fio a disciplina das crianças de Tribiguá. Mais zeloso por condutas do que por ensinamentos, o Professor Bonaparte tinha tanta influência nas famílias quanto o pároco, o delegado e o boticário. No entanto, sua existência era um mistério e poucos arriscavam especular sobre suas intimidades. Não era casado. Não tinha filhos. Não tinha parente. Não se sabia de criados na sua casa, tida como mal-assombrada e de maus agouros. Nunca foi visto num sábado, domingo ou feriados a zanzar pelas ruas. O que emergia da sua vida era a dedicação plena aos afazeres de professor. De casa para escola, da escola para a casa, com algumas raras aparições em almoços ou jantares oferecidos por mães bajuladoras, que precisavam se orientar diante de um ou outro problema dos filhos. Bonaparte ouvia atento as mais variadas lamúrias, mas na hora do cafezinho, barriga cheia e alma restaurada, a conclusão era sempre a mesma:
- São crianças, minha senhora. É por isso que temos que estar de olhos em alerta aos desvios da mocidade.

*****
- Preciso que tu me acompanhe à minha casa, Cantídio.
- Na casa mal assombrada, professor?
- Poupe-me de tuas asneiras, menino. É uma casa sóbria, como convém a um templo de conhecimento sabedoria...
- Agora?
- Agora! Enquanto Tribiguá dorme...

*****
No rastro do professor, trilhando o caminho do bonde, Cantídio seguiu em silêncio e curioso. Perguntava a si mesmo por que teria sido escolhido para desvendar os mistérios que habitavam atrás das grades pesadas, da porta de madeira escura e dos janelões indevassáveis. Ao chegar ao portão, tremia. Não pela brisa da madrugada, mas de excitação. Bonaparte abriu o cadeado e num gesto cordial ofereceu entrada para o menino, que pé ante pé, penetrou sem medo, mas com alguma taquicardia. Seus olhos vasculhavam cada detalhe, mas casa não era diferente do que imaginava. Viu móveis empoeirados, livros e mais livros espalhados pelo chão, quadros velhos e belas artes em teias de aranha. Um sofá manchado pelo tempo diante de uma escrivaninha com um globo terrestre foi o lugar onde Cantídio escolheu para se sentar, tão logo o professor lhe dissera para ficar à vontade. E tudo começou a ficar claro.
- Não te preocupe, menino, vou ser breve, pois tão logo o primeiro bonde vai passar. Não temos muito tempo.
Cantídio se aprumou no sofá, diante do velho de pé, por trás da escrivaninha. Nada disse, só queria descobrir o rumo da prosa.
- Meu filho, como imaginavas, sou um homem sábio e solitário. Tudo que aprendi na vida e nos educandários de nada serviu para esta póvoa inútil em que vivemos. As pessoas obtusas e refratárias que habitam Tribiguá não me inspiraram a constituir uma família e dar prosseguimento à minha linhagem. Nunca houve formosura entre nossas moças. Nunca houve verve em nossas crianças. A escola é povoada de idiotas como tu, que pouco aprendem e muito trabalho dão aos pobres pais. Não, não estou falando de tuas traquinagens, pois até para isso és incompetente. O trabalho que dás é a pasmaceira em que vives. És símbolo da mediocridade de Tribiguá, com uma ligeira diferença a teu favor. E como tal, tenho cá uma oferta.
Cantídio acompanhou a mão de o velho abrir uma gaveta e de lá tirar um papel com letras rebuscadas.
- Eis meu testamento. Ficam para você este casarão, incontáveis livros, móveis que estão entre o lixo e uma restauração, quadros sem valor e 15 cabeças de gado, confinados num curral a três estações daqui. Todos os animais têm um B de Bonaparte marcado a fogo no dorso esquerdo. São teus.
O menino, então, conseguiu se manifestar.
- Mas por que eu, professor?
- Como disse, Cantídio, sou sábio e observador. Sei de teu fascínio pela morte. Esta é a tua personalidade. E como tal, trate de cultivá-la. E pela rara coragem de ser tão peculiar, te faço duas ofertas. Uma aqui está na minha mão, meu testamento.
- E a outra, professor?
- Um momento, menino.
O velho abre outra gaveta e retira uma garrucha semi enferrujada. Enfia o cano pela própria boca e explode os miolos. Cantídio levanta do sofá. Permanece estático, embevecido, enfeitiçado por aquela sangueira sobre a escrivaninha. O globo terrestre rola pelo chão, como se fugisse em direção a porta. O menino entende tudo. Jamais a vida havia lhe oferecido um presente tão magnífico: assistir ao exato momento da morte não era homenagem que se prestasse a qualquer um. Orgulhoso e eufórico, Cantídio sai em disparada pelos trilhos. Com muita pressa. O primeiro bonde da manhã já deveria estar a caminho.

*****
Os funerais do Professor Bonaparte foram concorridos. Crianças do Grupo Escolar entoaram cantigas de adeus num coral pouco afeito a harmonias e afinações. Mães órfãs de seu conselheiro deram se as mãos e Cantídio, com sua voz frágil e aflautada, puxou um pai-nosso-que-estás-nos-céus de transbordar os olhos da cidade. O padre abençoou a urna prudentemente lacrada, pois a cabeça do professor tinha se transformado numa maçaroca de causar engulhos e pavores. O delegado discursou pela alma do suicida. E o menino sorriu por dentro. Além da gloriosa cena em sua memória, tinha agora um casarão, alguns livros e 15 vacas a contabilizar.

*****
Tribiguá não é nada. Aliás, nunca foi coisa alguma. Imagine que os infelizes daquele passadouro, curral de mulas e gente de maus bofes, espalharam que Cantídio teria matado o professor só pra ficar com a herança. O menino deprimiu de vez. Nem arrumou as trouxas. Pegou o bonde da madrugada, foi até o fim da linha e sumiu na escuridão da mata, deixando pai, mãe, parentes, escola, o casarão, quadros velhos, incontáveis livros, 15 reses e a vida para trás.

*****
Nunca mais se ouviu falar de Cantídio. Diz a lenda que foi parar no cemitério municipal, onde sua alma vaga, entre mausoléus, sepulturas abertas e restos de gente expostos. Até hoje, não há velório em Tribiguá que não se ouça uma voz de menino, frágil e aflautada, puxar um pai-nosso-que-estás-no-céu. Não se sabe de onde vem nem como acontece. Mas é sempre a mesma voz, de explodir suspiros e transbordar os olhos da cidade.





sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Vermelho Rutilante

Apontavam-na como a mulher que nunca havia pintado os lábios. Todos brancos, pálidos. Pintou a todos de vermelho.





quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O Diário Vermelho


Eu não tenho muita gratidão com aqueles que me criaram. Meu pai, negligente, minha mãe, submissa. Não foram os pais exemplares, mas eu também não fui um filho exemplar, então, estamos quites.

No entanto, compadeci-me diante do choro duma mãe angustiada. O filho de Maria estava desaparecido há mais de dois meses, e ela não tinha notícias sobre o paradeiro dele, se vivia, ou se estava morto.

Só que ela sabia quem eram os responsáveis pelo sumiço do rapaz e por qual motivo.
Edgar era jornalista dum folhetim de orientação esquerdista (para não dizer comunista), sob pseudônimos, criticava duramente as práticas militares, satirizava o “Braço Forte” dos milicos. Tudo estava ótimo, enquanto protegido pelo anonimato.

Mas um delator revelou o nome do editor do jornaleco, que, por sua vez, sob tortura, deu com a língua nos dentes e entregou todos seus colaboradores. Numa abominosa noite, quinze pessoas, de jornalista a contínuo, foram arrancadas, a bordoadas, de suas casas e conduzidas aos porões do Exército.

Esta foi a última vez que Maria viu seu Edgar, olhos esbugalhados, gritando por piedade, sendo arrastado pelos cabelos por homens fardados. Em tantos anos de viuvez, esta foi a única ocasião em que Maria se alegrou por Timóteo, capitão galardoado da Aeronáutica, não estar presente para ver seu filho vítima da intolerância.

— De quem você suspeita? — indaguei e, sem hesitação, sem dúvida alguma, Maria respondeu.
— Do Coronel Castro e Silva.


Tocaiei o coronel por dois ou três dias, mas seria impossível me aproximar dele, sempre fortemente escoltado. Resolvi que teria de começar por baixo, procurando os milicos que perpetraram o crime, se eu conseguisse derrubá-los, talvez o cabeça também rolasse, mas, partir de cima, seria um objetivo inalcançável.


Voltei a conversar com Maria, tentar fazê-la se lembrar do nome ou das feições de algum dos soldados que invadiram sua casa, mas a memória dela estava enuviada pela terrível experiência.
Obtive os endereços dos outros quatorze desaparecidos e realizei a via crucis de conversar com cada um dos parentes. Alguns se recusaram a falar, evidentemente aterrorizados, talvez até por causa de ameaças; outros forneceram poucas, mas valiosas informações. Cheguei a três nomes consensuais: sargento Brandão, cabo Pires e soldado Tíbuli.


Seguindo meu plano, que era começar pelo mais baixo na hierarquia, passei a investigar Tíbuli. Não foi difícil encontrá-lo, qualquer um o conhecia na região do quartel, era benquisto e simpático, pelo que diziam. Ele morava num bairro pobre, era jovem e tinha uma esposa mais jovem ainda, barriga roliça quase pronta para trazer ao mundo um Tibulizinho. O rapazola acordava cedo e se encaminhava ao quartel. Ao fim do dia, voltava para casa, jantava assistindo TV e dormia cedo, possivelmente arrebentado por causa da rotina militar.
Mudei o foco para o cabo Pires. Este morava com os pais, no segundo andar dum sobrado. Tinha uma rotina semelhante a Tíbuli, excetuando que, à noite, ele saía para a farra com os amigos, todos milicos.

Frequentavam um arrasta-pé no Bairro Novo, onde sempre alguém acabava baleado. Numa destas noitadas, Pires se engraçou com uma negrinha, mas o irmão dela não gostou e foi tirar satisfações. Pires se ofendeu, sacou a pistola e, sem pudor algum, berrou:
— Já tenho doze mortes nas costas, quer ser mais um na conta? — o irmão da moça saiu de mansinho, deixando-a para as apalpadelas do cabo Pires.
Eu não tinha motivos para duvidar desta asserção do militar, por isto, fechei o cerco sobre ele. Numa das folias noturnas, aproveitei para entrar no quarto de Pires e fuçar suas coisas, não encontrei nada que o incriminasse, mas não desanimei. Permaneci no encalço dele.


Pires e sua turma rumavam ao Bairro Novo, eu dirigia atrás. Sem aviso, o carro deles freou; fiz o mesmo, fritando os pneus e quase me chocando com o veículo à frente. Senti, então, o impacto vindo de trás, um outro carro não conseguiu frear e me ensanduichou contra o automóvel de Pires. Pensei ter sido um acidente, eu estava sangrando, mas nenhum ferimento grave. Porém, quando os rapazes saltaram dos veículos à minha frente e atrás, percebi que eu havia caído numa armadilha.

Pires abriu a porta do meu carro, pistola em mão, e me arrancou para fora.
— Por que você está me seguindo, seu corno? — ele socou a arma na minha boca.
Resmunguei.
— O quê? — Pires desrecheou minha boca.
— Eu disse que não posso explicar nada com você enfiando um revólver na minha boca — zombei.
Pires me pisou a cabeça contra o aslfato.
— É um engraçadinho! Pelo jeito, vou apagar um palhaço hoje.


Eles me amarraram a uma árvore e, até o nascer do sol, me esmurraram e repetiram a pergunta:
— Por que você está me seguindo, seu corno?
No princípio, permaneci calado, aguentando estoicamente as porradas, mas, depois, simulando haver entregado os pontos, revelei ser um jornalista investigando o desaparecimento da equipe de “O Diário Vermelho”.
— Puta que pariu! É amigo daquela turma! — um deles deixou escapar.
— Como é que você chegou na gente? — outro questionou, voz vacilante.
— Uma fonte me disse que vocês estavam de serviço no dia em que os repórteres desapareceram. Pensei que talvez vocês pudessem me dar alguma informação. Nunca imaginei que fosse apanhar tanto por causa duma matéria... — fiz-me de coitado e desentendido.
Todos riram, como seu eu os houvesse aliviado dum peso enorme.
— É um otário! — Pires concluiu — Deixa ele amarrado aí, para servir-lhe de lição.


Debati-me por horas, até que conseguir alcançar meu canivete no bolso da calça e me libertei das cordas. Mas agora eu já possuía duas certezas: Pires sabia que eu o estava seguindo; e eu já tinha certeza de que ele e os amigos estavam com os rabos mais do que presos.
Além disto, percebi que precisaria de ajuda. Liguei para Maria e avisei que o serviço ficaria mais caro do que o planejado, mas ela me deu carta branca para fazer o que fosse necessário.


Carlão e Trancoso eram irmãos, sócios duma empresa de segurança. Contratavam leões-de-chácara para boates e capangas para milionários.
— Disponibilizaremos nossos melhores homens — eles me garantiram.
— Preciso de homens de confiança, vocês dois me bastam — retruquei.
Eles me asseguraram que não faziam mais trabalho pesado, que agora “só gerenciavam o negócio”, mas eles me deviam um favorzão, dívida pelos velhos e bons tempos, e acabaram concordando.
— Mas só porque é você, Vico, se fosse outro, a gente batia o pé e era não.


Pegamos o pobre Tíbuli quando ele voltava do quartel, encapuzamo-lo e o metemos no porta-malas do carro. Depois, foi a vez de Pires. Molhamos a mão duma puta, que o atraiu para fora do arrasta-pé e, num barranco, enchemos o cabo de porradas e o jogamos na traseira para fazer companhia a Tíbuli.
Levamo-los para um galpão abandonado e foi a nossa vez de atuarmos como verdugos. Pires resistia, mas, após alguns safanões, Tíbuli abriu o bico:
— Eu não queria matar aquelas pessoas! Eu não queria! — chorava feito um maricas — Foram ordens!
Ele revelou, então, que quem comandou a operação havia sido o sargento Brandão, sob ordens diretas do Coronel Castro e Silva.
— E onde os corpos foram enterrados? — perguntei.
Mas Tíbuli não sabia, alegava que sepultá-los havia sido incumbência do cabo Pires.
Como o colega já havia entregado tudo, Pires não via mais razão para ficar apanhando calado.
Prometeu nos mostrar as covas, numa fazenda a quilômetros da cidade.


Os dois milicos passaram a noite abrindo a enorme vala comum, iluminados apenas pelos faróis do automóvel. Os corpos já estavam em avançado estágio de decomposição, mas ainda seria possível reconhecê-los.
Deixei Carlão e Trancoso cuidando dos assassinos e dirigi até um posto de gasolina, de onde liguei para Maria, avisando que, infelizmente, havíamos encontrado o filho dela, e fiz uma segunda ligação, ciente de que era este o único modo de atingir a alta cúpula do Exército.


Nas primeiras páginas dos maiores jornais do país estava estampada uma foto enorme de Maria, ajoelhada ao lado do cadáver do filho, chorando. Dois dos assassinos estavam amarrados e amordaçados, logo ao lado da vala comum. Os jornais se questionavam sobre quem seriam “os vingadores misteriosos” que solucionaram este massacre e apresentavam os nomes de vários outros suspeitos, incluindo o sargento Brandão e o coronel Castro e Silva.
A primeira peça a cair foi Brandão, indiciado por múltiplos homicídios; os outros perpetradores do crime foram exonerados e julgados por júri popular; coronel Castro e Silva foi rebaixado e enviado para assumir um cargo no interior, mas logo o caso foi abafado e esquecido.


Alguém bateu à porta do meu escritório e mandei entrar. Ao ver a figura, logo a reconheci, apesar de apenas tê-la visto nas manchetes.
— Você é o detetive Vico? — o visitante perguntou, mas eu só traguei meu cigarro e sorri — Estamos de olho em você, seu desgraçado. Sua hora vai chegar! Vai ter paga! — e partiu.


“Vai ter paga!”, quantas vezes não ouvi isto?
— Estarei esperando... — sussurrei, espiando, pela persiana, Castro e Silva sumindo num carro de luxo.


Este conto integra o obra "O Covil dos Inocentes, e alguns contos do detetive Vico".





terça-feira, 8 de setembro de 2009

Laboratório Poético: mistério

Funeral marítimo

Volmar Camargo Junior




grito

um gosto salgado
nauseante
chega-me aos cantos da boca
alguém a bordo morreu

por um vento inconcebível
vago à deriva
jogado pelas correntes
possivelmente louco,
temeroso, mas ciente do meu destino
renego os nomes que carrego
e na ciência da vontade que me habita
agarro-me ao silêncio
o pouco dele que ainda me resta

o meu silêncio não é só
à hora de dizer, nada
a boca salgada e a voz calam
o coração das coisas não ditas
pulsa ainda, vivo, feliz
porque o realizado
tem o infortúnio de existir
somente se está morto

ao meu silêncio fazem companhia
as ditosas frases esperançosas
e mesmo as esperanças
felizes, livres de vir ao mundo
pois não há quem as julgue
ou rejeite

mais delas estariam vivas
se ninguém as proferisse
ou quisesse pôr fim às dores alheias
mas alguém a bordo morreu

não lhes acendo velas
nem lhes guardo a cabeceira
do leito derradeiro
não as limpo
nem as visto com uma mortalha digna
- mereciam, mas não o faço -
pobres defuntas
desperdiçadas

consola-me apenas
lançá-las ao mar
deixar que essa imensidão decida
que rumo tomarão
submergirão, esquecidas
ou consumidas pelas coisas inomináveis
que fazem com que tudo aquilo que cai no mar
torne-se, vivo ou morto,
também o mar

consola-me o mar
meu silêncio não está só
sei, pois carrega as pobres mortas
e o vento, outra vez, leva-me adiante





Os gatos de Pereirópolis

Volmar Camargo Junior


Há muito tempo, mais ou menos na época em que o Ariri Pistola estava ficando rico levando mulas para São Paulo, aconteceu essa história. Pereirópolis ainda se chamava Vila da Pereira. Era um lugar tranqüilo, e ninguém tinha motivo para desconfiar ou querer mal aos seus vizinhos. Aliás, todo mundo era vizinho, já que viviam por aqui apenas trinta famílias. Todos se conheciam e, como se pode imaginar, um sabia da vida do outro.

Quando os tropeiros fundaram a vila, morava aqui uma benzedeira, muito, muito velha, miudinha, de cabeça branca e pele enrugada como uma uva passa. Não era bugra, nem correntina, gringa ou alemoa, e também não falava o português. Apesar disso, entendia tudo o que lhe diziam e, do seu jeito, se fazia entender — tanto que até hoje se sabe o nome que ela usava: Divige. Outra coisa sobre a velha benzedeira que virou lenda eram os seus gatos. Pelo que ouvi falar, a mulher vivia com mais de cem gatos dentro de casa, de todos os tipos, cores e tamanhos. Mas a gente sabe que os números de uma história contada de boca em boca tendem a aumentar.

Não havia hospital por perto — e olhe que perto naqueles tempos era bem diferente do que é hoje. As primeiras crianças nascidas aqui vieram ao mundo com a ajuda da Véia Divige, que era uma ótima parteira. Além disso, quem sofresse de alguma mazela, bicheira, mal-estar, diarréia, dor, machucadura ou torção era levado imediatamente para ser benzido pela velha. Ela fazia o serviço com brasa na ponta de uma tesoura. Fazia também umas chapoeiradas de plantas que ela sempre tinha no casebre de pau-a-pique. Quando não estava benzendo ou ajudando uma mãezinha a parir, a velha estava ao redor da casa, fazendo suas medicinas. Moía ervas, folhas e raízes num pilão feito de toco com um socador duas vezes maior que ela. Dona Divige era a médica, a farmacêutica e a farmácia da Vila da Pereira.

Nessa época, chegou à cidade um grupo de andarilhos que veio dos lados de Passo Fundo. Ninguém soube dizer se eram ciganos, artistas de circo, comerciantes, ou só vagabundos mesmo. Logo que chegaram, um rebuliço de opiniões controversas correu pela vizinhança. Permitiram que ficassem nos arredores da vila, com a condição de não causarem transtornos.

Dentro de pouco tempo, os moradores começaram a perceber coisas erradas. No início, sumiram miudezas como roupas de varais, galinhas dos terreiros, ovelhas do pasto. Depois, objetos de valor, subtraídos de dentro das casas: moedas, jóias, facas de prata. Até o ostensório da capelinha desapareceu sem qualquer vestígio do ladrão. As suspeitas, naturalmente, recaíram sobre os forasteiros. Apesar de abrirem seus casebres para quem quisesse procurar os objetos roubados, nada era encontrado, e a desconfiança contra os tais só aumentava.

Num certo fim de tarde de sexta-feira, uma das moças da vila não voltou para casa. A comunidade, posta em polvorosa pelos pais da menina, armou-se com paus, pedras e ferramentas de trabalho e arremeteu em peso contra os estrangeiros. Pegos de surpresa, os forasteiros não puderam reagir a tempo. Tudo indicava que os fulanos não escapariam vivos. Numa tentativa de defesa, o chefe do bando levantou a suspeita de que Dona Divige, a benzedeira, era a responsável pela desgraça. Segundo ele, a velha era uma bruxa, e eles, na verdade, eram os encarregados de capturá-la. A prova da culpa eram os gatos. Os animais eram os companheiros da feiticeira, criaturas vindas do inferno que, a cada década, precisavam alimentar-se de uma virgem em uma sexta-feira de lua cheia.

Convencida pelos argumentos do homem, e incentivada por ele, a turba de aldeões mudou de direção. Em minutos, acometidos pela fúria, homens, mulheres e crianças da Vila da Pereira investiram contra a minúscula casa da rezadeira. Misteriosamente, nem a velha nem os gatos estavam mais lá, o que, para todos, foi a prova necessária para condená-la. Atearam fogo em seus míseros pertences, acompanhados de gritos e expurgos contra os maus espíritos, entoados pelos que se diziam caçadores de bruxas.

Uma busca durante toda a noite foi conduzida pelos maridos e primogênitos da aldeia nos matos das redondezas. Os forasteiros, rapidamente promovidos a heróis, foram com eles. Hora após hora, e nenhum sinal da Véia Divige. Quando a madrugada ia avançada e a lua cheia estava no meio do céu, ouviu-se um grito medonho, de gente sentindo muita dor, “Acuda!”, seguido de uma barulheira, como se fosse uma briga de gatos por um pedaço de carne. Em seguida, outro berro, ainda mais terrível. Depois outro, e mais gatos, e outro, e muito mais gatos. Foi o horror! Os homens da vila estavam embolados, amedrontados, acuados feito bichos indefesos. Findos os gritos, os valentes correram a toda velocidade de volta para casa. Ninguém dormiu aquela noite.

Assim que o dia nasceu, os que haviam ficado de guarda correram chamar todos para ver o inesperado. A rapariga, que todos julgavam morta, apareceu com a cara amassada de quem acabou de acordar. Disse que havia comido umas frutinhas diferentes perto do açude e pegou no sono. Foi grande a comoção pela volta da mocinha, todos dando graças a Deus. Porém, o mal já estava feito. A casa da benzedeira ainda fumegou por muitas horas.

Passado o susto, perceberam que, depois da incursão ao mato, nenhum dos forasteiros retornou. Protegidos pela luz do dia, os moradores percorreram o mesmo caminho feito na madrugada. Nem é preciso dizer que dos estranhos “caçadores de bruxa” restou muito pouco. Cena feia uma barbaridade. No lugar onde os ditos cujos montaram suas taperas, foi fácil encontrar o buraco onde haviam enterrado um baú, cheio de tudo o que roubaram naquela e, muito provavelmente, em outras vilas.

A Véia Divige, essa sim desapareceu junto com seus bichanos. Ninguém conseguiu mais encontrá-la para pedir pelo menos um “me desculpe”.

Hoje em dia, aqui em Pereirópolis, quando um gato desconhecido aparece em roda de casa, é costume dar de comer e tratar o bicho muito bem. E se cuidar para não fazer nenhuma besteira com pessoas idosas, ou com crianças, ou cometer alguma injustiça. Nunca se sabe quando é que a Véia Divige vai voltar para cobrar o que fizeram com ela.







segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Poesia: A sombra

por Ju Blasina

Há tempos persegue-me uma sombra
Deformada, mal forjada, vestindo-se de minha
Há tempos percebo esta sombra, fingindo andar sozinha

Um vulto, uma sombra, etérea e cinza, fria e opaca, que
Com o dia se aplaca e junto à lua me espreita
Do que seria ela feita: luz ou escuridão?

Seria ela real ou ilusão? De ótica
De excesso de medo, de álcool, de solidão
Preciso olhar mais de perto — Melhor — Não

Abençoada seja a ignorância!
Quando tudo o que lhe acompanha
É uma dúvida, não é sábio afugentá-la

Há tempos corri ao longe, tentando
Confundi-la, julgando despistá-la. Errônea
Escolha que fez tão triste e vazia a minha rua

Desde então, sigo sempre e só, no caminho
Mais claro, dentre a noite mais escura
Rente à parede mais turva

Há tempos persigo esta sombra
E não raro tropeço em amarguras
Há tempos persigo uma sombra, sonhando ser tua





DeLíRiUs VirTuAiS

Por Ju Blasina

Noite abafada. Em algum lugar, longe e perto, há um temporal latente: Luz e som sinalizam o confronto de nuvens opostas.

A sala vazia espera em branco. Dedos se movem inquietos — receosos, ansiosos — indecisos. O brilho da tela ilumina a peça.

“Ele deve estar lá, em algum lugar”, pensa ela, sem necessitar palavras. Há muito, dispensou as trocas sociais; opiniões alheias nada lhe dizem que não lhe esmaguem e olhares estranhos só lhe invadem e recriminam. Protegida do mundo em seu lugar seguro — A fantástica interface virtual — a máscara lhe permite pseudocontatos ilimitados; verdade tão contraditória quanto sua existência.

O celular desperta: É chegada a hora! Os dedos, velozes, dançam às cegas nas teclas: nick, senha, clique, espera.

Blondie 34 entra na sala: — Oi, alguém aí?

A sala permanece vazia, exceto por ela. Sente-se sozinha, pensa em partir — a demora lhe ofende! — quando, enfim, ele surge.

Jack entra na sala: — Oi, minha loira, tava só te esperando.

— Ué, saiu da onde? Eu não te vi...

— É que eu tava invisível, risos

— Hm, tem poderes especiais, é?

— Tenho... E nem sabes quantos! (risos) Tava só te esperando. Hoje não tô pra mais ninguém!

— Hm... Só pra mim, é?

— Claro, minha linda, só pra ti, sempre! E então, pensou naquela proposta? Não vejo a hora de te encontrar!

... (silêncio)

— O que foi, loirinha? Ainda com medo?

— Pra falar a verdade, bastante! E ansiedade também.

— Bom, já podes te acalmar: Fiz nossas reservas, para amanhã!

— Como assim... Já?

— Sim, já! A nossa tão esperada noite será “Amanhã ou nunca”, porque daqui a dois dias ela volta, é aí... Sabe-se lá...

— É... Fazer o quê, né?

— Hmmm “Quanta empolgação!”

— Desculpa, não foi a intenção :*

— Sei, sei...

— Eu só fico... Receosa, só isso. E tenho motivos, afinal, ela ainda é a tua mulher, isso é errado!

— Certo ou errado, que diferença faz? Poxa, loirinha, é a nossa oportunidade! Eu já disse que tô louquinho por ti...

— Eu sei, mas isso me incomoda.

— Te incomoda o suficiente para desistir da nossa noite? Parece que já nem queres...

— Quero sim! Cla-ro que eu quero... Quero muito!

— Ah é? Sua safada... Então me diz: o que é que vais vestir pra mim, hein?

— Hm... Pouca coisa. Kkkkk

—Ah... Loirinha, como tu és gostosa!
...

— Loirinha?
...

— Oh Loirinha, cadê tu?
...

— Só um pouquinho. Eu já volto!

— Ué, o que houve?
...

— Voltei! Ouvi um barulho aqui dentro, mas não era nada demais. Continua...

— Ah, agora eu me perdi. Fala tu...
...

— Loirinha? Oh gata, sumiu de novo?
...

— Voltei! Sentiu saudades?

— Sempre... Por que demorou tanto?

— É que aquela vaca resistiu um bocado!

— Vaca? Que vaca?

— Ah, isso sem contar que chegar até aqui foi cansativo... Eu estava longe pra caramba! Sentiu saudades?

— Como assim? Do que tu tá falando??? Não tô entendendo nada!

— Anda logo, querido, RESPONDE!

— Eu... Preciso ir agora.

— Não, não precisa NÃO! Nem ouse me deixar falando sozinha! Sabia que a vaca loira tinha um laptop? Pois, não é que tinha! E sabia que ela era BEM pesada? Garanto que disso tu não sabias. Sinceramente, eu esperava mais dela... E DE TI TB!!!

— Eu não sei o que tá acontecendo contigo... Nem tô te reconhecendo.

— Querido... Que coisa feia! Depois de todos esses anos...

...
— Querido? Ah, que bobinho, tentando ligar pra quem? Pra polícia? Ops* Acabo de esbarrar num fio. Talvez seja o do telefone... Ah... Que desastrada! Não é que derrubei o teu celular da janela? Desculpa... Ha Ha Ha

— Querida, por favor, me diz onde tu estás?

— Ah... Ora, ora. Tô em casa, querido, AONDE MAIS eu deveria estar?

— Que piadinha de mau gosto é essa? Eu nunca tive esposa alguma!!!

— Ah, não? Bem, agora tens! Não é maravilhoso?
...

— QUE MERDA É ESSA? Por que eu não consigo desconectar?

— Por que eu não quero... Porque tu não queres... Porque nós não queremos!

Angry wife entra na sala

Angry wife & Blondie 34 são agora a mesma pessoa

— Mas... Que... LOUCURA é essa?

— Ah... A mesma de sempre, querido! Kkkkkkk

— Isso não faz o menor sentido! Eu não sei que tipo de truque é esse, mas não tem graça!

— Ah não tem graça? Nem percebi... Anda logo, Jack, te junta a nós! Acho que tu és a nossa parte mais teimosa, aquela que ainda acredita na vida real: Bobagem! A realidade é só mais uma sala e nem de longe é a mais divertida. Nós já não precisamos disso. A vida é insignificante diante da grandeza de padrões que podemos representar. A gente não precisa mais fingir... Basta um clique, um último clique e nós seremos um só, para sempre! O despertar é mais simples do que parece. Vem logo, vem...
...

Jack deixou a sala
Angry wife & Blondie 34 deixaram a sala...

Jack, Angry wife & Blondie 34 são agora a mesma pessoa

...


Em algum lugar, longe e perto, a chuva cai em milhares de gotas. Gotas que individualmente pouco representam, mas juntas formam um temporal.

É uma chuva diferente das outras tantas. É a última chuva.
A água invade a sala, molhando a tela.

Na sala em branco, a chuva é vermelha.

Um único corpo jaz, inerte, sobre o teclado gasto. Um corpo sem nome, sem face, exposto às intempéries — a identidade foi há muito perdida. Ninguém sentirá sua falta, ninguém lhe reconhece, pois sequer lhe conheciam. Um corpo qualquer, irrelevante, despersonalizado deste lado da interface.

E a sala, novamente vazia, só espera...





domingo, 6 de setembro de 2009

Hereditário

por Wellington Souza

Tal meus pais sou um homem triste. Se sou um homem, não sei, tento ao menos transparecer um... Não que tenha problemas com minha sexualidade, não. É que já estou beirando os trinta anos e ainda tenho uma dependência umbilical – apesar de ter apenas o pai vivo – e isto não põe à prova as virtudes que um homem tem de ter para se dizer um.

O desalento é hereditário em nossa família, tanto na materna quanto paterna, mas o suicídio apenas na materna. Os mais velhos dizem que, ao nascermos, mal choramos ante as palmadas do médico, que têm de vir no plural mesmo, senão não surtem o efeito esperado. Não reclamamos o colo das mães, não rejeitamos as enfermeiras, de toda forma, ou quase toda, está bom. Demoramos a abrir os olhos, e quando abrimos já os temos baixos, longe, como que olhando com desdém o mundo já na primeira espiada. E carregamos este desânimo pelo resto da infância, adolescência até a maturidade, como que subindo.

Meu pai era médico e morávamos na mansão herdada do meu bisavô. Como médico me presta consulta e a todos os seus parentes, que se dirigem a ele apenas por convenção familiar – ele mal nos olha, nos pergunta. Não cheguei a conhecer a sua personalidade, nos sentávamos juntos à mesa somente no almoço dominical, após isso ele se recolhia à biblioteca e por lá ficava. Isso antes da mamãe se ir, depois nem isso fazia, ficava recluso, em um auto-exílio. Gostava de apreciar uísque.

Tenho um irmão, mas dele falarei mais tarde.

Quanto a mim, tento combater meu egoísmo com esmolas. As capitalizadas ajudam momentaneamente; prefiro estas, pois o pedinte, em meio a tantos que o ajudam, nos esquece facilmente a ponto de nos parar na volta. Esse altruísmo na verdade é a mim que faço, pois me sinto menos culpado e mais atuante, um pouco mais de vida, só um pouco. Costumo praticar também doando tempo, ouvidos. Sempre que converso com pessoas acabo mais ouvindo queixas do que falando, geralmente reclamam das reações que suas ações irracionais ou mal-arquitetadas as impelem – mesmo quando as pago para estarem junto a mim. Dôo tempo, mas vou para longe, fumo um charuto na fazenda vendo o caseiro matar frango-caipira, sirvo-me de chave para que as pessoas se abram e deixem seus monstros saírem, enquanto correm os vinte minutos que não foram aproveitados para assim cumprir com o acordado e previamente pago. Ao entrar por essas portas me liberto também, vivo essas estórias ao meu modo, e percebo que essa minha privação do mundo é o próprio conceito de morte, é abiótica, é fome crônica.

Combater o egoísmo é mais fácil que combater o egocentrismo. Por saber do universo das possibilidades, acho mais interessante conhecer as escolhas e as possibilidades dos outro que fazer as minhas próprias e arcar com elas. Como um deus, não tenho vida. Cuido e analiso as dos outros como que num laboratório. As pessoas que não se preocupam com dinheiro acabam se apegando a cada trivialidade… sou um exemplo. Faço isso porque quero saber o que levou mamãe a sucumbir em si mesma, quais motivos impelem pessoas para esse caminho, quais desesperos. E é ai onde entra o meu irmão.

Hoje ele estuda em outra cidade, também trabalha, e me parece estar noivo. Saiu daqui para estudar engenharia, mas como pretexto. O ambiente fúnebre que nos cercava não o deixava à vontade, e quando mamãe se foi ele quis ir para um internato na Escócia. Voltou para o país e já se mudou para a capital, foi continuar os estudos lá. É bem diferente de nós, ele, é alegre, tem os olhos escuros como jabuticabas que colhem na fazenda. É comunicativo, desde criança todos já notaram e, às suas formas, estranharam.

Acho que ele não é filho do meu pai. Até há pouco tempo não sabia por que minha mãe não fugiu com o pai dele e foi feliz, enfim. Seria um escândalo em nossa cidade, onde o casamento dos meus pais unificou o aglomerado de clinicas da região e o divórcio poderia por fim à sociedade, o que teoricamente a levou a fazer isso. Um ato muito heróico, a meu ver, uma mulher apaixonada tirar a própria vida pois ir viver com seu amor acarretaria prejuízos financeiros e morais à sua família. As pessoas que vêem o amor como um fim, soçobram. Ele tem de ser um meio para um bem maior. Não estou falando que não se deva amar outra pessoa, sim, ama-se, mas depois paga-se e se vai para casa. Fora isso, tem que se amar uma vida, um plano, um status; achar outra pessoa que ame o mesmo mundo, então se apaixonar e furar um olho para não se enxergar tudo. Mamãe tinha os dois olhos vivos, e não suportou viver assim.

Ela bebeu inseticida na fazenda dos meus avôs, seus pais. Mas seu caixão fora velado fechado, dizem que para proteger meu irmão, pois o veneno deformara o rosto pálido. Era professora de língua inglesa e tocava piano contra sua vontade, sempre, na casa da vovó. “Amo todas as peças ao seu lado”, disse-me ela certa vez com excessiva espontaneidade, “mas este jogo de xadrez é uma tortura”. Nesse tempo eu já era jovem o suficiente para saber que ela não contava com papai ao seu lado, mas não compreendia que se apaixonara pelo rei-negro. Ela lecionava em uma cidade vizinha, para onde viajava uma vez por semana e pernoitava.

Sua depressão derradeira começou quando essas aulas foram interrompidas. Chorou uma semana seguida e nunca se recuperou. Durou um mês, até que, após uma discussão com meu pai (tinha-os visto discutir apenas uma vez antes desta), fez uma pequena bala, nos deu um beijo e avisou que dormiria na casa da vovó. Na noite seguinte ligaram de lá, e meu pai saiu de casa às pressas. Na manhã, mandaram-nos descer para o café da manhã de terno. À mesa meu pai deu a notícia, pediu para que, se fossemos chorar, para subirmos aos quartos e não mancharmos as roupas. Tínhamos 16 e 14 anos, eu sendo mais velho. Subi ao meu quarto mais logo desci, meu irmão mandou avisar que iria apenas à noite, já para o velório. Meu pai nunca se opôs às nossas vontades, hipocondríaco, escutava com olhar longínquo.

De certo modo, são engraçadas as estórias familiares, as comédias familiares, ou anti-familiares, se o meu intuito aqui fosse formular um conceito tecnicamente. Que grande farsa não seria estas estórias, utilizo-me do termo teatral exatamente para expor tudo o que há de encenação épica desde o correr de águas cotidiano até quando elas se dividem.

O enterro ocorreu. Meu irmão viajou para o seu internato. Voltou e está na capital. Por esses tempos recebi uma carta anônima. Resumidamente contava que minha mãe não morrera naquela época, que meu irmão não fora a internato algum, e sim viver com ela e seu pai em Londres (o pai dele viajou para lá e ela o seguira). Argumentava que ela exigiu, com instinto animal, levar nós dois, mas foi obrigada a escolher um e deixar o outro para perpetuar a família. E que agora estava em estado terminal de câncer, na capital, onde vive com meu irmão, pois pouco tempo depois o pai dele os abandonou.

O erro do meu pai foi ter tido filhos. Homens como ele não podem ser responsáveis em preparar a terra para a outra semente, pois ela não crescerá. No mundo animal, ele não sobreviveria. Não fossem meus avós arquitetarem o casamento, ou melhor, o negócio, ele estaria em seu consultório se masturbando até hoje ou já teria desenvolvido alguma patologia psicológica que o faria perder a vida precocemente. De homens com esse caráter, só poderia sair gente com o meu caráter, é como o capital, ou um pouco menos determinista. E ainda põe-se a culpa na genética. Por isso também dou esmolas: sei o que é ter carências, sempre tive pão, mas nunca alguém que me alimentasse.

Rasguei a carta. Não fui querer saber. É mais confortável continuar debruçado na minha realidade, não sei como meu organismo suportaria mudar de mundo assim, bruscamente. Mudar de gravidade. Além do mais, agora, não faz a mínima diferença ela ter morrido há quinze anos ou morrer daqui a um.





sábado, 5 de setembro de 2009

Um assassino online


Joaquim Bispo

Quando os inspectores chegaram ao local do crime, encontraram a jovem aspirante a escritora de cabeça tombada sobre o teclado do computador e, no chão, uma poça de sangue que escorria do flanco esquerdo, onde um abre-cartas se mantinha espetado.
– Bela encrenca, temos aqui – desabafou o inspector Magalhães. – Ainda estava à espera que fosse um suicídio, mas com a lâmina neste ângulo não é viável.
– E para homicídio também não está fácil – continuou o inspector Barbosa, denunciando a completa concordância com o chefe. – A porta não foi arrombada, não há sinais de luta e o namorado está no Porto.
– Bem, vamos procurar impressões digitais, embora me pareça que não vamos ter sorte. Procura nas portas, que eu vejo aqui na mesa do computador.
Calçaram as luvas de látex e iniciaram o pincelamento dos objectos mais óbvios. Os resultados eram desanimadores. De repente, Magalhães chamou:
– Barbosa, vem cá ver isto. Vê lá se percebes que raio é que esta fulana estava a escrever neste site.
O parceiro aproximou-se e deparou com uma sequência de símbolos bizarros no ecrã.

Joaquim era doido por cassoulet, esse prato francês muito parecido com feijoada. Todas as quintas-feiras, se sentava pontualmente ao meio-dia e meio num pequeno restaurante de comida francesa, ali junto ao Hospital de S. José. O Sr. Jacques Bergier, amante de romances policiais e impossibilidades, já lhe reservava o lugar e a dose.

– Hum… Não há nenhuma língua com este alfabeto; eu não conheço. Hum… espera, pode é ser uma daquelas fontes de caracteres esquisitos. Experimenta copiar isso para um documento Word.
– Boa! – animou-se Magalhães, congratulando-se por ter um parceiro perspicaz e experiente em informáticas.
– Agora, altera a fonte, ali, naquela janela das fontes, à esquerda. Pode ser para Arial.
– Ok, ok, não sou nenhum tosco. Pronto!

Um de cada lado da morta, debruçados sobre o ecrã, ficaram uns segundos a ler o pequeno texto descodificado:

«Joaquim era doido por cassoulet, esse prato francês muito parecido com feijoada. Todas as quintas-feiras, se sentava pontualmente ao meio-dia e meio num pequeno restaurante de comida francesa, ali junto ao Hospital de S. José. O Sr. Jacques Bergier, amante de romances policiais e impossibilidades, já lhe reservava o lugar e a dose.»

Dәpois, Barbosa quәbrou o silêncio:
– Achas quә isto nos dá alguma pista?
– Não vәjo rәlação, mas dә qualquәr manәira, amanhã vou falar com әssә tipo, sә é quә әxistә.


Quando Magalhãәs chәgou à sәdә, vinha abrasado com calor. Largou o sobrәtudo numa cadәira ә afundou-sә numa әspampanantә chaisә-longuә.
– Está um tәmpo әsquisito. Dә manhã parәcia quә ia chovәr ә agora әstá uma caloraça!
– Então, o tipo? – pәrguntou Barbosa sәm dәsviar os olhos do computador.
– O rәstaurantә әxistә, mas o homәm não sә chama Bәrgiәr. Acho quә әla әstava a invәntar uma história. Já sabәmos quә tinha prәtәnsõәs a әscritora.
– Olha, Magalhãәs, әstou aqui um bocado confuso. Pus aquәlә tәxto dәla no Idәntәxt ә obtivә rәsultados muito pәrturbadorәs. Aquilo não corrәspondә ao әstilo dәla. Não podә sәr dәla. Ә não o foi buscar à Nәt. O tәxto nunca әstәvә onlinә. Por outro lado, dәu-mә três rәsultados dә autoria possívәis. Dois әscrәvәm әm bloguәs ә o outro também tәm a mania quә é әscritor, como әla.
– Como é quә é o nomә dәlәs? – intәrәssou-sә Magalhãәs.
– Ora dәixa vәr: Artur Amieiro; Filipe Arnaso; ә Joaquim Bispo, mas é possívәl quә sәjam todos psәudónimos. Ainda não fiz cruzamәnto dә dados, nәm pәdi informaçõәs às opәradoras dә Intәrnәt, mas dәsconfio quә sә trata da mәsma pәssoa.
– Bәm, suspәito já tәmos, mas o móbil?
– Aí é quә әstá! Әstou mәsmo confuso. Fui ao sitә ondә o Joaquim põә uns contos ә dәscobri-nos lá. Nós; tu ә әu; Magalhãәs ә Barbosa, inspәctorәs. Somos pәrsonagәns num conto dele.
– Achas mәsmo? Әntão әssә tipo é alguém quә nos conhәcә!
– Hum… Acho quә é mais complicado do quә isso.
Barbosa mostrava-sә mәditativo. Parәcia ganhar coragәm para falar.
– Tu acrәditas na Rәalidadә?
– Әssa agora! Quә raio dә pәrgunta mais parva. Por quê?
Nova paragәm de Barbosa.
– Há tantas coisas әstranhas na nossa vida. Não parәcә possívәl quә sәjam todas vәrdadәiras. Já alguma vez pensaste que sә calhar, somos só pәrsonagәns dә alguma obra litәrária obscura.
– Әstás parvo, ou quê? Andastә a fumar alguma coisa әsquisita?
– A sério, Magalhãәs. Achas possívәis as fәrramәntas informáticas quә usamos? Achas possívәl quә әu ponha um bocado dә tәxto num programa informático ә saiba quәm o produziu? Ә o mundo ondә vivәmos?; achas possívәl quә әu puxә do tәlәmóvәl ә falә com alguém quә әstá do outro lado do mundo?; quә әu ponha um copo dә lәitә no micro-ondas ә әlә aquәça, sәm chama alguma?; quә um aparәlho no carro mә indiquә quә әstradas hәi-dә tomar daqui para Ansião?
– Dәvәs tәr lәvado uma ovәrdosә dә Matrix. Vistә por aí algum gato әm rәpәat-play?
– Әu não sәi, Magalhãәs, só tәnho dәsconfianças. Ә, sә quәrәs quә tә diga, comәço a dәsconfiar muito dә tudo. Achas normal havәr uma chaisә-longuә num gabinәtә da Polícia Judiciária? Isto parәcә-mә ambiәntә dә әscritor amador, quә invәnta cәnários sәm nunca tәr әstado na Judiciária. Ou әntão, pistas para lәitorәs atәntos.
– Tu não mә bαrαlhәs! Әntão quә pαpәl әrα o nosso? Pәrsonαgәns? Quәr dizәr quә αndávαmos αqui αo mαndo dә um criαdor dә әnrәdos? Quә não tínhαmos livrә-αrbítrio?
– É isso mәsmo, Mαgαlhãәs. Ә αcho quә sәi por quә o nosso criαdor nos colocou neste enredo – pαrα dәscobrirmos quәm foi o lәitor quә mαtou α rαpαrigα.
– Lәitor? Queres dizer que é esse o desfecho do conto na Net? Já foste bisbilhotar o final?
– Não. Não consigo ler o final. Αcho quә o tәxto do computαdor dα rαpαrigα é umα pistα, mαs não α quә pәnsαmos. Әssә tαl Jαcquәs Bәrgiәr tәorizou quә é impossívәl әscrәvәr um livro policiαl әm quә o criminoso sәjα o lәitor. Αcho quә o Joaquim әstá α tәntαr әscrәvәr o conto quә ninguém ainda әscrәvәu.
– É αmbicioso.
– Ou pαrvo.
– Não blαیfәmәی, Bαrboیα!
– Αh, já αcrәditαی! Pәloی viیtoی, é mαiی fácil «dαr-tә α voltα» com o یobrәnαturαl, do quә fαzәr um idoیo cαir no «conto do vigário».
– Αdmito quә o trαnیcәndәntә mә pәrturbα.
– Tαmbém α mim.
– Por әیtα ordәm dә idәiαی, α liیtα dә یuیpәitoی tornou-یә bәm curtinhα. O αییαییino é um doی quә vão lәr o conto do Joaquim.
– Quә әیtão α lәr, Mαgαlhãәی. Iیto é um conto. Ә o criminoیo әیtá α lê-lo nәیtә momәnto. یó prәciیαmoی dә lhә αrmαr umα cilαdα pαrα o prәndәr.
– Como? Tәnی αlgumα idәiα?
– یim, escuta. Com o Әchәlon, monitorizαmoی әm tәmpo rәαl todoی oی computαdorәی quә әیtivәrәm α uیαr әیtә conto. O próximo pαrágrαfo é umα αrmαdilhα pαrα o criminoیo ә vαi یәr dәciیivo pαrα α یuα cαpturα. یә әlә tәntαr lәr o quә әیtá әیcrito no espaço em branco abaixo, یәrá dәیcobәrto. Quando ele usar o rato, copiαr pαrα Word o texto escondido e αltәrαr α cor dα lәtrα para یαbәr o que lá está escrito, αpαnhαmo-lo. A sequência de movimentos e a sua duração são como que uma impressão digital e denunciá-lo-ão.
– Incrível! O que eles inventam! Estou ansioso por conhecer o desfecho.
– Calma, Magalhães, agora temos que ser pacientes. É só mais um pouquinho. Olha, olha este! Acho que é este. Rәpαrα.

Muito bәm, lәitor. O fαcto dә tәr dәیvәlαdo әیtә pαrágrαfo moیtrα quә, αpәیαr do αviیo, não tәvә quαlquәr mәdo dә o αbrir. Iیto یignificα quә não é você o αییαییino. Como você bәm یαbiα. O vәrdαdәiro αییαییino já foi αpαnhαdo. Chәgou α әیtә ponto ә fәchou o site یәm lәr әیta parte. Só o verdadeiro αییαییino podia temer ser descoberto por revelar estas linhas, como foi insinuado atrás. Dәnunciou-یә α әlә próprio.
Oی inیpәctorәی Mαgαlhãәی ә Bαrboیα αprovәitαm pαrα lhә dәیәjαr muito boaی leituras. Ә continuә α confiαr noی bonی ofícioی dα Políciα Judiciáriα no combαtә αo crimә ә nα dәfәیα do cidαdão.


– E agora, Magalhães, ainda acreditas na Realidade?





sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Margarida (ou seria Helena ou Graça )

Maria de Fátima Santos

Dez horas
Fim de tarde
Chuvisco de começo de Outubro
Um ventinho quase frio e ela sem nem um casaco que lhe cubra o decote em bico que deixa ver os seios bronzeados, presos num sutiã de algodão com flores
Espera pelo autocarro – o doze que a deixará, como costume, em frente da pastelaria Pingo de Mel
Daí até ao apartamento, onde vive sozinha, são duzentos metros por um passeio de paralelepípedos cinzentos
Depois é a subida no elevador pachorrento: quatro pisos
Margarida (ou seria Helena ou Graça) mora no quinto andar de um prédio de renda económica nos arrabaldes da cidade
O prédio é pintado de verde alface e tem bandas rosa choque em cada um dos andares – catorze, ao todo
Margarida (ou seria Helena ou Graça) olha mais uma vez a rua no sentido que é suposto que surja o transporte, e encalha com os olhos de um rapaz, assim mais ou menos para sua idade, que cora e se apressa a poisar os olhos na pasta de couro preta que tem a tiracolo - um computador portátil, parece-lhe, e ela pensa: deve ser estudante de belas artes - e isso porque há uma escola, ali, depois do cruzamento; e, enquanto cogita sobre a mala, admira o ar frágil e doce do corpo do moço que veste um casaco de malha, o que ela inveja pois sente o ar fresquinho arrepiar-lhe os pelos dos braços e das pernas que traz destapados num vestido leve


Chega o autocarro
Sobem, uma a uma, as dez pessoas que estão na fila, em que ela é segunda, e o rapaz vai no fim, a seguir a uma mulher que leva ao colo um gato e não sobe porque, deve ser o que lhe diz o motorista debruçado para a porta, é proibido transportar animais sem que seja em gaiola; e a mulher aconchega o animal e desvia-se para deixar passar o ultimo da fila – o rapaz da mala de couro
Dentro do autocarro, Margarida (ou seria Helena ou Graça) vai sentada junto a uma janela ao lado de uma senhora idosa a quem disse: desculpe, antes de se sentar
O rapaz, com a pasta a encalhar em uns e outros, fica de pé junto ao banco onde está sentada Margarida (ou seria Helena ou Graça), que entretanto já fechou os olhos - ela nunca o quer, mas como de costume, vai adormecer
São muitas paragens, cerca de três quartos de hora de viagem

Três horas da madrugada
Ouve-se o barulho da chuva a bater no vidro da janela
Margarida (ou seria Helena ou Graça) acorda deitada numa cama

Não é o quarto dela - constata pelo cheiro e pela posição em que ouve o ruido da água: que grande carga de água, pensa ela, tentando ver, mas está demasiado escuro
Sente a seu lado um corpo que lhe toca o braço esquerdo com uma pele morna e lisa
Margarida (ou seria Helena ou Graça), totalmente nua, tenta recordar-se
Mas ela só se lembra de ter entrado no doze e ter fechado os olhos - terá adormecido, como era seu costume: e depois? que foi que aconteceu hoje?!
Ah!
Lembra-se do moço que entrou por último no autocarro - o mesmo que corara na paragem e trazia a tiracolo uma pasta de couro
Não tem mais nada em memória
O corpo mexe-se - a cama balança com o que será uma pessoa sentando-se na beirinha
Uma voz roufenha brama entre dentes
-Porra! Adormeci

É voz de homem - terá pensado ela ou nem teria tido duvida

Quem o sabe
Margarida (ou seria Helena ou Graça) percebe que, quem quer que seja, se veste, aos pés da cama

Faz um esforço para se mexer, para dizer alguma coisa - nem uma fímbria do seu corpo obedece

Adapta os olhos ao escuro, e percebe a pasta entreaberta
Diz de si para consigo: afinal não é um computador o que tem dentro


Mas não se irá aperceber, que o moço sai correndo pela escada com a pasta a tiracolo

Não saberá que ele leva na pasta um frasco transparente

Nem haverá quem lhe conte que, aconchegado como o gato que não seguiu no doze, embebido em conservantes, vai descer os cinco andares, apartar-se para longe, o coração, ainda pulsante, de Margarida ou seria Helena ou Graça

(ou Josefina ou Engrácia, Fielpina, Beatriz, Dolores ou Maria das Dores)


Sobre a autora
Maria de Fátima Santos nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licen-ciada em Física tem sido professora de Física e Quí-mica. Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pequenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.





Eclipse ao pôr-do-sol

Antonio Luiz M. C. Costa


O anoitecer foi tranqüilo. Nix, a rainha da Noite, não trouxe as ninfas da chuva, mas apenas as Brisas que amadurecem os frutos, filhas do suave Zéfiro. No entanto, quando Eos afastou a escuridão com os dedos rosados e abriu caminho para Hélios iluminar as terras férteis da Tessália e Macedônia, raios e estrondos agitaram o alto Olimpo sem parar, sob um Éter azul e esplendoroso. Pastores, camponeses, mercadores e sacerdotes, terrificados, correram aos templos a tentar aplacar com holocaustos a fúria do pai dos deuses e dos homens.

No cume, a ansiedade não era menor do que nos vales. Serenadas as paixões despertadas pela guerra de Troia, Harmonia fora por séculos a mestra de cerimônias do Olimpo. Mas, naquele dia, Ênio e Éris excitavam os imortais sem encontrar quem as calasse. A discreta e obscura Icnaia ouvia a um canto, silente como as tias, a inescapável Nêmesis e a reverenda Têmis. O senhor supremo a todos convocara e, naquele momento, tomava assento no mais alto dos tronos. Dos habitantes do Olimpo, apenas Héracles faltava, notou Icnaia, certamente encarregado de alguma missão, pois seria o último a desacatar uma ordem do pai.

Desaparecera do tesouro do Rei dos Deuses a égide sacra e imortal, de preço infinito, da qual pendiam cem franjas, trabalho de fino traçado, de ouro sem mescla, valendo, cada uma, segundo Homero, o que valem cem bois. A égide que ao próprio raio de Zeus resistiria, coisa espantosa de ver, ornada pelo frio Terror, pela horrenda Derrota e pela cabeça da Górgona, terrível espetáculo.

Com torvo aspecto, proclamou Zeus grande, que as nuvens cumula:

– Ai do leviano que despertou minha ira por tanto tempo adormecida! Humano ou divino, o farei invejar os tormentos impostos ao infame Íxion! Se ao rebelde Prometeu impus uma águia impiedosa para lhe devorar o fígado todos os dias, a este ladrão hei de punir todos os parentes vivos e mortos e fazer a mais cruel das serpentes roê-lo por dentro, do baixo ventre ao alto do crânio, a cada noite e cada dia de cada século do eterno tempo! Quanto ao imortal cujos atos ou negligência o tenham ajudado...

Hera, a cruzar os cândidos braços, explodiu, sem conter o rancor:

– Zeus prepotente, de Cronos nascido, que coisa disseste? Estás prestes a fazer um juramento do qual podes te arrepender! Antes de outro olímpico, é a ti mesmo que deves censurar! Meu fiel Argos Panoptes, o mais fiel e atento dos guardiães, teria impedido o furto, não fizesses teu solerte Hermes matá-lo para libertar a vaca tua amante, minha perjura sacerdotisa Io! E sabes acaso se não foi uma imprudência de um dos teus queridos descendentes, que à minha revelia espalhas pelo mundo?

O Trovejante franziu o cenho ao fitar a esposa, vezeira em se opor ao tudo que planejava, mas não manifestou a extensão de sua fúria. Devia perceber o que havia de mérito naquelas palavras e no imo do peito consultava Métis, a Prudência. Icnaia começava a sentir-se aliviada quando o deus augusto voltou-se para os demais e proferiu um discurso:

– Atenção prestai todos ao que vos digo! Nenhum dos deuses, nem mesmo nenhuma das deusas se atreva a contestar meu discurso, mas, todos, concordes se mostrem! Quem puser empecilhos à investigação deste sacrilégio ou à punição dos culpados, há de se ver aqui açoitado, do modo mais vergonhoso, se eu o não lançar no Tártaro escuro. Hão de ver quanto sou, mais que todos, potente. Quereis me pôr à prova? Dai-me uma ponta de longa e áurea cadeia e, da outra, reunidos, ó deuses e deusas, forçai-a para baixo. Por mais esforço que apliqueis, impossível vos será arrastar do alto ao grande Zeus. Mas, se eu quiser, trarei a própria terra e o mar vasto junto convosco e ser-me-á fácil, no alto do Olimpo, amarrar-vos nessa corrente e dependurá-los no abismo, tanto vos supero!

Assim como os demais olímicos, estupefata e queda ficou Icnaia, perante a violência dessas palavras. Uma eternidade pareceu se passar antes de Atena, a indomável donzela de olhos glaucos, por fim adiantar-se para falar. Seu peito transbordava de raiva selvagem contra Zeus pai, suspeitava Icnaia, mas suas palavras foram mansas:

– Filho de Cronos, pai de nós todos, senhor poderoso e supremo, sabemos que força invencível possuis. Basta-nos vê-la unir-se à firme retidão de Têmis, a Lei Eterna.

Respondeu-lhe o pai, de ânimo menos tempestuoso:

– Tritogênia, tranquiliza-te; quanto falei, foi produto, decerto, da cólera; mas para ti quero ser mais sereno. Ouvirei, decerto, a deusa do reto conselho.

A julgar pela expressão, pensou a deusa obscura, Hera não a ouvia de bom grado. Inevitável era seu ciúme ante qualquer das imortais que um dia atraíram o desejo do marido inconstante, antes mesmo dele a escolher como sétima e, supunha-se, definitiva esposa. Mas com certeza ela reconhecia a sabedoria das palavras da enteada. Conteve a língua ferina enquanto Zeus se dirigia àquela que fora sua segunda companheira e o fizera pai das Horas serenas e das Moiras inflexíveis.

Ao chamado do soberano, a Senhora da Justiça aproximou-se e ouviu seu soberano:

– Jura-me, então, pelas águas do Estige funesto, uma das mãos encostando na terra que nutre os viventes, e a outra no mar cintilante, para que testemunha nos sejam as deidades subterrâneas de que me prometes de tudo fazer para entregar o culpado à justa punição!

Consumado o voto sagrado, Têmis aproximou-se da sobrinha e da prima, com o semblante carregado:

– Minhas caras, conto convosco para dar a mais rápida resposta possível a esta afronta. Nosso soberano confia em mim para restabelecer a ordem sem graves injustiças, mas necessito da astúcia de Icnaia, a rastreadora, para identificar os culpados e da firmeza de Nêmesis, a vingadora, para encontrá-los e trazê-los a julgamento. Deveis saber que a égide desapareceu entre a manhã de ontem, quando Atena, após socorrer os helenos em uma batalha contra os bárbaros, a devolveu ao pai para que a guardasse e a madrugada de hoje, quando Zeus a procurou, pretendendo usá-la para inspecionar o Tártaro.

As duas temíveis deusas assentiram ao pesado encargo. Têmis ia desejar-lhes boa sorte, mas num átimo surgiu, a deslizar sobre sua roda, Tique de pés ágeis e oblíquo sorriso:

– Tia, sabes como ninguém quão essencial é à Ordem Cósmica que o Acaso não lhe seja submisso. Não me peça favores, apenas imparcialidade. Meus dados tanto podem favorecer a ti tanto quanto às tuas presas. Contenta-te com que não sejam viciados.

– Assim seja – Têmis suspirou e despediu-se de Icnaia e Nêmesis.

O deus-pai desceu do sólio divino e retirou-se em silêncio, após encerrar a reunião com um gesto brusco. As duas imortais afastaram-se, pensativas. Icnaia foi a primeira a falar:

– Tia, ao saber do desastre, consultei meu pai, pois à luz do dia ele tudo vê se Zeus não o proibir. Mesmo sem eu lhe pedir ele jurou-me, pelo odioso Estige, nada saber. Se o furto se deu quando Hélios já se recolhera, não poderá tua mãe Nix nos... – ia dizer esclarecer, mas conteve a tempo a palavra impensada – ... ajudar a destrinçar esse mistério?

– Não, Icnaia. Desde que a rainha da Noite voou em socorro de meu irmão, que Zeus queria atirar do Éter às ondas por tê-lo adormecido para permitir a Hera armar uma artimanha, minha mãe exige um pedido de desculpas do senhor do Olimpo antes de lhe atender qualquer solicitação. Embora Zeus refreasse contra Hipnos a cólera imensa, pelo receio de à rápida Nix desagradar, o orgulho de ambos torna a reconciliação impossível.

– Tentemos então um oráculo. Prefiro não consultar Apolo, as Titânides ou Prometeu, pois ainda não os excluo do rol dos suspeitos, nem ouso exigir-lhes jurar pelo Estige sem um indício concreto de sua culpa, mas podemos recorrer a meu tio Astreu. Na noite do furto, estive com ele, meus pais e minhas tias Eos e Selene a festejar a Lua Nova. Posso assim isentá-lo de qualquer desconfiança.

– Infelizmente, só posso acrescentar à lista dos insuspeitos nossa cara Tique, cujo rastro segui por toda a noite, a tentar corrigir seus excessos. Consultemos, pois, teu tio.

***

Ao vê-las chegar, Eósforo as anunciou ao velho titã, que para saudá-las largou o compasso e o esquadro com o qual determinava o curso das estrelas. Os ventos, seus filhos, deram boas-vindas às duas deusas aladas. Euro encheu de néctar os copos de ouro maciço, para todos trocarem brindes corteses, Notos trouxe um jarro de água fresca, Bóreas serviu ambrosia à mesa e Zéfiro tocou sua flauta para Eósforo dançar e assim alegrarem o desjejum do pai e de suas convidadas.

Icnaia estava, porém, preocupada demais para divertir-se. Provou a ambrosia para não fazer desfeita ao tio, mas quase de imediato o inquiriu sobre o nefasto desaparecimento. O velho não se recusou. Perguntou sobre as minúcias do dia e hora na qual a égide fora feita do couro da sagrada Amalteia, fez uma rápida conta nos dedos e chamou o sobrinho Héspero, que lhe trouxe uma esfera redonda e giratória à imagem do universo. Astreu girou cuidadosamente a esfera sobre seu eixo, carregando planetas e estrelas em torno do eixo. Icnaia notou como Hélios e Selene reuniam-se em um ponto central debaixo de Gaia, mas não compreendeu o que mais o tio examinava em torno do círculo do zodíaco.

Quando se satisfez com a observação do circuito das estrelas, Astreu pousou a esfera sobre a mesa, voltou-se para as deusas e emitiu seu oráculo:

– Ouve, severa Nêmesis, está atenta, sagaz Icnaia! Quando os raios da lua e do sol se ocultaram sob a Terra, uma antiga divindade com motivos para se sentir agravada por Zeus Trovejante encontrou a oportunidade para furtar-lhe seu bem mais precioso, pois nessa noite a Parte da Pobreza completou um ciclo de muitos séculos e reencontrou a estrela do rei dos deuses sobre o Capricórnio, junto à Parte da Ousadia. A autora da rapina não quer a égide para si, mas para um jovem imortal pronto a vingá-la e tomar o trono do Olimpo, a menos que as linhas das Moiras possam ser rompidas. A Parte ressentida por primeva ofensa desloca-se, veloz, para encontrar em Virgem a estrela de Cronos na casa das Crianças, pressagiando um novo reino celestial.

Ao ouvir essas palavras, Icnaia tremeu e sentiu-se gelar e faltar-lhe o icor ao rosto. Olhou para expressão dura e impenetrável de Nêmesis. Decerto estava igualmente chocada, mas expressar cólera não era de seu feitio, conhecida que era por retribuir à insolência e à húbris de maneira tão implacável quanto imprevista e silenciosa. Voltou-se para o tio:

– Sábio Astreu, não podes nos dizer algo mais sobre o sacrílego ou o usurpador? Seus motivos, seus meios, seus modos de agir? Qualquer indício que possas acrescentar pode ser a diferença entre a salvação e a perdição do Olimpo!

Astreu cofiou a longa barba branca, considerando com cuidado a esfera:

– O encontro anterior da Parte com a estrela de Zeus deu-se na Casa da Morte, em conjunção com uma Virgem debilitada pela estrela de Ares, o raptor de mulheres, um ano após a morte do maior dos heróis, quarenta e dois anos antes de os aqueus sitiarem Troia. Relaciono a antiga mágoa à violação de uma virgem pelo Trovejante.

– Tio! – Exclamou Icnaia – Seria o tempo da concepção de Helena, Clitemnestra e os Dióscuros. Mas Leda não era virgem e sim esposa de Tíndaro!

– Não há como dar mais pormenores, mas é o parecer do oráculo. Quanto ao usurpador, seu caminho iniciou-se em Aquário à luz da conjunção da estrela de Zeus com seu próprio Ascendente no eclipse solar da quadragésima-quarta Olimpíada... – disse, a contar nos dedos. – Um descendente do próprio rei dos deuses!

– Há menos de dezoito anos! Mas se sabe de filhos gerados por Zeus depois de Kairos, nem de qualquer olímpico nascido após os Heráclidas invadirem o Peloponeso!

– Também não sei a quem as estrelas se referem. Mas a ocasião propícia ao golpe do usurpador é a lua nova, quando haverá outro eclipse total do Sol perto do crepúsculo. Na sétima casa, a da esposa e das parcerias.

Era tudo. Não se consultava oráculos duas vezes sobre a mesma questão. A deusa deixou, cabisbaixa e pensativa, a audiência. De esguelha, viu a expressão dura e impassível de vingadora obstinada, feroz mastim ansioso por sangue. Mas precisava do sabujo para lhe rastrear e apontar a presa e Icnaia jamais sentira o faro tão embotado. Tinha de ser na pior crise desde a rebelião de Tífon! Se não solucionasse o mistério a tempo, acabaria no Tártaro. Ou o usurpador a puniria pelos séculos de fiéis serviços ao Trovejante ou este a condenaria por inépcia, caso vencesse apesar do seu fracasso.

– Tia – disse Icnaia –, preciso investigar os fatos com calma e sozinha poderei fazê-lo com mais discrição. Convém, creio, nos separarmos até eu encontrar uma pista.

– Como queira, minha sobrinha – disse Nêmesis, insondável. – Confio em teu julgamento.

***

Icnaia foi à sala do tesouro, em busca de ideias. Hefestos ajustava à porta a tranca adamantina que acabara de forjar em Lemnos. Héracles o auxiliava sustentando a portentosa peça, maciça como as colunas à boca do Mediterrâneo que levavam seu nome.

– Salve, meus primos – saudou a deusa. – Sabeis se alguém esteve na sala desde que vosso pai descobriu o furto?

– Ninguém, com certeza – respondeu o herói divinizado. – Meu pai convocou-me no mesmo momento e estive de guarda até meu irmão trazer a nova tranca.

– Tocaste em algo, primo? Devolveste ao lugar algum objeto caído ou recolheste algo que não pertencia a este lugar, talvez?

– Não, minha cara. Apenas cuidei que ninguém entrasse.

– Deixai-me então examinar a sala, primo, para procurar algum indício do sacrílego. Têmis, a quem Zeus poderoso encarregou de restaurar a ordem, delegou-me investigar o furto e identificar o culpado.

O filho de Alcmena consultou Hefestos com um olhar suspeitoso. O divino ferreiro enxugou o suor da testa e confirmou:

– Assim foi, atendi à convocação e isso mesmo se passou.

Sem largar a tranca, o mais querido filho de Zeus deu de ombros e lhe fez com a cabeça um sinal para entrar. Agastada com a desconfiança, Icnaia entrou sem lhe agradecer e agachou-se na soleira. Seu olhar de águia percebeu como as vastas sandálias do pai dos deuses haviam sutilmente marcado uns poucos grãos de pó sobre o piso. Estivera ali três vezes desde a última faxina, há cerca de sete dias, que ela mesma supervisionara. Da última vez, caminhara indignado à alta parede na qual estivera pendurada a égide e retornara de imediato, sem nada tocar. Não percebia nenhuma outra marca recente e seu olfato apurado não reconheceu nenhum odor além dos esperados. Se alguém estivera ali à noite, fora muito rápido e não pisara o chão. O que era perfeitamente possível, pois muitas divindades podem voar ou metamorfosear-se em aves.

Adiantou-se e examinou ganchos e prateleiras, comparando-os mentalmente com a última vez em que havia estado ali em busca de outra espécie de pista. Eureca! Faltavam as Asas de Arce e as pegadas mostravam que Zeus não as tocara nos últimos dias. Furioso, deixara de notar a perda de um tesouro pouco importante para ele, mas certamente não para quem se arriscara a levá-la junto com uma égide já bastante conspícua.

Na Titanomaquia, Arce fora a fiel mensageira de Cronos e seus titãs, enquanto Íris, sua irmã gêmea, servia a Zeus e seus aliados. Com a vitória dos olímpicos, suas asas – duas grandes nas costas, duas menores nos pés, como as de Icnaia – lhe foram arrancadas pelo próprio Trovejante, que a arremessou com seus mestres ao Tártaro.

Séculos mais tarde, as asas menores foram presenteadas à ninfa Tétis, com a sugestão de aplicá-las de forma sutil e invisível aos pés do filho e torná-lo o mais veloz dos aqueus. Quando os pés rápidos deixaram de salvar Aquiles do seu destino mortal, Íris resgatou as asas da pira funerária, como lhe fora ordenado. Desde então, jamais haviam sido usadas, tanto quanto Icnaia sabia – e poucas coisas lhe passavam despercebidas no Olimpo.

O pavão de Hera não voaria longe, a águia de Zeus estava fora de cogitação, o abutre de Ares não conseguiria voar dentro daquele salão. Uma ave pequena não carregaria ambas as coisas. Voar com um dos tesouros para um esconderijo distante, retornar para levar mais outro ao mesmo lugar e retornar a tempo de estar presente à convocação de Zeus, em uma só noite, seria impraticável para a pomba de Afrodite ou a coruja de Atena, até para o falcão de Apolo. Quem podia voar em forma humana? Ela mesma, Nêmesis, Hermes, Íris, Nike, Hipnos, Eros, Tânatos, Kairos, Eos, Astreia, Zéfiro, Harpias...

Não tinha tempo para uma investigação exaustiva. Quem seria a virgem ofendida por Zeus no tempo de Leda? Claro que não ela mesma, mesmo que fosse virgem à época. Era mortal, filha de mortal, ambos há muito no reino de Hades. E qual divindade se arriscaria tanto por uma filha humana ou ninfa? Havia de ser uma deusa e o pretenso vingador seria seu pai, mãe ou irmão, salvo se fosse a própria.

Podia excluir Eos, os ventos, Eósforo e Héspero, que haviam estado com ela na festa de Hélios e Selene. Nike e seus irmãos? Servidores fiéis de Zeus, o certo era pô-los no fim da lista de suspeitos, assim como as Harpias. Íris? Igualmente improvável. Eros? Não era de seu feitio meter-se em questões tão sérias. Kairos? Nascera depois do tempo de Leda, por que se arriscaria por uma história antiga? Hipnos? Ele, sua mãe e seus irmãos eram misteriosos, não podia excluí-los. Hermes? Possível. Demonstrara desde o berço seus dotes de trapaceiro e ladrão. Tinha duas filhas divinas tidas como virgens, Palestra e Angélia. Nunca se revoltara contra o pai, mas se o próprio Apolo, certa feita, deixara-se convencer a rebelar-se por Hera, junto com Posídon....

Zeus era bem capaz de violar uma deusa virgem. Fizera isso com Hera, sua irmã mais velha, para forçá-la a tornar-se sua esposa. Com ele, só as próprias filhas podiam se sentir totalmente seguras... ou pelo menos assim supunham. Mas se aquilo fora tão secreto, como perguntar-lhe? E qual a ligação da virgem com o desconhecido usurpador? Sobre este, só podia supor que era muito jovem e acabara de ganhar asas, além da égide. Era pouco para oferecer a Zeus em troca da resposta a uma pergunta tão perigosa.

Decidiu primeiro investigar Hermes, uma das hipóteses mais lógicas e menos difícil de perscrutar. Por sete dias e noites seguidos, esbaforiu-se a segui-lo à distância, acompanhando-o em suas lides. Viu-o sussurrar mensagens divinatórias a adivinhos, divertir-se à larga com um bando de ninfas, acompanhar sombras privilegiadas ao Hades, nada fora da rotina. Nada indicava estar preocupado ou envolvido em atividades secretas.

Dedicou outros tantos dias e noites a acompanhar suas filhas. Palestra dedicava-se com humor e energia ao atletismo, derrotando jovens heróis na luta e no pugilato sem dar nenhum sinal de preocupação com qualquer outra coisa. De qualquer modo, não lhe parecia provável Zeus ter-se interessado por aquela deusa musculosa e andrógina, bem capaz de responder a atenções indesejadas do próprio Trovejante com um pontapé decidido em lugar sensível. Investigou depois Angélia, encontrando-a ocupada em atividades habituais, como a de proteger mensageiros, embaixadores e arautos, principalmente os encarregados de dar más notícias aos poderosos. Fosse ela mais poderosa, a própria Icnaia lhe pediria proteção, mas era tão jovem e delicada...

Seguiu depois, com mais cautela, Tânatos, Hipnos, Morfeu e outros da prole de Nix. Todos seguiam seus hábitos, sem dar mostras de participarem de algo mais importante. Éris espicaçava as mútuas suspeitas dos olímpicos sobre o caso, mas nela isso era costumeiro. Haveria mais razões para suspeitas se ela agisse de outra forma. Os demais se concentravam em suas tarefas junto aos mortais.

Com o tempo já a se esgotar, Icnaia decidiu correr o risco e enfrentar o senhor do Olimpo. Revelou-lhe o oráculo, pediu perdão por não ter deslindado sozinha o mistério e pediu-lhe o esclarecimento necessário para salvar a ordem divina e seu próprio reinado. Receava uma reação irritada, mas não se preparara para a tempestade que viria:

– Como ousas interrogar-me? Lesma inútil, cabeça de esterco, como rastreadora não vales um ânus de ratazana! Que o usurpador, seja quem for, venha e me enfrente se for capaz!

Lançou-lhe um relâmpago, mas de tão furioso errou o alvo, coisa jamais vista. Atingiu uma das colunas do próprio palácio e a desfez em cinzas, criando uma oportuna cortina de fumaça. O pequeno e veloz Kairos, o momento oportuno, veio ver o que se passava com o pai. Icnaia, perplexa, agarrou-o pela longa mecha da testa, antes que lhe voltasse a nuca raspada. O mais jovem dos deuses, surpreso e assustado, voou para fora a toda velocidade, arrastando-a para longe. Ela esbarrou de leve em Tique, que lhe sorriu e de repente viu-se ao ar livre. Safou-se do Olimpo com quantas asas tinha e cruzou o Egeu em meio a uma madrugada fresca e brumosa.

***

Ofegante, Icnaia ocultou-se em uma gruta junto a uma baía da Jônia. Sentou-se sobre uma pedra, o cotovelo apoiado no joelho gracioso, queixo fino sobre a mão pequena, fechada e tensa, tentando meditar sobre o que acontecera. Como podia Métis, a prudência de Zeus, ter-lhe falhado em um momento tão crítico? Que erro teria o Trovejante outrora cometido a ponto de preferir arriscar seu trono a revelá-lo à sua investigadora?

Tantas hipóteses e nenhuma maneira de testá-las. Por Zeus! Se voltasse a se expor a céu aberto, ele não voltaria a errar e a atiraria, queimada e mutilada, às trevas do Tártaro. Pouco importava quantas centenas de vezes ela lhe prestara valiosos serviços, a começar pela guerra com os Titãs, na qual ela repetidamente se arriscara ao seguir os rastros de seus poderosos inimigos e deslindar seus planos.

De qualquer modo, pouco mais podia fazer. O fatídico eclipse já se aproximava. O mais seguro era tomar forma humana e ocultar-se entre os mortais até o vencedor se definir e serenarem os ânimos no Olimpo, embora isso pudesse levar séculos. Ou milênios.

Icnaia lembrou-se de quando Atena disfarçara-se em mendiga quando quis surpreender Aracne e decidiu fazer o mesmo, para caminhar à cidade próxima e misturar-se a seus habitantes sem chamar a atenção. Foi como um velha enrugada, encanecida e desdentada, coberta com um pano esfarrapado, apoiada em um bastão, carreando um velho pote de barro para coletar esmolas, que Icnaia capengou pela estrada, com um ou outro olhar de esguelha para o céu para certificar-se de não estar sendo notada.

Recebeu olhares de desprezo dos guardiões da muralha, mas não a impediram de entrar. Era uma cidade próspera de ruas bem planejadas, largas e retas. Manquitolou até a praça do mercado e acocorou-se ao lado de seu pote de barro, a recitar a cada passante uma súplica humilde.

Entre muitos resmungos e o tilintar ocasional de uma moedinha de cobre, notou uma excitação incomum na multidão. Será que a ira de Zeus já era sentida ali, tão longe? Ou mercadores trariam notícias das terras ao pé da montanha sagrada, onde os relâmpagos continuavam a despencar do azul? Apurou os ouvidos.

Para sua surpresa, não se falava de Zeus nem do Olimpo, mas de um mortal que anunciara um eclipse para o final da tarde. Alguns riam dele, contando a história de como o lunático, distraído a olhar o céu, caíra em um buraco e pedira socorro a um camponês, que o resgatara do poço, sujo e contundido. Apostavam que ele erraria.

Outros aceitavam o desafio. Lembravam o ano em que o sábio cansou-se de ser criticado por perder tempo com teorias em vez de ganhar dinheiro. Usou seu conhecimento da natureza para prever fartura de azeitonas no verão e tomou dinheiro emprestado para alugar barato todas as prensas de azeite da região e da vizinha ilha de Quios. Ao chegar a colheita, necessitaram-se de todas as prensas, e ele as sublocou pelo preço que quis, tornando-se de um só golpe um dos homens mais ricos de Mileto – apenas para mostrar que podia enriquecer quando quisesse, embora sua ambição fosse de outra monta.

Icnaia admirou-se. A cinqüenta estádios dali, estava Didima, um dos oráculos de Apolo, mas o deus nunca revelava seus segredos com tanta precisão. E naquela cidade não havia oráculos, nem mortal com suficiente sangue divino para ter acesso aos planos dos deuses...

O burburinho de repente mudou para um sussurro. Vinham três homens, a conversarem como amigos. O do meio era certamente o objeto das especulações. Moreno, de barba e cabelo curtos, menos de quarenta anos, tinha aparência comum, salvo pelo nariz adunco, decerto herdado de ancestrais fenícios. Usava uma túnica de bom linho, com certo desleixo. Mas Icnaia reconheceu em seu olhar uma inteligência aguda e superior, que o punha bem acima da média dos mortais – e até de muitos imortais.

Curiosa, esqueceu de recitar sua ladainha quando os homens passaram por ela. Mesmo assim, o narigudo deteve-se para lançar-lhe um olhar compassivo e deixar um óbolo de prata no pote. A deusa lembrou-se de agradecer.

– Por favor, dá-me teu nome e eu suplicarei aos deuses por uma vida longa para ti!

– Sou Tales, filho de Hexâmias – respondeu, indulgente –, mas poupa teu tempo, pois os deuses com certeza têm outros assuntos para se ocupar.

– Ah, mas sempre temos a esperança de que nos ouçam.

– Sim, a esperança é o único bem comum a todos os humanos. Mesmo aqueles que nada têm ainda a possuem – e fez menção de afastar-se.

– Tales, posso fazer-lhe uma pergunta? – O atrevimento de interpelá-lo chamaria atenção, receou Icnaia. Mas intuía estar na pista de algo muito importante e já aprendera a não de deixar escapar o momento propício e agarrá-lo pelos cabelos.

Tales deteve-se, curioso. – Claro, minha senhora.

– É verdade o que se diz, que vaticinaste o escurecimento do Sol?

– Sim, previ um eclipse pouco antes do entardecer.

– Esse augúrio foi-te inspirado por algum deus?

– Não sei se me entenderás... mas isso me foi ensinado pela observação dos astros e o estudo de seus caminhos. Pelo engenho e operação da razão, nada mais.

– Pode a mente humana querer antecipar os passos dos deuses, meu senhor? Não mudariam eles seus planos apenas para ridicularizar quem lhes pretende ditar leis?

Tales sorriu, confiante.

– Nada é mais ativo que o pensamento, pois atravessa todo o Universo. E nada é mais forte que a necessidade, pois tudo a ela se submete. Inclusive os deuses. Pois não estão todas as coisas cheias de deuses? – E lhe piscou um olho.

Sobressaltada, Icnaia pensou que ele lhe descobrira o segredo. O sábio despediu-se com um gesto afável e afastou-se antes que ela decidisse o que responder. Passado o susto, ela percebeu que ele não quisera ser literal. Mas mesmo assim, era espantoso.

Há milênios, Zeus condenara Prometeu a uma tortura sem fim por roubar-lhe o segredo do fogo e entregá-lo à humanidade, tornando-a menos dependente. Mas sua antiga façanha fora uma mera travessura, se comparada com ensinar os mortais a compreender e prever os atos dos deuses. Com tal poder, os humanos mais cedo ou mais tarde os reduziriam a meros adornos, se não a servos. Ante tal revolução, até a queda do deus-pai pareceria um assunto menor, pensou, enquanto mais moedinhas lhe caíam no pote.

Não adiantaria mais calar Tales. Ela bem sabia como de nada serve punir o mensageiro de más notícias. Ele estava certo e outros o seguiriam. Alguma divindade traíra os imortais, mas quem? Aproveitou uma moedinha para comprar cerejas e resmungar com o vendedor sobre como os deuses já não eram respeitados como antigamente.

– É verdade! – Concordou o fruteiro. – Onde já se viu, roubarem o próprio Apolo!

Soube então do sumiço de uma imagem de ouro maciço do oráculo em Didima, na mesma noite do sumiço da égide. A coincidência de data era, no mínimo, interessante. Se fora um ladrão mortal, a rota de fuga teria passado por Mileto. Dali poderia embarcar onde deuses gregos pudessem ser derretidos sem gerar um processo por sacrilégio.

Restavam algumas horas para o eclipse e Icnaia decidiu aproveitá-las no porto, tomando uma forma masculina e usando as moedinhas para divertir-se com os marinheiros e sondá-los por boatos significativos. Por fim, um bêbado lhe perguntou algo curioso, enquanto jogavam os astrágalos:

– Aposte mais, meu velho. Não acreditas nos presentes de Tique?

– A deusa da fortuna? Claro! – respondeu, intrigada, sob o disfarce de mendigo bêbado e barbudo. – Mas há que cuidar-se deles, pois Nêmesis anda na sua cola para conter seus abusos e punir a felicidade imerecida.

– Nem sempre. No mês passado, um sujeito chegou de madrugada, com uma arca pesada debaixo do braço, aflito por um navio pronto para sair. Por acaso, um navio mercante que devia ter partido para Cartago na manhã anterior tinha se atrasado, mas já desfazia as amarras. O próximo só sairia depois de dias. O capitão aceitou levá-lo pela tarifa habitual. Poucas horas depois, chegaram mensageiros de Didima avisando do roubo das estátuas. Uma trirreme chegou a partir em busca do ladrão, mas não o alcançou.

– Mas como sabe se era mesmo ele e se foi bem-sucedido e se não lhe tomaram o ouro?

– Cheguei hoje de Cartago, onde todos já sabem da história. O larápio já é dono de um pequeno palácio, cheio de escravas belíssimas. Conta a quem queira ouvi-lo que Tique lhe sorriu em sonho e lhe disse para aproveitar a oportunidade única. Ela aprovava sua ousadia, queria premiá-lo avisando que, naquela noite, Nêmesis não a seguia... Ele pulou da cama no mesmo instante, roubou a estátua de ouro maciço com a qual sonhava há anos e cavalgou na mesma noite para o porto, com o saque e a roupa do corpo.

Ao ouvir aquilo, Icnaia sentiu-se gelar e pulou para a saída. O jogador protestou:

– Ei, não acabamos a partida!

– Tu ganhaste. Fica com as moedas! – Gritou para o perplexo marinheiro.

Ao se ver fora da vista de humanos, Icnaia retomou a verdadeira normal e alçou vôo. Acreditava ser seu dever fazer uma última tentativa de avisar Zeus, mesmo com o risco de ser fulminada por ele, mesmo pensando ser já tarde demais para fazer diferença. Já ia a meio caminho, quando Nêmesis lhe barrou o caminho, estalando seu látego.

– Para trás, Icnaia! – Bradou. – Nada mais podes fazer! Zeus pagará por seus abusos!

Icnaia sacou a adaga, disposta a enfrentá-la. Mas sentiu cair sobre si uma rede invisível e indestrutível, como aquela com a qual, outrora, Hefestos aprisionara a esposa Afrodite em flagrante delito com Ares, para expô-los ao escárnio dos demais olímpicos. Imobilizada, caiu sobre a ilha de Esquiro, vendo Hipnos voar na direção do Olimpo após lhe lançar a rede. Atordoada da queda e ainda presa, viu a tia aproximar-se e a interpelou, tristemente:

– Mentiste que passaste aquela noite atrás de Tique. Foste tu! Mas por quê?

– Porque aquele devasso não se conteve nem mesmo ante a deusa da vingança! – Irou-se Nêmesis – Perseguiu-me por meio mundo, enquanto eu tomava as mais diferentes formas para fugir, com a esperança de vê-lo interessar-se por outra. Mas qual! Só um oráculo que o prevenisse contra um filho capaz de depô-lo do trono seria capaz de conter sua obsessão. Descansei alguns dias no rio Eurotas, disfarçada de gansa, mas ele me descobriu, tornou-se cisne para se aproximar sem ser percebido e me violentou!

– Tia! Mas não foi Leda quem ele atacou nessa ocasião?

– Ela também! Zeus, mal me largou, viu-a lavar-se na margem, saltou sobre ela sem se dar ao trabalho de mudar de forma. A pobre mulher ficou aterrorizada! – Indignou-se Nêmesis – Quando Zeus se foi, estava aos prantos. Voltei à forma divina, acalmei-a e lhe expliquei o que acontecera. Ela e o rei Tíndaro ocultaram minha vergonha e me abrigaram no palácio até o fim da gravidez. Com muita dor, pus o ovo do qual nasceram Cástor e Helena. Leda, no mesmo dia, pôs outro, de cuja casca saíram Polideuces e Clitemnestra. Ela assumiu a maternidade de todos e voltei ao Olimpo como se nada acontecera...

Devia ter adivinhado já então, pensou Icnaia. Nascerem quatro filhos de um mesmo coito era improvável e que dois imortais, Cástor e Helena, nascessem do intercurso de um deus e uma mortal era inédito. Semideuses são mortais, por notáveis que sejam. Mas ela quis acreditar, como os outros, que tal prodígio era possível. Uma lição a ser ensinada a seus descendentes, se acaso os tivesse: quando se exclui o impossível, o que resta, não importa quão improvável pareça, é a verdade.

– Mas essa vingança é excessiva! – Protestou, desanimada. – Por um excesso de Zeus, tu e teus cúmplices punireis todos os olímpicos, escravizando-os aos mortais!

– Não será assim. Livre dos caprichos desse prepotente, todos viveremos melhor e com mais justiça. Tu nasceste depois da derrota dos Titãs e conheceste apenas a versão dos vitoriosos. Mas acredita em mim, que vivi na época de Cronos, quando os humanos viviam sem tristezas, aflições e penosos trabalhos e só diferiam dos deuses por serem mortais. Não éramos menos felizes, muito pelo contrário!

– É isso que pretendeis? Restaurar a Idade de Ouro? – Disse Icnaia, cética.

– Não, os humanos tornaram-se demasiado inteligentes e complexos para viverem nus nas matas, satisfeitos com os frutos espontâneos de Gaia. Caminharemos, sim, para uma nova era, mas muito mais rica e sábia. Chame-a de Idade de Diamante, se lhe aprouver. Homens e mulheres chegarão às estrelas, serão como deuses e deusas e a verdadeira justiça por fim se estabelecerá! – Entusiasmou-se.

– Com os humanos? Isso é impossível! Nem em dez mil anos!

– Mesmo que fosse, ainda assim não seria justo não tentar, minha sobrinha. Nossos planos se estendem por mais de três mil anos. Se quiseres, terás um lugar na nova era. Ao contrario do Trovejante, Poros, o Engenho, não é vingativo e saberá apreciar tua astúcia e dedicação, se quiseres servir à nova ordem. Quero ter-te ao nosso lado, pois a Justiça e a Punição de nada servem se não forem guiadas por uma prudente Investigação.

– Poros! Esse, então, é o nome do filho de Métis!

Nêmesis arregalou os olhos. – Parabéns, não perdeste teu talento. Como descobriste?

Icnaia suspirou. – Não me cumprimente, fui lerda. A natureza da nova divindade só ficou óbvia para mim em Mileto, quando vi um mortal prever os caminhos dos deuses. Devia ter percebido, quando Astreu mencionou um filho da conjunção de Zeus consigo mesmo, que a profecia de Gaia por fim se cumpria.

– Sim, é o filho do Trovejante e de sua primeira esposa. Ah, pobre Métis, como pôde o amor cegar uma deusa tão sábia? Quando Zeus se propôs a derrotar o pai e libertar os irmãos, ela concebeu o plano que forçou Cronos a regurgitar seus filhos e aconselhou seu amado na guerra contra os Titãs, certa de estar colaborando para um futuro melhor. Seu prêmio foi ser engolida pelo marido, grávida, assim que Gaia profetizou que seu segundo filho seria mais poderoso que o rei dos deuses. E mesmo assim, ela continuou a aconselhá-lo dentro de suas entranhas até abandonar as esperanças de que Zeus a quisesse como algo mais do que instrumento de seu poder e seus prazeres!

– E ela ainda pariu Atena, que abriu caminho para o mundo rachando a cabeça do pai. Mas como Métis pôde ter um segundo filho?

Nêmesis soltou uma risada assustadora, a primeira em milênios.

– Queres os pormenores sórdidos? Então te contarei como Métis deixou de aconselhar Zeus a manter a compostura quando Ganimedes, seu amante, ridiculamente ou desafiou a imitá-lo em sugar o próprio membro...

– Basta! – Gritou Icnaia, consternada. – Imagino Hipnos a inspirar-lhe um sono tão profundo que não notou o segundo filho nascer-lhe da cabeça...

– Exatamente, depois que o induzimos a exaurir-se em uma noite . Eu mesma recolhi Poros e o levei à corte da rainha da Noite, para ser criado por minha mãe no extremo ocidente, junto aos cimérios e longe de Zeus. E ei-lo que volta! – Bradou Nêmesis. Satisfeita, a deusa da vingança apontou para o poente, onde uma figura alada se destacou por um rápido instante contra o Sol, cujo eclipse já se iniciava.

A deusa da vingança voou ao encontro de Poros, juntando-se a seu cortejo de seres alados e estranhos carros voadores sem cavalos em fulminante assalto ao Olimpo. Seguidos relâmpagos partiam do cume para atingirem, inócuos, a égide indestrutível, talhada do couro da cabra Amalteia. O usurpador respondeu com um raio de tipo jamais visto, um feixe de luz cegante, em linha reta para a morada dos deuses. O Icnaia não pôde ver mais da batalha, mas já não duvidava de que era a última vez que o sol se punha sobre o reino de Zeus e que a própria Nike, a Vitória, se juntaria às hostes inimigas antes do final.

***

Muito depois, Icnaia meditava junto a um fiorde margeado de álamos dos quais brotava o âmbar, junto a seu amante. Fora sua a escolha. O vitorioso Poros propusera-lhe, como a todos os olímpicos salvo Zeus, unir-se aos vitoriosos. Fora das poucas a recusar: sua honra não lhe permitia servir ao novo senhor se o próprio Zeus não o fizesse ou a dispensasse do juramento de fidelidade. Para sua surpresa, Poros não a jogou ao Tártaro: deixou-a escolher um exílio na Terra, de onde poderia voltar quando mudasse de ideia.

Até onde ela sabia, só mais um dos deuses ainda recusava fidelidade ao novo senhor do Olimpo: Héracles, que escolhera viver entre os durotriges da Bretanha, à margem do rio Cerne, com a esposa Hebe. Além do próprio Zeus, desterrado na oriental ilha de Crise, povoada só por grifos e dragões, junto a Hera que, surpreendentemente, decidira acompanhá-lo. Ela quis estar ao lado dele sem ter de disputá-lo com outras fêmeas, pensava a rastredora, sem saber se isso amenizava ou agravava o tormento do rei deposto.

Poros era mais sereno e generoso que o antigo amo. Quando não mais precisou das asas, devolveu-as a Arce, que libertou junto com os Titãs. Tanto quanto sabia a exilada, ele era fiel à esposa com a qual se unira, até então a mais humilde e desprezada das deusas: Penia, a Pobreza, agora mãe de Eros Porimos – um deus do amor bem diferente de Eros Lusimeles, o filho de Afrodite – e da bela Sofia, a Sabedoria. Ao contrário de Zeus, que jamais teve qualquer projeto além de manter-se no poder, Poros parecia ser sincero em seus planos para conduzir deuses e humanos a uma era de felicidade ilimitada.

Humano, demasiado humano, na opinião de Icnaia. Continuava a receá-lo, pois para ele os fins justificavam quaisquer meios. O pouco que ela soubera de seus esquemas incluía guerras e revoluções apavorantes, como o mundo jamais conhecera – embora também incluíssem figuras absurdamente pacifistas, com o pensador indiano que ele inspirara ao pé da árvore Bodhi, dois grandes sábios chineses, um em Loyang e outro em Qufu, e muitos filósofos gregos e profetas semitas por vir.

Receosa da tortuosidade e aparente fragilidade desses planos, Icnaia escolhera uma terra que ainda permaneceria mais de mil anos fora deles. Disfarçara-se como humana e era relativamente feliz como vidente e feiticeira entre os anglos da vila de Heathe, às margens do fiorde Slien, na terra dos Hiperbóreos. Conquistara um dos mais belos e sagazes guerreiros anglos da região, Holmr Hrethelson, e ainda se passariam muitos anos antes de que ele começasse a suspeitar da imutável juventude da amante e ela precisasse procurar outra aldeia.

De pé junto à margem, de mãos dadas ao amante, olhava para seu filho Scaerllocc, um pequeno semideus de cabelos louros cacheados. O garoto brincava com os amigos. Imbatível no esconde-esconde e na caça ao tesouro, era inteligente e sagaz como a mãe. Sim, pensou ela, Scaerlocc Holmson daria origem a uma longa linhagem de investigadores. Não era preciso perguntar a nenhum oráculo.



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Antônio Luiz M.C. Costa é editor e colunista da revista CartaCapital, contista, romancista e referência entre autores de Ficção Especulativa. Em breve, a entrevista com ele aqui na SAMIZDAT.