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quinta-feira, 26 de abril de 2012

Conto sem ponto

Jazia deitado na cama, enrolado sobre si próprio.

Mergulhado em sofrimento amorfo, sem esperança, imerso num cansaço entranhado nos ossos, um desânimo cuja profundeza não tinha medida. Não estava desesperado, o desespero leva à acção; estava... desesperançoso, um estado em que tanto a esperança como a falta dela não têm lugar.

Tinha os olhos secos - o choro é uma reacção à tristeza mas a tristeza requer razão e ele estava para além disso. O cérebro tinha-se ausentado num desligamento automático provocado por mecanismos de segurança interna - se pudesse pensar, teria já feito asneira - a natureza é sábia.

Ouviu ranger a porta mas tudo o que não exigisse uma acção imediata e inadiável era trivial e podia ser ignorado. Ignorou o ruído.

Assim esteve, muito e muito tempo. Quando a sede se tornou inadiável, levantou-se lentamente e foi à cozinha.

A porta estava entreaberta e em cima da mesa estava uma pétala. Pegou-lhe: estava murcha mas cheirava bem. Inexplicavelmente sentiu-se melhor, capaz de aceitar que nunca poderia providenciar por inteiro.

Desde que não tivesse medo nem egoísmo, que não colocasse em outros o próprio peso ou culpa, que não renegasse passado ou futuro, que não fugisse à própria incapacidade, a necessidade que não podia satisfazer seria como aquela pétala: murcha mas com aroma a paz.

Nunca mais fecharia a porta da cozinha.





quarta-feira, 25 de abril de 2012

Quotidiano Fantástico – Um Engano Vulgar


Joaquim Bispo

Após o jantar, Edgar desceu para comprar tabaco e aproveitou para tomar uma aguardente.

Só refiro esta ingestão de álcool para tentar entender porque se equivocou de piso, no regresso a casa. Por outro lado, nem isso explica como conseguiu entrar no apartamento por cima do seu.

Certo é que ficou atrapalhado por não reconhecer o espaço. Era amplo, sem divisões. Da penumbra geral, sobressaíam dois grandes retângulos luminosos no chão. Aproximou-se do primeiro e, estupefacto, reconheceu, em baixo, a sua mulher a pintar as unhas dos pés em frente à televisão, como se o pavimento fosse transparente. No outro, vislumbrou a filha na casa de banho, a limpar o rosto em frente ao espelho. Recuou com algum pudor, receando a implícita invasão de privacidade.

Nesse momento, percebeu atrás de si um ténue som de arrastamento. Pouco depois, Edgar engrossava a estatística dos homens que desaparecem depois de saírem para comprar tabaco.

* * *
[Miniconto integrante da antologia do I Concurso de Minicontos Autores S/A – 2013]





segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dona Clara



Perco-me entre os títulos de sua biblioteca. Patrick Mercer, Joathan Kellerman, Kerry Jamieson, Patricia Cornwell, Christina Jones e tantos outros outros autores que nunca ouvi falar, que talvez nunca venha a ler. Não gosto muito de leituras, mas gosto de estar na presença de livros, gosto quando ela narra-me as historias. Ela não saia muito de casa, apenas para fazer compras para casa ou ir ao cinema. Conheci Dona Clara em uma segunda-feira cinzenta, ela fazia as compras da semana e um dia pediu ajuda para levá-las para casa. Se Chico chamou-me para ajudá-la. Ajudei-a mais algumas vezes.


Um dia ela ofereceu-me um copo de suco. Eu aceitei. Entrei em sua casa e tudo mudou. Esqueci do trabalho, esqueci dos problemas, dislumbrado com aquela quantidade de livros nas estantes, procurava prolongar ao máximo aquele suco, queria que aquele momento durasse para sempre. Eu queria ficar lá, entre eles, apenas ouvindo seus susurros. Dona Clara percebeu o que eu não havia percebido, percebeu vida onde eu achava que não tinha mais. Mesmo sem os óculos que lhe permitia enxergar, ela viu mais do que eu. Ela viu o brilho nos meus olhos. Mas eu percebi que estava demorando muito e resolvi voltar ao trabalho.


Toda a semana ela ia ao mercadinho e toda a semana eu me oferecia para ajudá-la, aos poucos, fiquei sabendo que ela era solteira. Nunca fora casada, embora tivera um grande amor na juventude. Por muitos anos lecionou literatura na faculdade, mas um dia ficou cansada e foi viajar, quando voltou lecionou por alguns anos e resolveu se aposentar. De vez em quando ainda ensinava em aulas particulares, inglês, francês ou português, mas tinha perdido a paciência de uma sala de aula. E ela ficou sabendo que eu não tinha nem pai e nem mãe. Quando meus pais morreram fui para a casa da tia Janice, mas ela não gostava de mim e não me tratava bem, então quando consegui um emprego no mercadinho do seu Chico, procurei um lugar para mudar. Foi o seu Chico mesmo que me conseguiu um quarto na pensão da Dona Isolda. Ela, a Dona Clara, também descobriu que eu não tinha completado os estudos, mas que eu sabia ler um pouco.


Enquanto carregava as compras, Dona Clara contava-me histórias dos livros, historias de dragões, de cavaleiros, de donzelas, de homens valentes, de crimes, de guerras e também historias da sua vida e de suas viagens. Toda a semana era assim: ela contava-me uma historia, e enquanto eu terminava de tomar o suco, ela mostrava-me o livro da história. E ela perguntava se eu gostaria de levá-lo para casa, eu dizia não. Não sei porque, mas não era só não gostar de ler, eu também tinha um pouco de medo.


Continuamos nessa amizade por mais de um ano. Um dia, ao invés de começar a contar uma das histórias, ela perguntou “Você gosta de ler?”, “Na verdade não, mas gosto de histórias e gosto da companhia dos livros. Acho chato ler”. Disse aquilo com cabeça baixa, esperando um sermão. Mas juro que não falei por mal. Para minha surpresa ela apenas riu e disse “meu pai costumava dizer que ler faz a solidão ser menos dolorosa e é uma espécie de um não estar sozinho de verdade. Eu era muito nova para entender aquilo, mas acabei aprendendo. Aprendi muitas coisas com meu pai, aprendi a gostar de historias por exemplo. Assim como você eu também não gostava de ler, mas então um dia, quando já estava na escola, meu pai faleceu. Eu me senti muito só, fiquei semanas em casa, sem vontade de fazer nada. Ia para o escritório dele, mexia em suas coisas e um dia achei um livro. Era as historias dos Irmãos Grimm. Eu sentei e por alguma razão eu comecei a ler e chorei, chorei e chorei. Percebi que não tinha mais meu pai para contar historias para mim, mas também percebi que ler era como fazer uma oração de agradecimento para ele, por tudo que ele tinha me ensinado. Não sei como aconteceu ao certo, mas desde essa data eu ia todo dia ao escritorio dele e lia alguma coisa. Então chegou um dia que percebi que eu gostava de ler. Estranho como as coisas acontecem com a gente, mesmo morto meu pai me mostrou uma porta para o mundo”. Eu não soube o que dizer e fiquei quieto até chegarmos a sua casa, mas dessa vez eu não aceitei o suco. Não sei porque, mas aquela conversa tinha me deixado desconfortável. Não sei, mas eu não queria ficar mais perto da Dona Clara. Uma dor estranha estava no meu peito, uma espécie de medo, uma sensação ruim.


Não vi a Dona Clara por semanas e um dia resolvi visitá-la. Eu queria saber como ela estava e porque ela não ia mais fazer compras. Cheguei em sua casa e uma moça abriu a porta. Fiquei meio sem saber o que falar no início então perguntei:
- A Dona Rosa está?
- Não. Ela faleceu faz uma semana. Engolindo o choro, fiquei quieto. E pedi desculpas. Quando estava indo embora, ela perguntou quem eu era. Sou Machado, do mercadinho do seu Chico. Eu gostumava... “Eu sei quem você é. Ela falou de você antes de morrer e pediu que lhe entregasse um pacote.” Ela entrou no apartamento, trouxe-me o pacote e entregou-me. “Obrigado” eu disse e sem saber mais o que dizer, eu falei “sinto muito que ela tenha morrido. Eu gostava de conversar com ela. Desculpe, eu preciso ir. Tchau”, “Tchau”. A porta não fechou, sei que a menina me olhava enquanto eu saia, mas não quis olhar para trás.


Voltei para casa com uma dor que eu não sabia explicar. Entrei em em meu quarto e me tranquei. Eu queria chorar, mas não conseguia. Então lembrei do pacote. Era o livro dos Irmãos Grimm. Nele estava escrito “Machadinho, Espero que esse livro te ajude como um dia ele me ajudou. Nele tem um monte de histórias que eu gostaria de ter te contado. Se quiser descobri-lás, so depende de você. Dona Clara”. As lágrimas rolavam pelo meu rosto, enquanto eu começava a ler a primeira historia.







sábado, 21 de abril de 2012

Norman


Faca amolada
finge picar carnes brancas
O sangue achocolatado viaja pelos ralos,
e nada é o que parecer ser
Filho da  mãe,
filho era mãe
Dublê de corpo
colorido da  vida em P&B
psicoticamente narrando
24 vezes por segundo
Embalsamado
em nossa memória
Bate,
Bates,
bytes





sexta-feira, 20 de abril de 2012

Aos pés dos seus pés

O calcanhar saindo ligeiramente da sapatilha foi o primeiro aviso. Ali estava uma mulher apaixonável, sentada de costas para mim, na mesa enviesada à minha. Estou só, relativamente só. Acompanhado apenas de algumas doses de uísque, faço meus olhos subirem pelo tornozelo, até fitar um infinito tatuado sobre o tendão de Aquiles da lindeza, que agora cruza um pé sobre o outro, deixando maldosamente a sapatilha quase solta no ar, presa por um esforço sutil dos dedos travessos. Me ajeito para ver melhor. E num ritmo malemolente de um dancing imaginário, os pés cruzados, um deles seminu, bailam às minhas barbas, como se me convidassem para entrar na dança. E entro com o maior dos prazeres. Nem me dou ao trabalho ou à curiosidade de elevar o olhar e tomar conhecimento da dona daquela provocação inconsciente. Não vejo seu rosto. Talvez seja linda, talvez dentuça, talvez prognata, talvez tenha espinha, talvez dentes amarelados de cigarro, talvez olheiras, talvez narinas arreganhadas, talvez um narizinho feito à mão de um anjo - o mesmo que esculpiu seus pezinhos delicados - , talvez seja a mulher que esperei a vida inteira para me suplicar com os olhos um sussurrante "Arlindo, você me encharca de tesão..." . Não importa quem seja, quem seria, quem deixa de ser. O que vejo me basta. O dorso do pé, o arco perfeito do calcâneo à colina carnuda que dá início aos dedos, as unhas harmônicas bem feitas e arredondadas, esmalte leitoso das falsas puras em contraste com a pele que tende ao jambo, a ausência de calos, cutículas restantes, cascões, ranhuras, joanete, esses castigos injustos. Ela é do tipo que escolhe onde pisa. Tudo se exibe como se fosse só para mim. Os dedos inquietos me piscam os olhos e eu paraliso. O gelo derrete dentro do scotch 12 anos onde molho a língua e a imaginação. Estou hipnotizado, nada enxergo ao redor. Suponho que a moça só possa estar acompanhada, claro, num bar da moda àquela hora da noite, quem a deixaria sozinha? Mas aqueles pés são meus. Eles insistem em trair a dona, mexendo intermitentes, malvados, sonsos, de personalidades próprias e determinadas, ainda mais agora que cessam o movimento, se descruzam, se descalçam - os dois! – e se põem sobre as sapatilhas, abrindo-se como uma flor, imã de maus pensamentos, fetiches vulgares, sórdidas intenções, taras inconfessáveis. A escadinha dos dedos é um design perfeito. O primeiro o maior de todos, o segundo menor que o maior e maior que o terceiro, e por aí vai, dimensões decrescentes, como diz a cartilha da anatomia bela e natural, até chegar ao mindinho, que pouco se move na sua insignificância, mas quietinho, me olha de banda pela sua minúscula lâmina bem cuidada como se percebesse meu total embevecimento. Sim, pés e suas unhas quando divinos fingem-se de olhos que tragariam Machado de Assis. Neste momento, por exemplo, acabo de perder o juízo. Enquanto me cai o último gole de uísque,os pés chutam as sapatilhas para trás. Um se dobra, se alonga, Afrodite espantando a preguiça, e o outro, o mais próximo do meu campo visual,planta-se no chão, como se exibisse sua nudez inteira só para mim. Ofegante, meu tórax é um pandeiro, escrevo qualquer coisa no guardanapo e chamo garçom, que me olha blasé, lê meu bilhete, mas faz o que peço. Sem tirar os olhos do chão, vejo os pezinhos se assustarem, bichinhos ariscos, que se entocam nas sapatilhas rasteirinhas. Eles se viram em minha direção, mas são ultrapassados pela esquerda por dois sapatos másculos, quarenta e dois bico largo, que pisam rápidos, rudes, e param na minha frente. Uma voz grossa me faz levantar a cabeça. Alguma coisa explode no meu queixo. Desabo. Sinto gosto de sangue e acho que perdi um dente.





segunda-feira, 16 de abril de 2012

Vida de flor

          É hábito meu apreciar jardins. Eu poderia olhar e me encantar também com o céu, todos os dias, mas o céu às vezes fica tão sensível que se derrete em lágrimas. As flores têm sempre mais humor.
Faço caminhadas diárias, comandadas pelo medo de sentir cessar as batidas do único amigo verdadeiro de uma existência inteira. Não me importo de ser velha ou jovem. Não me impressionam as rugas, a perda de visão gradativa, a imperfeição dos dentes. Para tudo isso, se eu quiser, há remendos humanos. O que me importa é muito mais que um amontoado de pendengas físicas. Eu quero vida. E foi dessa senhora que de nós se separa apenas uma vez que meu coração recebeu avisos para se cuidar.
Mas não me basta caminhar e assumir a rotina do passo a passo em frente a casas inertes, prédios-esfinges. Isso me irrita, me fatiga a paciência que já se faz tão curta. Para desfazer esse cansaço que as coisas imóveis costumam provocar, eu me distraio, em qualquer caminho, perscrutando jardins. Sou capturada pelo frescor de uma alameda, pela cor de um ramo florido, por uma folhagem que brinca com as nuanças do verde.
Prefiro, com toda a certeza, um jardim que fica na rua de cima, a despeito mesmo do pequeno aclive que preciso encarar no caminho. É um jardim irregular, desses que talvez escape a olhares mais estéticos, mas é tão, tão... coerente que não permite reparo! Ostenta uma poda necessária, mas não excessiva, uma ordem desorganizada no plantio das flores, um inteligente desprezo pelo convencional.
Parada em frente ao muro baixo que me separa do universo de seivas, medito sobre a beleza das coisas que não têm padrão. É um jardim com caráter. Tem sofrimento plantado aqui. E esse muro simbólico que o circunda é somente uma sentinela a proteger algum recato.
Abaixo a mão furtiva sobre uma cinerária lilás e arranco-a da folhagem cinza com a sofreguidão dos invasores. Pego a menorzinha de tantas, para que meu pecado tenha igual penitência. Tomo cuidado em não pisar na grama e respeito o rubor de um hibisco que parece se envergonhar do meu atrevimento. Dias após dia, incentivada pelo sucesso do primeiro delito, furto de novo. E o instante da posse é sempre afogueado e pleno.
Mas o que é isso? Tenho a sensação de um olhar sobre o meu ato... Talvez seja mais sensato cumprir a vontade imediata dos meus tornozelos, mas correr é prova do delito! Melhor ter certeza, primeiro, de que há mesmo um olhar. 
A janela da frente é a minha primeira opção. Levo os olhos medrosos até a vidraça entreaberta, preparando um sorriso convencional e uma fala improvisada. Ninguém está lá. Olho a porta, percebendo a solidez das trancas, e desejo ser menos cismada. Mas que coisa! Soltar um suspiro logo agora! Os suspiros sempre acompanham os malfeitos. Olho para o céu, disfarçando a busca, e é exatamente neste giro de olhos que me choco com a presença de um homem me encarando da varanda do andar de cima.
— Bom dia! — arrisco.
Um aceno de cabeça é tudo o que recebo do taciturno.
— Desculpe ter arrancado uma flor. É que o seu jardim é tão lindo!
Arrancar? Como então começo a minha confissão de culpa comprovando a brutalização daquele montinho lilás que escondo atrás do corpo!
Recebo um frio “Está certo”, distorcido pela grata distância entre nós. O homem se volta e entra, me deixando com a lembrança incerta de um sujeito alto, magro, de meia-idade, assim como eu. Chego a imaginá-lo pálido, mas não sei se houve entre nós  espaço suficiente para garantir essa percepção. Ele se foi rápido, e eu me vou mais rápido ainda!
Enquanto caminho, suada pelos passos apressados da fuga, encaro o fato de que o meu humor está em frangalhos. Eu me tornei uma assassina de flores! Arrancando as pequeninas da sua mansão de sol, chuva, vento, liberdade! Destruindo suas forças, roubando-as da companhia amiga de outras flores! Aquele homem frio e taciturno é, agora, por minha causa, um criador sem criatura. A vida que tanto almejo reter é a mesma que arranco de uma simples flor de jardim!
Não estou acostumada a me ter como egoísta, muito menos a pensar em mim como alguém propenso ao fim das coisas. Sou pelos começos, pelas permanências, pela duração. E é por isso que decido não cessar os meus passeios matinais. Não posso permitir que nada além de uma noite de sono me separe das caminhadas que me fazem tão bem. Nem a descoberta do desequilíbrio que faz de mim uma mulher de contrastes.

Hoje, caminho por outras ruas, outros quarteirões, mas não adianta!  Meus pés se contorcem teimosos em direção ao aclive. Melhor não resistir à ansiedade que me descompassa o coração. Pode ser fatal. É preciso promover um encontro urgente com os acontecimentos.
Estou aqui, de novo, nesta rua tão prazerosa. Tomo fôlego porque a tarefa é árdua: preciso pedir perdão às pequeninas.
Sobre o murinho, me enfeitiçando, um gladíolo alaranjado, ainda fresco. Parece deitado à espera de alguém. De mim?! Impossível! Que pretensão sem sentido! Mas está aqui, solto, lânguido, sem dono. Então, é meu!  E o perdão vai esperar por outra hora.

Já faz dias que é assim. Talvez semanas, porque mesmo agora que o inverno chegou, e as flores se recolheram para dormir um pouco mais, encontro no muro, a cada dia, uma rosa, uma cinerária, uma margarida. As minhas noites se resumem à antecipação da flor da minha manhã. Vez ou outra, levanto os olhos e recebo o mesmo contido aceno do homem alto, magro e de meia-idade. Existe aconchego no gesto diário desse amigo que não conheço. 
Não me sinto mais ceifando a vida das flores. Recebi, num sussurro de folhas, o segredo das pequeninas, a me dize que foram mesmo feitas para serem arrancadas. São como as pessoas: germinadas com um destino. Têm começo, meio, fim. Inquietam-se, gemem, choram, rejubilam-se. E aí, brilham. Como as pessoas. Depois se vão para um não sei onde, cumprido o seu papel na perfeição de Deus.
É com as flores que a minha crença miúda se converte. Não há mais o Deus que tripudia de mim, despejando nos meus anos dor, velhice, morte! O Deus das flores me diz para arrancar o que eu preciso. E diz a elas que se doem a mim.
Não há culpas.
Olho as pequeninas estendidas preguiçosamente ao sol e me lembro das pessoas que esbarraram em mim durante toda a minha vida, ora me entregando cor, beleza, frescor, ora me pedindo ajuda, conselho ou simples companhia. Penso em quantas vezes arranquei essas flores e em quantas vezes me neguei a ser arrancada. A gente entrega o que tem, recolhe o que precisa, até que de tanto retirar e repor chega, enfim, a hora em que cessam as barganhas. 
Amanhã, eu venho de novo. Quero dizer olá ao meu amigo que não conheço e agradecer a ele cada flor que o muro me entregou. Pode ser que eu aprenda com ele a remexer a terra, a plantar, a saber o momento de colher para entregar.
Quero essa vida de flor que ainda tenho tempo para começar. Quero ser eu também semeada, e cuidada, e afagada. Quero ser um jardim. 
E quero ser arrancada todos os dias. 





domingo, 15 de abril de 2012

Linhas




– Um copo de água, por favor – pede o homem.
E perante o olhar indiferente do empregado, ou interrogativo, ou apenas expectante numa normalidade de serviço, o homem confirma, a olhar o outro:
– Só isso, por favor.
E sorri-se.

Aquele comboio pára em todas as estações. De cada vez que pára, a mulher move os lábios como se falasse, mas não pronuncia nenhum som. Remexe apenas a boca. Fica a língua à vista como se dançando. Depois volta ao sossego. A boca cerrada como se a mulher estivesse casmurrando. Quando o comboio se põe em andamento, a mulher repete o trejeito. E mal a velocidade é uniforme, ou quase, ela dormita aquele sono que parece desassossegar-se com as acelerações.

Na plataforma do apeadeiro está um homem. Está a olhar a linha.
Chega um homem mais novo. Muito moço.
Não falam entre si. Nem se dão os bons dias.
Estão de costas voltadas um para o outro, quando o comboio chega.

No largo de uma aldeia, desembocam quatro ruas. Na que vem do lado da igreja, surge uma mulher. Vem andando para a única sombra. Quando chega debaixo da árvore, pára. Assim como quem descansa, a mulher coloca as duas mãos a segurar a barriga enorme. E fica um momento de olhos baixos a olhar a terra seca e amarelada que cobre todo o largo.

É dia dezanove de Setembro.


Sabem disso a mulher prenha e o homem que pede água e o empregado atrás do balcão e os dois homens no apeadeiro.
Talvez não o saiba a mulher que dorme entre duas estações.
Mas sabe-o o homem que verifica os bilhetes no comboio.

Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.

O comboio pára no apeadeiro.
Chega uma ambulância e um carro da polícia. Um polícia impede um dos homens. Barra-lhe a passagem a tapar a porta com a mão.
– Não pode entrar no comboio– diz ele.
E o homem grita:
– Vou buscar a minha mulher.
Um homem mais novo vai perguntar na bilheteira:
– Este comboio segue viagem para norte?
A menina da bilheteira não responde: ela não sabe.

Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.

Uma mulher muito jovem dá à luz uma menina.
Está sozinha. A menina chora.
A mulher tira a maminha de dentro da camisa e mete o bico junto à boca da criança. A criança tenteia, a balançar a cabecinha numa busca, e depois faz um ruído muito intenso e muito rápido. A criança chupa o bico a sugar o leite.
A mulher diz em voz baixa, a falar com a menina:
– O pai vem daqui a pouco, no comboio.

Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.

Num comboio que segue para norte, uma mulher morre na carruagem onde não segue nenhum outro passageiro.
O revisor entra.
– Por favor – diz assim, e estende a mão, que é um gesto de pedir o bilhete.
A mulher não se move.
O revisor percebe que a mulher está morta e vai pedir ajuda pelo corredor.
O comboio está quase a chegar ao apeadeiro.

Dia dezanove de Setembro. Meio-dia.

– Daqui a pouco chove.
Diz assim o homem que pediu água. O empregado coloca em cima do balcão o copo cheio e aponta para a plataforma.
– Antes que venha o comboio não há-de chover – diz ele.
O homem emborca o copo de uma só vez e estala a língua. Quando pousa o copo no tampo de madeira faz-se um ruído imenso. E o homem pede:
– Se puder, dê-me outro.
O empregado enche o mesmo copo.
– Chegou o comboio – diz, a olhar para o apeadeiro.
E o homem, a beber o segundo copo, sorri-se.
– Agora vai chover – diz ele a sair para a torreira do sol.

***

– Acudam.
É o grito de Elvira que não é escutado.
Um berrar de desespero a refractar-se como o calor no chão ardendo.
Nem o cão por perto, que foi com o rebanho.
Elvira desfaz-se em sangue a parir um novelo. É uma menina. E Elvira nem consegue sorrir-se de lhe nascer a filha. Ela a cortar a tripa ensanguentada com os dentes. Felizmente que os tem sadios. E descai-lhe das mãos a metade de tripa que está presa ao corpinho. Elvira logo a agarra. Prende-a num nó que faz com o gancho que tira dos cabelos. A menina num vagido lento e finalmente o grito, o choro. Elvira num esforço pendura-a na mão esquerda. Fica a cabeça da criança a bambolear no espaço como sendo um baloiço. E logo Elvira a enrola no lençol da cama e tenta repousar um pouco.
Mas crescem-lhe dores mais largas, mais intensas. Dores desnecessárias, pensa Elvira num temor danado de que possa ser outro. Mete a mão lá dentro. Dói-lhe. Tira o braço empapado de vermelho. Faz força com as mãos no ventre. Faz força de novo. E, a parecerem postas de sangue, ela expele. Sai-lhe a fressura como sai numa gata, entre cada gatinho. Elvira deixa que aquela pasta, a sujar vermelho, caia pelo chão. Não a come como fazem os outros animais. E sucumbe num sono que nem é inteiro: ela atenta à menina que dorme.
Elvira há-de dar-lhe peito. Primeiro será uma aguadilha. Ela sabe. Olha a menina. Há-de ser Constança, pensa Elvira.
E a ver o relógio acha que Ernesto demora a vir no comboio.

***

Florinda veio de madrugada. Nove horas de viagem.
O médico dissera, benévolo, a não querer que ela fosse:
– Vai, mas volta, Dona Florinda, que a senhora precisa tratar essa garganta.
Um tumor que lhe impede a respiração. Sobretudo a dormir, Florinda arfa e quase sucumbe de falta de ar. Tinha aquilo desde há muito. Piorara. Dorme sentada e nem assim dorme um sono inteiro. Diz-lhe o marido que ela acorda a fazer esgares, que é um sono em sobressalto. Vinha de consultar o médico e ele fora peremptório:
– Opera-se e fica boa. Amanhã, se quiser: tenho bloco.
Mas Florinda preferiu ir ver o marido. Que António não tinha o hábito, e eram muitas horas de comboio e depois o táxi e a balbúrdia na cidade. Florinda disse ao médico que iria a casa antes da operação: que o Senhor Doutor marcasse para mais tarde, se fizesse favor.
O médico insistiu, que demorar podia ser fatal. Florinda sorriu-se. Uma semana ou duas, o tumor esperaria, depois de tantos anos.
Florinda ainda ouviu o ruído que fazia a maquineta a furar os bilhetes.
Mas engasgou-se, tossiu um pouco, e já não deu pelo homem a dizer por favor e a estender a mão.

***

Nem era seu costume parar por aqueles lados quando ia em viagem, mas naquele dia saíra muito cedo e aquele fim de manhã estava muito quente. Um mês de Junho dos diabos, pensara Januário a entrar para pedir um copo de água.
O empregado deve ter estranhado que pedisse assim, apenas, e ele achou piada à cara do rapaz e insistiu, e dobrou o pedido.
E afinal, o moço nem era antipático. E não é todos os dias que se conhece alguém que sabe se chove pelo horário do comboio.
Depois de Januário se ter inteirado da razão do alarido no apeadeiro. Depois de saber que no comboio tinha morrido uma mulher: coitada! pensou Januário e nem se aproximou, que ele estava de passagem, ninguém sabia quem era, o que fazia.
Depois disso, choveu que Deus dava. Choveu todo o caminho.
O comboio a ficar retido e o rapaz, junto à bilheteira, a querer ir mais para norte: duas estações. A mulher tinha todas as luas duma primeira gravidez. E agora aquele imprevisto. O rapaz pediu: dá-me boleia?
Januário levou-o. Fez até um desvio. E chegado à aldeia foi deixá-lo em casa. Percebeu: o mulherio viera em socorro. Diziam em alarido que Elvira e a filha estavam bem, mas tinham ido para o Hospital da Vila.
Januário levou aquele pai ansioso. Que a menina seria Constança, disse o moço.
Que nome lindo! pensou Januário já a seguir viagem para o seu destino.

***

Ao outro dia, os jornais noticiaram. Januário Mateus, médico cirurgião, encontrado com um tiro no pescoço. numa casa que possuía no norte do país. Deixou um bilhete
Estava escrito a lápis num pedaço rasgado de papel de embrulho, perdoa-me Constança, minha querida esposa.





sábado, 14 de abril de 2012

Assim falou o autor suicida

 Le Suicidé, Édouard Manet

A morte tem um sabor doce,
também pudera, dada a amargura da vida.

Quem sabe não me igualo aos grandes poetas?
Maiakovski, meu grande escritor... só assim,
só assim para me equiparar a você, e veja só:

tão aquém de você, que nem efetivo sou no que agora (me) executo.

Deixo ao acaso, afinal todo ele definiu minha vida, sabeis, amigos.
Saberá ele, o acaso, quantas gotas são as necessárias, pois eu...
eu só faço tomá-las.

Chega um tempo na vida do homem em que ele cansa.
Cansa de sobreviver e anseia por viver.
Se não o consegue, ó infelicidade, e ele se resigna:
deixa-se levar pela vida, deixa-se levar pela morte,
pois não planeja um, tampouco o outro.

Assim falou o autor suicida.





quarta-feira, 11 de abril de 2012

O que me resta



Resta então o  frescor de liberdade,
o vento gelado  no rosto,
os pedaços de vida, da irreverente vida que acabou jogando-se ao lixo
as borboletas azuis e vermelhas
voando num céu caramelo,
o inverno dos vencedores com o inevitável encontro com os frios de alma.
 
As hortências azuis com gotas
gélidas do orvalho,
encostadas no desfiladeiro,
acobertadas pelo sol pálido de fins outonais,
os suplícios e suplicantes de almas condoídas
garantias efêmeras dos girassóis da Rússia...


Assovios  velados de mocinhos e bandidos,
o beijo molhado do fantasma solitário,
um canto da vida escondido em um  resto de mundo,
o lamuriar dos ventos segredando
tristezas  de árvores distantes
outros povos, outras  pegadas desconhecidas.


Resta-me o resto
Do meu rosto
Dos meus sonhos
Daquilo que me prometi
E não fiz, nem sei porque.

Um amor roto
Uma meia sem par
A antiga loucura que jamais abandono
Mais dois tostões de vida
E um campo florido de toda esperança. 



The end





terça-feira, 10 de abril de 2012

O que ninguém lhe dirá numa oficina literária - parte 2 (A Publicação)






Leia a primeira parte: A Criação


Cada dia mais veremos somente o nascimento de grandes obras, ao invés de grandes autores
O desenvolvimento da escrita é um percurso longo, geralmente de várias décadas. No entanto, numa época de imediatismo, quando tudo é muito rápido e instantâneo, ninguém mais tem tempo para aguardar o amadurecimento de um talento literário.
Carreiras duradouras serão incomuns, e escritores com apenas uma ou duas obras de sucesso serão cada vez mais frequentes.
Enfim, o autor cederá espaço para a obra, que deverá sustentar-se por si própria.


Acostume-se a ser recusado. Você ouvirá muito mais "não" do que "sim" nesta carreira
Se você for uma pessoa normal, já deveria ter se acostumado à recusa. Todos nós já ouvimos "não" de nossos pais, daquela paixão que nos rejeitou, foi reprovado na escola, no vestibular ou no concurso público.
Ouvir "não" faz parte da nossa natureza humana e isto não é diferente no mundo literário.
Provavelmente, você ouvirá vários "nãos" antes de ouvir o primeiro "sim", isto se chegar a ouvi-lo um dia.
A maioria dos escritores só encontrarão as portas fechadas. E haverá apenas três alternativas: desistir, continuar tentando, ou seguir seu próprio caminho sem se importar muito com isto.


Ser publicado é mais uma questão de quem você é e de quem você conhece do que como você escreve
Esqueça todo o romantismo de um editor encontrando seu manuscrito em meio a milhares de outros, apaixonando-se por sua escrita e publicando seu livro.
Assim como em qualquer negócio ou empresa, os editores preferem lidar com quem eles já conhecem, ou com pessoas indicadas por gente de confiança.
Ter um livro publicado não tem nada a ver com qualidade literária. Se você for alguém famoso com milhões de fãs, ou alguém com as costas muito quentes, certamente passará à frente de qualquer gênio literário anônimo.


Não existem olheiros. Se você não correr atrás das editoras, ninguém correrá atrás de você
Com tamanha oferta, com tanta gente escrevendo bem por aí, ninguém virá atrás de você suplicando para publicar suas obras. Não existe isto, apesar de um dia já ter existido.
Hoje, todo o esforço de contatar as editoras, criar uma rede de relações, estabelecer sua reputação e tornar-se atraente para publicação depende exclusivamente de você.
Os editores não precisam do seu livro, eles necessitam de apenas três ou quatro autores best-sellers na casa que os carreguem nas costas, o restante é apenas para fazer volume.


Livro é produto. Tem custos e precisa (pelo menos hipoteticamente) dar lucro
A publicação é um investimento. A editora é uma empresa que investe tempo e dinheiro num livro visando vendê-lo e lucrar com isto.
Ninguém está interessado se aquela obra é o próximo grande clássico da Literatura Universal, ou se é apenas um passatempo de final de semana, desde que venda bastante.
Se um editor não vir o potencial de pelo menos pagar o investimento feito, isto é, vender uns 200 exemplares, ele não publicará seu livro.


Se você deseja estabilidade, tente concursos públicos. Pois ser escritor é viver numa montanha-russa
Geralmente, ser escritor não é uma carreira. Você não conseguirá pagar as contas e, provavelmente, nem um almoço com o que ganhará de direitos autorais.
Se você quer uma vida confortável, sem preocupações com o dia de amanhã, faça um concurso público. Literatura dificilmente lhe dará estabilidade financeira ou emocional.


Em nossos tempos, o sucesso tarda mais para ocorrer, e esvai-se muito mais rapidamente
Hoje, você precisa investir muito mais do seu tempo em sua carreira e os resultados serão mais fugidios.
Com tamanha oferta de títulos e autores talentosos no mercado, considere-se um felizardo se sua obra conseguir um espaço na imprensa e atraia a atenção do público por mais de um mês, ou até menos.
Há muito para se ver e se consumir, ninguém mais tem tempo ou interesse para dedicar a atenção para um único livro/autor.
Você estará disputando espaço com milhares de outros livros e, logo depois da publicação do seu, a avalanche continuará, soterrando a sua obra.
Amanhã, você já terá sido esquecido.


Publicado originalmente em http://blogdoescritor.oficinaeditora.com/2012/01/o-que-ninguem-lhe-dira-numa-oficina_28.html


Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
http://www.henrybugalho.com/





domingo, 8 de abril de 2012

testamento


para 
Dimitri
meu filho 








desejo, meu amor, que não sejas poeta

é uma vida meio sofrida
sentimental demais
um tédio sem tamanho porque
se vê e se vê muito
o tamanho que são as coisas
e só o que se pode fazer
meu amor
sendo poeta
é escrever
de um jeito que só as palavras
não dizem
precisam também elas serem vistas
por quem vê nelas o tamanho
que têm

as palavras têm tamanhos estranhos
e
se rasas acabam afundando
uma hora
por acaso
e se andam muito à beira
às vezes precipitam-se
e é um horror de se ver

não sejas poeta

desejo também que não sejas livre
as liberdades são tão duras
com os livres
exigem a todo instante que se libertem
e se façam ver livres
e fazem que digam a todos

(muito provavelmente com palavras que poetas gostam muito)

"vejam
vejam
sou livre"

agarra-te
meu pequeno
a algumas coisas
ou menos
a uma só
e segue
sem te livrar dela
sem que ela se liberte
de ti

(não há bem como prever se isso funciona ou não, mas temos que tentar, não é?)

uma pena, meu bebê,
uma pena não poderes te agarrar
à poesia

vê só que eu tentei
e essa diaba me correu
a vida toda
e me fez correr tanto
me tirou de todo lugar
mas não me deixou ser
nem dela livre
nem pude ficar com ela

desejo ainda que não queiras muito

queiras sempre
(há sempre que querer)
mas sinta
isso de um jeito tão intenso
tão profundo
tão de um fazer-se em
sei lá
mil
e acabarás numa derrota tamanha
por ver-se sem esse querer
que haverás de, aí sim,
não querer mais nada

e isso eu, para ti, não quero

queira, meu presente do destino,

queira
mas queira só
queira pelo querer
queira e desfrute o querer
talvez até com alguma
frugalidade

(é uma ciência, eu sei, e sinto muito por isso, mas hás de ter de lidar com tal ciência, e neste caso desejo-te é sorte)

desejo ainda, criança, que existas um dia
que existas como tu
não como uma continuação
não um mais novo
de dois mais velhos
não uma mistura
não um resultado

exista
meu amor,
exista

dá-te o prazer de existir
de fazer-se neste mundo

advirto-lhe de que não é dos melhores
mas hás de encontrá-lo de uma forma ou de outra
e hás de moldá-lo

fiz um molde de ti em mim
fez um também tua mãe
fizemos ainda um do mundo

e quem é que diz que há
como as coisas saírem
como são para ser?

sei
(e desejo que o saibas tu também, um dia)
que és quem és
sem molde nenhum







[Poema escrito em sete de julho de 2011, publicado originalmente em http://dasartesimpuras.blogspot.com.br/2011/07/testamento.html]





sexta-feira, 6 de abril de 2012

Os muitos adjetivos de Ubaldo








(por Ramon Barbosa Franco) 

Baiano. 
Apenas este adjetivo já representa uma qualidade primordial deste escritor que em 2008 foi reconhecido com o Prêmio Camões, considerado o principal título literário para escritores de língua portuguesa. O Camões contemplou a trajetória literária de um membro da Academia Brasileira de Letras, autor de obras valiosas e detentor de uma risada contagiante: João Ubaldo Ribeiro. Nascido em 1941 na Bahia, Ubaldo cresceu em Sergipe e tem na sua formação de escritor o jornalismo e o direito, além da convivência efervescente com gênios da cultura brasileira e baiana. Dois nomes sintetizam suas influências: o cineasta Glauber Rocha (diretor de ‘Deus e Diabo na Terra do Sol’ e ‘Terra em Transe’) e o romancista Jorge Amado (autor de ‘Capitães da Areia’ e ‘Gabriela, cravo e canela’). Autor de obras valiosas, como ‘Viva o Povo Brasileiro’, ‘O sorriso do lagarto’ e ‘Sargento Getúlio’, João Ubaldo Ribeiro tem ampla produção jornalística, com uma presença ativa na crônica brasileira. Intelectual irreverente, sempre com inteligência e bom humor transmite seus recados aos leitores e população (além de jornais brasileiros, Ubaldo é colaborador de periódicos da Alemanha, Portugal e Inglaterra). Da safra literária deste baiano altamente irônico, a que mais me agrada é ‘Sargento Getúlio’. Escrito de um jeito que parece que foi feito tudo de uma só vez, o romance, publicado em 1971 – e que, anos depois, em 1983, foi adaptado ao cinema com exímia interpretação de Lima Duarte no papel-título – lhe rendeu o Prêmio Jabuti de autor revelação em 1972. O desencadeamento dos fatos narrados, a escolta de um preso político pelo ‘famigerado’ sargento Getúlio, tem o embalo deste integrante da força pública nordestina. Em vários trechos deste monólogo o leitor terá a certeza de que Getúlio Santos Bezerra é a encarnação da besta ou do Cão, tamanha sua voracidade e agressividade, sempre recheada por prazer sádico em ferir. Ao ter contato com esta obra-prima de Ubaldo, me ocorreu, pelo tom narrativo, uma associação mista entre Guimarães Rosa, no modo como compôs ‘Grande Sertão: Veredas’ e seu personagem-narrador Riobaldo, e Jack Kerouac, o norte-americano precursor da geração beatnik, que em ‘On the road’ (livro traduzido para o Brasil pelo historiador Eduardo Bueno e que recebeu o título de ‘Pé na estrada’) escreveu tudo de uma só vez, inclusive colando as folhas de sulfite que saiam de sua máquina de escrever durante a produção do original do livro, criando, assim, um verdadeiro pergaminho. Outra semelhança com o mineiro Guimarães é o tom regionalista, com expressões de seus personagens: ditos próprios de um território, tanto geográfico, quanto mítico. É no jeito de falar e de contar de Getúlio que o leitor tem noção do que se passa em todo o livro. A sequência contínua, com um fôlego intenso página a página, sem perder o raciocínio e a conduta, ao meu ver, garante sintonia entre Kerouac e ‘Sargento Getúlio’. Ubaldo, acima de tudo, além de ser um dos grandes nomes da literatura do idioma português do Século XX, é uma personalidade carismática e alegre. Choro de rir ao lembrar ao menos dois depoimentos dele onde a palavra ‘flatulência’ aparece como personagem central. Em uma delas está a presença marcante de Glauber, outro gênio indomável das artes brasileiras. A segunda foi a forma como ele adjetivou a série de filmes ‘Guerra nas Estrelas’, produzida por George Lucas, ao tentar convencer seu filho a ler os épicos gregos, como ‘Ilíada’, de Homero. “Meu filho, ‘Star Wars’ diante de ‘Ilíada’ é uma flatulência da indústria cultural. Vai ler Homero”, respondeu ao filho.





quinta-feira, 5 de abril de 2012

Inércia

foto: Juliana Charnaud

Depois das paredes
Testemunhas confidentes
Janelas embaçadas
Como se a noite
Estivesse toda desenhada
Na ilusão de um segundo

[Casual

Depois do gozo
Fraterno e delinquente
Sussurros ardentes
Confissões insolúveis
Daquele beijo quente
Não irei me esquecer

[Jamais

Depois de ti...
Não houve mais nada.