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quinta-feira, 28 de abril de 2016

O REVERSO DA CRISÁLIDA




E então um dia a Natureza condoeu-se daquela fraca borboleta.

De asas mutiladas por homens repletos de altruísmo, resolveu retornar ao purgatório casulo a fim de tornar-se magra, mas tolerável lagarta. Ainda hoje mastiga, autômata, seu insosso maço de folhas secas.


Odiava o modo como meu pai me olhava. Aquele pestanejar de pálpebras e o quase imperceptível balançar de cabeça ― que oscilava entre a compaixão e o desapontamento ― eram o meu regime. Ele me condenava por eu não ter herdado a macheza atávica que me havia sido destinada. Meus gestos tornavam os corredores de nossa casa escorregadios, pegajosos, imundos. Nada que eu fizesse para agradá-lo surtia efeito. Meus irmãos eram os varões. Eu a varíola.

Desdenhosos lacaios da aversão que papai me dirigia, os espelhos condenavam meus olhos, o som de minha voz e os pensamentos que eu havia alcunhado secretamente de sombrios. O eu refletido era de um sarcasmo aterrador, ria de mim com uma paixão violenta. Por ser meu oposto, era o desejado filho, aquele que não possuía pensamentos sombrios.

Eu sofria. E minha dor era um minotauro que me perseguia por infinitos corredores de dúvida, culpa e negação. Sempre que eu cedia aos meus proibidos impulsos, mais próxima espreitava a fera mitológica. Seu espectro grotesco afugentava os corpos nus e de masculinidade hiperbólica que vagavam por meus deslizes. Na equivocada matemática de meu corpo, cabeça, tronco e membros resultaram em um somatório obtuso. A aritmética de minha identidade adicionou-me, subtraiu-me, multiplicou-me, dividiu-me, potencializou-me e extraiu minhas raízes. E, no final, resultei em um total estéril.
Descobri ainda em minha juventude que eu não era nada. Por isso meu pai quase não me via, e os espelhos tampouco me enxergavam sem desdém.

Leprosos, diabéticos, hemofílicos, todos os mazelados despertavam uma mórbida inveja em mim, o anseio de ser um deles. Eu amava os pontos cardeais esculpidos sobre a topografia da dor. A convalescença contínua permite que os doentes sejam tratados com misericórdia. Mas, ninguém cuidaria de mim. Pessoa alguma se apiedaria das pústulas assintomáticas de minha vergonhosa doença, meu desequilíbrio secreto, meu mal sombrio.

Quantas tentativas infelizes, tantas investidas em inúmeras religiões. E nenhuma foi capaz de adormecer minhas madrugadas em claro. Eu era a serpente, carregada de peçonha, que secretava muco diante da serena pureza de meus bons pregadores. As orações misturavam-se ao meu execrável orgasmo, e Deus não permitia que eu pensasse em amor.   

Prostrado diante da humilhante condição de ser quem ― contra o meu próprio arbítrio ― eu era, resolvi tornar-me outro. Um outro ao qual a óptica paterna pudesse encarar, sem constrangimentos. Um outro que mimetizasse aquele que vivia no interior do espelho.

Arquitetei uma nova identidade. Adquiri o método que, biologicamente, não me havia sido transmitido. Não sei bem se resultei em um ser humano feliz. Mas, ora! De que vale a felicidade quando ela chega dentro de uma garrafa, solta no remoinho? A felicidade é privilégio daqueles que não temem as moléstias da alma. Eu temo.

Ajoelhada ao meu lado, diante do altar, exibo a mulher que sitiará meus vícios e me parirá filhos saudáveis. Enquanto meu pai me observa com ares de absolvição, sou acometido por um irrefreável pensamento sombrio. Nego-me a abater-me diante dele. Mas, o que importa agora? O pensamento é uma mácula que os olhos não veem. Venci-me. Derrotei-me. Logo estarei casado.

Que moço simpático, que rapaz gostoso é esse padre!

Troquem-se as alianças. Amém.

Emerson Braga





quarta-feira, 27 de abril de 2016

Colcha de Retalhos #20

Após 20 meses (de setembro de 2014 até abril de 2016), com o brevíssimo texto abaixo, encerra-se a coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


SOBRE O EGO

O ego vai te levar longe
E vai te deixar lá, sozinho.









terça-feira, 26 de abril de 2016

Miçanga

Sempre arrastei a asa e o coração pra metalinguagem. O código em movimento centrípeto — voltado às vísceras da própria linguagem, preocupado mais consigo mesmo que com o referente — é o tipo de egoísmo que me encanta.

Aliciam-me fácil, fácil: romances cujos personagens são escritores, poemas que mergulham no nó górdio (ou nos “nós mágrios”) da poesia, Vinicius cantando que “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”, a tensão das cores que jorram dos autorretratos de Van Gogh, programas de TV que se fazem autorreferentes, atores que reclamam do roteiro da peça enquanto estão em cena, filmes que dialogam com o fazer cinematográfico... Tenho uma queda inclusive por dicionários e gramáticas, metalinguísticos por excelência. O que nem sempre dá pra suportar é self de fotógrafo na cobertura jornalística, né?

Pois bem. E sou apaixonada, arriada os quatro roliços pneus pela crônica — essa prima espevitada do conto, essa chegada íntima da metalinguagem, essa potra sem cabresto da literatura. A selvagem aceita e praticamente roga uma embromação. Está liberada para serenidades na estação de terremotos e também para drogas pesadas em eras de abstinência.

“Espelho, espelho meu, existe escrito mais metalinguístico que eu? Posso vir a me tornar anacrônica? Continuo atada e subordinada ao hoje, ou me rebelo e voo à eternidade? Como sobreviver neste mundo, sendo ainda eu mesma? Você ainda gosta de mim, leitor? Você ainda me quer, cronista? Em que posso melhorar para o nosso relacionamento ficar mais gostoso?” — indaga a nossa heroína, construindo-se dia a dia num encantador universo dialógico.

Drummond, Clarice, Rubem Braga, João do Rio, Veríssimo, Martha Medeiros, Roberto Klotz... Em maior ou em menor grau, todo cronista faz metalinguagem. O deadline do jornal praticamente obriga o escritor a levar à tona a idiossincrasia do próprio texto, que precisa nascer a qualquer custo até o soar do alarme. Crônica e cronista deitam-se sem cerimônia no divã, na cama, para, juntos, tecerem nova bugiganga.

À crônica é permitido falar pras paredes sem ser considerada louca. Nela até as abobrinhas se justificam. O exercício do texto em torno de si mesmo já vale a pena. É um gênero desprendido, sempre disposto à discussão. A crônica topa qualquer DR e não se irrita à toa. Sente-se livre dentro da própria linguagem e se alimenta dela. Enfim, a crônica é uma fofa. Miçanga pura.





segunda-feira, 25 de abril de 2016

O cavalo que queria ser famoso



Era uma vez um cavalo que vivia em Pádua. Servia como montada de um capitão de soldados do exército de Veneza, porque o que se vai contar passou-se há muitos anos, quando as guerras eram feitas com cavalos e espadas.
Certo dia, quando o cavalo estava no tronco para ser ferrado, entrou um ladrão no recinto. O meliante, que vinha armado, levantou um ferro para bater na cabeça do ferrador. O cavalo assustou-se, e, como ainda não estava com as patas presas, pregou um valente coice no assaltante, que foi abater-se contra o muro. O ferrador ficou muito agradecido e disse ao cavalo:
Vou cravar-te, no casco da mão direita, uma ferradura, que me deu um génio, há muitos anos, por serviços prestados. Quando estiveres em perigo, raspa com ela no chão e diz três vezes: Hihihipoho.
O cavalo foi-se embora e quase que se esqueceu do assunto, mas um dia, em grande galope numa batalha, tropeçou e estatelou-se com uma pata partida. Lembrou-se logo da ferradura mágica do ferrador; escarvou o chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Encontrou-se, de repente, numa clareira duma floresta de carvalhos e viu um génio, que era homem da cintura para cima e cavalo da cintura para baixo, que lhe disse:
Que ajuda precisas, cavalo?
Parti uma pata e quero que me salves de ser abatido — um cavalo de pata partida já não serve para montada de ninguém.
O génio deu três sacudidelas com a cauda e o cavalo ficou curado.
Ainda tens dois pedidos — disse o génio esfumando-se. — Usa-os bem!
Ora, uns tempos depois, passou o “nosso” cavalo no adro da basílica de Santo António e, como o seu dono encontrou outros cavaleiros e se pôs a conversar, pôde admirar a estátua equestre ali erguida. O cavalo de bronze era tão possante, que parecia ser ele que dirigia o cavaleiro. Perguntou aos outros cavalos, quem era aquele da estátua, mas nenhum soube dizer. Então, interrogou um pombo que por ali andava e este respondeu:
O cavalo, não sei, mas o cavaleiro é o grande comandante veneziano Gattamelata, esculpido pelo, não menos famoso, Donatello. É o que ouço dizer.
O cavalo ficou tão impressionado pela majestade da estátua que, após muito meditar, resolveu que ia dedicar o resto da vida a servir alguém famoso, para ser retratado com ele para a posteridade e também ficar famoso. Quando ficou a salvo dos olhares humanos, raspou com a ferradura mágica no chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Viu-se logo na clareira do génio-centauro, e este perguntou:
Que ajuda precisas, cavalo?
Não estou em perigo, génio, desculpa — explicou o cavalo —, mas preciso que me arranjes um dono famoso, para ser retratado para a posteridade, como o cavalo de Gattamelata.
Tu é que sabes! — ralhou o génio. — Olha que este pedido te pode fazer falta mais tarde!
Eu quero ser retratado em bronze, nada mais me interessa!
Então, o génio, vendo a decisão resoluta que o cavalo tinha tomado, disse-lhe:
É pena não teres pensado nisso um pouco mais cedo. Está a ser erigida, em Veneza, uma estátua equestre maravilhosa, a do comandante veneziano Bartolommeo Colleoni. Mas é melhor veres.
Dito isto, apareceu no centro da clareira uma estátua equestre. O cavalo parecia mais pequeno que o de Pádua, mas estava esculpido com tal garbo e com tal realismo de pormenores, que parecia vivo.
É assim mesmo que eu quero! — emocionou-se o cavalo.
Infelizmente, quem fez este já não faz mais; foi esculpido por mestre Verrochio, que morreu há pouco. Mas, sempre te digo, que o seu discípulo Leonardo é um artista prometedor a quem muitos poderosos já recorrem. Queres ficar ao seu serviço?
O cavalo relinchou agradecido e pouco depois achou-se em Milão, na cavalariça usada por Leonardo da Vinci. Estava este a arquitetar uma estátua equestre gigantesca, de mais de sete metros atuais, para a corte de Milão, pelo que observava e desenhava cavalos, anotava a medida de cada parte do seu corpo, para encontrar a proporção ideal, e tentava arranjar maneira de fundir uma peça tão grande. Também o nosso cavalo foi sujeito a medidas rigorosas, o que muito o alegrava, imaginando já, retratada em escala monumental, alguma parte do seu corpo, se não o todo. Ao longo de dois ou três anos, viu multiplicarem-se os esboços, e crescer o modelo em barro. Infelizmente, antes de a estátua final estar acabada, o bronze foi necessário para fazer canhões e o projeto foi abandonado.
Muito triste com o malogro, o nosso cavalo escarvou, outra vez, o chão e disse três vezes “Hihihipoho.
Que ajuda precisas, cavalo? — perguntou o centauro na clareira de carvalhos.
O projeto de Milão fracassou. Estou desesperado, não sei o que fazer — choramingou o cavalo.
Não te prometo nada, mas se te mantiveres sempre perto de Leonardo, estou convencido que acabarás por ter êxito.
E, assim, foi o nosso cavalo parar a Florença, onde Leonardo veio a ter a encomenda da pintura mural de uma batalha, para o salão nobre do palácio do governo da República. Foi escolhida a de Anghiari — uma batalha entre florentinos e milaneses — cujo motivo central Leonardo resumiu ao choque selvático entre quatro cavaleiros. Durante longas horas, o nosso cavalo posou, pacientemente, nas cavalariças de Santa Maria Novella, onde Leonardo preparava um enorme esquiço, que depois transferia para a parede do palácio. Jurava, para si próprio, que a cabeça do cavalo mais à direita, embora em esgar de furor, era tal qual a sua. Infelizmente, Leonardo era lento a trabalhar e começou a ser solicitado por trabalhos melhor pagos, de modo que a batalha não chegou a ser concluída.
O nosso cavalo ficou muito desanimado, mas, quando pensava que era o mais infeliz dos cavalos, sobreveio o pior: o seu artista, o homem a quem tinha dedicado tantos anos de sacrifício, em poses longas e difíceis, tencionava abatê-lo para lhe estudar o esqueleto, os nervos e os músculos. Entrou em pânico. Assim que pôde, raspou com a ferradura mágica no chão e gritou:
Hihihipoho. Hihihipoho. Hihihipoho.
Por que me chamas, cavalo? — perguntou o génio.
Salva-me, por favor, que Leonardo quer abater-me para me estudar os ossos.
Ó cavalo, tenho muita pena, mas já esgotaste os pedidos! Eu avisei-te! — respondeu o génio, com um ar muito contristado. — Não posso fazer nada. E, além do mais, já tens que idade!?; mais de vinte anos! Eu, se fosse a ti, continuava com Leonardo. Dizem que os desenhos que faz, de ossos e músculos de homens e animais, são tão admiráveis como as suas pinturas e as suas máquinas de guerra. Assim, como assim, a que é que queres dedicar-te nessa idade?
O nosso cavalo voltou para casa, resignado. Umas semanas depois, Leonardo dissecou-o, examinou e mediu todos os elementos, e desenhou-os com todo o rigor. Nessa altura, andava empenhado em comparar o esqueleto e os músculos dos membros do Cavalo e do Homem.

Assim acaba a história do cavalo que queria ser retratado como os famosos, o que, de certa maneira, conseguiu. Ninguém pode dizer que os rascunhos de Da Vinci para o grande monumento de Milão ou para o salão de Florença tenham elementos de um único cavalo, mas alguns cientistas estão convencidos de que os esboços anatómicos de um cavalo que são comparados com os de um homem são de um só animal, um que nós sabemos!
Joaquim Bispo

* * *
Primeira imagem: Leonardo da Vinci, Estudo de cavalo, c. 1493–94. Royal Library, Windsor.

* * *
(Este conto foi publicado no nº 10 da Revista de Artes e Ideias, Alma Azul, Coimbra, 2014.)

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domingo, 24 de abril de 2016

SÉRIE: TROVAS PREMIADAS (VII)






sexta-feira, 22 de abril de 2016

Monte Casca

Dois meninos, amigos de todas as tardes, após a aula observam uma cena que se repete, com algumas variações. Estão sentados na grama da beira da lagoa. Antes de a cena começar, cogitavam seguir ou não até a ponta do trapiche. Resolveram esperar e observar. Um homem nem velho nem jovem, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo, um tanto grisalho e pálido seguidamente estaciona um carro azul, mais ou menos no mesmo horário, perto de uma formação irregular e vultosa de areia misturada com pedras e argila, de cor amarronzada. O cômoro provavelmente é o amontoado de entulho que sobrou das obras de revitalização da área de lazer ao longo da margem da lagoa, um empreendimento que se arrastou por quase uma década e há menos de um ano foi dado por terminado pela prefeitura. 

Igor chegou na cidade recentemente. Seus pais vieram de alguma região do país empolgados com o crescimento econômico que a televisão anunciava e as possibilidades de mina de ouro que um tal Polo prometia. Alex mora em frente a lagoa desde sempre. Os dois vão juntos à escola e na volta gostam de ficar por ali, entre a praça, a grama e o trapiche, brincando muito seriamente de explorar o lugar e elaborar teorias sobre o comportamento dos vizinhos e dos estranhos que se aproximam. Lá vem ele de novo cavoucar no morrinho, avisa Igor, cutucando o amigo. Não é um morrinho, rapaz. Então não sabes? Não sabia de nada e redobrou a atenção: não sei. Me conta?

Aquilo apareceu de um dia para o outro e ninguém consegue explicar como, porquê ou do que é feito, parecem fingir que não existe mais. Já tentaram desmanchar com pás e enxadas, mas é tão duro que nem se mexeu. Acabaram desistindo de remover dali. Não tenho prova, mas acho que sei o que houve. Quando trabalhavam aqui, eu via os empregados, os caminhões, o manda-chuva, via tudo. E era mau o manda-chuva, o chefe de todos. Ele gritava muito com os homens, batia os braços nas pernas de tão furioso. E tinha um com quem brigava mais, o Torresmo. Ele era atarracado, um cara baixinho e forte, suava que nem sei carregando carrinho de mão com argamassa. Nunca retrucava o manda-chuva. Com o tempo, a pele do Torresmo foi criando umas bolotas, umas feridas diferentes, foi formando uma casca que engrossava dia a dia, não sei se de sol ou de brabo que ele tava com o chefão. Reparei que o Torresmo era o último a ir embora. Ele ficava parado olhando a lagoa até anoitecer completo. Dava para ver lá da janela de casa. 

Enquanto Alex contava, o homem desceu do carro e andou até o morrinho. Passou as mãos sobre a superfície da elevação em diversos pontos, examinou algumas fissuras, fotografou com o celular. Depois, retirou do bolso uma colher de sopa e tentou, em vão, fazer buraco na areia. Igor ouvia o amigo e seguia com olhos arregalados o homem diante do morrinho. Quer dizer que o Torresmo criou tanta casca que virou o morrinho? E o homem com a colher, quem é? O que ele quer? Morrinho, não, já te disse. O nome é Monte Casca. O Torresmo merece respeito. E aquele é o manda-chuva.





quarta-feira, 20 de abril de 2016

Dona Dora

O que me trouxe aqui é uma história pra lá de inusitada, seu Júlio. Caso o senhor disponha de tempo, gostaria de narrar os acontecimentos nos mínimos detalhes para lhe inteirar de todas as circunstâncias. Espero que ao final da minha narrativa você, desculpe-me, o senhor tenha dados suficientes para poder nos ajudar, livrando-nos deste pesadelo. É difícil iniciar o relato desta estranha, e porque não dizer, desagradável experiência, mas é melhor deixar os rodeios de lado e ir direto ao assunto.
Eu nunca imaginei uma mãe sendo capaz de vingar-se dos seus filhos. Sempre acreditei piamente na impossibilidade de sentimentos vis por parte de alguém capacitada a produzir vida. Deus é criador e é amor. As mães também criam, geram vida e são amorosas. Então, como explicar a atitude de mamãe para conosco, seu Júlio?
Tudo bem, estou calmo, fique tranquilo. Bom, somos em três irmãos, todos gravitando na faixa dos quarenta anos. Como já lhe disse, me chamo Alexandre e sou o caçula. Temporão por acidente e solteiro pela ausência de paixão, acredite.  E sendo o único livre de responsabilidades familiares coube a mim a missão de cuidar de mamãe quando ela enviuvou. Tão logo papai desceu à sepultura após o aneurisma, desmontei meio a contragosto o meu apartamento e fui viver com ela na ampla casa de subúrbio que meu pai erguera “tijolo por tijolo” como ele orgulhosamente dizia. O senhor fuma, seu Júlio? Ah, não posso fumar aqui? Sem problemas. Como e ia dizendo, sou o único solteiro e o senhor há de convir que para um homem acostumado a independência de morar sozinho, foi um tanto sacrificante esta mudança de hábitos, mas alguém tinha que renunciar  parte de sua vida para o conforto de mamãe que vivia há quase cinco anos em uma cadeira de rodas desde que uma poderosa artrose lhe assaltara os movimentos das pernas. Alberto, meu irmão do meio, mora com mulher e filhos em outra cidade e Acácia, primogênita e oito anos mais velha do que eu, tem sua própria família composta de marido e filhas problemáticas para  zelar.
Assim, mamãe ficou entregue aos meus cuidados. Eu procurava facilitar-lhe a vida, administrando o pequeno patrimônio que papai nos legara sem, contudo, deixar de viver a minha existência com certa autonomia. Isto significava dedicação ao meu trabalho como cronista de um jornal popularesco no horário comercial e eventuais casos amorosos tão logo a noite se desfraldava. Não me leve à mão, mas não vejo porque mentir para o senhor. Sou mulherengo mesmo, desculpe a franqueza. E por estas e outras, mamãe passava a maior parte do dia sob responsabilidade da Marta, uma simpática e robusta enfermeira por mim contratada. Ela parecia entender minha condição de homem e de profissional e, resignada, aproveitava minha parca companhia quando o meu tempo livre se dilatava.
Meus irmãos pouco apareciam para visitá-la. Alberto ligava semanalmente, mas demorava poucos minutos no telefone com ela, como se uma obrigação cumprisse. Acácia fazia aparições relâmpagos na casa do subúrbio e invariavelmente saia munida de um empréstimo cujo pagamento minha mãe raramente via concretizar-se. E assim a gente ia tocando a vida.
A primeira vez que eu percebi em mamãe certa mágoa com o nosso descaso foi cerca de três dias após a noite de autógrafos do meu primeiro livro. Sim, sou escritor. Não falei que escrevo crônicas para um jornal? Ah, o senhor mão me conhecia. Bem, vê-se então que eu sou bem menos popular do que imaginava, mas isto não vem ao caso agora. Toda a família estava presente na livraria onde seria a noite de autógrafos. Meu irmão despencou lá de Minas trazendo de contrapeso a mulher e os meninos. Acácia, que detesta livros, mas adora uma festa, não deixou de comparecer e mamãe ficou aos seus cuidados, sendo assessorada pelas minhas sobrinhas já adolescentes.
O senhor deve imaginar que eu era o centro das atenções naquela noite e isto me manteve todo o tempo ocupado, autografando o livro, atendendo à imprensa, forçando sorrisos e outras pequenas atitudes necessárias para o sucesso do evento. Lembro de haver tirado fotos com boa parte da parentada. Tinha certeza que mamãe estava em uma destas benditas fotos e qual foi a minha surpresa quando ao pegar loja os negativos revelados não encontrei nenhuma foto com a mamãe. Estavam todos lá, seu Júlio, divididos em várias imagens, sorridentes, segurando meu livro, abraçados a mim, mas faltava mamãe. Vendo as fotos, mamãe demonstrou uma surda mágoa com o incidente. Na mesma hora liguei para a Joyce, minha sobrinha mais velha e dona da câmera fotográfica, perguntando o que  havia acontecido. Ela disse ter certeza que havia clicado a mim e mamãe juntos e que talvez a máquina tivesse travado ou o filme houvesse chegado ao sem fim, ela não sabia ao certo. Moral da história, seu Júlio: ninguém assumiu a culpa pelo constrangedor episódio.
E o senhor nem imagina o que aconteceu depois. Isso mesmo! O ocorrido repetiu-se! Desta vez, nos 15 anos de Leonora, a outra filha de minha irmã. Fotos reveladas, mamãe ausente. Puro esquecimento e desconsideração. Minha também, o senhor está coberto de razão. Só que desta vez mamãe soltou o verbo: “esqueceram que eu pertenço a esta família, ou então vocês têm vergonha da aleijada aqui” – ela repetiu esta frase por meses, seu Júlio. Eu até a decorei de tanto que a ouvi.
A partir de então, em todas as ocasiões festivas, tomávamos as devidas precauções para retratarmos mamãe, mas, observando recentemente algumas fotografias daquela época, percebi em seu semblante a tristeza como que nos demonstrado que aquele nosso gesto em verdade consistia em nos livramos de uma eventual culpa de pisarmos na bola do que sincera consideração para com ela.
Viveu mais cinco anos, seu Júlio, e morreu como um passarinho. Estávamos nós dois na sala de casa, numa daquelas noites que me faltava uma companhia feminina, conversando banalidades quando o telefone que ficava em meu quarto tocou. Foi o tempo entre ir atender a chamada, constatar o engano e retornar à sala. Encontrei mamãe morta. A gente soube pelo Doutor Peçanha, cardiologista dela há muitos anos, que ela foi vitimada por um ataque fulminante. Ele me garantiu que nem dor mamãe há de ter sentido. Mas foi muito triste, ver o corpo dela ali, jogado sem vida naquela cadeira de rodas, cabecinha branca pendendo de lado como se dormisse. Lembro como se fosse hoje, parece que eu estou vendo a cena. Eu sentei-me ao lado da cadeira, acariciei seus cabelos ralinhos e, derramando lágrimas sentidas e sinceras, pedi desculpas por mim e pelos meus irmãos pela falta de atenção nestes últimos anos, pelo nosso descaso. Apesar de tudo, ainda tentei argumentar com o seu cadáver que as nossas ocupações e o ritmo de vida que levávamos eram os verdadeiros culpados por nossa pouca dedicação. Só depois eu liguei para a mana. Perdão pela voz embargada, seu Júlio, mas o senhor entende, não?
Bom, agora, o motivo que me trouxe aqui. Mamãe se vingou de todos nós, seu Júlio. É sério! E Alberto foi a primeira vítima. Calma, eu vou contar. Alberto e Isabela são pais de dois meninos com menos de cinco anos e curtem registrar o crescimento dos garotos através de fotos. Após uma das inúmeras sessões fotográficas, no quintal de sua casa, Alberto percebeu um vulto estranho em uma das fotografias, próximo ao muro, meio por detrás de um arbusto. Intrigado, pois só ele, Isabela e os meninos encontravam-se em casa, ampliou a foto e, assombrado, descobriu o rosto de mamãe! Sua expressão era de uma perturbadora sisudez. Uma imagem vale mais do que mil palavras, o senhor já deve ter ouvido esta frase, não é verdade, seu Júlio? Pois é. Mamãe decretara toda a culpa de Alberto por sua desconsideração com ela, intrometendo-se em um momento de lazer e felicidade de sua família.  Meu irmão enviou-me a foto  pelo computador e eu de início custei a acreditar. Briguei feio com ele, condenando o que eu julgava ser uma brincadeira de mau gosto com a memória da mamãe, que aquilo não se fazia, etc. Fique puto dentro das calças, seu Júlio. Desculpe, desculpe, não vai se repetir. Fiquei injuriado com o meu irmão. Cheguei a cortar relações com ele, embora Alberto afirmasse não se tratar de uma montagem.  Minha irmã também não acreditou na história porém, semanas depois, mamãe deu o ar de sua graça em uma fotografia de viagem que ela e o marido fizeram a Itatiaia. Era temporada de inverno e uma neblina torrencial cobria o cenário fotografado e, por detrás dos dois, via-se ao fundo uma silhueta a uns dez metros de distância que lembrava mamãe, com os mesmos vestidinhos estampados que ela costumava trajar! Somente uma silhueta era perceptível, mas eu tinha certeza que era ela!

E minhas certezas se confirmaram com a foto que eu tirei para renovar o passaporte. Aqui está ela, veja o senhor mesmo! Nítida, sorrindo, atrás de mim. Ao menos por mim ela teve piedade, não se apresentou aborrecida, a me censurar. Aterrorizados, estamos há semanas sem tirar uma mísera foto, impedidos de guardar nossas mais estimadas recordações. Meus sobrinhos correm riscos de crescer sem os seus momentos registrados, tudo por culpa deste capricho da mamãe. Sim, é espantoso, seu Júlio. Concordo com o senhor, mas, já que o senhor é médium e tem linha direta com as almas do outro mundo, venho lhe pedir por caridade. Numa próxima reunião espírita neste centro, evoque minha mãe. O nome dela é Dora, Dona Dora, e peça a ela para deixar de aparecer em nossas fotos. Já fui a parapsicólogos, exorcistas, pais-de-santo e só gastei dinheiro e ouvi conversa fiada. Após consultar estes especialistas, batia uma chapa e lá estava mamãe, onipresente, invadindo o papel fotográfico. O senhor é minha última esperança. Vai nos ajudar, seu Júlio?





A ESTRADA E O DESVIO

A estrada de quatro pistas passa embaixo dos meus pés a uns 110 km por hora.
A trilha sonora da Pajero é a playlist datada de Rômulo, que se restringe a
Beatles, Simon and Garfunkel, The Mamas and the Papas, Herman Hermits, Sinatra, Jobim,
Chico, Caetano, Gil e alguns clássicos do jazz. Pronto. Agora entrou “Rapsody in Blue”,
quando teremos ainda 17 minutos e uns quebrados de quilômetros para pensar em Nova York
e sua efervescência saudosa, já que a falta de dinheiro sobrando nos obrigou a trocar
salas vips de aeroporto por viagens curtas, no máximo a duas horas da porta de casa.
Sigo calada. Minha especulação sobre a idade dos eucaliptos gigantescos que margeiam
o acostamento é interrompida por um tormento que está na minha trilha sonora permanente
em pano de fundo, sobrepondo-se ao Gershwin momentâneo. Tento tirar a obsessão
sub-reptícia da cabeça, tento lembrar da bronca que dei em Bebel e Caio, que mais uma
vez, começaram a brigar no banco de trás porque o ar condicionado de Rômulo é impiedoso
e o cobertor emergencial do carro é curto.
Broncas em adolescentes, playlist nostálgica, desconfiança de um fim de semana
no sítio de um casal das relações originais de Rômulo - de mínima identificação com
meus gostos me manias -, saudade dos tempos fartos, olha o radar, diminui a marcha,
como pode num horário desses uma jamanta atrapalhar nossa curva acentuada à esquerda?
Tudo que vejo, sinto e penso de trivial não passa de manobra diversionista e evasiva
para que minha trilha sonora secundária, secreta, intrasferível e tormentosa  me dê
uma trégua. Mas não adianta. É como se algo estivesse tocando sem parar no meu ombro,
clarinetando uma sinfonia aguda e monocórdica aos meus ouvidos, levando aonde moram
os sentimentos – no coração, no cérebro, no clitóris – a imagem pontual da desilusão:
Fábio me dizendo que decidiu se casar com a noiva.

- Está fugindo de mim, garoto?
- Não é bem assim, Cátia.
- Como não? Depois que te ensinei tudo de cama, você vem me dizer que prefere 
a lambisgóia?
- A gente não tem futuro, Catita.
- E pra quê futuro? A gente tem o momento presente.
- Não. Eu quero futuro. Eu quero uma família como a sua. Ter um casal de filhos, 
ser marido provedor, viver casamento estável.
- E um sexo de merda.
- Dri não é uma merda. Você mesmo inventou que gatinha de 22 anos sabe nada de trepar. 
Mentira. Gatinha com tudo durinho no lugar trepa desde os 15.

A frase de Fábio humilhou meus 46 anos. Soou como um ponto final numa brincadeira que
de tão arriscada já estava para lá de gostosa. Começou na academia há dois meses, foi
ganhando uma dimensão além da curiosidade sexual pelo personal trainer e quando nos
desnudamos de corpo e alma, descobri um menino frágil e musculoso, invasor e meigo,
potente e dengoso, daqueles que no torpor da pós função tórrida se bota no colo e
se dá beijinho na testa, beliscões de brincadeirinha na bunda, mordidinhas na orelha,
e se faz cafuné.
Estava tudo muito conveniente. Depois da primeira vez tensa, houve uma sequência de
primeiras vezes, pois a cada encontro o relaxamento progressivo nos fazia descobrir
novos detalhes eróticos e ousadias sensoriais um do outro.
Tinha a ilusão do controle da situação. Tudo na mais perfeita ordem.
Ele, garotão indócil e portentoso, tatuado e bem-dotado, noivo de uma noiva standard
com ciúmes naturais, exímio inventor de desculpas para fugir da rotina e me mergulhar
à tarde. Sabia como ninguém despir meu legging e me jogar na cama como se fingisse
iniciar um alongamento, quando meus músculos se entregavam ao seu comando.
Eu, madame – adoro me achar madame – pseudo atolada com afazeres domésticos, boa
prestadora de serviços matrimoniais clássicos a um médico demandado e a uma família
intensa, ciente dos limites da aventura que estava me metendo.
A vida caminhavam direitinho na estrada bem pavimentada, mas com irresistíveis
desvios travessos e deliciosos. Mas agora, por coincidência metafórica infeliz, me
vejo numa rodovia lisa de caro pedágio, sem enxergar o caminho clandestino que me levava
aos banhos da alma. Digo “levava” porque sei que acabou. Claro, sua burra, não podia dar
certo. Fábio foi eloquente ao seu jeito e definitivo quando me comparou à lambisgóia.

- Fizeram boa viagem?
- Sim, claro. A estrada é muito boa. Coisa rara nesse país esburacado.
Marta e Geraldo riram do mau humor bem-humorado de Rômulo. Eu sorri amarelo, dei dois
beijinhos no casal e olhei fundo para Bebel e Caio.
- Ei, sejam educados: vamos dar um beijo na Marta e no Geraldo?
Filho em situações limite como essa fuzilam pais de esguelha.  Mas cumpriram com educação
o rito das boas maneiras. Marta deitou elogios.
- Lindos seus filhos! Entrem, vamos conhecer a casa. Reservamos o quarto dos jovens para vocês, Caio e Bebel. Todo mundo junto, fazendo bagunça. E para o casal, a suíte dos hóspedes especiais.
Suíte. Inconveniente gatilho.

- Essa suíte tem cheiro de mofo.
- Ah, Catita. Esse motel é o que eu posso pagar.
- Não, meu menino, não estou reclamando. Só tenho medo de ter um ataque de espirro.

As pequenas lembranças bobas e remotas me futucam a tristeza e avisam que ainda não
cheguei onde pareço ter chegado. Sim, vejo uma casa de bela arquitetura normanda,
com fícus subindo pelas paredes, telhados pontudos e mansardas floridas, no meio de um
gramado que lembra um campo de golfe. Ouço um riacho de uma nota só, suponho, que
corre atrás de um platô que recebe a piscina, onde Caio, Bebel, Julia e Marina já se
enturmam entre risadas e mãos chacoalhando a temperatura gelada da água.
De repente, me assusto com um ganso que me cheira.
- Não precisa ter medo, Cátia. Ele é manso e discreto. Mas à noite, finge que faz a 
guarda do sítio. Não gostamos de cachorro.
- Adoro gansos. Esse é lindo e combina perfeitamente com a paisagem. Parece um domaine 
no Vale do Loire, a hora e meia de casa.
- Exatamente. A gente tenta trazer pra gente o melhor que o mundo nos apresentou.
Engreno uma conversa simpática com Marta. Mas não estou ali.

- Para de chamar de paté. Isso é foie gras, Fábio. 
- Paté metido a besta.
- Ah, meu menino, você não tem jeito. A pessoa se esforça, vai na delicatessen, produz um 
pic nic numa tarde num motel, e o amante não alcança.
- Não sou seu amante. Não gosto da palavra amante.
- Ah, meu menino... amante é tudo que somos... mais que isso é atravessar muito o sinal. 
Vem cá, vem, vamos cometer mais uma infração... juro que não vai ter multa.

Estocadas de saudade ferem e doem, tento disfarçar com sorrisos. O almoço gourmet até que
seguia divertido e consegui sustentar o cinismo, embarcando nas histórias tolas de Rômulo e
Geraldo dos tempos do colégio.
- Lembra da Glorinha?
- Glorinha?
- Não se faça de sonso, Rômulo. Tá com medo da Cátia?
- Não, não, ela não tem ciúme retroativo.
Todos riram. Arrisquei uma pergunta de madame.
- Que Glorinha é essa, que você nunca me falou? Você sabia dessa Gloria, Marta?
- Não sei, não quero saber. Espero que tenha engordado muito.
Risos e tilintar de taças. Geraldo segurou a minha mão.
- É jogo da verdade, né? Então, aceito mais vinho.
- Ôpa, Rômulo, olha lá o que vai falar.
- Nada de mais, Gegê... Glorinha foi um ponto de interseção entre nossa amizade que o 
tempo sábio cuidou de dissipar.
Não me contive.
- Meu marido é um poeta.
Marta também não se conteve.
- Agora explica essa interseção...
- Tranquilo, Marta, coisa de garoto. Dividíamos Glorinha. Uma para dois, entendeu?
- Entendi, Geraldo. Não precisa falar mais. Senão eu vou pensar mal da desfrutável.
Rômulo, com o bom humor aditivado pelo terceiro cabernet na mesa, levanta a taça.
- Salta uma Glorinha para dois!
Todos riram. Marta, feminista, balançou a cabeça com um sorriso desaprovador. Eu,
de certo, ri com mais cinismo e com uma fisgada doída da memória breve.

- Tem certeza que seu marido não desconfia da gente, Catita?
- De jeito nenhum. Sou fera, meu filho. O que faço aqui repito no fim de semana. 
Claro, com outras vontades e motivações, mas repito.
- Já entendi. Uma Cátia para dois. 

Rômulo e Geraldo meteram-se, não sei como, pela adega no subsolo da casa. Talvez um
amparando o outro na escada, com grandes possibilidades de só aparecerem no breu da
noite. Marta pediu licença para uma sesta. Os filhos foram jogar ping pong num
caramanchão bem longe da sede e eu fiquei a vagar pelo campo de golfe, com o pensamento
além das montanhas que circundavam a paisagem. Vaguei e divaguei, divaguei e vaguei.
Encontrei o tal riacho que só conhecia de ouvido. Águas cristalinas, entre pedras cobertas
de limo. Folhas longas em caules delgados pincelavam suas margens, num balé contínuo e suave.
Sentei na beira de uma pedra, tirei as sandálias e senti um jorro de água fresca,
que me subia às pernas e aos pensamentos.
Olhei o céu roseado: logo se dará o crepúsculo, quando as sinceridades afloram, as feridas ardem, os criminosos confessam, os fantasmas aparecem. Fábio com a lambisgóia. Ou indo ao cinema.
Ou fodendo a moça. Ou pedindo a mão dela em casamento - ele tinha dessas babaquices toscas.
Mas seja qual for a alternativa, doía. Por quê? Por que logo comigo? Uma mulher madura e aparentemente bem casada? Por que um garotote malhado balançou meus alicerces? Não era só sexo? Sexo casual, como dizem. Casual é o caralho. Quando a brincadeira de criança passa, fica uma dor adulta. Não acredito que meus olhos estão se encharcando. Não acredito que minha cabeça estonteia,
meu sangue acelera, fervem as entranhas, dispara o peito, falta o ar. Não acredito que estou apaixonada. Vou vomitar o boeuf bourguignon, as batatas rústicas, o creme brulee e as taças de cabernet sem fim. Idiota, estou com uma saudade cortante do Fábio. São as águas cristalinas do riacho que me avisam. Saudade do que foi, do que passa e não volta mais, do que poderia ter sido.
É raiva da vida, é asco de Rômulo, é -  Deus me perdoe -  saco cheio de Caio e Bebel e
suas alterações hormonais, suas crises de puberdade e espinhas. Quero que essa casa pegue fogo,
com Marta dormindo e os dois bêbados flambados na adega. Que se salvem as crianças e não
apareçam mais. Fábio, filho da puta. Noiva puta filha da puta, neta da puta. Bisneta bastarda da puta. Vou esganar a lambisgóia.
Que diabo é isso? Uma bicada na nuca? O ganso! Levanto súbita da pedra, quase escorrego.
Ganso filho da puta também, vai dar susto na mamãe ganso. Contando ninguém acredita. Estamos cara a cara, no lusco fusco do dia estranho que se despede, na beira de um riacho alegre, na iminência de um duelo de morte. Uma bicada certeira pode me levar ao desequilíbrio entre as pedras escorregadias, um traumatismo craniano sem socorro imediato pode ser fatal, considerando que ninguém imagina que eu esteja de alma em frangalhos estatuada diante um ganso. A eternidade da situação patética é paralisante. Embriagada de coragem, dou o bote primeiro e fecho seu bico com a mão esquerda, e com a direita agarro seu pescoço. Sou forte ambidestra. E aperto, aperto, aperto.
É o pau do Fábio. Aperto, aperto, aperto. Ele faz que geme. Aperto, aperto, aperto, aperto. Ele bate
as asas, tenta grasnar, pedala o ar, esbugalha os olhos, até que a maravilha da natureza em branco e elegância amolece nas minhas mãos. E agora?
Putaquepariu, matei a porra do ganso. Bicho pesado desgraçado. Pego seu pescoço molengo
e arremesso o animal no riacho que desce. O cadáver se prende entre o vão de duas pedras.
Arregaço o legging, molho os pés, as canelas, as batatas das pernas, vou equilibrista
até lá e, na quase penumbra, solto o bicho correnteza abaixo, que, por sorte e surpresa,
vira uma curva que vai desembocar num ribeirão curto, afluente de um rio de águas revoltas,
que o faz desaparecer pela corredeira furiosa.
Amanhã todos vão dar falta do ganso. Mas eu tenho mais com o que me ocupar.





segunda-feira, 18 de abril de 2016

BORA ONDEANDO














                                                                   (Renoir, Pôr do sol no mar).
                                     
Praia. Na distância que me dá a areia quente, penso na onda, matéria velha e nova que sempre nos tonteia. A onda anda e por onde anda a onda?, perguntava o poeta. Sumiu. A onda. Meteu-se pelo canto, meio das coisas, brilho, claridade e gosto delas. Veio molhando tudo com seu cheiro bom, de coisa marinha e doce, que faz bem pra pele, irriga, preenche.
Mas a onda, coitada, não sabe de onde veio nem quem é, só sabe que é onda, talvez nem isso, a onda apenas é, existe. Sem perguntas, sem queixas, sem tormentos. A onda. Apenas uma onda solta no mar grande da inquietação que é, sempre e só, humana.
Nasce repentina, coordenada, e sua morte vem rápida, muito mais rápida que a das borboletas, essa vidinha frágil que esvoaça e encanta. A onda. Como a borboleta, é inocente da morte. Não sabe quando vai terminar, nem sequer que vai terminar um dia.

A onda? Onde?
Quebrou, já foi, você viu?
Qual? Lá perto do barquinho amarelo?
Não, a onda, aquela ali, mais para o fundo, vê? Vai formar de novo, ali, no mesmo lugar, desta vez você vê, está quase na ilhota, a que tem uma palmeira bem grande no meio.
A onda? A mesma?
É, ali, olhe, não viu?
Mas é a onda? A mesma? É dessa que você falava?
A onda, a onda... Você não viu, agora não vai mais, a maré tá subindo, vamos, vamos embora, já foi, passou.

Na distância da areia quente, penso a onda e penso minha avó. Ter de seguir tocando o corpo cheio de dores, sem vontade, mantendo o mesmo simulacro, rotina de uma vida que não é mais mas que ainda não foi pra sempre.
Avó. Mãe pela segunda vez. Será?

Engano de vida. Falo que vou me jogar do oitavo andar, ninguém acredita. Disseram que iam botar tela, mas não puseram, melhor. A vista da cidade é minha, não podem me tirar. A janela, a vida, a vista, a mesinha de centro da sala, é tudo meu ainda. É muita gente querendo dar palpite. Eu sei que é porque estou velha. Eu sei que é muita vida e também não sei para que tanta vida. Mas ela é minha ainda.
O único gosto que ainda tenho é o do chocolate, como várias vezes ao dia. Me adoça um pouco, porque, para piorar, não sei por que tem que ser assim, mas a gente chega nesta situação e passa a ter a boca sempre amarga, não importa o que se faça, a pasta que se use, a bala que se chupe. Uns dizem que é dos remédios, outros dizem apenas que é da idade, só isso, mais uma coisa que a vida apronta com a gente. Podia restar ao menos isso, o paladar, mas até a memória dos pratos que fiz na vida é vaga. Aqueles, que comíamos quando estavam todos aqui. As crianças tão pequenas, netos, os meus filhos todos, alegria muita, tomavam refrigerante, comiam chiclete e biscoito.
Não reconheci minha irmã numa fotografia.
Na hora que perguntei para a minha neta quem era que estava lá, na foto, ao meu lado, eu vi a decepção em sua cara. Vi mas não pude fazer nada. Por mais assustador que seja, é fato. Eu não reconheci a minha irmã. E nem é Alzheimer, antes que venham me dizer, porque os exames não mostram nada.
Mas como então vou contar para ela o que vivi sem me confundir?

Baralho de fragmentos, não vou conseguir o que queria, um relato de uma mulher nascida no final dos anos 20 do século passado. E não uma mulher qualquer. Minha avó. A onda, o mar, a areia doce.
            Onda que está indo. Indo. Indo. Quebrando. Só que ela sabe que da arrebentação que vem





domingo, 17 de abril de 2016

Poemas sobre o silêncio - Mariana Botelho







afinação

há que se aprender a tirar silêncio
das coisas

quando uma coisa produz silêncio
ela está
pronta



lavoura

nosso silêncio plantamos
e enfim
o colhemos


maduro


mas não domesticado




às vezes prefiro
a solidão
das janelas

de onde esses
morros
se reproduzem feito
ecos

de onde
minha magreza ávida
pende

e se insinua


estação

tenho um outono no corpo
de onde as
coisas
caem

vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo chão




a poesia esqueceu-se numa casa de Minas

o colo da avó ainda embala
o cheiro de manga em dezembro

há cana cortada em cubinhos
doce para o mel da lembrança

lágrimas, um pouco de sal
para o tempero da memória

a avó não abre mais os olhos

a poesia esqueceu-me numa casa de Minas






casarão

no corredor o vai vem das
saias onde eu me
agarrei

no quintal o fantasma da
mangueira

no canto da sala a cadeira da minha
avó onde um dia
a dor
me esperará



em sua voz
dormiram quentes
todos os meus medos

deitou a noite
camada após
camada
sobre mim








sábado, 16 de abril de 2016

Explodir as pontes



Ela não se exige mais a estética doentia. Não lhe assentam bem as roupas, as joias, os olhos pesados de tintas. A exceção está nos cabelos bem cortados e hidratados. Recrimina-se por ceder à tesoura e aos cremes os fios médios, uma vez por mês. É um vício. De resto, nada mais que a subordine a nenhuma prática ordinária. 
A invisibilidade foi caminho conquistado aos poucos. Tempo demais até se tornar um nada plausível. Mas agora ela é um eco. Uma voz sem imagem. Somente alguém do outro lado da tela, do outro lado da rua, virando a esquina. Indo. Ela é um flash. 
Carnes duras. Unhas curtas. Sobrancelhas incertas que se esparramam por trilhas interrompidas. Rugas não petrificadas por injeções infernais. Celulites, varizes, estrias. Ela tem todas. Desleixos que chama de destino ou carma.
Se não fosse pelo medo incompreensível que aprendeu a sentir do Deus da sua infância, ela não encostaria mais o seu corpo em nenhum outro, nem falaria com mais nenhuma gente, nem sairia de casa, nem deixaria que o cão gostasse dela. Mas tem trabalhado persistentemente a cabeça para se livrar dessa fatura injusta que é amar ao próximo.  
Ela vai explodir as pontes. Eventualmente. Por ora, as pontes estão intactas. Separando o que ela se tornou do que ela foi. Mantendo distantes armadilhas antigas. Afagos. Abraços. Cabelos alisados com formol. Dietas sem carboidratos. Política. Esmalte. Lápis preto nos olhos. Sexo. Livros. Biscoito recheado. Gargalhada. Coca-cola de lata para curar ressaca. Beijo. Planos. Cinema. Cinema. Cinema. Cerveja. Afeto.
Agora, ela é um eco. Um flash. Quando for desapego, ela explode as pontes. 










sexta-feira, 15 de abril de 2016

neste 9 de Abril


avós

Podemos chamá-los pelos nomes. Chamar cada um pelo seu nome de baptismo.
O nome com que as mães os chamavam: Vicente, Amadeu, Tomé, Viriato.
Dizer-lhes, mesmo, o apelido: Gomes, Pires, Sacramento, Baptista, Benevides.
Chamar cada um desses avós que não tivemos, e ouvir outros nomes em outros linguajares diversos, de outros, muitos, avós.
Outras línguas, outros beligerantes, todos sequiosos de Paz: a mesma Paz! sequiosos de Pão: o mesmo Pão! 
e da água que fosse água da fonte 
Todos saudosos do cão deixado longe, da namorada, do amigo, do primo, do irmão.
saudosos da voz da mãe pedindo: “cuida de ti menino”
Mães a limparem olhos de choros que nem lhes eram devidos.
Alumiar os nomes desses tantos feitos heróis: avós de cada um de nós que podiam ter sido. Chamar cada um deles e ouvir, do redondo da Terra, o clamar de milhares. 
Os nomes deles e os nomes de suas mães e namoradas e irmãs: Raquéis, Isabéis e Marianas. Milhões de avôs e avós que não nos foram, mortos noutros, tantos chãos, de outras tantas Flandres. 
Guerras. Batalhas. Escaramuças. 
tantas! muitas! demasiadas!
Frias ou escaldantes, todas elas esfomeadas e cruéis, em outras terras também elas férteis, também elas mais prezadas para os sulcos da charrua do que para o sulco absurdo da trincheira, da cova abjecta esguichando sangues e vidas na cratera deixada pelo míssil, pela bomba, pela granada.
Dias e dias de nojo são os dias depois de la Lys e seus heróis, e também de muitos outros dias antes desses dias. Lutos que traçamos uns nos outros a chorar os avós que não nos deram, meninos da gente a apontarem canos de espingarda num desespero de vida.
Heróis!
Guerras semelhando umas às outras, na língua de Camões ou na língua de Shakespeare ou, em qualquer que seja o dialecto, as mesmas mães escondendo choros e implorando: “cuida de ti, menino”.
Os mesmos mortos.Os mesmos avós que não nos foram.







domingo, 10 de abril de 2016

Notas desde o terceiro escalão da Literatura


Não deveria, mas existe um hierarquia até no mundo do escritores.

E nem estamos falando de toda a estrutura editorial, passando por donos de editoras, editores, pareceristas, revisores, distribuidores, livreiros, críticos, professores de Literatura, leitores, etc. Trata-se de uma hierarquia no interior do próprio ofício da escrita, que distingue um escritor do outro.

O topo da hierarquia, os best-sellers e os aclamados

O primeiro escalão é dos autores megafamosos ou reconhecidíssimos, daqueles que, ao mencionarmos o nome, mesmo que não se tenha lido livro algum deles, imediatamente sabemos de quem se trata.
Ninguém precisa ter lido obras de Kafka, Dostoievsky, Dickens, Umberto Eco, Machado de Assis, Sidney Sheldon ou Paulo Coelho para, no ato, já exclamar, "sim, sim!". É o reconhecimento instantâneo.
Neste topo da hierarquia, temos um percentual ridiculamente insignificante dentre todos os escritores.

Não se engane: a Literatura, assim como a vida em geral, é uma loteria. Alguns conseguem um bilhete premiado, mas a maioria de nós não. É a ilusão do sucesso potencial, do reconhecimento futuro, da glória eterna que move todos os escritores ao redor do mundo. Todos, em algum nível, esperamos ser reconhecidos por nossos contemporâneos ou pelos pósteros, todavia, bem poucos chegarão lá.

E não há regra nem lógica nesta promoção. O cânone e o sucesso são essencialmente inexplicáveis. Existem todos os tipos de teorias sobre isto, desde decisão política até a recente hipótese das dez mil horas de trabalho, mas, no fundo, não há explicação plausível: alguns simplesmente nascem agraciados e prosperam.

O segundo escalão, os famosos anônimos

Em seguida, temos aqueles autores que já obtiveram um certo grau de reconhecimento, mas nada muito significativo. Talvez até sejam conhecidos por um pequeno grupo de leitores e críticos, com algum grau de visibilidade na imprensa e que tenham vendido poucos milhares de livros.
Geralmente, já foram publicados por grandes editoras e podem vir ou não juntarem-se ao primeiro escalão em algum momento vindouro.

Assim como ocorre com quase a totalidade dos escritores, mesmo com muitos do primeiro escalão, não conseguem viver somente da escrita, tem de dividir seu tempo entre palestras, traduções, escrevendo colunas para jornais ou até mantendo um trabalho de tempo integral, escrevendo apenas nas horas vagas.
Ainda não lhe disseram que Literatura não paga as contas?

Isto era verdade no tempo de Balzac, no de Poe, no de Joyce e no nosso também. Provavelmente, esta realidade perdurará até o final dos tempos: escrever dá pouco ou nenhum dinheiro, então deve-se escolher a penúria ou um segundo emprego, não há saída.

Esta é a dura situação que os autores do segundo escalão descobrem assim que fecham o contrato com alguma editora. Provavelmente, muitos deles tinham a ilusão que tudo mudaria daquele dia em diante, mas, com o passar dos meses e dos anos, com relatórios de vendas pífias e deprimentes pagamentos de direitos autorais, percebem que o buraco é mais embaixo.

Ser publicado não é a solução, às vezes, pode até ser mais um dos problemas que o autor tem de enfrentar, pois não basta mais apenas escrever, ele tem de se tornar também o marqueteiro, o assessor de imprensa de si próprio, o palestrante e, às vezes, até mesmo o vendedor de seus livros. Se pensava que teria mais tempo para dedicar-se somente à escrita, logo aprenderá que lhe restará ainda menos tempo, pois a obra não anda com as próprias pernas, precisa de supervisão constante antes que comece a engatinhar e a caminhar.

O terceiro escalão, os anônimos emergentes

Alguns escritores estão no meio do caminho. Ainda não foram publicados comercialmente, ou às vezes por pequenas editoras com pouca ou nenhuma distribuição, o que é quase o mesmo de não ter sido publicado, mas já possuem algum tempo de estrada, conhecem vários percalços da carreira e, quem sabe, em breve, eles se converterão num dos "famosos anônimos".

Neste terceiro escalão, o escritor talvez até tenha um ou mais livros publicados independentemente, muitos que acabam sendo distribuídos para amigos que não os leem ou ficam a mofar em pilhas num quartinho de casa. Podem ser do tipo franco-atirador, publicando seus textos em todos os blogs, sites, revistas literárias, distribuindo gratuitamente suas obras ou vendendo-as a preço de banana. Estão desesperados por um pouco de atenção, por uma mão amiga de algum editor, crítico ou escritor reconhecido que perceba o seu talento e o ajude na publicação, enfim, por uma grande editora.

Estes autores até são conhecidos por um pequeno grupo de leitores, ou por seus pares, já que caminham todos juntos. Às vezes, chegam a ter uma legião de seguidores, o que contribui para catapultá-los ao sucesso. É provável que tenham ganhado um concurso literário ou outro, mas nada representativo o bastante para lhe abrir as portas.

Muitos dos escritores jamais transporão este limiar, continuarão para sempre apenas uma boa promessa de sucesso que jamais se realizou. Alguns aparecerão em reportagens locais, em jornais, rádio ou TV, e só. Outros se tornarão escritores reconhecidos, um dia, mas tudo dependerá da loteria da vida, da estrela que brilha, da sorte imprevisível.

O quarto escalão, os anônimos otimistas

Geralmente, estes são os escritores que decidiram ontem que querem viver da escrita. Ainda não conhecem os percalços da Literatura, não têm ideia de como é difícil publicar e, frequentemente, ainda não escreveram nem um livro sequer.

Tais autores redigiram uma meia dúzia de contos ou poemas e acreditam que isto os transformou automaticamente em escritores. No entanto, ainda morrem de medo de divulgar seus trabalhos, apavorados que alguém plagie ou roube suas obras geniais. Ninguém lhes disse que, primeiro, são poucas as chances de alguém roubar ideias de um escritor desconhecido e provavelmente medíocre e, depois, que não há como proteger ideias, apenas a literariedade do texto, ou seja, se quiserem roubar sua ideia, não há do que reclamar.

Estes escritores tem uma noção idealizada da carreira literária e acreditam fielmente que seus livros mudarão o curso da humanidade, que ficarão ricos e famosos, ou que a mulherada cairá aos seus pés nos lançamentos.

Muitos não possuem a mínima bagagem teórica e pensam que um romance é um conto ampliado, ou que novela é o que passa na televisão no horário nobre. Há uma grande incidência de adolescentes neste escalão e que não tem o hábito de leitura, ou habituados a ler gêneros e autores bastante específicos, redigindo de maneira bastante parasitária.

Frequentemente, demora anos até que eles se libertem do fantasma da influência e descubram suas próprias vozes, isto se não desistirem da escrita antes disto.

A base da hierarquia, os não-escritores

Por fim, deparamo-nos com o quinto escalão, que são aqueles escritores que ainda não escreveram nada. Por mais paradoxal que isto possa parecer, quase todas as pessoas acreditam que existe um escritor dentro de si, ou como muito se repete, "a minha vida daria um livro".
Via de regra, a vida de praticamente todo o mundo daria um livro, tedioso, mas daria!

São os procrastinadores, os que pensam que, quando se aposentarem, então terão tempo o suficiente para viverem o sonho da escrita. Alguns acreditam que conceber frases bonitas ou haikais mal engendrados já é o bastante. Outros começam, começam, começam a escrever suas obras-primas, mas simplesmente são incapazes de concluí-las.
Talvez até tenham boas ideias ou dominem as regras gramaticais e ortográficas, mas isto não os torna escritores.

A escrita é o que torna alguém escritor, e também a publicação em papel ou digital, e também o reconhecimento dos pares e dos leitores. Tudo está atrelado.

Conclusão

Como qualquer hierarquia, ninguém começa pelo topo.

Leia qualquer biografia de grandes escritores e notará a recorrência. Quase todos começam a escrever duvidando do próprio talento; muitos unem-se a outros escritores desconhecidos, com quem aprendem e se aperfeiçoam, além de criar um círculo de influência; a maioria publica suas primeiras obras independentemente e obtém resultados quase nulos; então, conseguem atrair a atenção de algum editor com visão e, durante décadas, amargam um fracasso após o outro, este é o percurso do crescimento pessoal e do refinamento das técnicas literárias; enfim, produzem uma grande obra, que é o chamariz para seus trabalhos pretéritos e que consagra sua carreira, comumente este é o início do declínio na produção, da autorreferenciação, mas com um público já estabelecido, isto deixa de ter relevância.
Quando se atinge o topo do hierarquia, tornando-se uma das "vacas sagradas", quase tudo é permitido.

A transição de um escalão ao outro é praticamente imperceptível e indolor. Os únicos marcos realmente identificáveis são a publicação através de uma grande editora e a venda de mais de cem mil exemplares, o primeiro de que você se tornou um dos "famosos anônimos", o outro que você finalmente está no topo da pirâmide.
Mais do que isto, somente a imortalidade literária, a inserção na História da Literatura, mas isto é tão raro e para tão poucos, que está fora do alcance da vasta maioria dos escritores que já passou pela face da Terra.
Contente-se se você conseguiu vender alguns milhares de livros; isto deveria ser o bastante, é muito mais sucesso do que a maior parte dos escritores obterá.