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sábado, 30 de novembro de 2019

No Jequitinhonha


 – Ser prefeito é uma merda! – repetia sempre Rodrigo Rodrigues, prefeito de Santo Onofre de Minas, pequena cidade do Vale do Jequitinhonha. Repetia sempre essa frase, é certo, mas já era prefeito pela terceira vez – na primeira vez, não se reelegera, mas voltou quatro anos depois e conseguiu vencer os opositores, garantindo o segundo mandato – e seu nome já era sugerido para suceder o atual governador de Minas. Eleger-se governador seria um feito e tanto, pois o Brasil só pensa no Vale do Jequitinhonha como uma das regiões mais pobres de seu vasto território, razão pela qual, nos anos 1970, o humorista Henfil plantara ali os personagens de seus quadrinhos que ridicularizavam a propaganda otimista da ditadura militar. Repetiu essa frase novamente para a esposa naquela noite que passara em Diamantina, via telefone celular. Ao saber do falecimento do bispo, correu para a sede da Diocese: queria que os jornalistas o vissem sentado na primeira fila, chorando uma amizade que nunca tivera com o bispo, a quem só encontrava nas constantes cerimônias de crisma nas quais apadrinhava algum adolescente, filho de correligionários católicos. Tão logo despedira-se da esposa, tratou de encomendar a seu poeta de estimação versos em homenagem ao religioso, para serem publicados em jornais locais e também na capital, em nome dele mesmo, Rodrigo Rodrigues, que ambicionava também uma cadeira na Academia Mineira de Letras. E que os versos fossem logo enviados, pois queria recitá-los ao amanhecer diante da Catedral de Santo Antônio e postar o vídeo nas redes sociais.
Acordou cedo, sentou-se à mesa do primeiro bar que abriu próximo ao templo azul e branco, pediu um café, copiou numa folha de papel os versos recém-chegados e já ia ordenar ao seu fiel escudeiro que segurasse o celular enquanto ele recitava as quatro oitavas de molde camoniano, quando o referido escudeiro engasgou-se com o café diante de uma manchete de O Estado de Minas: “Médium Alvinho dos Santos acusado de abuso sexual.”
 – Ser prefeito é uma merda! – reafirmou, lembrando da importância de Alvinho para a cidade. A fama do médium atraía doentes dos mais distantes pontos do país, em busca de sua água fluidificada, dos passes e das preces que prometiam milagres. Uma rede de hotéis e restaurantes brotou na cidade após o aparecimento do médium, bem como triplicou-se o número de taxistas registrados na prefeitura que, todos os dias, carregam dezenas de turistas ao centro onde o líder religioso atende aos fiéis.
Sorte tem quem se torna prefeito de Aparecida: a imagem da Padroeira está lá, naquele grande Santuário, e de lá não sairá: o fluxo de fiéis será sempre constante. Já os médiuns são mortais, como todos nós. Rodrigo ainda se lembra do que padeceu Marcos Montes Cordeiro, que era prefeito de Uberaba em 30 de junho de 2002, quando morreu o mundialmente famoso Francisco Cândido Xavier – que, segundo alguns acreditam, teria servido de inspiração a Stan Lee para criar o personagem Charles Xavier, líder dos heróis X-Men –:  um mês após o falecimento do grande psicógrafo, metade dos quartos de hotéis da cidade estavam vazios e os taxistas parados: a economia da cidade sangrava. Rodrigo não queria que tal dor se repetisse em sua cidade e, por isso, já a estava preparando para sobreviver à morte de Alvinho, quando tal acontecesse – e todos criam que demoraria, pois o homem ainda não atingira os 70 anos, mas quem sabe? Mas para surpresa de todos, parece que ao invés da morte do corpo físico, avizinhava-se a morte moral de Alvinho.
Rodrigo fingiu não se abalar com tão amargas notícias. Tal como o guerreiro I-Juca Pirama, do poema de Gonçalves Dias, “com plácido rosto, / sereno e composto”, os fúnebres versos ali declamou. Postado o vídeo para os seguidores de seu canal, engoliu o café, devorou as torradas, correu para a catedral e de lá não se retirou até que o esquife fosse depositado em sítio privilegiado à espera do Juízo Final. Quem não podia esperar era o município. Quando não havia jornalistas por perto, o prefeito sacava o celular do bolso e enviava instruções aos seus homens de confiança.
Terminado o sepultamento, Rodrigues correu de volta para Santo Onofre. Ainda no carro, discutia com o redator-chefe do principal jornal da cidade:
  – Pelo amor de Deus! Não publiquem uma linha contra Alvinho agora!
 – Mas, senhor prefeito, mais de 50 mulheres já denunciaram o médium por estupro. Dessas, ao menos 12 eram menores de idade quando foram abusadas.
 – Esperem o desenrolar das investigações, ao menos!
 – Seria tapar o Sol com a peneira. Se O Estado de Minas, o principal jornal das Alterosas, dedica uma página inteira ao caso, como podemos nós nos calar?
 – Eu compro uma página inteira. Escrevam uma página inteira sobre o mamógrafo que eu instalei no hospital municipal.
 – Senhor prefeito,  o mamógrafo foi instalado em outubro, durante a campanha mundial contra o câncer de mama, o famoso Outubro Rosa,  e já estamos em março!
 – Não importa! Câncer de mama dá o ano inteiro!
A despeito das belas cachoeiras, do doce de jabuticaba e do queijo Minas tombado como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Alvinho dos Santos ainda era a principal atração turística de Santo Onofre de Minas – e essas acusações logo pesariam na economia do município e no bolso de Rodrigues, sócio do maior hotel da cidade. A destruição da imagem de Alvinho desestabilizaria o turismo antes que a prefeitura pudesse divulgar, como queria, as belezas naturais da cidade e suas tradições gastronômicas – há um ano, o prefeito convencera a Associação Comercial a patrocinar dois filmes de curta metragem de estudantes de Juiz de Fora, gravados na cidade, que agora andam sendo exibidos em mostras universitárias de cinema, e o grande hotel Roseiras tem dado cortesia a quantos jornalistas ali queiram passar seus fins de semana, em troca de elogios à cidade na mídia de outros estados. E, desestabilizado o turismo suscitado pela crença nos poderes milagrosos de Alvinho, como impedir que o líder da oposição, Osório Esteves, sócio de uma fábrica de papel, ali instalasse uma filial, poluindo de vez os cursos d’água, justamente eles, que Rodrigues queria transformar em atrativos turísticos? Mais: a fé na mediunidade de Alvinho, somada à tradição católica, era o que impedia o crescimento dos pentecostais na cidade, e foi nas igrejas pentecostais do Sul de Minas, fronteira com o Rio de Janeiro, que Osório Neves buscara os votos que o fizeram deputado. A desmoralização de Alvinho poderia garantir a Osório a cadeira de prefeito nos próximos pleitos e aí, adeus, águas cristalinas!
Todas essas questões Rodrigo Rodrigues expôs a seus sócios e correligionários, em reunião a portas fechadas numa suíte do hotel Roseiras. Seu Expedito, gerente da agência dos Correios e primeiro suplente do partido na Câmara Municipal, pediu a palavra:
 – Senhor prefeito, a minha agência dos Correios fica na esquina da Rua João Guimarães Rosa com Irmã Josefina Neves. Aliás, oficialmente, na Rua Irmã Josefina Neves 78.
 – E o que tem isso?
– Daí que eu criei um blog sobre a história de nossa cidade, que diz quem foi cada pessoa que dá nome às nossas ruas. Todo mundo sabe que João Guimarães Rosa é o imortal autor de Grande Sertão: Veredas, mas ninguém sabe quem foi Irmã Josefina Neves. Eu sei.
 – E quem foi?
– Uma freira que lecionava Geometria num colégio católico de Belo Horizonte, mas aqui nasceu e aqui morreu de velhice. Por acaso, era prima de minha bisavó e irmã da bisavó de Osório Esteves. E se cada um de nós encomendar uma missa, cada uma numa igreja diferente de diferentes cidades, em dias diferentes, agradecendo graças alcançadas pela intercessão de Irmã Josefina? E se os jornalistas e poetas da cidade começarem a divulgar as bênçãos alcançadas pela fé em Irmã Josefina? Se a fama dela se espalhar, não poderá substituir de forma mais duradoura a fama de Alvinho? Osório Esteves usará a fé pentecostal contra a memória de uma parente sua?
Rodrigo Rodrigues mandou uma mensagem para o presidente estadual do partido. O nome de Seu Expedito deveria ser levantado para deputado federal.
(30 de dezembro de 2018.)





sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O Natal de Miriam




— Mãe? O que é o Natal?
A mulher, que preparava alguns legumes, sobre a mesa, olhou para baixo, para a filha, com cerca de sete anos. De seguida olhou para o marido, Josh, que se debatia com uma agulha, a coser uma peça de couro. Este devolveu-lhe a mirada, com uma expressão enfastiada, como que percebendo o que vinha por aí.
— Nunca ouviste essa palavra, Miriam? — A mãe sentou-se num bloco de madeira, junto à lareira que crepitava e iluminava-lhe o rosto em tons de dourado.
Percebendo que aquele era o prenuncio de uma das fantásticas histórias da sua progenitora, a criança aconchegou-se no colo dela.
— Não. Apenas agora, quando a disseste. — Os enormes olhos da criança reluziam, expectantes. — Festejar o Natal? É uma festa, então.
O irmão da criança, pouco mais velho, interrompeu as suas brincadeiras e veio sentar-se junto deles.
— Já vi que hoje, vamos comer tarde… — Resmungou Josh, quase de si para si. — Podias deixar essas crendices para depois, Yara.
— Sim, é uma festa. Uma festa de aniversário. — A mulher ignorou o esposo, enquanto começava. — Há muitos, muitos anos atrás, numa terra, muito, muito longe, chamada Belém, nasceu uma criança. Era, porém, uma criança muito especial.
— Porquê? — Os enormes olhos de Miriam estavam fitos no rosto da mãe.
— O povo dessa criança, estava a sofrer muito, com uns homens chamados romanos. Eles estavam a escravizá-los e havia uma lenda que dizia que ia nascer um rei, que iria expulsar esses homens.
 — Ora! — Romi, o mais velho dos filhos criticou. — Se ia nascer ainda, bem podiam esperar que ele se tornasse rei. Já estariam todos velhos! E os romanos podiam matá-lo logo que nascesse, ou à mãe do rei.
— O problema, — Yara continuou, imperturbável. — era que ninguém sabia quem seria a mãe, nem onde nasceria esse rei. Mas as pessoas esperavam-no e desejavam muito a sua vinda.
— E quem eram os pais desse rei? — A curiosidade insaciável de Miriam não dava tempo para explicar.
— Ninguém sabia, como eu disse, mas foram escolhidas duas pessoas humildes, com poucos haveres, que viviam numa região chamada Nazaré.
— Humildes?!? Poucos haveres?!? — Romi não conseguia acreditar. — Um rei não nasce de pessoas assim! Quem os escolheu?
— Quando a mulher engravidou, veio um anjo, que lhe disse que iria trazer ao mundo um rei. — A mãe continuou pacientemente. — O casal escolhido era Miriam e Joshua.
— Como eu e o papá! — A menina estava felicíssima.
— Que é um anjo? — O rapaz estava interessado noutros temas.
— Anjos, são seres de luz, que habitam noutra dimensão. Sós os vemos, se eles quiserem.
— Yara. — Josh censurou, sem, no entanto, deixar o trabalho. — Vais assustar as crianças.
— Não fazem mal a ninguém. — A mãe sossegou-os. — São mensageiros do Senhor dos Céus e foi Ele, quem escolheu e mandou o anjo avisar Miriam.
— Não foi muito esperto, esse Senhor dos Céus. — Afirmou Romi com desdém. — Se escolhesse alguém rico e poderoso, era muito mais fácil para o rei.
Josh e Yara olharam-se rapidamente e riram-se do comentário.
— Tens razão, meu filho. — Concordou a mãe. — Mas Ele preferiu alguém que não estivesse habituado a uma vida boa e sem dificuldades. Queria alguém que não sentisse falta dos luxos e andasse entre os pobres e doentes a consolá-los e a ver o que precisavam. Este, não seria um rei que comanda exércitos, mas o rei do amor e da compaixão.
— Então! — O rapaz ficou perplexo. — Eles não queriam um rei para lutar contra os romanicos?
— Romanos! — Yara corrigiu, sorrindo. — Sim, queriam, mas o Senhor dos Céus achou que eles precisavam era de amor e compaixão, numa altura em que se morria por qualquer coisa e os homens lutavam por tudo e por nada.
— Iiihh! Eles vão ficar zangados! — Concluiu Romi.
— Sim, ficaram, mas isso é outra história e agora estamos a contar a história do Natal. — A mãe teve de cortar as perguntas para poder continuar. — Um dia, Joshua e Miriam, tiveram de ir à cidade grande, Belém, porque tinham de resolver uns problemas lá e foram muito preocupados, porque a criança estava quase a nascer. Mesmo assim, fizeram a longa viagem entre as duas terras, naquele tempo andava-se quase sempre a pé e quando chegaram lá, já era de noite e não arranjavam um sítio para dormir. Andaram de porta, em porta, mas ninguém os ajudava e acabaram por sair da cidade, onde encontraram um barracão de uns pastores para ficar.
As duas crianças estavam penduradas das palavras da mãe, de olhos vivos e atentos.
— Foi assim que o rei dos homens nasceu. Num monte de palha, dentro de uma barraca de pastores, aquecido pelo bafo dos animais que lá se abrigavam. Chamaram-lhe Yeshua. — Não se ouvia um ruído, enquanto ela continuava a narrativa. — Passado algum tempo, começaram a chegar pastores e alguns agricultores com roupa e comida, que ofereceram ao casal e ao recém-nascido. Por fim, até uns reis, vindos de terras distantes, trouxeram prendas valiosas que lhes ofereceram também.
— Como é que essa gente soube? — Miriam estranhou. — Se eram pobres e ninguém sabia que estavam para ali?
— O Senhor dos Céus mandou um anjo avisar as pessoas em volta. E os reis que vinham de longe, já há vários dias seguiam uma enorme estrela brilhante, que atravessava o céu e pareceu parar exatamente por cima do barracão. Todos souberam que aquela criança iria ser muito importante na história da humanidade. Desde essa altura e por muitos, muitos anos, neste dia, o do nascimento de Yeshua, as pessoas davam prendas umas às outras para lembrar o nascimento desse grande rei. Por isso, hoje também vocês vão receber uma prenda. — Dito isso, ergueu-se e presenteou ambas as crianças com um pequeno prato com duas fatias de pão com mel, sorrindo de satisfação perante a alegria deles. — Até o resmungão do vosso pai tem. — Ela apresentou a mesma iguaria ao homem, que pousou imediatamente o trabalho.
— Onde arranjaste isto? — Quis saber o esposo, por entre gulosas dentadas.
— Parece que finalmente, a colmeia que o nosso vizinho tantos se tem esforçado para recuperar, está a ter resultado. — Também Yara se deliciava com o petisco. — Finalmente as pequeninas abelhas se estão a adaptar à atmosfera e a produzir esta doçura.
— Porque é que agora não se festeja o Natal, mãe? E não se fala do rei Yeshua? — Miriam havia devorado a sua porção e estava pronta para mais perguntas.
— Os homens foram-se esquecendo destas histórias e preocuparam-se com outras coisas. — O rosto da mãe era triste. — Durante algum tempo, diziam até, que Yeshua era o culpado das coisas más que lhes aconteciam e que eram apenas consequências das ações deles. Mas isso não interessa agora, mas sim que devemos lembrar que todos os anos, neste dia, é como se Yeshua nascesse outra vez e os pecados dos homens são perdoados.
Como um raio, Miriam correu porta fora e perscrutou avidamente o céu, em busca da estrela brilhante que assinalaria o local onde nascia Yeshua. A abóboda celeste estava imperturbável, continuava coberta de pequenos pontos brilhantes onde, a espaços, um risco veloz aparecia e desaparecia. Sentindo-se um pouco desiludida, sentou-se na entrada da porta. Quem sabe, a estrela ainda apareça, para lhe indicar o caminho. Talvez estivesse, ainda escondida, por trás de uma das três enormes luas, quase alinhadas, que lhe iluminavam a noite.







terça-feira, 26 de novembro de 2019

Borbotão



















E me pergunto por que eu escrevo
por que eu ainda escrevo
— apesar dos tudos todos
apesar de todos
apesar de mim —
por que mesmo assim
com falta de jeito
(as musas e as fadas estão escassas)
quanto ruído
(os colibris rarearam há tempos)
por que não paro de escrever.

Se ele não vai ler.

Se há tanta obra ótima de gente ótima
nas estantes das casas na biblioteca na nuvem na livraria nos universos da universidade
no rol dos prêmios internacionais interculturais intergaláticos
no cânone no novo cânone no novíssimo cânone
nas bienais badaladas festas nos clubes do livro
nos vídeos do booktuber com mais de cem mil inscritos
se há tanta gente produzindo coisa que vale a pena que vale resenha que vale entrar na lista.

Se não quero edição emenda palpite se não quero opinião
se eu continuo querendo ter nascido clássica prontíssima irretocável
se me zango, dolorida, com crítica pesada cítrica ácida cáustica.

Se sinto náusea só de pensar
que ele não vai mesmo ler
ele não vai se interessar.

Fico pensando por que mesmo assim eu escrevo
se a infância não volta
e os boletos estão na gaveta de cima
impostos também na gaveta de baixo
— não completo mais um sonho no travesseiro —
e há necessidades não impressas e inadiáveis
corro o risco de perder o emprego a casa a esperança
se as doenças avançam com o aceno da velhice
se o tempo não nos redime de nada nadinha
menos ainda da falta de tempo
se maracujaremos todos até a morte ou morreremos antes, com pele ainda rija
(não há chá nem pinga nem verbo que refreie essas verdades)
se o meu bendito três-parágrafos
por mais lindo e queridinho que seja por mais criativo e refinado e exato
pode cansar mendigando piedade anistia
que não vai impedir.

Mas por que mesmo?
Se o anonimato me persegue
não agendaram meu passeio na cacunda do jabuti
se minha voz não merece escuta
se mil vozes se misturam
sou lugar-comum
mais ou menos mais pra menorzinho
se tenho problema com enredos improváveis contextos impróprios invencionices
se engulo vírgulas e as vomito onde não cabem
e vocês sabem
nada disso resolve nossas lacunas existenciais.
(Mas eu queria sarar em setembro com aquele verso escorregado da panapanã. E esse verso não brota. Não há primavera. Tô ficando mais doente.)

Escrever pra quê?
Se meu verso não abala estrutura
não arranca a dor de arrancar o siso
se não trata preconceito
nem abraça quem tem frio
se meu texto não vira emprego
não consola a mulher que apanha
não alimenta o bebê nem livra a menina do pai que abusa
nada alivia
minha fala não tem serventia.

Se as famílias indígenas estão sendo extintas
se a rede e a vaidade envenenam as crianças
elas já pensam em partir depressa
— o aluno negro só queria ir à escola
mas não chegou nem chegará.

Se a vida fica cada vez mais chula
o fascismo vestido de gente de bem
o danado insuportável impraticável execrável
usando até o nome de Deus. 
Tortura ligeiro virando lei.
Pra quê, então?

Só como prova de que estou viva e me importo com o que dói em mim e no outro?
Porque não me basto
só resta o consolo de que nada resolvo e só me complico
porque a vida é assim também
essa mistura de acaso com falta de propósito mais falta de dinheiro mais falta de revolução 
(o amor vem falhando)
essa doideira de causa consequência loopings descalabros desprogramados?
Porque a morte ninguém explica
só se vive (mais a dos outros que a nossa)
nenhuma palavra que se invente vai servir
nem pra “vida é bonita e é bonita”
e não adianta, que eu continuo borbotando teimosia?

Escrever por quê? Para quê? Se há só razão pra se livrar de desejo tão pentelho!

Mas por que não? Como não? Já que é esse mesmo meu motor meu destrambelho
só desse jeito sei sentir e vivo?

Se ele não ler, eu nem ligo.


Maria Amélia Elói






segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Os vertiginosos dias de uma escritora diletante



Quando a inspiração chegou, a escritora ainda dormia. Eram nove horas de sábado.
Keravnó, o muso relutante, já estava habituado a escritores. Com o seu ar vagamente monástico, a fazer lembrar Afonso Cruz, sentou-se num cadeirão de canto e esperou. Eram quase onze horas quando a escritora apareceu, mole e olheirenta, e foi logo para o computador.
Estás com pica para escrever?
Ah, que susto! — sobressaltou-se a escritora. — Olá! Sim, mas primeiro vou enviar uns mails, ver as notícias e consultar as entradas no meu site. É só uns minutos.
Três quartos de hora depois, o muso voltou à carga, com bonomia:
E agora, podemos começar?
Ó pá, deixa-me só enviar mais uns mails.
Mas não tinhas já enviado?
Já te expliquei que eu envio mails de divulgação do meu último conto publicado para milhares de endereços. E não posso enviá-los todos logo, porque o sistema só permite cem de cada vez. E também há um limite diário. Aguenta um pouco!
O muso respeitou o envio de mais um pacote de divulgação. Logo depois:
Porque é que não publicas um livro e já evitas esse trabalhão?
Keravno, as editoras não querem saber dos meus contos. É por isso que optei pela divulgação virtual.
...vnó, Keravnó! — corrigiu o muso. — Se calhar, é porque não prestam… Comercialmente falando, claro!
Ó caríssimo transportador da inspiração — matraqueou a escritora —, eu não preciso de sarcasmos desses! Mas Vossa Senhoria pode atirá-los à vontade, sabe porquê? Porque os meus contos estão fartos de ser reconhecidos em dezenas de concursos literários. Concursos não mentem.
Achas? Queres dizer que comprovam que os teus contos têm qualidade?
Quero acreditar que sim. Só que as editoras não arriscam. Se eu fosse uma figura pública era mais fácil. E também podia pagar uma edição, mas as editoras depois querem que seja o escritor a vender os livros aos amigos. E isso eu não quero. Prefiro enviar-lhes os contos de graça.
Já pensaste em desistir?
O gozo que me dá escrever não tem igual. Sobretudo, saber que sou lida. Desistir está fora de questão. As novas tecnologias permitem-me contornar a barreira entre escritor e leitor que as editoras, paradoxalmente, significam. Obtenho cerca de duzentas, trezentas entradas em cada conto. Tomaram muitos livros ter esta saída!
Dá-te gozo escrever ou ser adulada? Imagina que enviavas os mails e ninguém te ia ler!
A escritora baixou a cabeça, pensativa.
Aí, não sei! Agora não quero pensar nisso. Vou fazer uma pausa para almoço.
Mas quando é que tu escreves?
Tenho tempo. Só quando tiver a história toda articulada na cabeça.
Ok! Mas toma atenção que não és o centro do mundo; tenho muita gente à espera; cada vez mais…

Pelas duas da tarde, Keravnó voltou à carga:
É agora?
Oh, agora estou mole. Deixa-me fazer uma pausa para ver a minha série. Depois falamos: mas primeiro vou enviar mais cem mails.
Hora e meia depois:
E agora?
Oh, que chato! Tá bem… Eh, pá, mas hoje não dá muito jeito. Tenho que escolher o conto para um concurso que termina depois de amanhã.
Isso é rápido, não?
Nem por isso. Tenho de ver que número de páginas pedem, se o tema é livre ou não. E, sobretudo, se exigem ineditismo. Se não exigirem, tenho muitas dezenas de contos; já inéditos são menos de vinte. Depois de escolhido, tenho de o voltar a ler com atenção. Há sempre coisinhas para alterar. Olha, porque é que não voltas amanhã? Aí víamos isso com calma.
Vê lá se não te arrependes…

No dia seguinte, às nove da manhã, Keravnó apresentou-se ao serviço. Instalou-se no cadeirão que já conhecia e entreteve-se a folhear a Odisseia que estava por ali. A olheirenta e desgrenhada escritora apareceu pelas onze e meia.
Bom dia! — cumprimentou o muso em tom festivo.
Ai, que parvo! Não me apareças assim.
Vamos à obra?
Já te disse: a primeira coisa é enviar mails, depois ver quantas entradas tive no meu site, depois mais mails, depois almoço, depois série. Depois… O que não falta são tarefas: responder a quem me comentou, pesquisar concursos... Ó pá, hoje não dá. Tenho de publicar um conto num site coletivo. Já sei que conto vou publicar, mas tenho de revê-lo mais uma vez e escolher uma imagem adequada para o ilustrar, geralmente, uma pintura. Volta amanhã, se te der jeito! Mas só depois das sete, que amanhã é dia de trabalho.
Amanhã não sei se posso, mas diz-me ao menos que tema pensas tratar. Também tenho de me preparar!
Não desarmas; és incrível! Quero falar sobre a situação especial da mulher; da sua traiçoeira condição física, digamos assim. Há dias, pensando nisso, surgiu-me a ideia geral do tema: “enfrentar o mundo com uma vagina”. Não sei de onde me veio a ideia.
Keravnó sorriu subtilmente.
E é tudo?
Tenho vindo a desenvolver a ideia. De “enfrentar” adveio-me a ideia de confronto, guerra, armas. E de como o espírito agressivo do homem macho se alimenta da testosterona e da imagem potente do pénis. Para o homem, o esplendor do seu pénis ereto só é comparável à majestade de uma espada refulgente erguida em glória. Ora o equivalente “feminino” da espada é… a bainha. “Enfrentar o mundo com uma bainha” deverá ser o título, para não ser tão sexualmente explícito.
Interessante! É por causa dessa ideia que andas a ler a Odisseia?
Sim, como é que suspeitaste? Lembrei-me da Penélope. Em que outra mulher famosa é tão evidente a impotência física feminina, perante a ausência da espada do marido? O que pode ela fazer com uma bainha? Pode muito, mas não numa lógica de confronto e violência. Terá de ser através da suavidade e da astúcia: a arma dos “fracos”. E é a astúcia que Penélope vai usar. Mas amanhã falamos melhor. Tens tempo?
Se já sabes o que vais escrever, escuso de cá vir…
Tens de vir! Entre esta ideia, que nem sinopse é, e uma história intensa e luminosa há uma multidão de aspetos a criar e a articular. Vá lá! Não me abandones agora. Preciso de um início que desperte curiosidade imediata, de uma trama com peripécias engenhosas, mas verosímeis, de um clímax intenso e de um final surpreendente e inspirador.
Vamos a ver... Às seis da tarde tenho uma miúda talentosa da Régua, que está agora cheia de pica. Talvez ela se despache! Senão, começa sem mim! Pelo menos, podes continuar a ler a Odisseia. A pesquisa dá sempre bons resultados.

Joaquim Bispo
*
Este texto foi um dos 20 selecionados no concurso literário do Motus — Movimento Literário Digital, da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e integra — páginas 35 a 38 — o número #3 da revista digital Motus de outubro de 2019.

*
Imagem: Egon Schiele, Nu feminino deitado, 1917.
Galeria Moravská, Brno, República Checa.
* * *






sábado, 23 de novembro de 2019

O MENDIGO DO VIADUTO DO CHÁ



A moeda corrente era o cruzeiro. A passagem de ônibus custava sessenta centavos. O ano era 1974.
Eu trabalhava no centro da cidade, em um banco que ficava na Rua Boa Vista. Morava longe, quase ao final da Avenida Interlagos, e usava diariamente o transporte coletivo. Meu trabalho, no departamento de estatística, resumia-se a somar os números datilografados em planilhas e mais planilhas fornecidas pelas agências do banco. Somas que deveriam ser checadas, e que eram efetuadas nas antigas calculadoras elétricas com suas infernais bobinas, conferidas e grampeadas nas respectivas planilhas. Não fosse o café para espantar o sono durante as diárias e rotineiras oito horas de trabalho, nenhuma soma teria sido confirmada.
Era uma época menos violenta. Havia assaltos, furtos, mas com uma incidência infinitamente menor que a de hoje. Não existiam caixas eletrônicos, nem cartões de crédito ou de débito. Os mais abastados faziam uso de talões de cheques, e os remediados, feito eu, carregavam dinheiro vivo. Minguado, mas estava ali.
O meu dinheiro ficava em casa. Na bolsa eu carregava apenas os trocados das passagens de ida e volta. Numa repartição da bolsa, fechada com zíper, eu sempre colocava uma reserva de dois cruzeiros, a título de precaução para alguma pequena emergência. A comida eu levava de casa, não havia despesas maiores no dia a dia. Todas as compras da semana eram feitas na feira de Santo Amaro, aos domingos.
A metrópole sempre está em construção, mas naqueles dias o centro era uma escavação só. Com a construção do metrô, as enormes retroescavadeiras, os gigantescos guindastes, as malditas britadeiras com seus trêmulos operadores, tudo somado remetia a um ruído enlouquecedor, trazia um desassossego sem medida. Caminhar por ali era angustiante.
Certa manhã, cruzando o Viaduto do Chá, deparei com um vendedor ambulante que oferecia selos e envelopes de carta. Como o meu estoque havia acabado, fiz a compra usando a pequena reserva de emergência que carregava na bolsa. Sim, tínhamos o costume de escrever aos amigos e parentes distantes e os serviços dos Correios eram a forma mais barata, segura e eficiente de comunicação.
Na escada que ladeia o Viaduto, trajeto que eu fazia diariamente na ida para o trabalho e na volta para casa, encontrava sempre um homem cego, com uma perna amputada, a mendigar. Estava sempre acomodado no degrau mais alto da escada, rente ao muro que sustentava o corrimão. O movimento dos pedestres era intenso na escadaria, e, muitas vezes fiquei em pé, atrás do mendigo, aguardando um espaço para passar. Movimento que piorava na hora do rush.
Interessante como o mendigo se integrava à paisagem. Aquele homem fazia parte daquele lugar. Não consigo me lembrar da escada sem a presença dele, lá, no alto. Reparava que sempre colocava as muletas perfiladas junto ao muro, de maneira a não atrapalhar os transeuntes. Eu não sabia como ele chegava até ali, não sabia onde morava, não sabia como se alimentava... Eu o cumprimentava na ida e na volta, nunca deixei de dizer bom dia e boa noite. Isso mesmo, boa noite! Quando passava por ali, na volta do trabalho, mesmo com a noite chegando, o homem continuava lá, no mesmo lugar.
Numa sexta-feira, subindo a escadaria, pensei que, apesar de ficar tocada pela fragilidade do mendigo, pela sua situação miserável, nunca havia doado uma moeda para o pobre homem. Enfiei a mão na bolsa, peguei as moedas que estavam lá e as coloquei na lata que ele segurava nas mãos. Ao ouvir o barulho do níquel, ele agradeceu. Respondi ao agradecimento e segui o meu caminho.
Terminado o dia, era chegada a santa hora de voltar para casa. Na escada do Viaduto, no mesmo lugar, o mendigo. O movimento de pessoas era aterrador. Passei por ele, dei boa noite, e desci espremida na multidão.
Já na fila do ônibus, abri a bolsa, abri o zíper do compartimento da reserva... Não havia reserva. Depois que comprei os envelopes e os selos não fiz a reposição. Puro esquecimento... Meu Deus, como eu voltaria para casa?!
Passei os olhos pela fila, pessoas estranhas, como sempre. Atrás de mim já estavam perfilados inúmeros passageiros. E eu ali... Sem expediente, sem saber o que fazer. Se fosse qualquer outra pessoa, poderia até pedir para que alguém pagasse a passagem, contaria a história. Mas não eu. Nunca!
Saindo da fila e vendo a noite chegar cada vez mais rápido, fui entrando em pânico. Não demoraria muito e naquela parte da cidade não haveria mais pessoas nas ruas! E eu, o que faria?!
Desesperada, não vislumbrando outra saída, pensei no mendigo. Eu havia dado a esmola naquela manhã, eu poderia pedir o dinheiro de volta. Não! De volta, não! Eu poderia pedir a ele o valor da passagem como empréstimo, e o pagaria no dia seguinte. No dia seguinte, não! Na segunda-feira... Fui pensando nisso e andando na direção da escada. Será que ele ainda estaria lá?!
Apressei o passo e aos trotes fiz o caminho de volta. Quando olhei para o alto e o vi lá em cima, no mesmo lugar, fiquei feliz, aliviada. Quero dizer, um pouco aliviada porque o pior ainda estava por acontecer. Eu teria que negociar com ele um pequeno empréstimo. Que situação! Eu nem sabia como iniciar a conversa.
Quando cheguei ao topo da escada, eu estava ofegante, suando em bicas. O suor descia pelas costas e empapava o cós da saia... Sentei-me no degrau abaixo do dele, e fiquei recostada no corrimão por alguns instantes. Não sabia o que falar e ele não podia me ver! Relutei, ensaiei, preparei e num arroubo disse:
- Senhor!
O pobre homem levou um susto tamanho, estremeceu e jogou os braços à frente, como que para se defender. E aí fiquei ainda mais desconcertada, se é que poderia.
- O que aconteceu?! – disse ele, muito assustado e querendo uma explicação para aquele grito.
- Senhor, por favor, eu não queria que o senhor se assustasse. Sou assim mesmo, toda atrapalhada, sem jeito... – eu disse.
O homem, sem compreender nada, ainda se refazendo do susto, deu uma ajeitada no corpo, e virou o rosto para o meu lado, guiado pela minha voz.
E eu continuei:
- Senhor, preciso da sua ajuda, mas nem sei como começar a falar...
O mendigo, com muita serenidade, disse:
- Dona, fala com calma. O que está acontecendo com a senhora? Pode ter certeza de que vou ajudá-la.
Então, comecei a contar que trabalhava ali no centro, que passava por ali todos os dias, e que naquele dia havia dado uma ajuda a ele, contando com a reserva de dinheiro que na realidade não havia... O homem ouviu atentamente, e me disse:
- Eu conheço a sua voz. É a mesma voz que me cumprimenta todos os dias. Eu tenho esse registro.
Encabulada, num constrangimento sem tamanho, confirmei:
- Sim, eu sempre cumprimento o senhor... Mas agora preciso de ajuda para ir para casa. O dinheiro que lhe ofereci hoje era exatamente o valor da minha passagem. O senhor poderia me fazer um empréstimo e eu devolveria o dinheiro na segunda-feira?! Prometo que pago, sem falta!
O pobre homem riu, solicitamente estendeu a latinha com algumas moedas e disse:
- Dona, pega aqui o que a senhora precisa e não vamos falar em pagamento, está bem?
Fiquei vermelha quando vi a lata bem perto dos meus olhos. Olhei as pessoas que passavam por ali... Meu Deus, o que estariam pensando?! Como reagiriam quando eu metesse a mão na latinha para pegar as moedas? Será que pensariam que eu estava roubando o mendigo?!
O homem, que mantinha o braço erguido balançando a lata, disse:
- Vamos, pega as moedas!
Aflita, envergonhada, mas sem outra saída, enfiei a mão na lata e peguei sessenta centavos. Com a outra mão, toquei a mão dele e a abaixei. Assim ele entenderia que eu havia retirado as moedas.
O mendigo deu tapinha carinhoso na minha mão, e docemente tentou me acalmar, dizendo:
- Vai, dona! Segue o seu caminho, está tudo certo.
- Obrigada, meu senhor! Na segunda-feira, sem falta, eu acertarei esse empréstimo. Pode acreditar! – falei.
Desci a escada numa ansiedade danada. Só pensava em entrar no ônibus, em desaparecer da frente daquelas pessoas, em voltar para casa... O movimento dos passageiros já era muito menor, e com isso havia assentos livres. Exausta, joguei o corpo sobre um deles. Ajeitei a bolsa no colo, e, inevitavelmente, caí no choro. Chorava pela aflição do momento, chorava pela generosidade do mendigo, chorava pela solitude na multidão, chorava... Só queria chorar.
Na segunda-feira, saí mais cedo de casa, saldei minha dívida depois de uma longa conversa e de muita insistência, e descobri que ganhei mais um amigo. Ah! O nome dele é Pedro...
Regina Ruth Rincon Caires
Araçatuba/SP





quarta-feira, 20 de novembro de 2019

SABER LER

No balanço do comboio de Braga para Lisboa, mal percebo a beleza da ponte de ferro no Porto quando cruzamos o Rio D’Oro. Estou acalentado pelo desejo de Portugal, ainda mais que meus olhos embaçam diante das letras de um dos maiores escritores contemporâneos da terrinha: Walter Hugo Mãe. Sua escrita já me levou aos everestes da emoção, mas nunca como o conto O Menino da Água, do livro Contos de Cães e Maus Lobos.

Os deuses da sensibilidade à flor da pele conspiram. O inconsciente manda recados. A riqueza da produção literária portuguesa se junta à qualidade de vida e a um renascer sossegado que Portugal me sinaliza, alimentando sonhos ousados, sem certezas absolutas, mas com a coragem que a vida exige.

O conto em si é de uma beleza estonteante. Uma mãe perde o filho tragado pelas ondas do mar, que não o devolve. A mãe, então, deixa de se enxugar depois de chuvas e chuveiros, só para sentir na pele o filho que a água lhe roubou. Só de resumir minimamente a prosa, águas brotam nos meus olhos, mas o desenvolvimento literário do texto, o esculpir das frases, a delicadeza da narrativa são algo de indescritível e imperdível. Ao reler o curto conto pela terceira, quarta, quinta vez,
me vem Gilberto Gil.

Gilberto Gil? Sim. Um dia, ouvi numa entrevista sua afirmativa de que tão meritório e necessário quanto o talento de criar é o talento de apreciar. Afirmativa verdadeira. Ler não é apenas ouvir para si próprio uma combinação de letras. Ler é interpretar e sentir o que é bordado pela escrita, com todas as sutilezas, intenções veladas, sentimentos, ousadias, complexidades e construções bem lapidadas por quem, no outro lado da ponta, tem o talento de produzir. Na ponta de cá, há que se ter talento para ler.  É  se deliciar com o oficio do criador, sentindo que, como leitor extasiado, a criatura lhe pertence.

Quando Chico Buarque escreve - sim, ele escreve na música - “na bagunça do seu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu”, dá-se uma hemorragia  de leituras e sentimentos em quem tem o talento de apreciá-lo e percebê-lo como um dos melhores produtores de literatura do mundo. Saber respirar Chico Buarque é oxigenar a alma.

A letra da canção Quereres de Caetano Veloso é de um raro garimpo profundo na arte de dizer coisas. Repare este trecho.
“Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és”
Sentiu? Pense quantas coisas cabem nesse tecido de palavras.

Eleonor Rigby dos Beatles não é apenas uma música a ser cantarolada. Quem tem talento de saber
ler de olhos fechados descobre um conto melancólico, onde uma infeliz cata o arroz no chão de uma igreja onde um casamento acaba de acontecer. É um chão apinhado de grãos, leituras e poesia.

“É pau, é pedra, é o fim do caminho. É um resto de toco, é um pouco sozinho.” Tom Jobim escreveu em Águas de Março. Mas pode-se e deve-se ler o pau que quiser, a pedra que quiser, o toco que quiser, o caminho que quiser. Não tem fim.

Outro dia, pesquei numa dessas pelejas de redes sociais um web comentarista, não percebendo as figuras de linguagem contidas num texto, partiu a deitar literalidade sobre uma hipérbole  talentosamente colocada para exagerar e, portanto, dramatizar uma situação. Pena. Perdeu a oportunidade de usufruir do dom da abstração ao se curvar ao pé da letra, certamente impulsionado por opiniões cristalizadas. É a escuta sólida a rebater qualquer fala que lhe venha na contra-mão..

Falei em dom. É possível que haja tal manifestação humana, mas se não for exercitada, terá o destino de se perder na obviedade da objetividade, algo oposto ao subjetivo que seduz, encanta e provoca evolução de corações e mentes.

A voz suave do comboio anuncia que estamos a chegar na estação de Santa Apolónia em Lisboa. Há evidências ululantes que trata-se de uma informação objetiva. Mas já que os deuses da leitura
são generosos, os próprios me lembram, através do aviso da moça, que estou prestes a enxergar a foz do doce Tejo provando o sal do Atlântico, nas mesmas águas por onde partiram para descobrir - por intenção ou acidente, tanto faz, livre interpretar é só interpretar - o que mais tarde vieram a chamar de Brasil.

Águas, sempre águas, tantas águas transbordam das palavras. Acho que Walter Hugo Mãe entrou nas minhas veias e não se perdeu.





domingo, 17 de novembro de 2019

Puerpério - Poema de Matheus Bibiano Branco






Puerpério





O rádio de pilha tocava a sépia,
Minha mãe mineira e crespa,
Como a cinza do cigarro,
A tomar uma cerveja de seiscentos,
De duas que comprei no boteco
Quando ainda vendiam às crianças.
As roupas no varal desprezavam o cheiro do mato
Enquanto o cão mijava na ciência de espera
Feita pelo gado com massa e argila nas bocas.


Pensava de morrer, pensava primeiro
De não deixar a mãe baleada de espinhos
- por isso a cerveja, a vela pro santo,
O limão-cravo, os cacos de vidro no muro.
Minha mãe com olhos de luneta pro quintal:
Sabia dela e do copo americano com engano dentro.
Mas até hoje mal compreendi, também não quero
Saber o porquê daquele sol sempre enforcado.



Do livro Entre o beiral e o abismo, Editora Patuá








sábado, 16 de novembro de 2019

Trocando de pele (despudoradamente inspirado em A Metamorfose, de Franz Kafka)

Quando certa manhã Berta despertou, depois de um sonho intranquilo, deu por si embaixo da cama. A princípio, teve dúvida se poderia iniciar dessa maneira a descrição dos acontecimentos, com uma frase despudoradamente roubada a um grande autor, mas concedeu-se a licença e o uso da ideia. Sem nenhum remorso pela usurpação. 
Lembrava-se do corpo se revirando entre os lençóis pintados de borboletas, na véspera. Lembrava-se das dores. Não daquela habitual, de quase todas as noites, mas de uma outra, diferente, que sentiu em cada membro, em cada órgão que se remexia, se esticava, transformando-a numa coisa alongada e perigosa. Em uma coisa fria e silenciosa que rastejou entre os sapatos e o tapete até se enrodilhar sob a cama e dormir. 
Achou graça na nova língua bipartida, que amanheceu testando os cheiros no ar. Podia sentir o veneno dentro de si. A toxina diluída em sua saliva, pronta para ser ejetada em picadas mortais. Quis se ver. Arrastou-se em direção à cômoda sobre a qual um espelho grande estava pendurado. Gostou do movimento sinuoso dos quadris lambendo o piso frio de porcelanato do quarto. Subiu com facilidade pela lateral do móvel de madeira. Leve. Corpo e propósito concentrados nas coisas que queria fazer, que deveria fazer, que faria. No cristal, a imagem borrada trouxe frustração. Esquecera-se da miopia das cobras. Até nisso se pareciam, ela e sua forma transmutada. Lamentou que os óculos, acomodados desde a véspera na mesinha de cabeceira, não lhe servissem mais agora, nessa reinventada concepção de si mesma. Do alto da cômoda, lançou para fora, mais uma vez, a língua dupla, experimentando os odores do próprio quarto.
Ouviu passos do outro lado da porta e imaginou alguém entrando e se deparando com ela. A mãe, preocupada com o fato de ela não ter ido para a escola. A irmã, para pegar emprestada alguma peça de roupa. A avó, para oferecer um pedaço de bolo, uma laranja, um suco fresco, um carinho. Ele. O padrasto. Procurando por ela sob qualquer pretexto idiota. 
Não. Ainda não era hora. 
Escondida pelas dobras da cortina, ouviu a mãe entrar e chamar por ela. Berta? Berta? Berta, onde você está? Sentiu-se tentada a responder. Mas a mãe não a compreenderia. E ela não podia correr o risco de ser ferida ou morta. Ou enxotada de casa.
Novamente, passos. A avó entrou sem bater, carregando uma bandeja. Estranhamente, os pães de queijo e as frutas não a apeteceram. A fome que ela tinha agora reclamava outro alimento. Alguns ratos no quintal. O canário do irmão, acuado na gaiola. Mais tarde, antes de matar o primeiro bicho, iria achar que não conseguiria. Mas, do bote até engolir cada animal, sentiu apenas fome, prazer, saciedade. Com os roedores, tudo foi mais rápido. A caça, a morte e a refeição executadas somente por instinto. Com o canário, uma hesitação. Que pôs em cheque as duas Bertas. Uma que pensava sobre a perda que seria infligida ao irmão, tão apegado à ave; outra que só seguia cumprindo o seu papel na cadeia alimentar. 
O canário morreu, basta dizer.
Como era bom ser Berta assim. Esgueirando-se pelas quinas das paredes, pela umidade das calhas. Escondendo-se sob os móveis, entre as plantas, no fundo dos armários. Roçando a pele fria e dura nos pés da geladeira e do fogão, nos pneus dos carros. Arrastando-se pela grama, pelos cascos das árvores enfileiradas em quadrados de terra desenhados na calçada da frente. Uma casa inteira para ela, quintal e arredores. Como era bom ser Berta e dormir sob a cama, enrodilhada em seu próprio corpo. Esperando. Alheia ao rebuliço das pessoas procurando por ela. Ao choro da mãe, às rezas da avó, ao ar abobalhado do irmão que não sabia o que pensar. Ao padrasto, o único calado, quieto. Com medo de que ela tivesse ido embora para se afastar dele.
Os passos dele, pressentiu-os — antes de ouvi-los. A porta se abriu sem qualquer ruído. Alerta, a língua farejou o ar, confirmando o cheiro do padrasto. 
Onde está você, minha bonequinha? Onde? Volta pra mim, meu docinho! 
Esperou que ele se sentasse na cama. Arquejante. Excitado pelo simples toque no lençol pintado de borboletas. Esperou que ele começasse a se masturbar, a mão suada se agitando  nervosa em volta daquele pênis duro que a penetrava com pressa, que a machucava com pressa. Então, deslizou suavemente até ele e subiu rapidamente por uma das pernas da sua calça, pegando-o de surpresa. Enquanto ele se debatia, tentando arrancá-la de dentro da roupa, os seus sensores de réptil a guiaram diretamente até os raios infravermelhos que vinham daquela fonte pervertida de calor. Sua língua bipartida saboreou antecipadamente algumas gotas de veneno. E, enfim, chegou ao alvo.
A picada só durou um instante. O grito, não. O grito durou muito mais.